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O desafio da escola
Lino de Macedo
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Ilustrações: Mário Röhnelt
ANO VIII Nº 32 NOV 2004/JAN 2005
A escola de hoje reconheceu
e aceitou o desafio de ensinar
o compulsório da vida para
todas as crianças e adolescentes.
O que ela precisa mudar
para ser capaz de ensinar
a todas as crianças?
para todos
cola de “hoje” reconheceu e aceitou o desafio de ensinar o compulsório da vida para todas as crianças e adolescentes. O que ela precisa mudar para ser compulsória
nesse segundo sentido, ou seja, ser capaz de ensinar a
todas as crianças?
Para responder a essa pergunta, penso que são importantes duas considerações. Primeiro, a escola de “hoje” deve
mudar a visão que a de “ontem” construiu sobre si mesma.
Segundo, a escola de “hoje” não pode esquecer em sua
crítica aquilo que continua valioso, apesar dos imensos desafios de sua consideração na atualidade.
De um lado, a escola, como qualquer instituição social, expressa os valores, as possibilidades e os interesses
das pessoas de seu tempo. Sobretudo, daquelas que têm
poder político e econômico, que têm condições – “herdadas” ou “conquistadas” – para determinar o que julgam “melhor” para si mesmas e para os representantes
de sua classe. Nesses termos, talvez caibam duas perguntas: a quem a escola de ontem servia? A quem serve
a escola de hoje? De outro lado, como comentei no início, a escola aceitou ser – e de fato é – depositária daquilo que é fundamental ou compulsório a qualquer ser
humano, mesmo que suas formas de expressão variem
no espaço e no tempo.
A quem serve a escola? Para responder a essa pergunta, proponho que lembremos, ainda que superficialmente, três modos de ser de nossa sociedade nos últimos séculos. O primeiro deles é o da sociedade produtora, isto é, comprometida com a fabricação de bens duráveis, resistentes. Sólidos também são seus valores, seus
compromissos e suas relações de trabalho. É a socieda-
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O
que a escola precisa mudar para ser compulsória? Responder a essa pergunta supõe, como
mínimo, refletir sobre o lugar sociocultural da
escola “ontem” e “hoje”. A pergunta em si mesma já expressa essa hipótese porque sugere que a escola de ontem não
era compulsória e que a de hoje quer sê-lo. Por que a escola de ontem não era? Por que a de hoje deve ser?
Consideremos que, em certo sentido, a escola sempre foi compulsória. Foi nela que sempre se depositou a
esperança e a confiança no desenvolvimento e na aprendizagem dos alunos daquilo que é compulsório para todos nós, não só na escola, mas na vida em geral. Amar
ao próximo como a si mesmo, ser digno, comprometido, responsável e tantos outros valores são “compulsórios” a uma certa visão de ser humano. Sem eles, predominariam a barbárie e a violência. Classificar, selecionar,
ordenar, fazer inferências, observar, comparar, quantificar,
concluir, fazer escolhas, tomar decisões, antecipar, corrigir e tantas outras “ferramentas” cognitivas são habilidades consideradas compulsórias ao ser humano. Sem elas,
nossa sobrevivência, nosso passado, presente ou futuro
ficariam extremamente prejudicados e sujeitos a toda
sorte de manipulações. Trabalhar em grupo, cooperar,
argumentar, compartilhar tarefas, construir coisas, divertir-se, criar, desfrutar a vida e tantas outras realizações
sociais são compulsórias ao ser humano. Sem elas, a vida
restaria sem sentido.
Os domínios lembrados entre tantos outros não são
privilégio da escola, tanto assim que culturas “não-escolares” os desenvolvem, inclusive de modo bastante complexo. O fato é que, em nossa sociedade, atribuiu-se à escola
um lugar fundamental para o desenvolvimento dessas
aquisições, sobretudo em crianças e adolescentes. Em resumo, se há coisas compulsórias é porque são melhores
para o ser humano e, se a escola compromete-se com seu
desenvolvimento, ela também se torna compulsória, ao
menos quanto aos conteúdos que pretende ensinar.
O problema da escola compulsória de “ontem” é que
era destinada para poucos alunos. Ela se restringia àqueles que tinham condições (financeiras, cognitivas, sociais, culturais, afetivas, biológicas, religiosas) de ingressar
ou permanecer nela, porque atendiam aos seus pré-requisitos ou pressupostos. Os outros, a grande maioria,
não ingressavam ou não ficavam mais do que alguns
anos, o que só confirmava sua falta de condições para
desenvolver na escola os conteúdos acima mencionados. Em outras palavras, a escola sempre foi compulsória, porque está comprometida em desenvolver bem o
que é compulsório a uma vida digna e plena, mas antes
ela só se permitia fazer isso com os poucos alunos que
tinham condições para atender aos seus critérios. A es-
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de que preza o emprego e o casamento para toda a
vida, que valoriza a família com muitos filhos, os quais
estendem e aprofundam a herança e os valores de seus
pais. Não importa que o trabalho vire rotina, que produzir seja mais um reproduzir, um fazer sempre igual, que
o casamento não faça sentido e que se sustente por
interesses externos ou pelo medo de mudança. Qual é
a melhor escola para essa sociedade? Quem são os melhores alunos para ela? Quais conteúdos escolares ela
deve privilegiar? Em sua lista, que competências e habilidades são requeridas de seus alunos?
Um segundo tipo de sociedade é a que valoriza o ter,
o possuir recursos materiais a serem acumulados. É a sociedade que preza o capital, que divide as pessoas por
suas posses, por seus bens materiais, por sua fortuna. Qual
é a melhor escola para essa sociedade? Como ela prepara crianças e adolescentes para serem bem-sucedidos neste
sistema? E as crianças que não têm condições materiais
para freqüentá-la, porque devem trabalhar, porque seus
pais não podem ter nem têm livros em casa?
Um terceiro tipo de sociedade é a que valoriza o consumir, o desfrutar mais e mais os bens produzidos e sempre aperfeiçoados ou diversificados. É a sociedade que
valoriza o instante, o substituível, o breve no tempo e o
próximo no espaço, já que os recursos tecnológicos cada
vez mais possibilitam isso. É a sociedade global, tecnológica, plena de invenções e descobertas. Possuidora
de recursos que facilitam nossa vida, que “sustentam” a
juventude de nosso corpo, que estendem nosso bemestar e que nos provêem facilidades e possibilidades de
consumo de todos os tipos. Uma sociedade que julga
ter superado o pesado, o difícil, o que precisa ser consertado e apreendido de modo lento e dedicado. Qual
é a melhor escola para essa sociedade? Como ela deve
preparar seus alunos? Quais competências e habilidades eles devem dominar para serem bem-sucedidos?
Produzir, ter e consumir representam ações e valores
que talvez resumam nossos principais esforços e êxitos
dos últimos tempos. Não importa que cada vez mais
menos pessoas tenham possibilidades para isso, que suas
reais condições de fazer parte dessa classe sejam precárias, incertas e difíceis. Não importa os tipos de ansiedade, de sofrimento, de exclusão e de desigualdade social
implicadas em nossos esforços para produzir, ter e consumir. O interessante é que essa mesma sociedade aprove leis e determine recursos a serem gastos em uma es-
cola para todas as crianças. O interessante é que essa
mesma sociedade reafirme o valor das coisas compulsórias para a nossa vida e que eleja a escola como o melhor lugar para que todas as crianças e adolescentes realizem essa iniciação.
Uma escola que aceita o compromisso de ser compulsória para todas as crianças deve valorizar a construção, a aquisição e o consumo de que coisas? O que
deve ser reconstruído criança por criança, porque esse
bem não pode ser comprado, nem está pronto para ser
consumido? O que o dinheiro de um aluno não pode
comprar e, portanto, permitir-lhe consumir fácil e imediatamente? O que está nos livros, no conhecimento ou no
domínio dos adultos, encarnado nas ferramentas ou
tecnologias, mas que precisa de novo ser inventado e
descoberto, ou seja, reconstruído por todas as crianças?
Essas coisas são as que listei no início deste artigo. E se
elas são compulsórias é porque não podemos sintetizálas nos objetos e nas pessoas que as possuem, pois necessitam ser reconstruídas segundo as possibilidades de
cada criança.
Penso que os comentários feitos até aqui sugerem a
importância de uma reflexão sobre a escola, agora na
perspectiva da criança. Como distinguir e relacionar criança com aluno? Aluno é uma categoria sociológica ou
pedagógica. Supõe dominar um “ofício”, tornar-se parte
de uma comunidade, qualificar-se para a realização de
certas tarefas, dominar ou aceitar regras (muitas delas
implícitas) que possibilitam esse pertencimento. Supõe
sofrer as conseqüências de uma certa compreensão de
sociedade, dos valores que a escola cultiva, dos recursos
que dispõe e dos limites políticos de seus agentes para
bancar seu projeto pedagógico. Ser criança, tornar-se
aluno: esta é a exigência de hoje.
No entanto, ser aluno é uma coisa, enquanto tornarse alfabetizado, por exemplo, é outra. Talvez possamos
obrigar a uma criança a ser aluno, mas não podemos
exigir que aprenda, porque isso supõe uma adesão afetiva
e um desenvolvimento cognitivo que a condição de aluno não é suficiente para dar conta. Uma criança pode
ser considerada aluno desde o momento em que se
matricula na escola ou que a freqüenta, mesmo que por
pouco tempo. Tornar-se alfabetizado implica uma transformação pessoal, com todas as suas implicações socio-
O problema da escola compulsória
de “ontem” é que era destinada
para poucos, restringia-se àqueles
que tinham condições de
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culturais. O desenvolvimento e a aprendizagem das crianças precisam de tempo e espaço para acontecer. Tempo porque sua realização não é fácil nem imediata. Supõe entregar-se e confiar em uma possibilidade, em algo
que, ocorrendo hoje (refiro-me às atividades do dia-a-dia
que favorecem a aprendizagem da leitura e da escrita),
só se confirmará pouco a pouco no encanto de se sentir
leitor ou escritor. Espaço porque supõe coordenar pontos de vista, prestar atenção a muitos detalhes, criar novas possibilidades, reorganizar a vida e, quem sabe, melhorar ou aprofundar as estruturas (cognitivas, afetivas,
sociais, etc.) que lhes dão sustentação. Mais do que isso,
tornar-se alfabetizado é confiar em uma proposta que se
faz ao aluno, é admirar em seu proponente suas habilidades de leitura e escrita, é querer tornar-se como ele.
Só se pode valorizar algo que não é (refiro-me a um aluno não-alfabetizado) pela admiração e pela vontade de
ser como aqueles que dominam tal habilidade e que
querem ensiná-la. Ser aluno, tornar-se (entre outras coisas) alfabetizado: esta é a exigência de hoje.
Criança é um tema de estudo da psicologia e, em
particular, da psicologia do desenvolvimento. Uma criança não precisa da escola para ser criança. Nessa perspectiva, ser aluno é apenas uma de suas possibilidades e
necessidades. Uma criança também é filho, tem irmãos,
amigos, brinca, vive o cotidiano de sua casa, de sua rua,
de sua cultura ou de sua religião. Elas são a garantia de
nosso futuro, quem sabe para melhor. Assim, se seu presente não for favorável a isso, toda a humanidade ficará
ameaçada. As crianças são nossos “pais”. Todo adulto
começou sendo criança. Um adulto é uma criança que
sobreviveu, que enfrentou e superou os desafios, as dificuldades, as doenças, o medo do desconhecido. É claro
que ela contou (contou?) com a ajuda dos adultos, com
seus conhecimentos e recursos, com suas instituições,
com seu amor e seus cuidados. Uma criança que nasce
é a humanidade que tem nova chance de rever seus
valores, suas práticas, suas formas de vida. Ou, ao contrário, de repetir sua insensatez, seus interesses mesquinhos, sua desigualdade.
Como não perder a criança, agora reduzida ao papel
compulsório de aluno? Uma criança sem tempo e sem
espaço para ser criança? Será que os alunos só podem
encontrar seu lado criança, ou melhor, compensar a fal-
ta que isso lhes faz nas brincadeiras desautorizadas, na
violência, na agressividade, no fracasso escolar? Poderá a
escola, uma instituição que representa e expressa os interesses dos adultos sobre aquilo que eles querem que os
alunos se tornem, também defender a perspectiva das crianças que nela estudam? Saberá articular esses interesses
com o que é compulsório para as crianças, porque as qualifica para uma vida melhor? Saberá garantir condições
para que as crianças possam ser apenas crianças, isto é,
para que vivam os interesses, as possibilidades desse período de desenvolvimento? Ser aluno, tornar-se criança: poderá a escola cumprir tal missão?
O leitor observou, com razão, que “desconsiderei” o
professor, o diretor, o coordenador pedagógico e todos
os outros profissionais da escola. Concentrei-me na análise dessa instituição, ontem e hoje, bem como na relação criança-aluno. Saiba, contudo, que foi para eles que
tudo foi dito, que foi neles que pensei o tempo todo. Por
isso, é para eles que dedico o presente artigo.
Lino de Macedo é professor titular
de Psicologia do Desenvolvimento
do Instituto de Psicologia da USP.
E-mail: [email protected]
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A escola de “hoje” deve mudar
a visão que a de “ontem” construiu
sobre si mesma, sem
esquecer em sua
crítica aquilo que
continua valioso
Para Saber Mais
GIMENO SACRISTÁN, J. A educação obrigatória: seu sentido educativo e social. Porto
Alegre: Artmed, 2001.
MACEDO, L. de. Ensaios pedagógicos: como
construir uma escola para todos. Porto Alegre: Artmed, 2005.
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