Sobre o amor, a morte e os sonhos. De Pio Campo Ela senta na minha frente, no sofá da minha varanda. Deve ter uns catorze anos, cabelos lisos e pretos e me parece que a conheço. Me conta sobre a irmã dela, ou uma amiga talvez, não compreendo bem. Fala com uma alegria contida, mas com extrema convicção. “Eis a aqui, está vendo? A gente dá aquelas gargalhadas! Olha, ela está aqui perto, não está vendo?!” Está tão convencida que eu também começo a enxergá-la; tem contornos indefinidos e parece atravessar os espaços sem se preocupar com os obstáculos. De repente compreendo e o meu coração dispara... A sua leveza é de quem não está, a cor é improvável, seus movimentos etéreos... Está morta. Não sei como contar isso a ela que, continua na minha frente dizendo que quer ir brincar com a outra e insiste, insiste. Então, um pensamento gelado como um vento no inverno me atravessa, nítido, claríssimo. Finalmente entendo: ela também está morta, também ela. Viro e reviro no sofá, tenho que avisá-la. Mas como, sem machucá-la, sem assustá-la? Procuro as palavras certas e fico suando apesar de um inverno repentino e do frio... Acordo encharcado com o suor e pouco a pouco recolho este estranho sonho que me surpreende pela manhã, alguns minutos antes do despertador tocar. No almoço, o telefonema das irmãs do Asilo: “ A Espírito Santo morreu hoje, pela manhã”. Fico um instante em silêncio e falo pra mim que devo me sentir pronto. Sabia que você tinha que ir; inútil se desesperar, inútil dizer algo. Peço unicamente se eu posso te ver antes do funeral. No meu quarto choro que nem um menino, mas te agradeço também por ter me avisado assim, no sono. Repenso em tua irmã que se foi ano passado. Repenso a vida de vocês duas em um instituto, uma vida inteira. Ontem você tinha noventa e um anos e hoje nada, leve e sem idade. Uma mulher, que vive seis quartos mais adiante do seu, no corredor, te empurrou e você caiu. Dois meses no hospital. Mas agora, você está brincando com sua irmã, não é? Unicamente vocês duas, juntas de novo. Te espero no Asilo, você está ainda no hospital. Me acolhem seus companheiros, sorrindo como sempre. Com gestos e gungunos me contam o que eu já sei. Eles estão acostumados com a morte e a enfrentam como um evento natural. Olho as paredes destas salas por onde você andava quando estava aqui, com teus olhos espertos e doces, a corcunda que pesava, mas que você fazia dançar no seu corpo dobrado. Você sempre me deslumbrou com seu senso rítmico. Mas como conseguia dançar daquele jeito? Profunda, verdadeira, alegre! No final dos encontros você sempre pedia palmas, mas sabia que nem precisava porque a admiração por você era irresistível e eu teria batido palmas sem que pedisse, até sem aqueles beijos que, como uma diva, você distribuía a quem te olhasse. Te vejo no final dos espetáculos, triunfante. Ninguém acreditava que você levantaria daquela cadeira, de onde esperava o momento de entrar em cena. Todos se deslumbravam com suas mãos que sabiam desenhar os caminhos dos homens, o destino incerto e os suspiros; todos admiravam seus olhos impregnados por mundos perdidos e achados. E aquela tarde em que, na Festa da Mulher, no Quilombo lotado, você era a idade que dançando avança, lembra? Estava envolvida por um manto alaranjado e sabia do seu papel, sabia como se movimentar, sabia escutar a música e o mistério. E me encantava. Você chega no caixão coberta por flores, mas entrevejo seu vestido azul, aquele elegante. Alguém cruzou suas mãos e você está aí, de boca aberta, escancarada, numa de suas múltiplas faces de clown. Tem menos rugas hoje e um enfermeiro tenta fechar sua boca com um esparadrapo. Ele fala que assim vai ficar mais bonita, mas você não está nem aí e se ele te fecha a boca, você abre um olho e as caretas continuam, como quando, dentro do seu corpo vivia você. Me faz sorrir. Me vem a cabeça que às vezes eu me vestia de palhaço e você me olhava curiosa. Você nem precisava daquilo porque seus infinitos personagens não necessitavam de maquiagem. As rugas e as expressões se alternavam num festival irresistível e acho que eu nunca conheci ninguém como você: absolutamente cômica. Numa compreensão silenciosa e cúmplice trocávamos as deixas e os outros, lembra? se mijavam todos de tanto rir. No entanto, pensando melhor, havia dias em que eu chegava e te encontrava de lua virada. Mas mesmo assim você não conseguia ficar emburrada mais de um segundo. Bastava encontrar a menina adormecida nos seus olhos e já estava rindo, sem mais sombras. Te olho agora deitada e você mesma sopra no meu ouvido que não está mais aqui. Ninguém mais te segura, este corpo já não te pertence; melhor se eu for embora. Toco o seu corpo mais uma vez e saio sem olhar pra trás. Tenho que dar aula aos homens da chácara. Se eu não dançar, o que vou fazer para não sentir a sua falta? Esqueci o som, poderia propor um trabalho sobre o silêncio, mas não estou a fim, não consigo. A minha cabeça está cheia das suas imagens. Falo de você com eles. Queria propor um encontro sobre a leveza, por isso trouxe os balões coloridos. Pego um: branco. É você. Conto sobre você que me ensinou um amor novo; conto sobre as palavras que me dirigia quando eu tinha que viajar e que me acompanhavam parindo bençãos fecundas e certeiras. Parecia uma língua estrangeira, com certeza única e eficaz. Compreendo algo a mais com sua morte. Compreendo que o sentido dos nossos dias somos nós que criamos, é o que queremos. Quando vamos embora deixamos o que fomos. De você recebi nove anos de amor sem limite, sem idade, sempre e só alegria. Isso é você pra mim agora, é isso que você foi, isso que vive em mim potente. Me aproximo da janela aberta nos campos, beijo o balão branco, beijo você e te deixo ir. Continuo o encontro; me sinto alegre, me sinto rico, me sinto privilegiado. Um dos homens me chama e acena algo que se move no mato, soprado pelo vento. É o balão branco que brinca nos galhos mais altos, leve. È você. É você sem mais corcunda, livre de tudo. É você e está viva.