O na ordem do dia O Estado de Direito Democrático Questões da Justiça* António Arnaut Senhor Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio Caros Repúblicos Senhoras e Senhores O Senhor Desembargador Santos Cabral, presidente da República do Direito, notificou-me para abordar nesta sessão histórica – histórica por ter a presença do Senhor Presidente da República – algumas questões da Justiça. Preveniu-me, por despacho verbal imperativo, como é próprio dos juízes quando julgam sem alçada, que dispunha, no máximo, de 15 minutos. Assim sendo, vi-me forçado a escrever a minha intervenção, para a poder cronometrar, pois, como sabemos, os advogados são propensos a longas alegações, não tanto por retórica, mas porque têm a esperança de que os Senhores Juízes ouçam alguns dos seus argumentos… Contudo, apesar do limite temporal, tenho de ocupar um minuto para cumprir o grato dever de saudar, com respeito, amizade e admiração o Supremo Magistrado da Nação. A fórmula utilizada parece canónica, mas não é: o Presidente da República deve exercer – e o Senhor Dr. Jorge Sampaio tem exercido – uma verdadeira magistratura, ou magistério, no sentido de que a sua autoridade moral e política é a garantia do regular funcionamento das instituições democráticas e do estado de direito. A forma como tem cumprido o seu alto magistério é para nós motivo de gratidão e de confiança no futuro. Reportando-me agora aos autos, quero dizer, à ordem de trabalhos, vou suscitar, como me foi pedido, algumas questões da justiça, partindo dos seguintes pressupostos: 1.°) Estado de direito democrático é, com nos ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, um conceito integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia da sujeição do poder (e, portanto, também do poder judicial) a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos, liberdade, igualdade e segurança, destacando-se o princípio da constitucionalidade das leis e a protecção dos direitos, liberdades e garantias do cidadão. 2.°) A Justiça é atributo indeclinável da soberania e pedra axial do estado de direito, e os tribunais são o último reduto do cidadão contra as prepotências e as arbitrariedades. A justiça deve reunir em si todas as virtudes humanas, e consiste em dar a cada um o que lhe pertence – já o disse Ulpiano. Ora, o que mais pertence ao homem é a sua liberdade e dignidade. Daqui resulta que o sistema de justiça não se esgota nos tribunais. Começa na feitura das leis e termina na execução da pena, ou melhor dito, na reinserção social do delinquente. Quando as leis não têm em conta os valores da liberdade e dignidade, e são produto da conjuntura político-partidária, ou de lobis, tornam-se impróprias do estado de direito. No limite, como também nos ensinam aqueles Mestres, se forem arbitrárias, cruéis e desumanas (…) deixando sem qualquer defesa jurídica eficaz o indivíduo, entramos no domínio do estado de não direito. 3.°) Os tribunais, na sua ampla compreensão, ou seja, Juízes, Ministério Público, Advogados, têm por dever aplicar a lei, realizando o direito e a justiça. Aqui põe-se a questão – que apenas afloro dada a limitação do tempo – de, por vezes os agentes da justiça não estarem à altura da sua nobre função: os juízes – a quem cabe a maior responsabilidade, porque são eles que decidem – por falta de maturidade e experiência; os agentes do M.°P.° porque, de quando em quando, comportam-se mais como meros acusadores do que como magistrados; os advogados, porque abusam frequentemente de expedientes dilatórios que entorpecem a realização da justiça. Estas observações não põem em causa a seriedade e dedicação com que a generalidade dos profissionais do foro exercem as respectivas funções. É à luz destes pressupostos que vou suscitar à douta assembleia três questões que muito me preocupam: 1.ª Questão: o direito de defesa Esta questão, sempre actual, alcançou o paroxismo devido aos processos mediáticos e às pessoas envolvidas, que todos conhecemos. Segundo o art.° 32 da CRP, o processo criminal assegura todas as garantias de defesa e tem estrutura acusatória, sendo nulas as provas obtidas mediante abusiva 7 na ordem do dia O 8 na ordem do dia O intromissão na vida privada, incluindo nas telecomunicações. Ora, o que se verificou em certos casos é, salvo o devido respeito, um verdadeiro abuso de poder, com decretamento da prisão preventiva e com a subtracção do princípio do contraditório, que implica, além do mais, o direito do arguido contraditar todos os testemunhos, depoimentos, ou outros elementos de prova trazidos ao processo, como também ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira. De facto, o arguido não tem acesso, ao contrário do Ministério Público, a elementos que fundamentaram aquela medida extrema, não podendo, por isso, impugná-la devidamente perante o tribunal de recurso, assim se violando, em meu entender, o n.° 1 do art.° 28 da Constituição, que obriga o Juíz a comunicar ao arguido as causas da detenção e dar-lhe oportunidade de defesa, vale dizer, garantindo-lhe todos os meios de defesa, nos termos do art.° 32 da lei fundamental. Como o Senhor Presidente da República afirmou na abertura do corrente ano judicial, perante os representantes dos demais órgãos de soberania, há muito que vem alertando para a eventual necessidade de se sujeitar a aplicação da prisão preventiva ao contraditório, pelo menos, quanto aos indícios relativos à indispensabilidade de medida tão gravosa. Esta questão está conexionada com o segredo de justiça, pois, como salientou o Senhor Dr. Jorge Sampaio, ele também visa proteger o arguido, incluindo a sua reputação. Estas verdades parece não terem sensibilizado alguns magistrados. É certo que as leis são equívocas e permitem, infelizmente, várias interpretações. Por isso, e porque se trata do cerne dos direitos humanos, é urgente clarificar a situação, de modo a que, sem prejuízo da investigação, se reconheçam ao arguido, como o impõe a Constituição, todas as garantias de defesa, salvaguardando, sempre que possível, a sua liberdade e dignidade, pressupostos da justiça e do estado de direito. Daqui, que o interesse comunitário na prevenção e repressão da criminalidade tenha de por-se limites – inultrapassáveis – quando aquele interesse ponha em jogo a dignitas humana, que pertence mesmo ao mais brutal delinquente, como ensinava Jorge Figueiredo Dias, ainda antes da Revolução de Abril, pois estou a citar as suas lições de Processo Penal publicadas em Março de 1974… A prisão preventiva e o segredo de justiça devem ser apertadamente regulamentados para impedir situações abusivas e interpretações capciosas, tendo em conta os princípios referidos. Para estas situações muito têm contribuído os media e o desejo de protagonismo de alguns agentes judiciários, e transformando os processos em espectáculos mediáticos de baixo nível. Como a própria directora do Curso de Jornalismo da Escola Superior de Educação Social reconheceu recentemente, tanto quanto é possível analisar a partir da leitura das notícias, penso que atrás do que vem a público estão estratégias cruzadas, sobretudo da acusação (Público, 10 de Julho de 2003). Eu diria, das polícias, dos funcionários ou dos magistrados, porque os advogados não tem acesso aos factos sigilosos que vemos divulgados impunemente, num verdadeiro estendal de roupa suja, que é aquela que interessa à generalidade dos media… 2.ª questão – as escutas telefónicas Esta temática está intimamente ligada à anterior, à dignidade do cidadão e ao seu direito à reserva da vida privada. Também, neste aspecto delicado, a lei é equívoca, a ponto de termos ouvido magistrados, advogados e professores de direito sustentarem teses opostas, a propósito de escutas realizadas a personalidades insuspeitas. Esta situação insólita – polícias a escutarem o próprio Presidente da República só por que, alegadamente, poderiam receber telefonemas envolvendo um suspeito – é aberrante e imprópria de um Estado de Direito. À luz dos pressupostos ético-legais referidos do senso comum – já não digo do senso jurídico – só o suspeito pode ser, em princípio, objecto de escutas. O capítulo respeitante a esta matéria vem inserido, no Cod. Proc. Penal, no título sobre os meios de obtenção de prova, ou seja, como reza o art.° 171, sobre os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado o crime, às pessoas que o cometeram ou sobre os quais foi cometido. Isto significa que só o suspeito pode ver limitados, por este meio drástico os seus direitos constitucionais. E tanto é assim, que a lei 5/2002, de 11 de Janeiro, sobre medidas contra a criminalidade organizada, estabeleceu um regime especial de recolha de prova (sic), relativamente a certos crimes, como o terrorismo e o branqueamento de capitais, permitindo, quando necessário para a investigação o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado. Assim, só nestes casos é que pode ser escutado um cidadão não suspeito. De contrário, voltaríamos aos tempos ominosos em que o Estado de Direito e a cidadania eram ainda sonhos longínquos… 3.ª e última questão – a morosidade da justiça Esta questão é tão antiga como a justiça, e já o Infante D. Pedro advertia o irmão D. Duarte, na célebre carta de Burges, que a justiça para ser digna desse nome, tem que ser feita em tempo útil. Contudo, na análise deste problema não devemos esquecer, como já escrevi, que os tribunais são o verdadeiro espelho da sociedade, na medida em que nele desaguam a maior parte dos conflitos que a dilaceram. Por isso, a crise da justiça é apenas um aspecto da crise social reinante, derivada da falta de respeito pelos mais elementares princípios éticos. 9 na ordem do dia O A explosão da criminalidade e da litigiosidade, a instabilidade legislativa, o nosso laxismo crónico e a falta de meios humanos são os responsáveis pela morosidade da justiça e, mais grave ainda, pelo descrédito que se começa a insinuar, como virus deletério, na consciência dos cidadãos. É preciso olhar para o sistema de justiça com a largueza de vistas que, como disse acima, compreende o legislador apressado, todos os agentes judiciários e as nossas prisões, algumas das quais são mais degradantes que os cárceres medievais. Não devemos esquecer-nos que 1.600 juízes, apesar de, na sua esmagadora maioria, trabalharem devotadamente, não podem dar escoamento aos cerca de 1.500.000 processos pendentes. À guiza de conclusão direi que estas e outras questões põem a justiça em questão, ou seja, põem em questão o próprio estado de direito. É urgente e inadiável clarificar a lei, de modo a que não tenha pertinência o dito popular de cada cabeça sua sentença, formar melhor e responsabilizar os agentes judiciários para o cumprimento do seu dever, dotar os tribunais dos meios necessários à sua função. Não podemos ficar sentados a contemplar a figura simbólica da Justiça, à espera que lhe caia a venda e possa, assim, abrir finalmente os olhos para a realidade que nos angustia. É preciso agir com rapidez e senso. É essa a minha esperança. 14 de Julho de 2003 * Intervenção no Colóquio sobre Estado de Direito realizado em Julho 2003, em Coimbra, pela República do Direito. ALMEDINA EDIÇÕES JURÍDICAS NOÇÕES ELEMENTARES DA TRAMITAÇÃO DO PROCESSO PENAL – António Domingos Pires Robalo, 2003, 6ª Edição, ISBN 9724018482, 253 págs., PVP: € 13.50 LITÍGIOS E LEGITIMAÇÃO – ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E DIREITO EM S. TOMÉ E PRÍNCIPE – Armando Marques Guedes; N’Gunu Tiny; Ravi Afonso Pereira; Margarida Damião Ferreira; Diogo Girão, 2002, ISBN 9724018342, 211 págs., PVP: € 10.00 JURISPRUDÊNCIA FISCAL ANOTADA – SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO – 2002 – Diogo Feio; João Silva Rodrigues; Maria Dulce Soares; Maria Odete Oliveira; Ricardo Garção Soares; Rita Tavares de Pina, 2002, ISBN 972401858X, 181 págs., PVP: € 15.00 O CHEQUE SEM PROVISÃO – REGIME JURÍDICO CIVIL E PENAL – Grumecindo Dinis Bairradas, 2003, ISBN 9724018474, 340 págs., PVP: € 20.00 GUIA DAS EXPROPRIAÇÕES POR UTILIDADE PÚBLICA – Pedro Elias da Costa, 2003, ISBN 9724018466, 504 págs., PVP: € 30.00 SEGURANÇA E SAÚDE DO TRABALHO – LEGISLAÇÃO ANOTADA – Fernando A. Cabral; Manuel M. Roxo, 2003, 2.ª Edição, ISBN 9724018431, 818 págs., PVP: € 35.00 DIREITO DO ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO E DO URBANISMO (LEGISLAÇÃO BÁSICA) – Fernando Alves Correia, 2003, 5ª Edição, ISBN 9724018598, 556 págs., PVP: € 25.00 IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES DO CONSERVADOR NOS REGISTOS – Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, 2002, ISBN 9724018407, 277 págs., PVP: € 15.00 TITUL[ARIZ]AÇÃO DE CRÉDITOS – SECURITIZATION – João Calvão da Silva, 2003, ISBN 9724018652, 212 págs, PVP: € 17.00 O CHEQUE SEM PROVISÃO – REGIME JURÍDICO CIVIL E PENAL – Grumecindo Dinis Bairradas, 2003, ISBN 9724018474, 340 págs., PVP: € 20.00 TEMAS DA REFORMA DO PROCESSO CIVIL – Vol. IV – António Santos Abrantes Geraldes, 2003, 2ª Edição, ISBN 9724018490, 390 págs, PVP: € 22.00 A LEI DA SAÚDE MENTAL (LEI N.º 36/98 DE 24 DE JULHO) – ANOTADA – Pedro Soares de Albergaria, 2002, ISBN 972401844X, 92 págs., PVP: € 7.50 CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – ANOTADO – Wanda Ferraz Brito; Fernando Luso Soares; Duarte Romeira de Mesquita, 2002, 13ª Edição, ISBN 9724018229, 1035 págs., PVP: € 45.00 DO CONTRATO DE SUPRIMENTO – O FINANCIAMENTO DA SOCIEDADE ENTRE CAPITAL PRÓPRIO E CAPITAL ALHEIO – Alexandre Mota Pinto, 2002, ISBN 9724018458, 417 págs., PVP: € 22.00 DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO – Volume II – DIREITO DE CONFLITOS – PARTE ESPECIAL – Luís de Lima Pinheiro, 2002, 2ª Edição revista e ampliada, ISBN 9724018296, 342 págs, PVP: € 19.01 PORTUGAL E A CONSTRUÇÃO EUROPEIA – Vários, 2002, ISBN 9724018334, 275 págs., PVP: € 15.00 AS LEIS DOS ESPECTÁCULOS E DIREITOS AUTORAIS – DO TEATRO À INTERNET – António Xavier, 2002, ISBN 9724018377, 449 págs, PVP: € 25.00 ANTOLOGIA DE ACÓRDÃOS DO STA E TCA – Ano V – N.º 3, Abril-Julho 2002 – Abílio Madeira Bordalo, 2002, ISBN 9724018555, 338 págs., PVP: € 20.00 OS INCIDENTES DE INSTÂNCIA – Salvador da Costa, 2002, 3ª Edição (Actualizada e Ampliada), ISBN 9724018032, 480 págs., PVP: € 27.00 RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE LITÍGIOS – QUADRO NORMATIVO – João Álvaro Dias, 2002, ISBN 9724018164, 941 págs., PVP: € 30.00 www.almedina.net