MEMÓRIA FINITA O dia chegara ao fim lá fora, mas ali, as luzes nunca se apagavam totalmente. Enquanto os peixes tropicais se revolviam bruscamente no aquário, explorando o seu mundo tão pequeno e infinito, as pessoas passavam e apontavam-nos, sobretudo as crianças. Outros animais sofriam notoriamente mais que os peixes, os cães estavam debruçados de forma a que os seus olhos estivessem o mais baixo possível, quanto menos vissem melhor. Sem reacção aos transeuntes, dormitavam a maior parte do dia e da noite numa depressão sem interrupção. Gatos e ratos, enfadados. É tarde. Poucos se detêm nas montras, é o êxodo do fim do dia comercial. Alguns lojistas apagaram parte das luzes anunciando o fecho, ouvemse sons metálicos de grades. Na loja dos animais é servida a última refeição do dia aos residentes. Nenhum comensal parece especialmente faminto. Agora os animais ficam duplamente fechados até ao dia seguinte. Só os seguranças percorrem os corredores, intercomunicam o estado da evacuação lenta e à sua passagem segue-se o vazio. Já nem reparam nos animais que ali pernoitam, e exceptuando os peixes o comportamento da contraparte é reciproco. Noite dentro, um cão pequeno, sem mais pormenores racistas, ergueu as orelhas e latiu três vezes. Os demais nem se alvoroçaram muito, não por desrespeito, nem por indiferença, por cansaço certamente. Apenas um irmão, com quem partilhava o espaço, se lhe acercou para diagnosticar a atitude. Os olhos dos dois convergiam agora no mesmo alvo. Tratava-se de um pequeno rato que, pelas noites visitava a área da restauração para se alimentar das poucas migalhas que tinham escapado à sucção dos serviços de limpeza. Na sua passeata avistava a loja dos animais e observava de relance. Era como uma visita ao zoológico, porém com seres da mesma espécie em cativeiro, e alguns eram enormes e tinham brinquedos na jaula. Sabe-se que a visão dos cães não lhes proporciona a distinção de cores, vivendo num mundo em tons cinzentos, algo semelhante às imagens captadas pelas câmaras que vigiavam as avenidas comerciais. Na sala de controlo de vigilância, o operador de serviço, alertado pelos latidos e carente da anti-rotina, orientou a câmara, ampliou e focou até descobrir o roedor. Não era certamente uma situação de alerta mas, permitia-lhe passar o tempo de forma mais descontraída e assim, foi acompanhando o vaguear do rato até este se adentrar numa casa de banho que culminava uma sucessão de lojas. Ainda aguardou algum tempo na expectativa de o ver retomar o passeio mas, nada. Viveria mesmo na casa de banho ou, com a mesma probabilidade, um dos buracos, de ventilação ou outro, desse compartimento, daria para o seu refúgio. As casas de banho eram nebulosas na visibilidade restante. Já se preparava para voltar à normalidade quando a câmara que aguardava o rato focou um sapato preto, salto alto, impecavelmente limpo e luzidio que calçava a figura intrusa. Surpreso, reconfigurou rapidamente a visualização mas já não conseguira ver grande coisa. Apenas dois ou três passos graciosos. Deu o alerta aos vigilantes da área que acorreram ao sítio referenciado. Nem os vigilantes nem as câmaras lograram ver nada, o edifício foi vasculhado em vão. O resto da noite foi mal passado, sobretudo para a equipa de segurança. Na sala de controlo a atenção foi redobrada, as patrulhas reforçadas. Os alarmes das ourivesarias poderiam disparar a qualquer momento e as câmaras privilegiavam as suas redondezas. Felizmente, nada foi averbado até à hora de abertura. Os lojistas não apresentaram qualquer anomalia nas suas lojas e de nada se inteiraram. A segurança sossegou um pouco. O stress, porém, remanescia. Aquela figura estranha não deixara rasto, nem prejuízo, nem descanso. A solução do enigma é simples. Um dos seguranças, noutra faceta incógnita da sua vida, actuava como travesti numa sala mal afamada da cidade. Achou por bem, naquela noite, antes de abandonar a vigilância e encetar nova actuação, entrar numa casa de banho e experimentar uns sapatos novos caminhando pelos corredores como numa passarela. Só isso. A coincidência da câmara estar apontada para o pormenor dos sapatos e a complexa mente humana fizeram o resto. Em todas as personagens deste conto há uma dose de privação de liberdade, a personagem mais livre é sem dúvida o peixe do aquário, cujos recursos limitados de memória lhe impedem maior stress. 22 de Março de 2004 Sérgio Deusdado