Família e relação incestuosa 1 Abrão e Sarai A história de Abrão e Sarai é relatada à partir do capítulo 11 do livro de Gênesis. Diz-se ali que Abrão é filho de Terá e que Sarai, sua mulher, é estéril. No capítulo 12, Deus ordena a Abrão de partir, de deixar a casa de seu pai e sua parentela e ir para uma terra que lhe seria indicada, prometendo fazer dele uma grande nação. São as primeiras palavras da aliança que Deus propõe à esse homem escolhido para ser o patriarca fundador do monoteísmo. É apenas o início do desenrolar de um doloroso enigma : como entender o que se passa com esse casal que vê os anos passarem e tornarem-se velhos sem sinal do filho prometido e tão esperado ? Como acontece com frequência, encontramos nesse texto diferentes níveis de leitura. Para os que buscam uma leitura religiosa e espiritual, é evidente a prova de fé que Deus impõe a Abrão e Sarai, mostrando-lhes que nada lhe é impossível, mesmo a capacidade de ter um filho à uma senhora idosa, cujo corpo não espera mais a maternidade. Respeito esse ponto de vista, mas algumas perguntas me vêm : por que Deus precisaria impor essa prova tão longa e dura a esse casal aparentemente pronto para receber o filho da promessa ? E ao mesmo tempo : o que vem fazer na história a troca dos nomes de Abrão e Sarai ? A hipótese de realizar a promessa dando-lhes um filho adotivo é logo eliminada pois a Bíblia é bem clara sobre as palavras divinas ao patriarca : « aquele que sairá de tuas entranhas será teu herdeiro » Gen. 15 : 4. Nossa idéia neste estudo é refletir de um ponto de vista clínico quanto à esterilidade de Sarai. Deus tem mesmo uma intenção quanto a essa esterilidade ? Procura ensinar alguma coisa à esse casal ou Sarai é vítima de um puro arbitrário ? De que impedimento (se assim podemos dizer) sofre esse casal para que apesar da promessa divina e do desejo de marido e mulher, a esperança do filho se turve em decepção com o passar dos anos ? Em que medida o que lhes acontece tem a ver com a estrutura subjetiva de um e de outro, atravessada pela história familiar à qual pertencem ? Terão eles algo a ver com o que lhes acontece ? Vivem eles fechados na espera do filho da promessa e surdos aos próprios obstáculos ? Se tal é a posição de um e de outro Deus tem toda razão em fazê-los esperar. Eis ai algumas perguntas que gostaria de fazer ao texto bíblico. 1 Este texto é o fruto de um estudo e de discussões com Jean-Marc Bouville, professor de Ciências Sociais (Paris, 2007) Sarai, a jovem esposa estéril Contrariamente a outras histórias onde se diz claramente que Deus trouxe a esterilidade ou a fecundidade às mulheres2, o que se passa com Sarai é anunciado como um fato sem outros comentários, sem um sentido ou uma explicação particular. (Gên. 11 :30). A história do casal começa assim de maneira sucinta e esquemática : - « O nome da mulher de Abrão era Sarai » (Gên. 11 :29). Em seguida, uma descrição do início da migração que os levara a terra de Canaã. Terá, pai de Abrão organiza a expedição, toma com ele as pessoas mais próximas, entre elas, o filho e a nora e partem. Abrão tem 75 anos, seu pai já é bastante idoso, mas Deus não tem a intenção de deixar essa família tranquila nessa união idílica e ordena a Abrão : - « Deixa teu país, tua pátria e a casa de teu pai… (Gên. 11,32 e Gên. 12,1). « Lekh lekha » – diz o texto hebreu « va por ir », ou como dira Rachi « va por você », o que poderiamos dizer, com palavras nossas : « vai para fazer tua vida » Três ordens, três vezes deixar (teu país, tua pátria e a casa de teu pai). Três ordens e uma promessa cuja dimensão talvez Abrão não possa entender ainda (« farei de ti uma grande nação… em ti serão benditas todas as famílias da terra » -Gên 12 : 2 e 3) Transportado por essa aliança, Abrão deixa a casa de seu pai, para se lançar em terras desconhecidas, levando consigo Ló, seu sobrinho órfão, e Sarai sua mulher estéril. Em parte guiado pelas palavras divinas e acompanhado por esse paradoxo que vai sustentá-lo até sua grande velhice : a promessa que, apesar da esterilidade de sua mulher, a sua posterididade seria mais numerosa que poeira da terra (Gên 12,2 e 7 – 13 : 16) O tempo passa… Abrão se consola da palavra, enquanto Sarai procura uma solução À Abrão a revolta lhe vem de quando em quando, como depois da guerras de Sodoma e Gomorra : - « O que me hás de dar ?… deixo a vida sem filhos » (Gên 15, 2). De Sarai diríamos que se encontra isolada de Deus e de seu homem. Se sofre, se espera, se aprendera a resignar-se, nada disso transparece no texto. A ela, nenhuma palavra é pronunciada, nenhuma promessa pessoal lhe é dada. Abrão é o seu único 2 Gên 20 :18 et 29 :31 interlocutor, à ele a palavra de marido. Sarai vive assim, nessa espera muda, sem palavras do outro, nem suas. Em nada iguala outra (esta realmente) infeliz mulher estéril da Biblia : Ana, mulher de Elcana (I Sam. 1). Grande é o constraste entre essas duas mulheres. Ana tinha diante dela Penina, a outra mulher de seu marido, rival implacável, rodeada de filhos e que, por ciúme, lhe fazia pagar o amor apaixonado que lhe dava o marido de ambas. Quanto a Ana, nada a consolava de seu ventre vazio de filhos e todos os anos na festa do templo em Jerusalém, suas orações eram tão ferventes que o sacerdote Eli pensou que ela estava embriagada. Somente o nascimento de Samuel vem acalmar um tão grande desejo de maternidade. De Sarai não se ouve uma tal predestinação ardente, mas deve-se dizer que também ela nunca teve rival, nem marido que desejasse outras. Ao contrário, ela e Abrão vivem em monogamia, o que contraria os costumes da época, são abençoados por Deus e tudo lhes parece tranquilo e próspero. A rivalidade que Sarai ainda não conhece, ela acaba por dar um jeito de fabricar. E assim, na procura de seu texto, essa mulher afastada da palavra fez a sua primeira aparição na cena da sua história : - « O Senhor me impediu de ter filhos… » (Gên 16 :2) Não resta dúvida que Sarai tem dela mesma uma imagem de pura vítima e o que lhe acontece nada mais é que fatalidade. Foi o Senhor quem fez dela uma mulher estéril. Senão, suas palavras seriam provavelmente outras : « eu sou estéril », e nesse « eu », lugar ocupado, « alguém » vive e responde « … do que me acontece… ». Na entrada de Sarai em cena falta e faz falta o seu dizer sobre ela mesma, do efeito que lhe causa o fato de estar nessa posição de mulher, o ventre vazio, à espera, sem resposta ao cumprimento do seu desejo. Em outras traduções a acusação de Sarai é igualmente severa : « O Senhor me reteve… », « Jeova não me permitiu de … » Sarai e Abrão não se questionam sobre o que se passa com eles, como também não perguntam nada aos céus das razões de um tal « destino ». Abrão se queixa, Sarai busca uma solução sem mais esperar : - « … toma a minha serva, porventura terei filhos por ela » « Ben », é a palavra utilizada em hebreu : « filho ». Sarai interpreta a promessa e crê resolver a questão, sozinha, sem conselho nem demanda, menos ainda ao Senhor a quem ela imputa o seu drama. Ela tem uma idéia na cabeça : um filho a ser adquirido por meio de outra mulher e a falta será assim preenchida, a brecha reparada, tudo pode assim se arranjar, por uma frase, uma ordem e seu homem se curva à sua vontade, sem mais argumentos. Conhecemos a sequência da história. Sarai que deseja “se construir” através de um filho dado pela serva se vê, ao contrário, diminuida : - « E vendo que concebia, sua senhora é desprezada a seus olhos » Agar, a escrava egípcia, se revela sujeito enquanto a senhora a via como puro objeto, mãe portadora reconhecida nos costumes da época. Desmoronam-se os planos : no lugar da escrava, Sarai encontra uma rival, terminada para ela a esperança do filho, o falo encarnado se encontra na « outra ». Pela primeira vez, Sarai é humana em toda a sua banalidade. Resta-lhe voltar-se contra Abrão, em demanda de apoio e justiça mas, também, com raiva e revolta da humilhação máxima que lhe provocou : de « dar » à escrava a potência máxima, o filho que lhe avoluma o ventre. Cena de casal quase moderno : - « Você é responsável da injúria que ela me fez… eu coloquei ela nos teus braços e depois que ela ficou grávida ela me trata como se eu não existisse » (Gên 16 :5) Abrão não sabe o que fazer da situação : Agar está grávida de um filho dele, o filho da promessa, enfim, mas ele ama e respeita Sarai. - « Faça o que quiser com ela… » Retira-se da cena e ambas as mulheres de encontram no jogo especular. - « Sarai a maltrata e Agar foge para longe dela… », sem a proteção do homem, nem do pai do filho que leva consigo. No deserto, ao lado de uma fonte, pela boca de um anjo, nasce uma interpretação que procura re-colocar cada personagem desse drama, nos seus percursos, pois para o que acaba de se passar, retorno não há. Agar no deserto : o anjo separa os personagens. A mensagem dada a cada um. (Gên. 16:7-11) Somente neste ponto de risco para a vida da criança, Deus pensa necessária sua intervenção. Era o momento de dizer algo a cada uma daquelas pessoas : A Agar, repentinamente altiva e tomada de orgulho, Ele diz : - « Volta para a tua senhora e seja humilde » Esta é a primeira condição para que ela seja reconhecida a mãe de fato da criança que viria ao mundo (e não somente a portadora). O anjo promete-lhe também que o filho que leva será um herdeiro da fortuna de seu pai e dará origem a uma grande nação. A Sarai, machucada e tirânica, a mensagem (mesmo sem palavras) é clara : - « O teu filho não é esse que você quiz tomar pela força » A Abrão, que não consegue tomar uma posição diante de sua mulher, mostrado que deve assumir a paternidade do filho que fez com Agar. lhe é Com a fuga de Agar e a necessária intervenção do anjo, muda-se a condição de todas essas pessoas: a criança que parte para o deserto no ventre de sua mãe não é a mesma que retorna. O bebê que parte, objeto de disputa e rivalidade entre as duas mulheres, é supostamente o filho da promessa, devendo pertencer a Sarai, sua mãe legítima pelas tradições da época. A criança que retorna é o filho de Abrão e Agar, um herdeiro de seu pai, mas não o herdeiro. Quanto a Sarai, não há lugar para ela nessa cena, mesmo se o seu desejo encontrava-se na origem. A mudança de nome : o primeiro tempo da cura ? (Gên 17) - « Você não será mais chamado Abrão, mas o teu seu nome será Abraão, pois eu faço de você uma multidão de nações … e você não deve mais chamar Sarai e sim Sara… eu a abençoarei e lhe darei um filho nascido dela…que você chamará Isaque… Sara dara à luz dentro de um ano… » Com a mudança de nome, a promessa se precisa e, agora, aparece a noção de tempo, algo de tangível : « dentro de um ano ». As pessoas que respondem de mais de um nome, por qualquer que seja a razão, nos dizem, sobretudo no espaço da clínica, do efeito que lhes faz de responder de lugares diferentes, como sustentando diferentes identidades. O nome é um lugar ocupado por um sujeito, pois é dado a uma criança para indicar-lhe a sua ancoragem. No caso de Abrão, o nome de pai elevado que recebeu ao nascimento se transforma em pai de uma multidão de nações, mudando assim a identidade e o destino desse homem. A partir de então, Abraão porta em seu corpo a marca da circuncisão, perda inscrita na carne como assinatura da aliança que fará dele o pai simbólico de um povo. Quanto à Sara, a mudança do nome é bem mais complexa e trataremos mais tarde. O riso de Sara Um tempo mais tarde Abraão e Sara recebem a visita de três anjos que não se deixam reconhecer num primeiro momento. - « Sara, tua mulher, vai ter um filho » Sem saber que seus pensamentos são ouvidos, escondida atrás da porta, Sara ri, dizendo-se no seu íntimo : « agora que eu e meu marido somos velhos… » Nesse riso sobre a sua condição, Sara deixa escapar sua verdade maior : o tempo que passou, os sonhos de mulher jovem… esse corpo agora inapto para receber um filho… Segundo tempo da cura ? (Gên. 20) Abraão tem 99 anos mas ainda pratica o nomadismo e chega assim com toda a sua tribo no reino de Abimeleque, rei de Gerar. E ele diz de sua mulher : - « Ela é minha irmã » Sem mais tardar, Abimeleque manda buscá-la para que se torne sua mulher. Na mesma noite Deus intervém junto a Abimeleque em sonhos : - « Você vai morrer por causa dessa mulher, ela tem um marido… » E, portanto, esse teatro estranho já aconteceu no passado. A primeira vez, foi quando eram bem mais jovens e Sarai “uma linda mulher”, eles chegam ao Egito fugindo da sêca que castigava Canaã. Argumentando o medo que cobicem sua mulher e o matem para se apoderar dela, Abrão a apresenta como sua irmã (Gên 12 :18-20 e 13 :1 e 2). Rapidamente Faraó fica sabendo do fato, toma-a por mulher e age de forma muito generosa com Abrão, enriquecendo-o de animais e escravos em grande quantidade. O desfecho dessa situação vem sem mais tardar : o Egito é punido com grandes pragas e, furioso, Faraó os expulsa do país : - « Por que você me disse que ela era sua irmã, pra que eu a tomasse por mulher ? » « Toma a sua mulher e vai embora » Com o dote que recebe de Faraó, enquanto irmão da noiva, Abrão sai do Egito ainda mais rico do que chegou. Por precaução, Faraó envia uma tropa para acompanhá-los à fronteira, garantia de se ver livre deles e assim liberar o país da punição que os destruía. Quando essa mesma cena se reproduz com o rei Abimeleque, entre amedrontado e furioso, o rei procura se explicar com Abraão lembrando-lhe que poderia ter pago com a sua própria vida : - « Por que você fez isso? » - « Que mal nós lhe fizemos eu e meu reino ? Você não deveria ter feito isso ! » E a história que conta Abrão é idêntica à primeira, mas um diálogo se instala entre ele e o rei. Um grande segredo vai se revelar. Num primeiro momento, pode-se até dar razão ao casal : o povo lhes é estranho, quem sabe mesmo selvagem e ameaçador, melhor então se precaver, contar uma história para se proteger. O problema viria do contexto que não inspira confiança. Lembro todavia que Abraão e Sara não vivem sozinhos, Abraão foi até mesmo guerreiro, transportando consigo escravos e homens armados. A Bíblia relata inúmeras batalhas que venceram. Como entender, assim, uma tal história? Que razão têm eles para se lançar nessa « mise en scène » ? Uma primeira observação : tanto num caso como no outro, Abrão (e mais tarde Abraão) consegue fazer com que esses dois homens poderosos cobicem sua mulher, que ele entrega como esposa, pela qual ele recebe o dote. O mais estranho sendo Abimeleque que vai tomá-la como mulher apesar de sua idade já bem avançada. Sou levada a pensar que o problema não era uma questão de beleza ou de ameaça pairando sobre o marido a ser destituído. De que se trata então ? Preciso que Deus não participa desse assunto, mas somente intervém quando a situação se torna complicada demais para que se saiam sem problemas graves. Abrão se expõe, ao mesmo tempo que sua mulher, à situação de risco : ele abre as portas da sua vida de casal a estrangeiros e levando Sara, sua mulher a ir entregar-se a esses homens poderosos. Como entender essa história complicada ? Gen 20,11-13 : - « Pensei comigo mesmo e me disse que esse povo não tem o temor de Deus e eles podem me matar para pegar minha mulher » « Além disso ela é realmente minha irmã … do mesmo pai e de mãe diferente » « Desde que saí da casa do meu pai eu pedi a ela para sempre dizer que eu sou seu irmão » O papel de Abimeleque – a chave do mistério ? « Verdadeiramente minha irmã… » Diz uma tradução do século XIX (a grande Bíblia de Tour, à partir da Vulgata). Abrão e Saraï são irmão e irmã, criados como tal. Quando deixam a casa do pai, já casados, devem mudar de papéis, transitar do laço sanguíneo e familiar a um vínculo de aliança : marido e mulher, unidos pelo desejo e pelo rito que os institui. Sozinhos um para o outro, afastados da comunidade familiar, nos fazem pensar que se perderam na escuridão desse túnel de passagem. Nômades, por ordem divina, Abrão e Sarai viram-se perdidos de seus lugares de sujeitos por falta de palavras que lhes indicassem o caminho ? Abrão diz claramente que começou a ter medo no exato momento em que deixou a casa do pai e se encontrou enfim (sós !) marido da irmã3 3 Lembro que a condenação de relações incestuosas aparece no Livro de Levíticos, enquanto que os efeitos do incesto são evidentes na relação desse casal, muito antes que a proibição venha a ser declarada. Abrão tomou por mulher a princesa do pai (pois Sarai quer dizer « minha princesa ») e talvez, de maneira inconsciente, marcado pela culpa, « ele espere que a tomem dele e o matem »4. Rachi já dizia : « Abrão não deve ter filhos, Abraão terá um fiho, Sarai não terá filhos, Sara, sim, eu lhe dou um nome diferente e o seu destino será diferente ». Só que, neste caso, a mudança de nome não será tudo. Talvez a resolução final do problema esteja no encontro com o rei Abimeleque. Voltemos assim à esse encontro cheio de ensinamentos. O verso 4 diz que Abimeleque não a tocou, pois, durante a noite, Deus se dirige a ele, revelando o casamento que Abraão não ousa revelar. Contrariamente aos medos de Abraão o velho rei crê no Deus único e ouve a sua palavra5. Para resumir a situação, eu diria que, numa sorte de história circular, Abraão se encontra diante de « Meu Pai Rei » (significado do nome de Abimeleque), que ocupa assim o lugar de um pai simbólico, recusando a Abraão de retomar « Princesa » (Sara) de seu marido para fazê-la de novo « Minha Princesa » (Sarai), como foi batizada pelo pai. À Abimeleque, Abraão conta o segredo de família que o acompanha desde sempre, dando sentido ao sintoma que encerra o casal. Depois dessa revelação, « Meu Pai Rei », entrega « Princesa » ao homem que pela mudança de nome se tornou « Pai de multidões » na espera que uma vez liberados da relação incestuosa, a vinda do filho seja possível. Lembro que foi ainda debaixo do teto do pai de ambos que, uma vez declarados marido e mulher, a esterilidade de Sarai foi atestada. Para concluir o ritual de desatamento « Meu Pai Rei » cobre-lhes de presentes, como se faz aos noivos em dia de núpcias e termina-se assim o jogo ao qual se obrigavam : marido e mulher enviando-se à outro parceiro sexual, com todo o sofrimento e riscos ao qual se expunham.6 A mudança do nome desamarra a filha do lugar que ocupa no desejo incestuoso do pai e a prepara para tomar lugar junto do marido. No encontro com Abimeleque conclui-se que, finalmente, podem unir-se em aliança e um lugar lhes é dado para viver, nas terras do rei, diante deste (Gên 20 :14-16). Sara é « restituída » a quem de direito, embora, nesta estranha situação, este mesmo a entrega a outro homem, sabendo que uma tal possessão será indevida. Pode-se questionar : o que teria acontecido se Deus não tivesse notificado a Abimeleque a ilegitimidade de tal manobra ? Pega por um braço, entregue pelo outro, Sara é restituída e « justificada », termo que restabelece a inocência (de atos e palavras) de um suposto culpado. Encontramos assim a culpa no íntimo da relação do casal e que os acompanhou até a velhice, até esse encontro liberador, culpa que os aprisionava ao pai de ambos… Marie Balmary, « Le sacrifice interdit », p. 185, Ed. Biblio EC, 1986 « … esse povo não tem o temor de Deus e eles podem me matar… » 6 A experiência dos dois com Agar vale tanto quanto a de Faraó e o rei Abimeleque. 4 5 Epilogo : Isaque, o filho dessa união nasce pouco tempo depois. Quando, mais tarde, chega o tempo de pensar no casamento de Isaque, Abraão manda buscar uma noiva na família distanciada, é o início das uniões exogâmicas, como prescreve o livro de Gênesis (« deixa teu pai e tua mãe… »). Significa, também, que as relações sexuais vão se inscrever noutro espaço que aquele de vínculos de parentesco. A Bíblia nos conta que esse filho tão desejado vai mostrar um traço evidente de identificação à história de seus pais. No mesmo reino de Abimeleque, a quem lhe perguntava quem era a mulher com quem vivia, ele respondia : « é minha irmã » (Gên. 26 :7-10). Mais uma vez será preciso a intervenção do velho rei para restabelecer a verdade e apaziguar a ameaça que, como para Abraão e Sara, paira também sobre esse novo casal. Marlene Iucksch Psicóloga, psicanalista