Espaços de Uso Comunitário em Programas
Habitacionais no Rio de Janeiro:
entre o Discurso e a Prática
Alice de Barros Horizonte Brasileiro
Dissertação apresentada à Coordenação do Mestrado em Arquitetura
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários para obtenção do Grau de Mestre em Arquitetura (M.Sc.)
Aprovada por:
Prof. Cristiane Rose de Siqueira Duarte, Dr. – Orientadora FAU/UFRJ
Prof. Nabil Georges Bonduki , Dr. – EESC/USP
Prof. Mauro César Oliveira Santos, Dr. – FAU/UFRJ
iii
BRASILEIRO, Alice de Barros Horizonte
Espaços de Uso Comunitário em Programas Habitacionais no Rio de
Janeiro: entre o Discurso e a Prática. (Rio de Janeiro) 2000.
xiv, 161 p., 29,7 cm (FAU/UFRJ, M.Sc. Racionalização da
Construção).
Dissertação – Universidade Federal do Rio de Janeiro, FAU.
1. Política Habitacional. 2. Urbanização.
comunitário. I. FAU/UFRJ. II. Título (série)
3. Espaços de uso
iv
A meu pai, cujas lições de vida foram
fundamentais para que eu chegasse
até à realização desse trabalho
E à vida, que me ensinou a amar
de uma maneira melhor
v
“A habitação não pode ser concebida como
mero abrigo, pois ela representa a porta de
entrada dos serviços urbanos (…)”
Maria Ozanira Silva e Silva
Política Habitacional Brasileira: Verso e Reverso
“(…) well you’ve cracked the sky, scrapers fill the air,
But will you keep on building higher ‘til there’s
No more room up there (…)
I know we’ve come a long way,
we’re changing day to day(…)
But tell me , where d’ th’ ch’ldr’n play?”
Cat Stevens
Where do the children play?
vi
AGRADECIMENTOS
Numa dissertação de mestrado, tarefa normalmente longa e árdua, a
seção de agradecimentos geralmente se faz necessária. No nosso caso,
ela é indispensável, pelo fato de que sem a ajuda de várias pessoas este
trabalho provavelmente não existiria. Assim, agradecemos a todos
aqueles que de maneira direta ou indireta colaboraram com a presente
pesquisa.
Cristiane Rose, mais do que orientadora, há tempos é uma grande
amiga e incentivadora. Neste trabalho, sua orientação sempre segura e
ao mesmo tempo flexível para acompanhar minhas idéias me mostrou o
caminho a ser trilhado, e me guiou por ele. Além disso, devo também à
Cristiane a iniciação na pesquisa científica, ainda durante o curso de
graduação. De maneira direta, os conhecimentos adquiridos ao longo dos
últimos dez anos me foram muito úteis na realização da presente
pesquisa.
A Osvaldo Luiz, devo também a orientação científica durante a
graduação, dividida com Cristiane. Sua ajuda direta na elaboração desta
pesquisa foi fundamental. Acima de tudo, Osvaldo tem sido um grande
amigo e incentivador, sempre disposto a compartilhar minhas dúvidas e
seu equacionamento. Também devo a ele a “escolta” nas visitas a campo,
o bom andamento das fotografias, ajuda na revisão final do texto e mais
um grande apoio na minha carreira acadêmica, fato que facilitou o
desenvolvimento deste trabalho.
Aos meus amigos e colegas Adriana Muniz e Jeferson Salazar, devo
a amizade e a companhia durante os créditos do mestrado, que tornou
menos árdua a tarefa de cursá-los. Dividi também com eles os anseios e
expectativas sobre nossas respectivas dissertações.
Peter Schweizer, como professor do curso, me mostrou um novo
mundo de idéias, que frutificaram neste trabalho. Peter também contribuiu
com importantes conselhos e sugestões de leitura.
A Nabil Bonduki, a abertura concedida para uma inspirante troca de
idéias, e a paciência de receber questionamentos em e-mail’s insones.
vii
Aos Professores Donato Mello Júnior (in memoriam) e Olínio Coelho,
por cederem precioso material ao acervo do Grupo Habitat, o qual foi de
extrema utilidade na elaboração do presente trabalho.
À minha amiga Francirose Soares, agradeço a possibilidade de
soma de idéias nas discussões sobre política habitacional, além da
cessão de originais de seus desenhos.
A Luis Alberto Martins, por estar sempre alerta às informações
disponíveis na internet que poderiam interessar ao meu trabalho.
Adriano Paiter ajudou fornecendo material para leitura, e Rosina
Trevisan colaborou respondendo minhas dúvidas sobre referências
bibliográficas.
Ao Grupo Pró-Acesso e à Regina Cohen, pelo providencial
empréstimo de equipamento fotográfico no momento de fechamento
deste trabalho.
Às bolsistas do Grupo Habitat, Paula Manceira, Erika Laürsen e
Patrícia Barreto, pela ajuda no fichamento e catalogação inicial das
referências bibliográficas.
Aos moradores de Mata Machado, por terem na equipe de
profissionais da obra de sua comunidade não apenas uma arquiteta, mas
uma pesquisadora curiosa, que demandou paciência e apoio.
Ao Sr. Davi, vice-presidente da Associação de Moradores de Fernão
Cardim, pelo fornecimento de valiosas informações.
Sônia Sobroza, bibliotecária do Instituto Pereira Passos, ajudou com
significativas sugestões de consulta, além acolhida sempre carinhosa em
sua biblioteca.
Esther Damásio e André Luis Peixoto, da Secretaria Municipal de
Urbanismo, colaboraram possibilitando meu acesso ao Arquivo Geral, em
Irajá, onde consegui originais dos projetos de alguns conjuntos
habitacionais. Solange, Diretora do citado arquivo, sempre se posicionou
em franca abertura em relação às minhas dificuldades, e fez de tudo para
facilitar o andamento da pesquisa.
viii
A Maria da Guia, Dionísio e Luiz Alberto, funcionários do PROARQ,
devo a sempre solícita colaboração em solucionar entraves
administrativos e burocráticos, principalmente na finalização desta
dissertação.
Aos colegas do Departamento de Tecnologia da Construção da
FAU/UFRJ, pelo convívio, e em especial, ao Professor Aristóteles
Tarcísio, chefe do DTC, por não permitir que as minhas funções de
docente se interviessem nas funções de mestranda.
À Equipe 101 da 1ª fase do Favela-Bairro, pelo convite para o
ingresso no projeto e na obra de Mata Machado, início de todo este
trabalho.
À minha mãe e à “Quininha”, além do apoio, do carinho e do
estímulo, devo a paciência de conviver com uma mestranda dentro de
casa.
À toda minha querida família, pelo incentivo, e em especial ao
“Serginho” e à Suellen, por todos os momentos de alegria
proporcionados, que trouxeram paz e renovação.
Ao “Da”, pelo carinho, pela atenção e pelos bons momentos
compartilhados, que muito ajudaram no meu equilíbrio emocional,
aliviando a ansiedade e a insegurança ao longo das etapas difíceis deste
trabalho.
ix
ABREVIAÇÕES UTILIZADAS
ACRJ
AEIS
Associação Comercial do Rio de Janeiro
Área de Especial Interesse Social
AID
Agência Internacional de Desenvolvimento
BID
Banco Interamericano de Desenvolvimento
BNH
CEDAE
CHISAM
CODESCO
COHAB
CTC
Banco Nacional da Habitação
Companhia Estadual de Água e Esgoto
Coordenação de Habitação
Metropolitana do Grande Rio
de Interesse Social
Companhia de Habitação Popular
Companhia de Transportes Coletivos
Departamento Nacional de Obras e Saneamento
EUCs
Espaços de uso comunitário
FCP
FGTS
FIRJAN
GEAP
GTR/SFH
IAP’s
IPLANRIO
IPTU
MINTER
PA
PCRJ
Federação das Associações das Favelas do Estado da Guanabara
Fundação da Casa Popular
Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
Federação das Indústrias do Rio de Janeiro
Grupo Executivo de Assentamentos Populares
Grupo de Trabalho para Reformulação do Sistema Financeiro da
Habitação
Institutos de Aposentadorias e Pensões
Empresa Municipal de Informática e Planejamento S.A.
Imposto Predial e Territorial Urbano
Ministério do Interior
Projeto de Alinhamento
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
POUSO
Posto de Orientação Urbanística e Social
PROAP
Programa de Urbanização de Assentamentos Populares
PROMORAR
SERFHA
SERFHAU
SM
Programa de Erradicação de Sub-Habitação
Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações AntiHigiênicas
Serviço Federal de Habitação e Urbanismo
Salário Mínimo
SMH
Secretaria Municipal de Habitação
SMU
Secretaria Municipal de Urbanismo
SURSAN
Área
Companhia de Desenvolvimento das Comunidades
DNOS
FAFEG
da
Superintendência de Urbanização e Saneamento
x
SUMÁRIO
Resumo …………………………………………………………………………..
Abstract ………………………………………………………………………..
Introdução ……………………………………………………………………..
Capítulo I – CONCEITUAÇÃO …………………………………………………..
I.1 – Espaços de uso comunitário ……………………………………….
I.2 – Favela ……………………………………………………………....
I.3 – Urbanização ……………………………………………………..…..
I.4 – Habitação ……………………………………………………..…..
Capítulo II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL EM RELAÇÃO AOS
ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO ATRAVÉS DA POLÍTICA HABITACIONAL
BRASILEIRA ……………………………………………………………
II.1 - Do final do século XIX à instauração do regime militar (1964)…
II.2 - Da instauração do regime militar (1964) ao início da Nova
República (1985) ……………………………………………………….…
II.3 – Considerações sobre o capítulo (1ª parte)..……………………..
II.4 - Do início da Nova República (1985) ao início da política
habitacional adotada pela Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro (1993) ……………………………………………………..….
II.5 – A atual política habitacional carioca (1993 -…) …..………..…...
II.5.1 – Programa Favela-Bairro …………………………………..
II.5.2 – Programa Favela-Bairro – A outra face ..………………..
II.6 – Considerações sobre o capítulo (2ª parte) ………………….…...
Capítulo III - PROMORAR X FAVELA-BAIRRO: ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS
DISTINTOS……………………………………………………………..
III.1 – Promorar ……………………………………………………………
III.2 – Favela-Bairro ………………………………………………………
III.3 – Considerações sobre as análises efetuadas no capítulo ……..
Conclusão ……………………………………………………………………..
Referências bibliográficas …………………………………………………..
xiii
xiv
1
8
8
10
13
15
17
18
39
56
58
64
75
83
90
98
101
115
137
140
151
xi
DESCRIÇÃO E FONTES DAS FIGURAS
Nº FIG.
DESCRIÇÃO E FONTE
Nº
PÁG.
-I.1
II.1
II.2
II.3
II.4
II.5
II.6
II.7
II.8
II.9
Capa
Variados espaços de uso comunitário. Fotos da autora.
Capítulo I
Esquema do conjunto de espaços de uso comunitário
estudados no presente trabalho. Fonte: elaboração própria
Capítulo II
Capítulo II – Item II.1
O Conjunto Areal, em Irajá. Foto da autora.
Planta Cadastral da Cidade do Rio de Janeiro, nº 261-C-IV-4,
vôo de 1975.
-10
22
22
O Conjunto Realengo, no bairro de mesmo nome. Fotos da
autora.
23
Planta Cadastral da Cidade do Rio de Janeiro, nº 260-F-III-4,
vôo de 1975.
23
Montagem sobre original de CAPELLÃO (1991), mostrando as
3 glebas de Vila Kennedy.
37
Capítulo II – Item II.4
Tabela com os dados do crescimento populacional entre 1991
e 1995. Fonte: site http://www.rio.rj.gov.br/ipp/dic/frame.htm,
capturado em 16/02/00.
60
Capítulo II – Item II.5
Tabela com dados comparativos dos salários de habitantes de
favelas/não favelas. Fonte: “Uma cidade e dois mundos”,
Jornal do Brasil, caderno Cidade, página 31, 27/03/97.
65
Capítulo II – Item II.5.2
Divisa da favela Mata Machado com um terreno de
propriedade privada. Fonte: PROSPEC S.A., para a Prefeitura
do Rio de Janeiro, cedida à Equipe 101, projetista de Mata
Machado para o Programa Favela-Bairro.
85
Capítulo II – Item II.6
Rio Faria Timbó antes das obras do Programa Favela-Bairro.
Fonte: Programa Favela-Bairro - Integração de Favelas no Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro. [Edição Inglês/Português].
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Secretaria Municipal
de Habitação. IPLANRIO, 1996, página 24.
93
xii
II.10 Rio Faria Timbó após as obras do Programa Favela-Bairro.
Foto da autora.
93
95
II.11 O grande movimento de pessoas nas vésperas da
inauguração da obra na favela Mata Machado. Fotos da
autora e de O. Silva.
Capítulo III
Capítulo III – Item III.1
III.1 Palafitas da favela da Maré. Foto de J. L. Oliveira, publicada
na capa da revista “Interior” (revista do MINTER) – ano VII –
n.º 39 – julho/agosto 1981.
102
III.2 Ministro Mário Andreazza e Prefeito Israel Klabin, entre
outros, em visita às obras do Promorar no Rio de Janeiro.
Fonte: Jornal O Globo, 15/06/79, página 7.
103
III.3 Ministro Mário Andreazza e Governador Chagas Freitas na
assinatura do protocolo que criou o grupo de trabalho
encarregado de elaborar o Projeto Rio. Fonte: Jornal O Globo,
16/06/79, página 15.
108
III.4 Anúncio do BNH sobre o Projeto Rio, mostrando os nomes
dos moradores que receberam os primeiros títulos de
propriedade do Projeto Rio. Fonte: Jornal do Brasil, 11/06/81,
página 5.
112
III.5 Quadro comparativo entre as metas realizada e as não
realizadas no Projeto Rio. Fonte: adaptado de L. P.
Valladares, 1988.
113
Capítulo III – Item III.2
III.6 Tabela com os itens do projeto urbanístico de Mata Machado.
Fonte: elaboração própria.
123
III.7 O projeto urbanístico de Mata Machado. Fonte: modificado de
Soares, 1999.
124
III.8 Perspectiva ilustrativa do Complexo Esportivo e de Lazer.
Fonte: original de C. R. Duarte, 1996.
125
III.9 Desmonte da pedra encontrada no subsolo da praça principal
em Mata Machado. Fotos da autora.
III.10 Vista aérea de Mata Machado. Foto de O. Silva.
III.11 Esquema da integração praça/rio, em Mata Machado. Fonte:
modificado de Equipe 101, 1995.
127
130
133
xiii
RESUMO
presente estudo trata dos espaços de uso comunitário
em programas de habitação de interesse social.
Entende-se que tais espaços, enquanto elementos
integradores de diferentes camadas sociais, revestem-se de extrema
importância em programas da citada natureza, representando o locus onde
as relações sociais se dão.
O
Pela análise de vários programas habitacionais brasileiros
existentes desde meados do século XX, vê-se que o discurso e a prática
do fornecimento de espaços de uso comunitário em políticas habitacionais
se comportam de maneiras distintas. Em determinadas épocas, existe uma
correspondência entre eles, mas na maioria, não. O objetivo do presente
trabalho é entender como funciona essa dicotomia, e chegar às suas
possíveis razões.
A partir de alguns conceitos já estabelecidos de espaço de uso
comunitário, favela, urbanização e habitação, chegou-se à definição
daqueles que seriam utilizados nesta dissertação, como forma de embasar
teoricamente a análise.
Através do estudo e da análise do comportamento das diversas
políticas habitacionais adotadas no Rio de Janeiro e, mais
especificamente, do Promorar e do Favela-Bairro, no que tange o
fornecimento de espaços de uso comunitário, chegou-se ao entendimento
de que realmente há uma distância entre o discurso e a prática na
produção desses espaços.
Dentre os motivos para a existência desse distanciamento, temse a pouca interatividade entre as diferentes esferas do governo,
prioridades, interesses políticos e razões eleitorais.
Conclui-se, finalmente, que o poder público utiliza o espaço de
uso comunitário no discurso de uma política habitacional como um símbolo
de melhoria de qualidade de vida, nem sempre concretizado, e mesmo
quando o é, não corresponde ao discurso divulgado. Dessa forma, o que é
anunciado é, na realidade, um elemento abstrato, sem comprometimento
com a prática.
xiv
ABSTRACT
T
he present study is about the community use space in
social interest’s housing programs. It’s understood that
such spaces, as elements which integrate different social
layers, have extreme importance, representing the locus where the social
relationships happen.
By the analysis of several brazilian housing programs, existent
from the middles of the century XX till now, it can be seen that the speech
and the practice of the supplying of community use space in the housing
policy of the governments behave in different ways. Sometimes, a
correspondence exists betwen them, but in most of the situations, it
doesn’t. The main objective of the present work is to understand how that
gap happens, and finding its possible reasons.
Starting from some concepts already established of community
use space, slum, urbanization and housing, it was reached to the
definition of those which would be used in this dissertation, to form the
theoric bases of the analysis.
Through the study and the analysis of the behavior of some
housing politics adopted in Rio de Janeiro and, more specifically, the
Promorar and the Favela-Bairro, in what concerns the supplying of
community use space, it is understood that there is, really, a distance
between the speech and the practice in the production of those spaces.
Among the reasons for the existence of that distance, it can be
told about the little interactivity in the government's different spheres,
priorities, political interests and electoral reasons.
In the conclusion, is established that the Government uses the
community use space in the speech of a housing politics as a symbol of
improvement of life quality, not always accomplished, and even when it is
done, it doesn't correspond to the disclosed speech. In that way, what is
announced, it is, in fact, an abstract element without pledge with the
practice.
INTRODUÇÃO
A
través da compreensão de que a habitação social não
se resume ao “objeto casa” mas envolve uma série de
outros espaços que se articulam com o ato de Morar,
este trabalho procurará trazer discussões acerca do fornecimento de
Espaços de Uso Comunitário (EUCs) pelo poder público. Pretendemos
fazer um balanço do fornecimento desses espaços ao longo da história da
política habitacional do Rio de Janeiro, e apresentar, para efeito de
averiguação sobre as condições em que ocorrem uma dicotomia entre o
discurso e a prática da execução dos EUCs, uma análise de dois
programas habitacionais distintos: o Projeto Rio (do PROMORAR) e o FavelaBairro.
Nosso interesse por essa questão já é antigo, tendo surgido
ainda durante o curso de Graduação em Arquitetura. Nessa época, ao
participar de uma pesquisa científica1 entre os anos de 1989 e 1991, sob a
orientação dos professores Cristiane Rose Duarte e Osvaldo Silva, do
Grupo de Pesquisas Habitação (atual Grupo Habitat), que versava sobre
as modificações ocorridas em conjuntos habitacionais, tivemos acesso a
um forte embasamento teórico sobre habitação e políticas habitacionais,
bagagem essa que trazemos até hoje conosco.
Desde então, passamos a compreender que o conceito de
habitação não se resume somente à casa, e defendemos que as
habitações de interesse social deveriam ser fornecidas juntamente com os
EUCs. “Morar” não se resume ao ato de dormir, comer etc., mas traz
consigo as importantes funções de conviver, se relacionar, praticar
esportes, contemplar espaços mais amplos, brincar, entre muitas outras
ações necessárias à manutenção de uma vida psico e fisicamente sadia.
Portanto, entendemos que quando um programa habitacional se propõe a
1
Enquanto bolsista de Iniciação Científica do CNPq.
INTRODUÇÃO
2
oferecer “habitação” para uma determinada camada social, ele deveria
estar fornecendo também os EUCs.
A leitura de diversos autores debruçados sobre a questão
habitacional nos mostrou que esse conceito já está relativamente
sedimentado em várias correntes da produção intelectual da área, o que
serviu para que consolidássemos mais ainda o raciocínio.
Corroborando essa idéia, víamos, ainda no passado, nos
anúncios dos programas habitacionais, que esses espaços eram um
elemento sempre presente nos ideários que embasavam várias propostas
de implantação de programas de interesse social.
No entanto, na prática, nos deparávamos com uma realidade
diferente. Conjuntos e mais conjuntos habitacionais eram produzidos sem
que houvesse EUCs para a população diretamente beneficiada.
A partir dessa constatação, alguns questionamentos começaram
a surgir… Qual seriam os motivos que levariam os programas
habitacionais, cujos projetos anunciavam com tanta ênfase a presença de
EUCs, a serem, na prática, executados apenas a partir do provimento de
unidades habitacionais? Até que ponto a tão gasta “falta de verbas” era
realmente responsável por uma concretização diferente do discurso
proferido? Haveria falta de planejamento, de forma que os orçamentos
sempre “estourassem” antes do tempo? Em caso afirmativo, porque eles
sempre estourariam no momento da execução dos EUCs, e não das
unidades habitacionais? Ou então, será que a visão teria se direcionado
para uma consideração de que a população não estaria precisando de
espaços de uso comunitário? Mas, se assim o fosse, por quê são
encontrados conjuntos habitacionais que originalmente não possuíam
EUCs, e anos depois, mediante solicitações e apelos da população, tais
espaços foram sendo implementados paulatinamente?
Tais questionamentos permaneceram em nosso pensamento,
aguardando uma oportunidade para serem respondidos.
INTRODUÇÃO
3
Ocasionalmente, a referida oportunidade começou a surgir no
ano de 1995, quando fomos convidados por uma equipe de arquitetos a
participar do projeto de urbanização da favela Mata Machado, no âmbito do
Programa Favela-Bairro. Terminada a fase inicial, contrariamente ao que
pensávamos, nosso envolvimento com o programa não terminou, e se
prolongou por mais de quatro anos. Foram necessários vários serviços de
consultoria, através de aditivos ao projeto, detalhamento do projeto,
acompanhamento das obras etc.2
Já tínhamos uma noção, como dito anteriormente, que nem
sempre a prática correspondia ao discurso numa política habitacional.
Quando o Favela-Bairro em Mata Machado começou a se materializar,
através das obras, fomos constatando que, de uma certa forma, estava
acontecendo novamente o mesmo processo de “abandono” das propostas
de criação de EUCs. Durante o projeto, vários espaços de uso comunitário
haviam sido previstos e, no entanto, no decorrer da obra, ficamos
perplexos em vê-los, um a um, sendo eliminados do projeto.
Naquele
tempo,
como
já
estava
sendo
vislumbrada
a
possibilidade de complementação da obra numa fase posterior, havia a
esperança de vê-los executados nessa segunda fase, o que hoje em dia,
mesmo com esta ainda em curso, sabemos que não irá acontecer, dado
que a Prefeitura não autorizou sequer o detalhamento do projeto daquelas
áreas. Além disso, funcionários internos do município substituiriam a
presença dos projetistas na obra, sobre a qual estes não possuem mais
nenhum poder de decisão. Como estávamos acompanhando de perto todo
o processo, entendemos então que a questão da inserção dos espaços de
uso comunitário está sendo vista sob outra ótica, sem a garantia de que
eles serão implementados como foram projetados.
2
Quando a equipe original de projetistas foi obrigada a se subdividir, em razão de
envolvimento com outros projetos, nosso trabalho aumentou, sendo compartilhado com
apenas um integrante da equipe original.
INTRODUÇÃO
4
Entendíamos que o Favela-Bairro é representante de uma
política habitacional que começou de maneira inovadora, baseando-se na
urbanização/integração
das
favelas
à
cidade.
Foram
contratados
escritórios de arquitetura particulares para projetarem as intervenções nas
favelas, e esse aspecto, dentre outros, havia nos despertado um enorme
entusiasmo. Em relação a políticas do passado, os objetivos eram
diferentes, a maneira de colocá-la em prática também… Assim, nos
questionamos por quais razões essa nova política habitacional, apesar de
ter características bem distintas das anteriores, ainda estaria incorrendo
nas mesmas atitudes dos programas do passado? Voltamos a nos
perguntar, dessa vez sobre o Favela-Bairro, por quais razões os EUCs
anunciados no discurso não eram concretizados na prática.
Por outro lado, surgiu também um novo questionamento: haveria
de fato uma ruptura, uma dicotomia entre discurso e prática, ou estaríamos
lidando apenas com coincidências?
Avaliando então outras comunidades do programa, começamos
a perceber que o fato se repetia, e que os EUCs que eram anunciados no
discurso não eram os mesmos que os executados, eram elementos
diferentes. Os espaços colocados no discurso representavam ideais de
liberdade, símbolos de melhoria de qualidade de vida, e os que eram
executados não necessariamente transferiam esses elementos para as
populações beneficiadas.
Intrigados com essas questões, demos início a nossa pesquisa
propriamente dita. Cabe lembrar que no ano das obras na favela Mata
Machado (1996), ingressamos no corpo docente da FAU/UFRJ, e
posteriormente, seguimos para o curso de Mestrado em Arquitetura, e já
em mente, essas indagações a serem trabalhadas na dissertação.
Dessa forma, procuramos primeiramente, verificar realmente a
existência da referida dicotomia, e posteriormente, entender as razões para
INTRODUÇÃO
5
o distanciamento entre discurso e prática no fornecimento de espaços de
uso comunitário no âmbito das políticas habitacionais cariocas.
Para
a
elaboração
deste
trabalho,
foi
necessário
o
estabelecimento de alguns conceitos, dentre eles, obviamente, o que diz
respeito aos espaços de uso comunitário. Assim, no Capítulo I serão
delineados
quatro
conceitos
necessários
para
fundamentar
o
desenvolvimento da dissertação, embasados nos trabalhos BONDUKI,
SILVA e SILVA, DAMATTA, KLEIMAN, SANTOS, DUARTE, LANGSTEN,
CAVALLIERI, LEEDS & LEEDS, PERLMAN e VALLADARES, entre outros.
São eles: espaços de uso comunitário, favela, urbanização e
habitação.
Além disso, fomos buscar, ao longo da política habitacional
brasileira – e especificamente da carioca, o comportamento do poder
público em relação ao fornecimento de EUCs. Procuraremos analisar ao
longo da história, se realmente teria havido uma ruptura entre discurso e
prática. Para tanto, elegemos dois programas habitacionais, por razões
explicadas no corpo do trabalho, para efetuarmos uma análise e tentarmos
descobrir as possíveis causas para o referido distanciamento.
No Capítulo II, procederemos a uma leitura da história da
política habitacional, principalmente a do município do Rio de Janeiro, onde
pretendemos enfocar o fornecimento dos EUCs ao longo dos diversos
programas habitacionais estudados, procurando confrontar seu discurso e
sua prática. Para esta etapa, serão utilizadas, além da pesquisa
bibliográfica, entrevistas (concedidas a nós ou a terceiros) com autores e
pessoas relacionadas ao tema e algumas visitas a favelas e conjuntos
habitacionais. Além disso, a nossa prática no projeto e nas obras de Mata
Machado nos permitiu adquirir um conhecimento sobre o Programa FavelaBairro que até o presente momento, não se encontra registrado em
nenhuma fonte bibliográfica. O fato de ter vivido o dia-a-dia e os problemas
do programa se constituiu numa experiência extremamente enriquecedora,
INTRODUÇÃO
6
que em muito contribuiu não só para a elaboração das bases que serão
desenvolvidas no Capítulo II mas do trabalho como um todo.
Para melhor entendimento do processo histórico, o Capítulo II
será subdividido em quatro recortes temporais. A primeira parte se estende
desde o início do século até a criação do BNH; a segunda se estabelece
durante o regime militar, terminando na Nova República; a terceira, da
Nova República ao início da atual política habitacional da cidade do Rio de
Janeiro; e finalmente, a quarta, o trajeto da atual política habitacional
carioca, até os dias que datam o tempo de finalização da presente
dissertação, no fim de 1999.
No Capítulo III, serão analisados dois programas habitacionais
do Rio de Janeiro, tendo como objeto central de análise a dicotomia entre
as propostas de projeto e a execução de EUCs. Os programas escolhidos
foram o Projeto Rio, no âmbito do PROMORAR, e o Favela-Bairro.
Alguns indicadores e elementos comuns entre esses dois
programas nos permitirão efetuar uma comparação relativa entre ambos.
Para a formulação desta análise, nos utilizaremos mais uma vez de um
corpo teórico definido, além das entrevistas, das visitas a campo e da
experiência já adquirida no Favela-Bairro, além daquela adquirida durante
a pesquisa sobre a Vila Pinheiros (PROMORAR)3. Na realidade, o fato de já
haver convivido mais proximamente com esses dois programas nos
permitiu ter mais familiaridade com os fatos estudados, ajudando-nos a
efetuar a análise.
Finalmente, na Conclusão, tentaremos mostrar que, além de ter
sido verificada a existência da dicotomia entre o discurso e a prática no
fornecimento de espaços de uso comunitário, ela existe devido a fatores
predominantemente políticos, derivados do (des)entendimento entre as
várias esferas governamentais e dos interesses eleitorais.
3
Vila Pinheiros, conjunto habitacional efetuado no âmbito do Projeto Rio (PROMORAR), foi
um dos bairros analisados na pesquisa efetuada durante o curso de graduação.
INTRODUÇÃO
7
Será visto, ainda, ao longo do trabalho, que de uma certa forma,
a história da política habitacional acompanhou a trajetória da política
brasileira como um todo: a preocupação com EUCs no Estado Novo de
Vargas, regime paternalista com a atenção ao homem social; a produção
em massa de unidades habitacionais (espaços privados) durante o regime
militar; e a adoção de práticas alternativas como a autoconstrução e a
urbanização, mais flexíveis, durante a Nova República, após a anistia e a
abertura política.
Acreditamos que, com o presente trabalho, estaremos coletando
subsídios para enriquecer o debate na criação de futuras políticas
habitacionais. Tendo em vista o decrescente nível da qualidade de vida da
população carente não apenas no Rio de Janeiro, mas no Brasil como um
todo, acreditamos que por mais estudos que já existam nessa área, eles
ainda não foram suficientes para gerar uma mentalidade mais preocupada
com as condições de habitabilidade e convívio, por parte do Poder Público.
Não é nossa intenção esgotar o tema, nem tão pouco fazer desta pesquisa
a “definitiva” sobre a questão habitacional. Nosso intuito é poder participar
e contribuir de alguma forma com parâmetros qualitativos para o
equacionamento de um dos problemas mais sérios que o Brasil possui.
Capítulo I
CONCEITUAÇÃO
N
este capitulo serão conceituados quatro elementos
considerados de fundamental importância para o
perfeito
entendimento
deste
trabalho.
São
eles
espaços de uso comunitário, favelas, urbanização e
habitação. Tais conceitos darão embasamento ao raciocínio estabelecido
na discussão da pesquisa, sobre o quê exatamente estará sendo dito ao
ser mencionado o termo espaço de uso comunitário. Além disso, o objetivo
de se conceituar favela é a delimitação de um amplo universo possível de
definições, e o termo urbanização, o estabelecimento de o quê, neste
trabalho, será considerado oposto à remoção de favelas.
I.1) ESPAÇO DE USO COMUNITÁRIO
Especificamente, o objetivo de conceituarmos espaço de uso
comunitário reside no fato de que será este elemento o protagonista deste
trabalho. Se iremos analisar a dicotomia entre discurso e prática no
fornecimento desses espaços, que são de uso público, cabe-nos aqui definir
e conceituar exatamente o que está sendo dito ao mencionar espaços de
uso comunitário, espaço público e mais, espaço privado também, para a
elaboração do devido contraponto.
De uma forma resumida, consideraremos que o espaço privado
possui um proprietário, efetivamente, que faz questão de demarcar o seu
território pessoal, como pode ser visto em FISCHER (1994), SANTOS
(1985) e DA MATTA (1987); e espaço público, o espaço que pertence ao
Estado, à coletividade, da mesma maneira já estabelecida por SANTOS
(1985) e DA MATTA (1979 e 1987).
CAPÍTULO I - CONCEITUAÇÃO
9
Já o termo espaço de uso comunitário será utilizado, nesta
dissertação, com sentido amplo, abrangendo outros itens que não o
espaço físico propriamente dito. Os equipamentos urbanos comunitários,
localizados em espaços que são públicos, serão da mesma forma
considerados públicos neste trabalho.
O espaço de uso comunitário será compreendido como o
conjunto de espaços que complementam o objeto “casa”, pois junto com
ela, formam o locus que se constitui na base do ato de HABITAR (seja em
pequena escala, como num conjunto habitacional, seja numa escala maior,
como a própria cidade).
Nesta categoria de espaço de uso comunitário são incluídos,
além dos equipamentos urbanos funcionais como sinais de trânsito,
caixas de correio, frades etc., as praças e todos os seus brinquedos,
bancos, ciclovias, locais para jogos, espaços de lazer contemplativo
etc. São os espaços de uso comunitário destinados ao LAZER. Também
tem-se os destinados à EDUCAÇÃO, que são as creches e as escolas.
Os de SAÚDE são basicamente os postos de saúde e os hospitais. Temse também os da categoria ACESSOS, que seriam a abertura,
implantação e pavimentação de vias, além do atendimento de uma rede
de transportes que beneficie a comunidade. Segundo KLEIMAN1, “para
uma máquina de lavar funcionar, é necessário rede de água, rede de
esgoto e rede de energia elétrica”. Além disso, acrescenta-se que é
necessário também uma rua com condições de tráfego para o caminhão de
entregas da máquina chegar pelo menos próximo à casa que irá recebê-la.
O item acessos traz consigo os itens coleta de lixo e limpeza urbana, e
serviços essenciais como bombeiros, ambulâncias e carros funerários.
Assim, no presente trabalho, o termo
COMUNITÁRIO
ESPAÇO
DE
USO
será então adotado para exprimir todos os espaços públicos
1 Palestra proferida por Mauro Kleiman no Seminário de Avaliação do Programa FavelaBairro, no Sindicato dos Arquitetos do Rio de Janeiro, em 25/10/97.
CAPÍTULO I - CONCEITUAÇÃO
10
que complementam e se articulam com o Morar e seus equipamentos
urbanos de uso comunitário, incluindo-se também os serviços que
garantem a manutenção dos dois primeiros, tais como limpeza urbana e
conservação, como pode ser visto no esquema abaixo:
Figura I.1 – Esquema do conjunto de espaços de uso comunitário estudados no
presente trabalho.
Figura I.1 – Esquema do conjunto de espaços de uso comunitário estudados no presente
trabalho.
I.2) FAVELA
A favela, da mesma maneira que os espaços de uso
comunitário, também será um protagonista deste trabalho. Na verdade, ela
é um dos suportes espaciais das análises apresentadas nesse trabalho.
Assim, como palco das ações dos atores sociais e públicos enfocados
nesta dissertação, precisa aqui ser conceituada.
Vários autores e órgãos governamentais apresentam conceitos
do termo favela: Entre eles, podemos citar DUARTE (2000), GRABOIS
(1973), FUNDAÇÃO LEÃO XIII (1962), LANGSTEN (1973), PERLMAN
(1977), PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO (1995),
SECRETARIA
DO
BEM
ESTAR
SOCIAL
(1971),
SECRETARIA
MUNICIPAL DE PLANEJAMENTO (1983) e VALLADARES (1978).
CAPÍTULO I - CONCEITUAÇÃO
11
A Fundação Leão XIII, por exemplo, considera que favelas são
“Concentrações de casebre, erguidos em terrenos geralmente de
propriedade de terceiros, sem arruamento, insalubres e de tal forma
emaranhados que, na maioria dos casos, não oferecem condições para
que se façam melhoramentos. Caracterizam-nas a promiscuidade, a
enfermidade, a falta de higiene, a desorganização familiar, a mortalidade
infantil, a criminalidade, etc.”(FUNDAÇÃO LEÃO XIII, 1962:4)
Duarte considera que, “numa conceituação generalizante, podese dizer que as favelas são aglomerados de casas auto-construídas em
invasões ilegais de terrenos públicos ou privados, geralmente não dotados
de infra-estrutura urbana.” (DUARTE, 2000:01)
Já Langsten caracteriza a favela como “qualquer área que
apresente uma das seguintes condições: um aglomerado de construções
rústicas (i.e., casas construídas com materiais precários); desprovidas de
serviços urbanos tais como luz, água, esgoto; sem arruamento regular ou
numeração nas casas; e construídas em terrenos dos quais os residentes
não possuem título legal. Em última instância, esse último item, o problema
da posse da terra é o mais importante. Mesmo os estabelecimentos de
invasores bem desenvolvidos encontram-se sob ameaça de despejo, ao
passo que habitações ainda mais precárias, mas para as quais há
segurança de posse do terreno, são rarissimamente perturbadas.”
(LANGSTEN, 1973:38).
Nos três exemplos citados acima, temos indicadores precisos
do que seja uma favela. Podemos agrupá-los em dois grupos, sendo o
primeiro composto unicamente pela definição da Fundação Leão XIII e o
segundo pelas definições de Duarte e Langsten. Por apresentarem
enfoques
diferentes,
tais
definições
podem
ser
agrupadas
pelas
semelhanças de seus significados.
A definição da Fundação Leão XIII traz uma visão de certa forma
depreciativa à questão. Ela considera que a favela também pode ser
CAPÍTULO I - CONCEITUAÇÃO
12
caracterizada pela “promiscuidade, a enfermidade, a falta de higiene, a
desorganização familiar, a mortalidade infantil, a criminalidade, etc.”.
Compreendemos, contudo, que esta visão higienista estava relacionada
diretamente com a sua época, 1962, cujo contexto não cabe explorar aqui. Essa
noção de caos se tornou popular, e hoje podemos ouvir a expressão “isso aqui
está uma favela!”, simplesmente para fazer referência a uma sala desarrumada.
Já no segundo grupo, Duarte definiu de forma mais precisa do
que se tratam os “casebres” ou as construções “rústicas”, encontradas nas
outras definições: casas “auto-construídas”. Esse elemento, salvo
raríssimas exceções, pode ser um dos responsáveis pela má qualidade
projetual e construtiva das casas em favelas, considerando-se a falta de
conhecimento técnico daqueles que as constróem.
Langsten, ao colocar várias possibilidades para que uma área seja
considerada favela, abriu o seu leque de visões. Ao mencionar “...desprovidas
de serviços urbanos tais como (...) esgoto e arruamento regular...” , podemos
nos lembrar das casas de classe média alta localizadas, por exemplo, no
bairro Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro, onde encontramos
residências de alto padrão construtivo situadas justamente numa área onde a
grande maioria das ruas não possui qualquer tipo de calçamento e muito
menos rede de esgotamento sanitário. Seria o Recreio dos Bandeirantes uma
favela então? Acreditamos que não. Langsten fixou, contudo, um parâmetro
mais importante do que os outros: o título legal da propriedade.
Com efeito, esse indicador se encontra presente em todas as
definições dos outros autores relacionados acima. Além disso, há de se pensar
que as dúvidas de definição pelas duas políticas habitacionais estudadas
nesse trabalho (remoção ou urbanização), ocorridas várias vezes em várias
gestões políticas, existiram basicamente porque a população atingida não
possuía o título legal da propriedade. Outrossim, seria impraticável montar uma
remoção. Da mesma forma, se por acaso residências legais da cidade se
encontram numa área sem serviços públicos, sem infra-estrutura urbana (sem
a urbanização da qual trataremos no próximo item), não há questionamentos
CAPÍTULO I - CONCEITUAÇÃO
13
sobre a necessidade e validade da urbanização. Ela pode até ser postergada
por vários fatores, desde a falta de organização dos moradores à falta de
verba, mas dificilmente terá a sua necessidade questionada.
Dessa maneira, o que entendemos como favela no presente
trabalho é um conjunto de moradias auto-construídas geralmente em local de
propriedade alheia, sem oficialização da propriedade e basicamente ocupado
por populações de baixa renda, cujas construções fogem muitas vezes aos
padrões recomendados em normas construtivas vigentes e apresentam, em
grande número, baixas condições de habitabilidade. Normalmente, esses
aglomerados não possuem infra-estrutura urbana formal, sendo mais comum
a infra-estrutura informal.
I.3) URBANIZAÇÃO
Dos diversos significados empregados para o termo urbanização,
dois são mais usuais: o que se opõe ao conceito de ruralização e o que fala
de dotar um local de infra-estrutura urbana, advindos respectivamente das
ciências sociais e das aplicadas. Portanto, acreditamos ser necessária a
delimitação conceitual do termo, para definição daquele que será utilizado
ao longo deste trabalho.
O termo urbanização é muitas vezes utilizado como sendo a ação
oposta à remoção, no tratamento das favelas. A remoção promove a retirada
da população favelada de seus barracos, a demolição destes e o
deslocamento da população para moradias construídas pelo Estado, em
outro local. Já a urbanização mantém a população na favela, dotando-a de
alguns serviços, conforme será visto mais adiante.
Acreditamos que os conceitos de urbanização que versam sobre o
provimento de serviços e infra-estrutura urbana como abastecimento de água,
esgotamento sanitário, drenagem de águas pluviais, coleta regular de lixo,
além de equipamentos como escolas, comércio e postos tratamento médico,
estejam em maior consonância com os que adotaremos neste trabalho. Estes
CAPÍTULO I - CONCEITUAÇÃO
14
conceitos podem ser comparados à definição de CAVALLIERI (1986), que
trata esta urbanização como urbanização global, aquela que interfere em
todos os setores da favela:
“A urbanização global de uma favela pressupõe um ataque em massa a
todos os seus setores, implantando os mais diversos serviços públicos,
alterando a estrutura espacial existente, promovendo remanejamentos
de edificações, retificações de vias, etc. A urbanização dita setorial
incide primeiro nos aspectos mais críticos, considerados prioritários pela
população, de modo a produzir efeitos sensíveis a curto prazo, que
podem ser complementados por outros em momentos posteriores.”
(CAVALLIERI in IPLANRIO, 1986: 33).
A urbanização setorial a qual Cavallieri se refere é muitas vezes o
princípio de uma urbanização global apenas teoricamente. Várias favelas são
ditas “urbanizadas” apenas com o provimento da infra-estrutura básica (água,
esgoto e drenagem), o que, de qualquer maneira, é realmente o básico de uma
urbanização. No entanto, para VALLADARES, a urbanização se resume
praticamente à infra-estrutura básica: “Urbanizar a favela significaria dotá-la com
um infra-estrutura básica (água, luz, esgotos, viária, etc.), reformar ou reconstruir
as casas por meio de financiamentos individuais, lotear e vender os terrenos para
cada família, a partir de uma estrutura já existente” (VALLADARES, 1978: 112).
Já outros autores se referem à urbanização como a ação de
prover infra-estrutura e serviços:
LEEDS
&
LEEDS,
no
sentido
espanhol
e
português:
“...fornecimento de serviços urbanos e infra-estrutura para uma área da
cidade” (LEEDS e LEEDS, 1978:188).
PERLMAN, no sentido latino-americano: “...prover serviços e
infra-estrutura urbana – principalmente água, eletricidade, drenagem,
esgotos e pavimentação, quando necessário” (PERLMAN, 1977:44).
FUNDAÇÃO
Leão
XIII:
“...saneamento
físico-ambiental
(zoneamento, construção ou melhoramento de vias para veículos ou
pedestres, esgoto, água, etc.). Alia-se à propiciação de serviços comunais
CAPÍTULO I - CONCEITUAÇÃO
15
(escola, mercado, centro de saúde, igreja, parques, etc.), caso não existam
ou sejam insuficientes na área” (FUNDAÇÃO Leão XIII, 1962: 20)
Temos em síntese, dois grupos de significados para urbanização:
o primeiro, que coloca o fenômeno da urbanização em contraponto ao meio
rural; e o segundo, que de uma maneira geral, coloca a urbanização como
provimento de infra-estrutura e serviços. Este último será o adotado por
nós como definição de urbanização neste trabalho.
I.4) HABITAÇÃO
Neste trabalho, a habitação será tratada no seu sentido mais
amplo, extrapolando os limites das paredes externas da edificação tida como
casa.
Segundo BONDUKI (1998), os Institutos de Aposentadorias e
Pensões, ainda na década de 40, já trabalhavam com esse conceito
ampliado do termo habitação:
“As diretrizes do IAPI seguiam de modo rigoroso a visão de que
habitação não é só a moradia: (...) Elas previam a criação, junto à
moradia, de escolas, creches, serviços de assistência médica, centros
comerciais, espaços livres, campos de esportes, estações de
tratamento de esgoto etc., além do reforço das redes de abastecimento
de água.” (BONDUKI, 1998:157)
Da mesma forma, SILVA e SILVA também entende que a habitação possui
uma conexão direta com outros elementos que não apenas o objeto “casa”:
“A habitação não pode ser concebida como mero abrigo, pois ela
representa a porta de entrada dos serviços urbanos” (SILVA e SILVA,
1989:30).
De acordo com os supracitados autores, sustentamos que o ato de
“Habitar” transcende as funções desempenhadas no interior da casa.
Portanto, em nosso entender, a habitação deve ser compreendida como o
espaço que permite que o ser humano desempenhe todas as funções
inerentes ao ato de morar. Dessa maneira, um grupamento de casas que não
CAPÍTULO I - CONCEITUAÇÃO
16
possua espaços de uso comunitário não terá condições físicas para permitir a
integração social e cultural entre seus próprios habitantes e também com os
do entorno. Com efeito, poderemos imaginar que uma cidade constituída
apenas de espaços privados se torna uma cidade inóspita, fechada em si
mesma, sem a qualidade de vida trazida pelo encontro entre as pessoas e
pelo lazer, somados ao atendimento escolar e de saúde, além de outros
serviços. Nesse sentido, os espaços de uso comunitário, já conceituados
anteriormente, representam um ponto fundamental na integração de
diferentes camadas sociais e na melhoria da qualidade de vida. Eles são
locais de troca, de relacionamento, onde a cidade se transforma numa cidade
não segregadora, de inter-relacionamentos pessoais, elementos que
permitem o crescimento humano e o seu bem estar psico e físico.
Desta forma, ao fornecer habitações, principalmente em
programas de interesse social, o Poder Público não deveria se restringir
apenas a construir casas, compreendidas aqui como um teto que sirva de
abrigo para as funções de dormir e comer, dentre outras.
Sustentamos que, ao fornecer espaços de uso comunitário
integrados ao objeto “casa”, o Poder Público estaria fornecendo a
Habitação, em seu sentido pleno, sem estar, como tantos querem fazer crer,
gastando mais verbas para tanto, principalmente se levarmos em conta o
“ganho social” resultante do uso desses espaços.
Assim, de uma forma resumida, defendemos que Habitação deva
ser designada não somente como objeto “casa”, mas também como o
conjunto formado por moradia e serviços urbanos necessários ao seu
funcionamento como tal, somados aos espaços de uso comunitário,
elementos integradores de diferentes camadas sociais e indispensáveis para
a boa qualidade de vida dos habitantes de uma cidade.
Capítulo II
ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
ATRAVÉS DA POLÍTICA HABITACIONAL BRASILEIRA
A
o iniciar essa análise, nos deparamos com uma
intrigante questão: É sabido, pelos registros existentes5,
que desde a primeira iniciativa oficial por parte do
governo em relação ao déficit habitacional (os IAP's) já havia o conceito
estabelecido de que habitação não se resumia apenas ao objeto “casa” 6.
Apesar da existência desse conceito, adotado pelo discurso
governamental de várias e diferentes épocas, na prática ele nem sempre
se concretizava. Portanto, se já havia o conceito estabelecido, o quê
poderia fazer o Poder Público anunciar a produção de espaços de uso
comunitário (EUCs) em habitações de cunho social e nem sempre
concretizá-los? Disponibilidade de espaço físico? Disponibilidade de
verba? Disposição política? Interesses eleitorais?
O que se tentará mostrar, neste trabalho, é que vários fatores
determinaram a implantação ou não de EUCs ao longo das diversas
produções habitacionais fornecidas pelo Estado. Para tanto, será traçado
aqui um histórico da política habitacional, principalmente no que diz
respeito ao Rio de Janeiro, relacionando-a às posturas governamentais de
fornecimento ou não de espaços de uso comunitário. O histórico será
subdividido em quatro recortes temporais:
5
Como os vistos em PARISSE (1969) e BONDUKI (1998).
6
Ver, na página 15 deste trabalho, a citação de BONDUKI (1998) sobre os IAP's.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
18
• Do início do século XX à instauração do regime militar (1964);
• Da instauração do regime militar (1964) ao início da Nova
República (1985);
• Do início da Nova República (1985) ao início da Política
Habitacional adotada pela Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro (1993);
• Do início da Política Habitacional adotada pela Prefeitura da
Cidade do Rio de Janeiro (1993) aos dias atuais (1999).
II.1) D O
INÍCIO DO SÉCULO
XX
À INSTAURAÇÃO DO REGIME MILITAR
A partir do início do século, a escassez de moradias irrompeu a
cidade do Rio de Janeiro, como conseqüência de alguns fatores:
• a abolição da escravatura, que transformou milhares de exescravos em milhares de desempregados que não tinham como
pagar pela própria moradia;
• a revolução industrial, que redirecionou a produção centrada no
meio rural para as cidades, atraindo mão-de-obra para estas;
• o
incentivo para a construção de edifícios comerciais e
industriais e as obras de reforma urbana postas em prática pelo
Prefeito Pereira Passos.
Para combater a escassez de moradias, ainda que numa tímida
tentativa, a Prefeitura do Distrito Federal constrói e entrega, em 1906, o
primeiro conjunto habitacional da cidade, o da Av. Salvador de Sá, com
105 unidades (BONDUKI, 1998). Contudo, após esse fato, durante anos
não houve qualquer outra medida de caráter governamental no campo da
habitação. Em 1930, o Decreto n.º 19.496 permite que sejam utilizados os
fundos das Caixas de Aposentadorias e Pensões para a construção de
casas para operários e funcionários da União, com a aprovação do
Ministério do Trabalho Indústria e Comércio (FINEP/GAP, 1985).
Em 1933, depois de uma mudança na política de seguro social,
foram criados os Institutos de Aposentadoria e Pensões, futuros substitutos
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
19
das Caixas. A produção de moradias pelas Caixas e Institutos, até o ano
de 1937, não havia ultrapassado o número de 118 imóveis, sendo que no
Rio de Janeiro, foram construídos apenas 37 prédios (FINEP/GAP, 1985).
A política habitacional a partir desse período foi inteiramente assumida
pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (mais conhecidos como
IAP’s), objetivando alcançar os empregados dos setores de indústria e
comércio (SANTOS, 1997).
Apesar de se caracterizar como a primeira responsabilidade do
Estado sobre a questão habitacional, a política dos Institutos se mostrou
pontual, atendendo somente dentro de um universo específico da
população (os assalariados de determinadas categorias), e mesmo assim,
de maneira clientelista e paternalista.
Apesar disso, a produção habitacional dos IAP's foi a primeira
iniciativa oficial em relação ao déficit habitacional, e segundo Bonduki, em
seus conjuntos habitacionais havia a preocupação expressa pelos espaços
de usos comunitários:
“Os programas passaram a incluir uma gama variada de
equipamentos coletivos, difundindo-se a concepção de que
habitação não podia apenas ser a moradia individual” (BONDUKI,
1998:145).
A arquitetura dos IAP’s foi muito influenciada pelo movimento
modernista, com a divulgação das idéias contidas no conceito de “cidadesjardim” e outras do mesmo gênero:
“Modificava-se a relação entre o público e o privado, rompendose as fronteiras que os separavam e criando-se a noção de que
não se habita apenas a casa e sim um conjunto de equipamentos
e serviços coletivos” (BONDUKI, 1998:148-149).
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
20
Esse era um pensamento adverso de cerca de uma década
anterior, quando a grande produção habitacional do país vinha do setor
privado, e se caracterizava basicamente de vilas para o setor rentista. Com
exceção daquelas destinadas ao uso operário, as vilas de uma maneira
geral não possuíam nenhum tipo de espaço de uso comunitário, já que não
compensaria para o seu proprietário deixar de ocupar um determinado
espaço com mais uma ou duas casas que lhe pagassem aluguel para
ocupá-lo com outras finalidades.
Na realidade, as vilas representavam fisicamente a proximidade
máxima admitida entre casas naquele período, pré-Estado Novo, ainda
muito influenciado pelo higienismo do início do século. A forma considerada
‘ideal’ de morar eram as casas isoladas, em centro de terreno, bem
distantes morfologicamente dos ‘promíscuos’ cortiços. Esse pensamento ia
ao encontro de posturas da Igreja, para quem a família “devia ser
preservada da promiscuidade e dos contatos perigosos com a rua, ou seja,
com o espaço público ou coletivo” (BONDUKI, 1998:149). A partir daí, pode
ser deduzido que para a Igreja, a habitação ideal também seria aquela casa
isolada, em centro de terreno.
Mesmo não tendo aparentemente nenhuma ligação com a
postura religiosa e apesar da produção dos IAP's ter marcado uma época
pelo seu caráter predominantemente modernista, em várias cidades,
principalmente nas pequenas e médias, essa produção foi basicamente de
casas térreas, unifamiliares, da forma que foi convencional durante muito
tempo.
A inserção então do novo modelo de moradia, coletiva, e
cercada de espaços de uso comunitário, deve-se à interferência do Estado
(através da produção habitacional dos IAP's). Tinha início a mentalidade do
governo paternalista e protetor, característico do Estado Novo de Getúlio
Vargas, que deveria ‘conduzir’ a vida social dos cidadãos, não deixando-os
expostos às vicissitudes das rodas de bar e da conversa entre bêbados.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
21
Havia
um
discurso
de
fornecer
condições
para
o
desenvolvimento de uma vida social regrada, onde houvesse “proteção e
controle do trabalhador, com a criação de um espaço totalizador, onde o
tempo livre era ocupado em atividades educacionais e recreativas
controladas pelo Estado, que, ademais, era o locador das moradias. A
imagem paternalista do Estado atingia o seu ápice” (BONDUKI, 1998:165166). Tal discurso veio fundamentado nos programas inovadores dos
conjuntos, que dispunham dos EUCs. Os espaços eram projetados de
maneira a propiciar que a classe operária vivesse de maneira moderna,
coletivamente, de acordo com o modelo desenvolvimentista promovido
pelo governo.
Assim, segundo BONDUKI (1998), a origem da habitação social
no Brasil foi uma articulação entre o propalado desenvolvimento nacional e
o modelo de sociedade que o Estado almejava. A arquitetura e os espaços
dos conjuntos habitacionais serviriam então para materializar essa
articulação.
Como exemplo da produção habitacional dos IAP's podem ser
citados o conjunto residencial AREAL, no Rio de Janeiro (ver figuras II.1 e
II.2), com 600 unidades (FINEP/GAP, 1985), e o conjunto residencial de
Realengo, também no Rio de Janeiro (ver figuras II.3 e II.4), com 2344
unidades. Neste último, além das unidades residenciais, foram construídos
também escola primária, creche, ambulatório médico, gabinete dentário,
quadras para a prática de esportes, igreja e horto (BONDUKI, 1998).
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
22
Figura II.1 – O conjunto Areal, em Irajá, mais conhecido como “amarelinho”.
Figura II.2 – Planta Cadastral da Cidade do Rio de Janeiro, mostrando a
implantação do conjunto Areal, às margens da Avenida Brasil.
Notar a presença de uma escola municipal e o grande espaço livre
deixado entre os blocos, permeados por alguns caminhos
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
23
Figura II.3 – O conjunto Realengo, no bairro de mesmo nome. No alto,
vê-se o bloco principal do conjunto. Acima, os fundos do
mesmo bloco, visto a partir da praça.
Figura II.4 – Planta Cadastral da Cidade do Rio de Janeiro, mostrando
parte da implantação do conjunto Realengo. Em destaque na
planta, o bloco principal, cujos fundos são voltados para uma
grande praça, ao lado de uma escola municipal. Essa praça,
hoje em dia, é o grande centro de lazer do conjunto, com
quadra de esportes e vários equipamentos para brincadeiras
infantis.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
24
Segundo BONDUKI7, o Realengo é um dos poucos exemplos de
conjuntos que conseguiram implementar uma gama diversa EUCs, da
forma como havia sido proposto no projeto inicial.
Ainda, nesta mesma época, um outro órgão produziu habitações
para os funcionários de baixa renda do Distrito Federal (Rio de Janeiro), e
teve na sua produção arquitetônica exemplos de habitação muito
semelhantes àqueles propostos pelos IAP’s (BONDUKI, 1998). É o
Departamento de Habitação Popular do (então) Distrito Federal, que
construiu os Conjuntos Residenciais Marquês de São Vicente e do
Pedregulho, também com vários espaços de uso comunitário, em
concretizações das mais representativas do movimento moderno e todo o
conceito de “cidades-jardim” e “homem social” que nele vinha imbuído.
Nesta fase, de produção de grandes conjuntos pelos IAP’s, o
espaço de uso comunitário está presente não só no discurso, mas também
na prática. Essa situação virá a ser praticamente única na história da
política habitacional (carioca), como será visto neste trabalho, posto que na
maior parte das vezes, a prática se mostrou bem diferente do discurso, em
relação a estes espaços. Mas, naquela situação política, do Estado Novo
de Vargas, interessava ao governo se mostrar paternalista e protetor,
supervisionando inclusive as atividades sociais dos moradores. Por isso os
EUCs foram colocados tão em evidência naquela época, em “núcleos
habitacionais de inspiração moderna” (BONDUKI, 1998:164).
Apesar desse fato, os EUCs nem sempre se concretizavam, e
paralelo a isso, a preferência dos moradores recaía na maioria das vezes
por casas isoladas, segundo BONDUKI (1998).
Os IAP's atendiam a uma parcela específica da população, os
assalariados de determinadas profissões. Quem não pertencesse a
nenhum Instituto, e não tivesse condições para pagar aluguel, era obrigado
7
Entrevista concedida a autora, em dezembro de 1999.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
25
a morar nos cortiços, então escassos na cidade, ou nos morros, em
favelas. Porém, no ano de 1937, é promulgado o Código de Obras do
Distrito Federal, que se constitui no primeiro reconhecimento legal da
existência de favelas e contém recomendações no sentido de limitar sua
expansão e eliminá-las. Segundo SILVA e SILVA (1989), ele preconiza a
“substituição dessas favelas por ‘núcleos de habitações do tipo mínimo”8,
estimulando a construção de habitações populares ou “habitações
proletárias”, a serem vendidas para pessoas reconhecidamente pobres.
A favela, como forma alternativa de moradia, passa então a ser
marginalizada, “percebida como mero problema habitacional e como uma
doença social que precisaria ser extirpada” (SILVA e SILVA, 1989:38).
Corroborando as medidas estabelecidas no Código de Obras, a
prática de eliminar favelas foi adotada pela Prefeitura do Distrito Federal
(RJ), com a criação dos Parques Proletários do Rio de Janeiro. A idéia era
transferir a população favelada para os parques apenas provisoriamente,
enquanto casas de alvenaria seriam construídas no lugar de seus
barracos. No entanto, o que se pôde constatar é que de provisórios, os
parques passaram a definitivos; a população nunca mais voltou ao seu
local original de moradia, e os parques passaram posteriormente a ser
considerados favelas (SECRETARIA MUNICIPAL DE PLANEJAMENTO,
1983). Foram criados três Parques: Gávea (1942), Caju (1942) e Leblon
(1944).
Ao final de 1943, os Parques Proletários abrigavam cerca de
8.000 pessoas (ABREU & BRONSTEIN, 1978). É interessante notar que
nesta época, ainda não havia se estabelecido o pensamento de afastar os
favelados do núcleo urbano, tanto que dois dos Parques Proletários se
situavam na zona sul da cidade; e o do Caju, na zona norte, se encontrava
em área adjacente ao centro da cidade.
8
Código de Obras de 1937, apud SILVA e SILVA, 1989:38.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
26
Nos Parques Proletários, também houve a preocupação com os
EUCs. O da gávea (parque no1) continha, além de 700 habitações, “uma
igreja, um posto médico, um centro de assistência social, um clube de
malha [bocha] , uma escola de educação física, uma creche, um lactário e
um posto policial” (PARISSE, 1969:71). Ou seja, mesmo em se tratando de
habitações originalmente provisórias, o poder governamental dotou-as de
EUCs, para que servissem de apoio aos moradores que para lá seriam
transferidos. Cabe lembrar que neste período, ainda vigorava o Estado
Novo de Vargas.
Através do decreto-lei
n.º 9.218 (SILVA e SILVA, 1989),
assinado em 1º de maio de 1946 pelo General Dutra (mandato de 1946 a
1950), é criada a Fundação da Casa Popular (FCP). Inicialmente, seu
objetivo era “proporcionar a brasileiros ou estrangeiros com mais de dez
anos de residência no país ou com filhos brasileiros, a aquisição ou
construção de moradia própria, em zona urbana ou rural” (FINEP/GAP,
1985:64). Mais tarde, porém, seus objetivos foram ampliados, se tornando
bastante vastos, e seu campo de ação estendeu-se a todo território
nacional9.
Podemos entender a assinatura do decreto da FCP em 1º de
maio, Dia do Trabalho, como uma reafirmação do caráter populista e
paternalista que o governo federal passou a adotar desde o mandato de
Getúlio Vargas. Em 1942, Getúlio impôs a Lei do Inquilinato e congelou o
preço dos aluguéis no patamar onde se encontravam a 31 de dezembro de
1941.
Na realidade, a Lei do Inquilinato teve um caráter bem menos
social do que se imagina. Segundo Bonduki (1998), ela estava relacionada
ao redirecionamento dos recursos internos - até então massivamente
aplicados no setor rentista, que originava altos lucros - para o iniciante
9
A respeito dos objetivos ampliados da FCP, ver FINEP/GAP, 1985:65 e BONDUKI,
1998:123.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
27
parque industrial brasileiro. Além disso, ela também serviria para dar mais
estabilidade ao regime, “contrapondo-se às idéias socialistas e comunistas”
(BONDUKI, 1998:84), que se baseavam na não propriedade de bens
materiais. Assim, o morador que quisesse viver em casas alugadas, sem
adquirir um imóvel próprio, estava condenado a ser de esquerda. No
Estado Novo, a “doutrina da casa própria” estava cada vez mais
fortalecida, mas apesar disso, havia correntes que eram contra a FCP.
Podemos aqui citar duas delas, estabelecidas por BONDUKI (1998):
1 – Com a maciça produção pública de moradias, gerou-se um demasiado
temor entre os empresários de construção civil, de que houvesse falta de
materiais de construção para o setor privado, prejudicando, assim, os
lucros advindos das incorporações para venda de imóveis;
2
–
Os
escalões
superiores
dos
IAP’s
temiam
o
“inevitável
enfraquecimento” dos Institutos, no seu poder de fornecer, além de
residências, favores clientelistas exclusivos de quem detinha o poder sobre
a produção de moradias.
A lei do inquilinato provocou efeito contrário ao desejado. Os
proprietários, não podendo aumentar os alugueres, despejavam os
inquilinos para trocá-los por novos, com novos contratos também10.
Foi nesse contexto, como tentativa para solucionar o déficit
habitacional que o decreto que criava a FCP foi assinado. No entanto, a
produção de moradias pela FCP só se tornou concreta dois anos mais
tarde, com a entrega de 1.336 unidades. Nos anos que se seguiram a
produção da FCP aumentou, mas em 1952 decaiu para o inexpressivo
número de 28 habitações. Até o fim de suas atividades, em 1961, a FCP
10
Para saber mais sobre a Lei do Inquilinato, ver BONDUKI, 1998.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
28
ainda produziu mais cerca de 300 unidades11. Toda a produção da
Fundação da Casa Popular se distribuiu por vários estados do país.
Em 1947, foi criada a Fundação Leão XIII, nascida de um acordo do
então Prefeito do Distrito Federal, Hildebrando de Góis, com o Cardeal D.
Jaime Câmara. Na forma de entidade religiosa privada, a Fundação
interveio nas favelas mais populosas, facilitando a instalação de água, luz
e esgoto, além de criar os Centros de Ação Social, alguns com
ambulatórios e escolas. No total, entre 1947 e 1954, a Fundação atuou em
34 favelas do Rio de Janeiro e implantou os Centros de Ação Social em
oito, sendo as seis primeiras as mais desenvolvidas: Jacarezinho, Rocinha,
Telégrafos, Barreira do Vasco, Morro de São Carlos, Salgueiro, Praia do
Pinto e Cantagalo (LEEDS & LEEDS, 1978).
Com a Fundação Leão XIII, também são encontradas várias
iniciativas que demonstram preocupação com os EUCs, e neste caso, de
forma mais acentuada, porque suas ações eram fundamentalmente
sociais, e objetivavam urbanizar favelas, dotando-as de serviços públicos
essenciais. Mas, além de tudo, a Leão XIII queria “recuperar socialmente”
os favelados e frear a disseminação do comunismo já instalado entre eles,
o que estava roubando significativo número de votos de outros partidos,
principalmente dos de direita. De fato, nos “Pontos Básicos” do documento
que apresentava sua ação, no quesito “cívicos”, pode-se ler nas
entrelinhas a clara preconização da expulsão de pensamentos políticos
não tradicionais, cerceando assim, a liberdade de escolha política dos
favelados:
“As populações em ascensão social tornar-se-ão menos sujeitas
à exploração de políticos inescrupulosos e de agitadores
extremistas (grifo nosso). À medida que se for acentuando a
sua integração na comunidade e a sua aproximação das classes
médias, elas irão adquirindo uma consciência cada vez mais
clara das suas responsabilidades próprias, na orientação dos
acontecimentos
nacionais,
e
passarão
a
colaborar
11
Dados de FINEP/GAP, 1985.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
29
definitivamente na preservação e no aperfeiçoamento das
práticas democráticas” (FUNDAÇÃO LEÃO XIII, 1962:26).
Um dito muito popular da época era “É necessário subir o morro
antes que os comunistas desçam” (SAGMACS, 1960 apud LEEDS &
LEEDS, 1978:199). Para tanto, a Fundação teria que estar sempre
presente e bem próxima das favelas, o que estaria fazendo através dos
Centros. A popularidade e prosperidade do Partido Comunista lhe custou a
própria ilegalidade, sentenciada no mesmo ano de 1947, após as eleições
em que teve expressiva quantidade de votos. Contudo, apesar de todo
cerceamento político, a Fundação atuou fundamentalmente nos espaços
de uso comunitário.
A Fundação Leão XIII permaneceu em atividade e em 1962 teve
seu status quo modificado pelo Governador Carlos Lacerda, que com
manobras políticas tornou-a parte da Secretaria de Serviços Sociais do
recém-criado Estado da Guanabara (LEEDS & LEEDS, 1978).
Em 1956, é criado o SERFHA – Serviço Especial de
Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas. A atuação do
SERFHA não se limitava às favelas, também abrangia vilas, cortiços,
casas de cômodos e áreas decadentes em geral, o que denotava que a
preocupação do órgão era muito mais do que simplesmente a estética, já
que a maioria dessas outras formas de habitações de baixa renda se
encontrava fora das principais vistas da cidade, freqüentadas por turistas e
classes mais abastadas.
O SERFHA buscava também uma coordenação de vários
órgãos municipais, como forma de evitar as ações paralelas e/ou sem
comunicação entre si. Com isso, vários órgãos foram unificados, tais como
o Departamento de Higiene, a Fundação da Casa Popular, a Polícia de
Vigilância, o Departamento Sanitário e a Fundação Leão XIII (LEEDS &
LEEDS, 1978).
Como filosofia básica, o SERFHA preconizava não ofender a
dignidade dos favelados: “O fator básico, do nosso ponto de vista, é que os
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
30
moradores das favelas concordem em trabalhar espontaneamente [com o
SERFHA] sem nenhuma imposição da parte de técnicos ou do poder
político” (PERUCCI, 1962 apud LEEDS & LEEDS, 1978:211). O SERFHA
só começou a receber recursos em 1958, quando então passou a atuar em
favelas onde a Fundação Leão XIII não estivesse operando também.
Depois da mudança da Capital Federal para Brasília e o Rio de Janeiro
transformado em Estado da Guanabara, José Arthur Rios assumiu a chefia
do SERFHA.
Sob a administração de Rios, o SERFHA orientava a
independência política dos favelados, fazendo-os a encarar a si próprios
como moradores efetivos da cidade, plenos de seus direitos. Foi durante a
administração de Rios também que foram criadas 75 Associações de
Moradores em favelas, recebendo orientação dos técnicos do SERFHA
sobre assuntos como informação legal, assistência social, assistência
técnica para instalação de serviços básicos de urbanização12, e ainda,
prestando ajuda financeira. Podemos notar que neste ponto da história
aparece novamente delineada a idéia de que não bastava construir novas
casas para a população; era necessário cuidar dos serviços básicos
também, que complementassem a casa, sendo esta parte da habitação
como um todo.
Com efeito, a diretriz básica do SERFHA era dar dignidade aos
favelados. A intenção era criar nos moradores o anseio por melhorias
conjuntas, para a favela como um todo. Daí o apoio para a criação das
associações de moradores e assistência técnica e financeira para a execução
das obras. Segundo o Diretor da Coordenação de Serviços Sociais13, “...a
12
Somente os projetos de melhoria e urbanização atingiram o número de 80 favelas
(GONDIM, 1976).
13
Gondim (1976) transcreve o trecho de uma entrevista realizada com o “Diretor da
Coordenação de Serviços Sociais”, sem citar o seu nome. No entanto, pela análise dos
fatos apresentados, como por exemplo o grande número de associações de moradores
criadas, levanta-se a hipótese de que tal diretor não era outro senão o próprio José Arthur
Rios.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
31
intenção era introduzir mudanças internas na favela, quer dizer, fazer com
que a favela mudasse de dentro para fora (...) todo o processo de
maturidade da favela, é no sentido de se transformar em bairro, o favelado
quer que a favela seja um bairro, não quer ser favela (...). Então é só colocar
certos fermentos para acelerar essa mutação14, é um processo de
renovação espontâneo” (GONDIM, 1976:25).
Além dos serviços de melhorias urbanas que Rios buscava para
as favelas, havia outros, que atendiam aos moradores residentes em
favelas e em outros lugares também. Nesta época, estavam surgindo
entidades como a SURSAN (Superintendência de Urbanização e
Saneamento) e a CTC (Companhia de Transportes Coletivos) (ABREU &
BRONSTEIN, 1978). Tais instituições foram criadas com o objetivo de
melhorar as condições existentes na cidade, e não no interior das moradias
(de favelas ou não) propriamente dito.
Por ocasião da atuação do SERFHA encontramos, portanto, um
dos momentos mais legítimos (no sentido de não imprimir à população
pressões coercitivas) de preocupação com um espaço que não era a casa
propriamente dita; era um espaço público, de uso comunitário. No entanto,
logo em seguida ao seu momento de pleno apogeu, o SERFHA foi
desmontado. Justamente por ser legítima, sua atuação vinha prejudicando
os interesses políticos e econômicos, uma vez que eliminava os
intermediários nas negociações com os favelados.
Na época, as favelas eram tidas como currais eleitorais de
vários políticos, que em troca de promessas variadas conquistavam
inúmeros votos nesses locais. A partir da idéia e da orientação de
independência promovida por Rios, os celeiros de votos existentes nas
favelas começaram a perder a sua força. A soma desse fato aos interesses
da elite e de grupos econômicos detentores de terras ocupadas por
14
Ao ler esse trecho do discurso de Rios isoladamente, podemos ter a impressão de que
está sendo feita referência à atual política habitacional carioca, como veremos mais
adiante, dada a semelhança de discurso entre ambas.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
32
favelas, além de os cofres do Estado não estarem recebendo subsídios de
órgãos como a Agência Internacional de Desenvolvimento (AID) ou o
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para programas de
construção em favelas, culminou na demissão de Rios, feita pelo
Governador Lacerda. Sobre esse fato, LEEDS & LEEDS ressaltam que
“em termos de continuidade do controle de elite e de classe – do qual,
argumentamos, Lacerda era um agente – Rios e seu programa tinham que
sair de campo, e assim o fizeram” (LEEDS & LEEDS, 1978:214). Rios foi
demitido em 1962, ano eleitoral, e o SERFHA também sucumbiu no
mesmo ano.
Desta forma, cessa-se o pouco espaço até então existente para
a população favelada, e inicia-se uma época de remoções, com a criação
da COHAB-GB (Companhia de Habitação Popular do Estado da
Guanabara), também em 1962. O desmonte do SERFHA representou um
momento de ruptura na política habitacional, dado que durante a sua
atuação, discurso e prática do fornecimento dos espaços de uso
comunitário andavam em paralelo, não havia diferença de atitudes.
A partir do término do SERFHA e, com a conseqüente criação
da COHAB, discurso e prática passam a trilhar caminhos diferentes, como
será visto mais adiante. O discurso anunciado a respeito do fornecimento
dos EUCs nem sempre chegava a se concretizar, e quando o era,
acontecia de uma maneira diferente da que fora anunciada.
Apesar do fim do SERFHA, e mesmo sem apoio, as favelas
continuaram a se organizar, e em março de 1963 é aprovado o Estatuto da
FAFEG (Federação das Associações de Favelas do Estado da
Guanabara). A mudança de atitude política, agora promovendo grandes
remoções, ao invés de coibir, somente contribuiu para aumentar o nível de
organização, e a FAFEG realizou dois congressos no Rio de Janeiro, um
em 1964 e outro em 1968, “cuja palavra de ordem era a luta pela
urbanização, contra a remoção” (SILVA e SILVA, 1989:48).
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
33
A
COHAB,
apesar
de
ter
entre
os
seus
objetivos
a
“...urbanização parcial de algumas favelas, a urbanização total de uma
grande favela (grifos nossos) e a construção de 2.250 habitações de baixo
custo” (LANGSTEN, 1973:06), foi na realidade o órgão de ponta na política
de erradicação de favelas. A COHAB foi constituída como uma sociedade
de economia mista, e como tal possuía acionistas públicos e privados.
Estes últimos eram o genro do governador, Flexa Ribeiro, e o vicegovernador de Lacerda, Rafael de Almeida Magalhães. Juntos, eles
possuíam cerca de 49% das ações (LEEDS & LEEDS, 1978). Esse fato
fazia com que um grupo particular de pessoas, ligadas diretamente ao
Governador, tivesse um substancial controle sobre a companhia.
A principal fonte de provisão de fundos da COHAB era o Acordo
do Fundo do Trigo Estados Unidos-Brasil. LEEDS & LEEDS (1978)
sugerem que parte dos motivos para a criação da COHAB foi exatamente o
acordo internacional, que traria significativa injeção de recursos ao
orçamento da Guanabara, isentos de taxas.
A criação da COHAB fez com que a construção em larga escala
de moradias para as pessoas oriundas de favelas erradicadas passasse a
ser a principal finalidade da política habitacional da Guanabara. Cabe aqui a
lembrança de que na época, o Governador almejava se lançar candidato à
Presidência da República e, para atingir este objetivo, assumiu uma postura
de direita, claramente identificado com os interesses das elites, que queriam
ver as favelas e sua população afastadas do núcleo urbano da cidade, além
de, ao mesmo tempo, com o fornecimento para os ex-favelados de unidades
residenciais prontas, angariar votos entre as classes menos favorecidas.
Uma outra razão para tantas remoções foi que o binômio ofertademanda com relação a empregos na zona sul foi sobrepujado pelos
interesses econômicos e imobiliários sobre o espaço ocupado pelas
favelas. Até então, tinha sido interessante para a classe mais abastada ter
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
34
a mão-de-obra fácil e próxima de diaristas, pedreiros, e todo o tipo de
serviço que os favelados prestavam. E para os favelados, havia a
vantagem do fácil acesso ao farto mercado de trabalho e, praticamente, a
inexistência de gastos com transporte. No entanto, a escassez de terrenos
disponíveis para novas construções e obras públicas fez com não
existissem mais vantagens para as classes média e alta, no que tange a
proximidade das favelas.
Tal desequilíbrio de vantagens culminou na instauração da
“época das remoções”; no lugar das favelas, foram criados lançamentos
imobiliários que correspondiam à extrema valorização dos terrenos da
zona sul e atendiam aos interesses de grandes grupos econômicos
(ABREU & BRONSTEIN, 1978). Além disso, a construção de grandes
conjuntos habitacionais trouxe uma outra vantagem: o aquecimento do
mercado de construção civil e ampla oferta de empregos no setor. De fato,
essa é uma das preocupações do governo, ao criar, posteriormente, o
Banco Nacional da Habitação.
Na época da COHAB, então, constata-se que, por interesses
políticos, a melhor opção em termos de política habitacional era a produção
em massa de unidades habitacionais (entenda-se espaços privados) para a
população alvo. Os EUCs fornecidos junto com as habitações eram vistos
como complementos, não vinham mais imbuídos da conotação de que este
tipo de espaço teria a função primordial de moldar o “homem social”; por
isso eles não têm a mesma ênfase que lhes era dada na época dos IAP's.
Neste caso, a preocupação com o espaço público se deu na
realidade em relação às classes mais abastadas (que não necessitavam de
uma política habitacional), quando puderam começar a usufruir de alguns
espaços públicos que antes eram ocupados pelas favelas. Para a classe
realmente necessitada, restou somente o discurso, a imagem “volátil “de
uma vida melhor nos
(CAPELLÃO, 1991).
novos conjuntos
habitacionais
da COHAB
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
35
As primeiras experiências da COHAB foram formadas por
conjuntos de casas isoladas (Vila Kennedy, Vila Aliança e Vila Esperança).
Todos eles distavam mais de 30 quilômetros do centro da cidade,
ocasionando grandes transtornos à população para lá transferida. Essa
população vinha de 12 favelas removidas, a maioria delas situada na zona
sul da cidade, ou seja, próximas ao mercado de trabalho. Com a remoção,
as famílias começaram a não conseguirem mais arcar com os custos do
transporte e ficaram desempregadas, já que nos lugares afastados do
centro, onde se encontravam, a oferta de empregos era reduzida.
Ao se falar sobre uma política habitacional que fornecia unidades
em conjuntos habitacionais, não deve ser esquecido que a infra-estrutura
básica (água, luz e esgotamento sanitário) era quase sempre entregue junto
com os conjuntos habitacionais. Em alguns casos isolados (por exemplo,
Cidade de Deus e Rua Crato – ambos no Rio de Janeiro) a falta d’água era
constante (GONDIM, 1976), mas no geral, todos “funcionavam” nesse
aspecto.
O que faltava, principalmente para os conjuntos maiores eram os
espaços de uso comunitário, tais como escolas, postos de saúde, creches,
praças e áreas de lazer. GONDIM cita que a ausência de escolas em Cidade
de Deus levou o poder público a construir duas unidades de ensino básico em
caráter emergencial; e em Vila Kennedy, ainda uma das primeiras
experiências, a COHAB foi obrigada a projetar e construir a maior parte do
equipamento comunitário do conjunto em área adjacente [a 3ª gleba],
posterior à ocupação original [1ª e 2ª glebas] (GONDIM, 1976).
Segundo CAPELLÃO (1991), as duas primeiras glebas de Vila
Kennedy continham no total 4 escolas municipais, uma escola particular e
uma pré-escola, para um total de 3.804 unidades habitacionais. Na terceira
gleba, construída posteriormente, existiam 1.250 unidades e todo o restante
dos espaços de uso comunitário do conjunto: campo de futebol, mais duas
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
36
escolas municipais, jardim de infância, centro de artesanato e respectivo
almoxarifado, igreja católica, lojas, mercado, cinema, centro de saúde,
lavanderia e padaria cooperativas (ver figura II.5). A concepção tardia desta
gleba deveu-se à consideração inicial por parte da COHAB de que os seus
moradores poderiam desfrutar do equipamento comunitário existente no
bairro de Bangu, que é próximo à Vila, mas que nem por isso foi capaz de
atender à nova demanda.15
15
A esse propósito, cabe aqui transcrever as definições segundo a COHAB-GB, de
conjuntos habitacionais pequenos, médios e grandes:
“Pequenos: Conjuntos que completam o bairro constituem-se no máximo com 500
unidades e se localizam em bairros já formados, com infra-estrutura existente.
Médios: Conjuntos que se integram ao bairro são conjuntos de 500 até 2000 unidades,
e nos quais se prevê a continuidade da infra-estrutura do bairro em que se situam. Nos
projetos urbanísticos respectivos o equipamento comunitário é localizado na periferia do
conjunto com o sentido de melhor integrá-lo em sua vizinhança.
Grandes: Conjuntos que formam o bairro são conjuntos com mais de 2000 unidades e
que possuem todas as condições de autonomia que caracterizam o bairro” (GONDIM,
1976:46).
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
37
Figura II.5 – As 3 glebas de Vila Kennedy, sendo a terceira delas o trecho mais à
direita, cuja textura da malha urbana diferencia-se das demais,
justamente pela presença maior dos espaços de uso comunitário.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
38
No entanto, apesar das ações da COHAB, o déficit habitacional
que ainda havia por sanar era grande. No Seminário de Habitação e de
Reforma Urbana – SHRu, acontecido em Petrópolis em 1963, foi declarado
pelo Ministro do Trabalho em exercício que somente no Rio de Janeiro, um
terço da população vivia em habitações inadequadas, como as favelas
(FINEP/GAP, 1985). No documento final do referido seminário, dentre
outras coisas, foi proposta então a criação de um “Órgão Central Federal,
com autonomia financeira e com competência de jurisdição sobre todo o
território nacional, incorporando-se a ele a Fundação da Casa Popular e o
Conselho Federal de Habitação” (FINEP/GAP, 1985:69), ou seja, um órgão
como o BNH.
Portanto, o período que precedeu o golpe militar de 1964 foi
marcado por situações que antevêem a criação do BNH. O que vale reter,
no entanto, como síntese do período compreendido entre o final do século
XIX e o momento anterior ao golpe militar, é que já havia a percepção de
que habitação não é constituída apenas pela casa, mas sim por vários
espaços de uso comunitário que a complementam.
Tal percepção foi aplicada na prática, até mesmo em situações
de fornecimento de moradias provisórias, como no caso dos Parques
Proletários. Ao ser criada a COHAB, instaurou-se a época das remoções e
construção de grandes conjuntos habitacionais. Apesar de a preocupação
com os espaços de uso comunitário ter existido nos projetos de parte
deles, verifica-se que de um modo geral, eles não foram construídos
(ABREU & BRONSTEIN, 1978), e que a grande preocupação era com as
unidades habitacionais, com o número de unidades construídas, e com a
visibilidade política que decorreria naturalmente de sua visibilidade física,
de largo alcance.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
39
II.2) D A INSTAURAÇÃO DO
R EPÚBLICA (1985)
REGIME MILITAR
(1964)
AO INÍCIO DA
N OVA
Como mencionado anteriormente, a criação do BNH (Banco
Nacional da Habitação) deveu-se, dentre os motivos relacionados ao déficit
habitacional, também à necessidade do aquecimento do mercado de
construção civil16 e da criação de empregos:
“A nova política contemplava a necessidade de estimular um
importante setor industrial – o da construção civil, e com isso
absorver significativo número de empregados sem qualificação
profissional, amenizando as possíveis pressões contra o
desemprego
que
(...)
a
inflação
ameaçava
provocar”
(FINEP/GAP, 1985:88).
Os recursos financeiros do BNH vinham de doações e
empréstimos externos e internos. Após 1967, o banco passou a gerir o
capital do FGTS, que se constituiu na principal fonte de recursos do banco.
Com esses recursos, o BNH não construía, mas financiava as construções
de conjuntos habitacionais. A sua lista de prioridades era:
“a) construção de conjuntos habitacionais com a finalidade
de erradicar favelas e outros aglomerados suburbanos;
(grifo nosso)
b) projetos estaduais ou municipais que permitam o imediato
início de construção, mediante o uso de lotes dotados das
instalações básicas;
c) projetos cooperativos e outras formas de associação
destinadas a promover a casa própria entre seus membros;
16
BONDUKI, entrevista concedida a autora, em dezembro de 1999.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
40
d) projetos privados que possam ajudar a resolver o problema da
moradia; e
e) construção de residências em zonas rurais”. 17
A necessidade de encontrar terrenos baratos para a construção
dos conjuntos fez com que cada vez mais estes se deslocassem para a
periferia, em regiões mal ou não dotadas de infra-estrutura urbana. Logo a
economia feita na aquisição dos terrenos se revertia num alto custo para
os municípios, uma vez que estes tinham seu planejamento alterado para
ter que corresponder às novas necessidades. Muitas vezes, a implantação
de um conjunto habitacional mudava toda a direção do desenvolvimento da
área urbana, e o município se via obrigado a fornecer água, luz, tratamento
de esgoto, transporte, escolas e postos de saúde para centenas e até
milhares de pessoas.
Para corrigir essas distorções, o SERFHAU (Serviço Federal de
Habitação e Urbanismo), órgão do BNH que fazia os estudos de
implantação dos conjuntos da COHAB (agora incorporada ao BNH),
passou a elaborar Planos de Desenvolvimento Integrado, e com recursos
do FIPLAN, passou a financiá-los (FINEP/GAP, 1985).
A instauração do regime militar acentuou a ênfase à produção
de unidades habitacionais, ou melhor seria dizer, à produção de espaços
que seriam de propriedade privada. Essa sem dúvida foi a tônica da
grande maioria das iniciativas oficiais em relação à política habitacional. No
entanto, em meio a essa política de remoções, o Governador Negrão de
Lima, pressionado por suas próprias promessas de campanha, cria a
CODESCO - Companhia de Desenvolvimento de Comunidades, em 1968
(SILVA e SILVA, 1989 e SANTOS, 1981). O seu objetivo era promover “a
integração dos aglomerados subnormais na comunidade normal adjacente,
17
BANCO NACIONAL DE HABITAÇÃO. A Brazilian Solution, apud PERLMAN (1977:241242)
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
41
intervindo nos aspectos urbanísticos, habitacionais e outros necessários”
(CODESCO, 1970 apud SANTOS, 1981:56).
A CODESCO pretendia a urbanização, com a respectiva entrega
da titularidade dos lotes, de três favelas do Rio de Janeiro: Braz de Pina,
Morro União e Mata Machado. Das três, somente Braz de Pina teve seu
projeto e obras concluídos, com exceção da entrega dos títulos de
propriedade18 (SANTOS, 1981).
Em Braz de Pina, as obras foram feitas em etapas, tendo a
CODESCO adquirido terrenos adjacentes à favela para lá remanejar os
primeiros barracos, de maneira que a primeira leva de moradores pudesse
sair de sua localização original, liberar área para a demarcação dos lotes
(foram 900 ao todo – SANTOS, 1981), pavimentação e obras de infraestrutura, até novo remanejamento de barracos.
O morador remanejado para a área urbanizada não era obrigado a
construir uma casa de alvenaria, mas sim fazer apenas um banheiro ligado à
rede de esgotos. No entanto, a maioria optou por remontar o seu barraco nos
fundos do lote, de maneira que futuramente a casa de alvenaria pudesse ser
construída na frente, o que de fato aconteceu em 60% dos casos (SANTOS,
1981). Cada um desses moradores construiu sua própria casa, contando
com a devida assistência técnica, e a decisão a respeito do uso dos EUCs
e da localização dos serviços ficou a cargo da associação de moradores
(SANTOS, 1981).
Apesar de não serem obrigados a construir uma casa de alvenaria,
muitos moradores viam-se constrangidos de não tê-lo feito, e de estar
morando num barraco de madeira em meio a várias casas construídas com
materiais mais duráveis, sendo apontados pelo restante da comunidade como
18
Apesar disso, os moradores pagam as taxas e impostos próprios de qualquer parte
formal da cidade (SANTOS, 1981).
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
42
responsáveis pelo aspecto de favela que o bairro ainda poderia possuir19.
Dessa forma, ou passavam-se adiante o barraco e o lote urbanizado ou
construía-se uma casa de alvenaria. Cabe ressaltar que cada família
participou ativamente na elaboração do projeto da sua casa, a obra era
parcialmente financiada e havia a assistência técnica gratuita de estudantes
de arquitetura 20.
Em nosso entender, a experiência de urbanização em Braz de
Pina, da maneira como foi feita, foi pioneira, e apesar de ela ter recebido
apenas um espaço de uso comunitário (uma praça), foi positiva também.
Efetivamente, a favela deixou de existir após a urbanização. Aquele que não
conhece a história do local e passa por lá nos dias de hoje não o percebe
como uma favela; ela deu lugar a um bairro, plenamente integrado aos
demais que o circunvizinham. Por isso, pode-se dizer que apesar de a
urbanização haver acontecido há 30 anos, ela assumiu um caráter de certa
forma semelhante ao almejado hoje em dia pela Prefeitura do Rio de Janeiro,
promotora da atual política habitacional carioca.
Assim, percebe-se que a experiência da CODESCO, mesmo
tendo sido um acontecimento isolado, sem que possa ser chamado
propriamente de “política habitacional”, deixou uma semente que hoje em
dia está frutificando, como será visto mais adiante.
Apesar de contemporânea
à CODESCO, a CHISAM –
Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana (do
Grande Rio), criada apenas alguns meses depois daquela, atuou de maneira
completamente diferente, seguindo a linha de maior atuação da política
habitacional da época.
19
Sobre esse sentimento de “morar num bairro com aspecto de favela”, iremos encontrar
situações bem semelhantes por ocasião do Programa Favela-Bairro, como será visto mais
adiante neste trabalho.
20
Entre eles, o saudoso Carlos Nelson Ferreira dos Santos.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
43
A CHISAM não preencheu o objetivo pretendido pelo relatório
que sugeria a sua criação21, de “…agir como um órgão normativo,
coordenador de diversas entidades que atuavam na área, e orientador no
que toca o planejamento metropolitano” (ABREU & BRONSTEIN, 1978:288).
Ao invés disso, a CHISAM passou, efetivamente, “...a realizar as operações
de remoção, escolha das favelas a serem removidas, levantamentos sócioeconômicos nas favelas, classificação das famílias segundo a renda,
especificação do destino das famílias...” (GRABOIS, 1973:45).
Anteriormente, entre 1966 e 1967, a COHAB havia efetuado a
remoção de 6.685 pessoas (VALLADARES, 1978). Já a CHISAM retirou
aproximadamente 30.000 pessoas de favelas no Rio de Janeiro, de acordo
com LEEDS & LEEDS22, e de acordo com PERLMAN, o total removido foi
de 175.785 pessoas até o final do ano de 1973, ano de extinção da entidade
(PERLMAN, 1977).
Entre os fatores que contribuíram para esse expressivo número
de remoções, estão a especulação imobiliária (principalmente dos terrenos
da zona sul do Rio), e a necessidade do aquecimento da indústria da
construção civil, já citados anteriormente. Além desses, devemos nos
lembrar que a partir de 1964, com o golpe militar, a maioria das eleições foi
suspensa, incluindo a de Governador. Este fato diminuiu tanto o poder de
barganha dos favelados (já que eles trocavam desde bicas d’água até
favores políticos por votos), como o interesse dos políticos em preservar as
favelas, enquanto reduto eleitoral23.
21
Conhecido como o Plano Wagner. Para maiores detalhes, ver LEEDS & LEEDS, 1978.
22
Segundo LEEDS & LEEDS, a CHISAM removeu totalmente as seguintes favelas da
zona sul do Rio de Janeiro: Jóquei Clube (≅200 pessoas); Rio Rainha (≅200 pessoas);
Alto Solar (≅600 pessoas); Ilha das Dragas (≅1.800 pessoas); Babilônia-ChapéuMangueira (≅3.500 pessoas); Macedo Sobrinho (≅4.000 pessoas); Praia do Pinto (≅7.000
pessoas); Catacumba (≅12.000 pessoas); e parte do Parque Proletário N.º 1 da Gávea
(LEEDS & LEEDS, 1978).
23
PERLMAN (1977) e SILVA e SILVA (1989) comentam o assunto.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
44
Com o número de pessoas removidas aumentando cada vez
mais, era exigido constantemente que fossem construídos grandes
conjuntos habitacionais para abrigar a população removida. Contudo, com
o aumento do tamanho dos conjuntos, ficava cada vez mais difícil equipálos com os necessários EUCs.
Em sua dissertação de mestrado, GRABOIS (1973) apresenta o
depoimento de políticos ligados a órgãos de remoção do Poder Público
que alegavam serem favoráveis à construção de conjuntos pequenos,
porque “para os conjuntos grandes não há infra-estrutura montada para
aguentar”. (GRABOIS, 1973:93). Mostra também a autora que existia, por
parte desses políticos, a conscientização de que ao entregar o conjunto
habitacional D. Jaime Câmara, por exemplo, com 7.000 unidades, o
governo precisaria cuidar da comunidade lá estabelecida, “criando
serviços, lojas, posto médico” (GRABOIS, 1973:95 - grifo nosso), ou
seja, fornecendo EUCs.
Ainda, após a criação do BNH, mudou-se a maneira de
administrar os antigos conjuntos entregues pelos IAP's. As unidades
existentes, que eram alugadas às famílias pelo Estado, caracterizando
assim a habitação como um serviço público, foram vendidas às mesmas,
dando início a um processo de individualização dos espaços, mesmo
daqueles que antes possuíam uso coletivo. BONDUKI retrata bem esse
período de tempo:
“Em conseqüência [à venda das unidades para os moradores],
ocorreu uma progressiva destruição dos espaços públicos (...),
fazendo com que (...) se pareçam cada vez mais com conjuntos
do período do BNH. A colocação de grades fechando as áreas
livres em torno dos blocos – reconstituindo lotes urbanos no
lugar da proposta de se habitar em áreas verdes públicas - , a
eliminação de espaços coletivos como
o teto-jardim, o
fechamento dos pilotis para instalação de garagens individuais, a
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
45
desmontagem de equipamentos comunitários como lavanderias,
cooperativas de consumo, áreas de recreação etc., entre várias
intervenções do espaço público, mostram que, alteradas as
condições
históricas,
os
moradores
não
aceitaram
com
facilidades as inovações que os arquitetos modernos propunham
para o homem novo que se queria construir” (BONDUKI,
1998:318-319).
Obviamente, nesta colocação de Bonduki, deve-se levar em
consideração que o aumento da violência urbana contribuiu para fatos
como a colocação de grades; e também o número maior de proprietários
de automóveis fez com que os moradores resolvessem seu problema de
ausência de garagens, fato que não merecia tanta atenção nas décadas de
40 e 50, época de maior florescência das construções dos IAP's.
Motivos contemporâneos à parte, a respeito da geração do
grande desinteresse e desleixo pelas partes comuns, nos parece que por
várias razões, até mesmo as de ordem financeira, dado que a construção
de espaços de uso comunitário não daria tanto retorno quanto a
construção massiva de unidades habitacionais, e também pelo cálculo do
número máximo de unidades num mesmo terreno, onde os afastamentos
diminuíam cada vez mais, os espaços de uso comunitário acabavam
ficando relegados ao segundo plano. Além disso, segundo SILVA e SILVA,
havia a intenção de estimular, com ênfase, a propriedade privada:
“Fica clara a opção feita pelo BNH em difundir a casa própria
como
forma
de
comprometer
os
trabalhadores
com
a
propriedade e com o regime (grifo nosso), opção essa peculiar
aos regimes capitalistas. A ideologia da casa própria visa criar
sentimento de pertinência, transformando-se em instrumento de
manutenção do equilíbrio social, prestando-se a propósitos
sobretudos políticos (…) Além da busca de legitimação do novo
regime, a política habitacional em formulação se propunha,
também, a criar um clima de ‘estabilidade social’ e de ‘ordem’
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
46
necessário ao avanço do capitalismo internacional no país”
(SILVA e SILVA, 1989:49-50).
Havia então, uma relação direta entre o BNH e a propriedade
privada. Em que pese o fato do comprometimento do próprio BNH com o
regime, havia também um outro lado, advindo da visibilidade política que a
construção de um conjunto habitacional trazia. Tanto que o BNH, enquanto
Banco, não se recusava a financiar a urbanização de favelas, por exemplo.
O que ocorria é que como Banco, ele não possuía meios para obrigar
algum prefeito a optar pela urbanização e não pela remoção para um
conjunto habitacional. A esse respeito, ARAGÃO comenta:
“Se a grande maioria dos projetos era para conjuntos
convencionais de habitações completas e não para urbanização
de favelas ou venda de lotes urbanizados, isto decorria
exclusivamente da vontade dos dirigentes locais (...) Onde e
quando existiu interesse (casos de Goiás, Paraná e Rio de
Janeiro, Prefeituras de São Paulo e do Recife e alguns estados
do Nordeste, a partir de 1980), os projetos mereceram integral
acolhida do Banco” (ARAGÃO, 1999:252).
Um fator que não deve ser esquecido nesta escolha é o que
pode ser chamado de “cultura da casa própria”, que dava respaldo às
vontades políticas no sentido de ser “a preferência do povo”. Para
MARICATO, “a casa própria representa, entre os trabalhadores brasileiros,
não apenas um alívio no orçamento doméstico, mas uma garantia contra a
alta rotatividade no emprego e as deprimidas aposentadorias ou mesmo
ausência de seguridade social” (MARICATO apud ARAGÃO, 1999:265).
Ou seja, dar a casa própria à população significava atender aos seus mais
prementes anseios.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
47
Assim, cabia aos Estados e Municípios a escolha do programa
que seria financiado. Quase sempre, a escolha recaía sobre a construção
de conjuntos habitacionais, já que a sua visibilidade política vinha em
decorrência da sua visibilidade física, muito diferente da urbanização e da
implantação de infra-estrutura urbana em uma favela. ARAGÃO confirma
que a produção de conjuntos habitacionais foi predominante nos
financiamentos do BNH:
“É inquestionável que a produção de conjuntos de habitações
completas
teve
absoluto
predomínio
nos
investimentos
financiados pelo BNH/SFH.” (ARAGÃO, 1999:258).
De fato, o próprio Relatório Geral da COHAB do biênio 19631965 também afirma que “a casa, ou melhor, o embrião de casa que se
constrói e que se oferece à venda é a chave do êxito do plano da
COHAB...” (COHAB-GB apud GONDIM, 1976:33). Eva Blay vai mais
adiante, afirmando que o BNH ajudou a manter e ressaltar o “sistema de
propriedade privada” (BLAY apud ARAGÃO, 1999:458 - grifo nosso).
Paralelo a isso, temos que num sistema em que a CHISAM
removia, a COHAB construía os novos conjuntos habitacionais e o BNH
financiava, as remoções de favelas e posterior transferência de seus
moradores para vários conjuntos habitacionais funcionavam na verdade
como um firme suporte ao regime da repressão, porque desorganizava as
classes populares (SILVA e SILVA, 1989).
Além disso, não deve ser esquecido que nesse período,
estavam suspensas as eleições para Governador de Estado, o que fazia
com que os favelados não detivessem mais o antigo poder de barganha
com políticos potencialmente candidatos. Assim, a política habitacional
adotada então também faria o papel de estimuladora da ordem, dando a
estabilidade
necessária
ao
regime.
Tal
característica
da
política
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
48
habitacional foi muito bem ilustrada por Roberto Campos, um de seus
articuladores:
“A solução do problema pela casa própria tem esta particular
atração de criar o estímulo de poupança que, de outra forma,
não existiria, e contribui muito mais para a estabilidade social do
que o imóvel de aluguel. O proprietário da casa própria pensa
duas vezes antes de se meter em arruaças ou depredar
propriedades alheias e torna-se um aliado da ordem”
(BNH
apud AZEVEDO & ANDRADE, 1982:59).
Apesar dessa filosofia, de “propriedade privada”, vários espaços
públicos eram previstos nos conjuntos habitacionais, mas nem sempre
foram construídos. Um exemplo a esse respeito é o conjunto habitacional
da Rua Capitão Teixeira (bairro de Realengo, Rio de Janeiro), de 3.280
unidades, que teve em seu projeto a previsão de escolas, unidades
comerciais e áreas de lazer. Cinco anos após a sua ocupação, a
população de fato, contava com três escolas no interior do conjunto, mas
não podia contar com nenhuma unidade comercial e nenhuma praça,
parque ou área de lazer. Aliás, um dos terrenos que havia sido destinado
para o fim de lazer acabou sendo utilizado como depósito de lixo
(GONDIM, 1976).
Já no conjunto Guaporé, em Braz de Pina, com 2000 unidades,
não havia sequer a previsão de espaços para lazer24. Apenas duas escolas
e algumas unidades comerciais. As escolas foram executadas, mas não
todas as unidades comerciais.
24
Dados do projeto original de construção, cujo número do processo é 07/197086/69,
consultado no Arquivo Geral da SMU.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
49
Em alguns casos, percebe-se que a construção ou não de
alguns equipamentos comunitários dependia exclusivamente das relações
pessoais dos integrantes das Companhias de Habitação, como por
exemplo um político ligado à COHAB-GB, que em entrevista a GONDIM
(1976), declara que as escolas eram construídas nos conjuntos da
COHAB-GB enquanto ele próprio se encontrava ligado ao órgão, por causa
de sua amizade pessoal com o então Secretário de Educação. Segundo
esse político, após o seu desligamento do órgão, “não fizeram mais
nenhuma escola nesses conjuntos” (GONDIM, 1976:140)25. Desse modo,
percebe-se que os EUCs não dispunham realmente de prioridade na
política habitacional, nem de um procedimento dentro da própria política
que lhes garantisse a execução.
Assim,
é
possível
identificar,
através
não
apenas
dos
documentos produzidos pelo BNH como principalmente por suas obras
efetivamente construídas, que o foco de maior interesse da política
habitacional da época era o de FAZER CASAS, ou seja, unidades
habitacionais, ficando os espaços e serviços comunitários relegados a um
segundo plano, compreendidos apenas como conseqüência do ato da
construção de casas.
Tal constatação pode ser comprovada por uma observação de
um dos presidentes26 do BNH:
25
Pode-se encontrar procedimento similar mais recentemente, na primeira fase do
Programa Favela-Bairro, da PCRJ, onde devido à falta de planejamento global, os
arquitetos projetistas viam-se obrigados a discutir os projetos complementares com as
respectivas concessionárias ou secretarias por conta própria, já que oficialmente estas
não recebiam nenhuma orientação da Prefeitura (mesmo quando fossem também da
esfera municipal, como o caso da Secretaria Municipal de Educação) a respeito do
programa. Neste caso, o escritório cujos arquitetos já tivessem algum conhecimento
pessoal nas concessionárias poderia contar com maiores instruções e orientações a
respeito do projeto.
26
José Maria Aragão.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
50
“Todas as aplicações do Sistema [SFH] teriam por objeto,
fundamentalmente (grifo no texto) a aquisição da casa para
residência do adquirente e seus dependentes” (ARAGÃO,
1999:77).
Além do mais, apenas 5% das aplicações totais do BNH foram
investidas em equipamentos comunitários27 (ARAGÃO, 1999).
Assim, se por um lado, a diretriz básica dos investimentos do
BNH era a aquisição da casa própria, e do outro, menos de 5% dos
investimentos totais do Banco eram direcionados aos espaços de uso
comunitário, temos que as duas informações trazidas por Aragão se
completam, e nos remetem àqueles conjuntos citados anteriormente, onde
não havia EUCs suficientes para os moradores, apesar da proposição
inicial de tê-los no projeto. Dessa forma, imagina-se que a intenção de se
fazer política habitacional com a produção de espaços públicos já existia, o
que não existia, sempre, era a vontade política de executá-la, dentre outros
possíveis motivos.
Em março de 1975 é constituída a CEHAB/RJ (Companhia
Estadual de Habitação Popular do Estado do Rio de Janeiro), formada pela
fusão da COHAB/GB e COHAB/RJ (IBAM / BNH, 1979). No mesmo ano, é
instituída uma significativa mudança no SFH: a que torna as inscrições na
CEHAB abertas ao público em geral, deixando, portanto, de existir a
vinculação com a remoção de favelas.
Segundo ABREU & BRONSTEIN, essa medida desvirtuou
totalmente a função do BNH e da CEHAB:
“Ao invés de adequarem os programas às faixas carentes da
população (como seria de se esperar pelo simples exame dos
objetivos declarados quando da criação do Banco), criam-se
27
Na realidade, esse percentual era destinado conjuntamente à aquisição de terrenos,
infra-estrutura e equipamentos comunitários dos conjuntos.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
51
medidas que viabilizem o programa, em detrimento da
população a ser atendida.” (ABREU & BRONSTEIN, 1978:307).
Nesse tempo, a crise econômica já havia se instalado há muito
no país, e o governo tentava, plano após plano, conter as altas taxas de
inflação. Convém lembrar que o regime militar já estava, a esta altura, mais
do que consolidado; estava caminhando em direções diferentes daquelas
que o colocaram e mantiveram-no no poder desde 1964.
A sociedade civil reiniciou o processo reivindicações e de
formações políticas. Paralelamente, em 1976 surge a Pastoral de Favelas,
movimento da Igreja Católica que resgata as organizações nas favelas,
esfaceladas desde o último congresso da FAFEG, em 1968.
Num âmbito geral, o governo militar se vê obrigado a assumir
uma “postura de distensão política” (SILVA e SILVA, 1989:67), mas o faz
por entender que dessa maneira poderia se manter no poder. No final da
década de 70, alguns fatos sinalizaram para a abertura política, como a
extinção da censura à imprensa e do Ato Institucional n.º 5, que havia feito
dezenas de presos políticos.
Fazendo parte das tentativas de legitimação, a política
habitacional brasileira também caminha para a abertura, e dessa forma, o
discurso do BNH se desloca de um extremo ao outro, atendendo às
solicitações populares pela não remoção e pela urbanização.
O que de fato acontecia era que as favelas, graças à Pastoral e
também graças à proximidade das eleições de 1982 voltaram a ter o seu
peso político. Nas palavras de SILVA e SILVA:
”...além
disso,
as
eleições
diretas,
estendendo-se
aos
governadores dos Estados, retomam seu peso no cenário
político nacional. Assim, as favelas, as palafitas, os mocambos
etc. passaram a representar um peso político, e o governo, que
já vinha de duas derrotas eleitorais, ao se aproximar o pleito de
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
52
1982, além das pretensões políticas do ministro do Interior,
Mário Andreazza, na qualidade de virtual candidato do partido do
governo à Presidência da República, não poderia mais ignorar o
significado político das favelas” (SILVA e SILVA, 1989:76).
À abertura política, juntem-se os altos custos do Sistema
Financeiro da Habitação como um todo, que por sua vez fazem parte da
crise econômica, com altas taxas inflacionárias. Assim, no final do ano de
1979 foi criado o PROMORAR – Programa de Erradicação de SubHabitações, que atuava no mesmo espaço onde se localizavam as subhabitações. Dessa forma, o programa buscava a redução dos custos,
através de caminhos diferentes do sistema tradicional e “atraindo fontes de
recursos
e
soluções
técnicas
até
então
inexploradas”
(FINEP/GAP,1985:95). As propostas do PROMORAR eram as seguintes:
▬ “Erradicar as sub-habitações destituídas de condições mínimas de
serviços, conforto e salubridade, especialmente as que compõem
aglomerados conhecidos por ‘palafitas’, ‘mocambos’ e ‘favelas’;
▬ Priorizar a erradicação de sub-habitações componentes de
aglomerados que, por sua situação crônica socialmente crítica, devem
merecer preferência na programação dos governos estaduais;
▬ Propiciar a permanência das populações beneficiadas nas áreas
onde anteriormente se localizavam após a eliminação das subhabitações;
▬ Promover a recuperação de assentamentos de sub-moradias
sujeitas a inundações, mediante a utilização de sistemas de aterro”
(SILVA & SOUZA apud SILVA e SILVA, 1989:77).
Assim, foi lançado no âmbito do PROMORAR, o Projeto Rio, na
cidade do Rio de Janeiro, para urbanizar e remover parcialmente um
conjunto de favelas conhecido como “Favela da Maré”. Para isso, criou-se
um grande terreno junto à localização original da favela, pelo aterro de
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
53
parte do Canal do Cunha, da Baía de Guanabara, para a construção de
novas moradias. A criação desse terreno foi possível graças a um
mecanismo existente em lei28, que transfere ao DNOS (Departamento
Nacional de Obras de Saneamento) todos os terrenos de marinha que
tenham sido recuperados, por meio de obras, por ele.
Assim, o BNH financiou as obras de recuperação e aterro
daquele trecho de margem da Baía da Guanabara, que executadas pelo
DNOS, fizeram com que a terra fosse a ele transferida; este, por sua vez,
passou seu domínio ao BNH. Dessa maneira, o BNH passou a deter os
terrenos necessários para a execução do programa e mais alguns
remanescentes, que vendidos a preço de mercado, “asseguraria[m] ao
processo condições de auto-financiamento”. 29
Na exposição de motivos do Projeto Rio, encontra-se a intenção
do fornecimento à população de vários espaços de uso comunitário. Dentre
eles, escolas, centros de saúde e núcleos de lazer tais como teatros,
cinemas e quadras de esporte. Era anunciado, ainda, que seria criado um
grande parque verde, com semelhanças ao do Flamengo, e também novas
praias.
No entanto, por motivos dentre os quais as circunstâncias
políticas existentes durante o período, somente uma pequena parte desses
espaços chegou a ser materializada. Tais circunstâncias residiram no fato
de que, até fevereiro de 1982, o Governo do Estado estava em
consonância com o Governo Federal. A partir de então, o Governo
Estadual passou a apoiar o partido de oposição ao Governo Federal,
disputando portanto, os votos que seriam frutos de toda ação do Projeto
Rio30.
28
Lei n.º 4.089, de 13/07/62, artigo 46 (SOUZA e SILVA, 1984).
29
Exposição Interministerial de Motivos n.º 066/79 de 25/06/79, apud SOUZA e SILVA,
1984:50.
30
Observe-se que as eleições de 1982 aconteceram em novembro, 3 meses após a
inauguração da “Vila do João”.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
54
Ao final dessa disputa, as agências estaduais que colaboravam
com o BNH no Projeto Rio foram “marginalizadas” (VALLADARES,
1985:86). Dessa forma, “a instalação dos equipamentos coletivos, que
são da alçada da administração estadual e municipal ficaram por
realizar-se, notadamente na área consolidada das seis favelas”
(VALLADARES, 1985:86 - grifo nosso).
Como poderá ser visto mais adiante, o Projeto Rio teve duas
fases distintas, antes e após a cisão política entre Governo Estadual e
Governo Federal. Como a esfera estadual era a responsável pelos EUCs,
após a sua saída do projeto, o Governo Federal não cumpriu os
compromissos assumidos anteriormente com a população, deixando em
aberto uma lacuna que ele mesmo havia provocado, quando dispensou o
Governo Estadual do Projeto Rio.
Mais uma vez, pode-se observar que a complementação da
unidade habitacional pronta, que seriam os EUCs, deixa de existir por ficar
ao sabor da vontade política de seus executores, onde a prioridade é o
espaço privado, a unidade habitacional em si.
Além disso, segundo SILVA e SILVA, o PROMORAR, depois de
alguns anos, tornou-se extremamente autoritário, “...ao impôr-se às
populações, derrubando barracos sem oferecer nenhuma indenização, e
obrigando as famílias a comprarem uma casa, muitas vezes em piores
condições do que a que foi demolida, ao não apresentar possibilidades de
abrigar mesmo uma família pequena” (SILVA e SILVA, 1989:77). E, com as
sucessivas crises financeiras pelas quais o BNH passou, o programa
tornou-se extremamente lento, chegando mesmo a haver interrupções em
algumas localidades.
Já
em
1984,
continuando
a
conjugação
escassez
de
recursos/abertura política, o BNH institui o Programa Nacional de
Autoconstrução / Projeto João-de-Barro. Neste programa, a população
construiria suas próprias casas, em regime de auto-ajuda ou de mutirão,
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
55
tendo material construtivo subsidiado e assessoria técnica gratuita de
profissionais do Estado ou da Prefeitura. Os terrenos destinados às
construções seriam aqueles que já pertencessem ao SFH ou os doados
por Estados e Municípios, quando adequadamente localizados (BNH,
1984).
Apesar de despontar como uma solução de vanguarda em
relação às outras, o João-de-Barro trouxe embutido um fator que
desagradou
às
correntes
mais
trabalhistas,
que
consideravam
a
autoconstrução uma super-exploração da força de trabalho, já tão
castigada pela labuta diária, além de gerar conflitos nas comunidades, nas
relações entre os que se encontravam desempregados e trabalhavam
todos os dias no programa, e os que possuíam emprego e que só
trabalhavam pela comunidade à noite e nos finais de semana.
Em nosso entender, o João de Barro representa um terceiro
passo na modificação da política habitacional brasileira. Da época das
massivas remoções, a primeira mudança significativa, apesar de ter sido
uma ação isolada, foi a experiência da CODESCO. Mesmo tendo havido
posteriormente o hiato de uma década, e de não ter privilegiado
exclusivamente a urbanização, o PROMORAR, no final dos anos 70, foi um
programa que teve mais identidade com a CODESCO do que com a
COHAB/CEHAB, porque da mesma forma que a CODESCO, ele não
transferia as populações faveladas para a periferia da cidade.
Nesta decisão estão implícitos alguns fatores, como proximidade
do mercado de trabalho e custos com deslocamentos. Com o Projeto João
de Barro, além desses fatores, tem-se também a participação direta da
população na execução de sua moradia (também semelhante aos
procedimentos adotados pela CODESCO), evitando assim, a produção em
massa de casas e apartamentos impessoais e sem elo de identificação
com o seu usuário. Mais do que isso, o João de Barro foi a
institucionalização oficial da autoconstrução em âmbito nacional, o que já
acontecia informal e espontaneamente nas favelas há várias décadas.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
56
Conforme será visto posteriormente, o aproveitamento da força de trabalho
local continuará a ser uma prática corrente na política habitacional dos
anos 90, ainda que sob outros aspectos.
II.3) C ONSIDERAÇÕES
SOBRE O PRESENTE CAPÍTULO
(1ª
PARTE )
No período de tempo analisado até aqui (início do século – início
da Nova República), vimos que o discurso e a prática do fornecimento dos
EUCs se comportaram, por assim dizer, como uma curva senoidal, com
períodos onde o discurso e a prática estiveram conectados e períodos
onde eles não o estiveram.
Durante no Estado Novo de Getúlio Vargas, tem-se a política
habitacional dos IAP's e também a do Departamento de Habitação Popular
do Distrito Federal, que trabalharam com o discurso do homem moderno,
do homem social, e a arquitetura então refletiu esses conceitos, produzindo
inclusive alguns dos exemplares mais significativos do modernismo
brasileiro, conjuntos habitacionais dotados de amplo espectro de espaços
de uso comunitário.
Com o advento do golpe militar e a criação do BNH, discurso e
prática se distanciaram, sendo essa a época da política habitacional
brasileira de maior número de favelas removidas, maior produção de
unidades habitacionais e conseqüente passagem para segundo plano dos
EUCs. A produção desses espaços ficava sujeita a todo tipo de
contratempo que pudesse existir: falta de visibilidade política, falta de verba
e falta de tempo, dentre outros.
Com a abertura política, em 1979, a política habitacional
também sofreu um processo de abertura, e a partir de então é defendida
pelo poder público a urbanização de favelas, com o fornecimento de vários
espaços de uso comunitário, diferentemente da época anterior. No entanto,
a abertura do processo político não foi suficiente para garantir que a prática
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
57
correspondesse ao discurso. Justamente por motivos eleitorais, advindos
da própria abertura, a população, na prática, ficou sem os espaços de uso
comunitário que haviam sido largamente anunciados pelo discurso do
programa em questão, o Promorar.
Adiante, será visto como foi o comportamento governamental
em relação ao fornecimento de EUCs a partir da Nova República, em 1985.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
58
II.4) D O INÍCIO DA N OVA R EPÚBLICA (1985) AO INÍCIO DA P OLÍTICA
H ABITACIONAL ADOTADA PELA P REFEITURA DA C IDADE DO R IO DE
J ANEIRO (1993)
Essa fase será denominada como sendo a fase de “transição”,
por ser um período em que as remoções praticamente inexistiram, mas por
outro lado a urbanização de favelas ainda não era uma prática adotada
oficialmente em grande escala. A instabilidade econômica que o Brasil
viveu a partir de 1986, com o Plano Cruzado, o primeiro de muitos pacotes
econômicos, fez com que o nível de financiamento para a casa própria
caísse a níveis nunca antes registrados.
Além disso, essa é a fase onde começa a haver, na esfera
governamental, uma assimilação de algumas propostas dos movimentos
sociais urbanos ocorridos no passado. No entanto, até a concretização de
tal assimilação, por volta do ano de 1993, pouca ou nenhuma atitude para
redução do déficit habitacional foi tomada da cidade do Rio de Janeiro.
Ainda no início da Nova República, através do Decreto n.º
91.531, de 15/08/85, foi criado o GTR/SFH, com o encargo de “analisar os
fundamentos, a evolução e os problemas do SFH, a fim de apresentar ao
Governo Federal subsídios e sugestões para a reformulação da política
habitacional, com vistas a melhor compatibilizá-la com as diretrizes
governamentais no campo do desenvolvimento social e econômico”
(GTR/SFH,1986:01).
O GTR/SFH acabou por se apropriar de reivindicações da
sociedade, tornando oficiais as tendências e reivindicações que antes
existiam apenas no plano das “pressões populares”, como não-remoção,
urbanização, integração entre a moradia e “a oferta de serviços básicos de
transporte coletivo e saneamento, especialmente água tratada e esgoto,
para os quais devem ser orientados com prioridade os investimentos
públicos” (GTR/SFH,1986:10).
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
59
O BNH enfraqueceu com o Plano Cruzado em 1986, porque
acabando a inflação (ou a perspectiva dela), as cadernetas de poupança
não só deixaram de ter novos depósitos como também sofreram elevados
saques, quase sempre destinados à elevação do consumo (SILVA e
SILVA, 1989). Como o Banco dependia diretamente dessa fonte, esse foi
um dos motivos que em muito contribuíram para a sua extinção, em
novembro daquele ano.
As mudanças na mentalidade governamental que vinham
acontecendo ao longo da década de 80 deixavam claro que a política
habitacional que havia se caracterizado por grandes investimentos na
produção de grandes conjuntos não se daria mais da mesma forma, fosse
pelo fator econômico, dada a crise financeira, fosse pelo fator social, que
acabava surgindo como conseqüência do anterior. Como não havia mais a
abundância de recursos para grandes investimentos, o caminho que se
avizinhava seria aproveitar a mão-de-obra da população para fazê-la
interagir com a construção de sua própria residência, no bairro onde ela
mesma havia escolhido.
Assim, estaria partindo-se do princípio que já existia um
sentimento de identificação entre moradores e local de moradia, o que faz
com que seja mais fácil atender a carência habitacional da população, já
que ela permanecerá onde lhe agrada morar.
A esse respeito, BONDUKI (1988) considera que a prática de se
utilizar a mão-de-obra do próprio usuário é “inevitável”; do contrário, a
população vai continuar construindo ela mesma, só que sem técnicas, sem
apoio, e de uma maneira completamente informal, à margem de normas e
leis urbanísticas. Já SANTOS (1988) chega à conclusão de que o
“sentimento de bairro” desenvolvido pelo morador deve realmente ser
considerado em programas como ‘Cada Família um Lote’, porque esse
sentimento faz com que os moradores não só executem mas lutem
também por melhorias em suas residências, o que não acontece nos
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
60
conjuntos habitacionais, já que “os moradores eram removidos de suas
localidades orgânicas e não lhes era dado o direito de escolha” (SANTOS,
1988:87). Pela primeira vez, surge a preocupação com o sentimento de
identificação, que tanto foi desprezado nos programas de remoção.
Tais conclusões, ainda que antecipadas, vêm confirmar o que a
própria cidade já sinalizava, com seu crescimento demasiado. Era tempo
de mudança na mentalidade, porque se até o fim do regime militar havia de
fato uma política habitacional, que tentava minimizar o diferencial existente
entre o número de pessoas e o de moradias adequadas, desde então,
nada foi feito, a despeito do crescimento da população, como pode ser
visto no quadro abaixo:
Figura II.6 - Crescimento Cidade / Favelas
População em 1991
População em 1996
Taxa de crescimento
Cidade
5.480.778
5.551.538
1,29%
Favelas
882.147
952.429
7,97%
Fonte : Anuário Estatístico da cidade do Rio de Janeiro, em consulta pela
internet, site http://www.rio.rj.gov.br/ipp/dic/frame.htm, visitado em 16/02/00.
Avalia-se pelos dados acima que o crescimento das favelas foi
mais de seis vezes superior ao da cidade, e crescimento de favelas
significa que a população e a oferta de moradias crescem em proporções
diferentes. Em determinadas favelas, a taxa de crescimento foi mais
elevada, como por exemplo: Jacarezinho: 11,02%; Complexo do Alemão:
35,7% e Complexo da Maré: 68,43%31, além de outras não mencionadas
aqui.
31
Fonte: Em São Conrado, Rocinha II vai ganhando forma. O Globo, Rio de Janeiro, 15
mar. 1998, 2ª ed. Primeiro caderno, p.17.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
61
Diante de tal situação, onde a população favelada crescia em
progressão geométrica, a cidade urgia por alguma solução. Tal viria no
Plano Diretor Decenal e também no Plano Estratégico da Cidade. De fato,
no Plano Diretor Decenal, de 14 de junho de 1992, pode ser encontrado o
seguinte texto:
“Art. 44: O uso e ocupação do solo urbano respeitarão os
seguintes princípios e objetivos:
(...)
III – não remoção de favelas;
IV – inserção de favelas e loteamentos irregulares no
planejamento da Cidade com vista à sua transformação em
bairros ou integração com os bairros em que se situam;” 32
Além disso, no mesmo documento pode ser encontrado um
capítulo inteiro dedicado à política habitacional33, onde são detalhadas as
suas diretrizes e objetivos. Basicamente, a partir deste momento, a
proposta é a não remoção acompanhada da urbanização e integração das
favelas à cidade.
Da mesma forma, no Plano Estratégico da Cidade do Rio de
Janeiro, existem 7 estratégias, e a de número 4, “Rio Integrado”, é onde
está inserida a política habitacional. O seu objetivo número 4.2 traz o
seguinte texto:
“Criar condições para normalizar a situação urbanística,
favorecendo a integração e a reconversão das favelas.
Proporcionar acesso à moradia popular” (RIO DE JANEIRO,
1996:40).
32
Plano Diretor Decenal, Título VI [Do uso e ocupação do solo], Capítulo I, art. 44.
Título VII [Das políticas setoriais], Capítulo II [Da política habitacional], arts. 138 ao
167.
33
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
62
O Plano Estratégico é mais recente (1995) do que o Plano
Diretor, mas seu embrião está bem próximo daquele, já que data de 22 de
novembro de 1993 a assinatura do acordo de cooperação entre a
Prefeitura, a ACRJ (Associação Comercial do Rio de Janeiro) e a FIRJAN
(Federação das Indústrias do Rio de Janeiro) para a sua realização (RIO
DE JANEIRO, 1996:57).
Para o Estado de uma maneira geral, e em particular, para o
Município do Rio de Janeiro, foco deste trabalho, o desafio que devia ser
vencido, em termos de política habitacional, era enorme. Além de suprir as
deficiências de seu próprio tempo, caberia a ele também suprir as
deficiências deixadas pela ausência de qualquer política e produção
habitacional desde o final do regime militar. Isto significava eliminar quase
dez anos de carência, para a situação ficar equilibrada somente com as
carências contemporâneas.
Cabe aqui registrar uma determinada época, em particular, para
o Estado do Rio de Janeiro, durante o mandato do governador Leonel
Brizola, onde depois de muitos anos de repressão, as favelas se viram
num momento propício para crescer, e de fato cresceram. A própria eleição
de Brizola, primeira acontecida no estado após 1965, foi um reflexo do
descontentamento popular com o poder público, tendo em vista que os
demais candidatos ou estavam relacionados à épocas passadas da
ditadura, ou então eram exclusivos do operariado, e não propriamente dos
favelados (BURGOS, 1998:41).
Ainda segundo Burgos (1998), a partir daí, o voto que elegeu
Brizola pode ser caracterizado como o voto do descontentamento, e a
concretização de sua eleição, o início de uma época de benesses
concedidas à proliferação das favelas.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
63
O fato de, nesse período, as remoções de favelas terem
diminuído francamente, e também, de algumas urbanizações terem
começado a tomar forma (como as praticadas no Programa Cada Família
Um Lote), faz com que ele não seja marcado pela expressiva prioridade à
produção de espaços privados, como o período anterior. Na realidade, foi
um período onde, pela escassez das iniciativas, não houve ênfase nem à
produção de espaços privados nem de espaços de uso comunitário, muito
menos pudemos encontrar nele dicotomia alguma entre discurso e prática,
já que o discurso nem existia.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
64
II.5) A ATUAL POLÍTICA HABITACIONAL CARIOCA (1993 - ... )
Ao falar de uma política habitacional municipal, deve-se levar
em consideração o fato de as prefeituras das cidades de maior porte terem
tido a sua receita ampliada, em virtude da Constituição Federal de 1988.
Além disso, “alguns estados criaram, inclusive, fontes de receita vinculadas
à produção de habitações (adicionais do ICMS destinados à formação de
um Fundo de Financiamento Habitacional)” (ARAGÃO, 1999:542). Desta
forma, em termos de política habitacional, a atividade de Governos
Estaduais e principalmente, Municipais, deixou de ser complementar à
atividade do Governo Federal, como o foi durante anos, para assumir
caráter próprio.
Foi a partir desse momento que os projetos considerados
“alternativos”, como urbanização de favelas e autoconstrução ganharam
maior ênfase, já que é a esfera municipal que cuida do dia-a-dia da cidade,
funcionando como uma espécie de “síndico”, podendo assim interpretar e,
na medida do possível, atender aos anseios dos moradores.
Diante das premissas estipuladas no Plano Diretor Decenal da
Cidade do Rio de Janeiro para a política habitacional, restava ao prefeito
recém-empossado, César Maia, trabalhar no sentido de colocá-las em
prática. Tais premissas preconizavam que o uso e a ocupação do solo
deveriam ser pautados, dentre outras coisas, pela não remoção de favelas
e pela integração destas à cidade.
Essa “integração”, na realidade, significava permitir uma mesma
leitura urbanística e social para as favelas e para a cidade, o que poderia
representar, potencialmente, uma infinidade de eleitores satisfeitos ou não,
dependendo de como essa prática fosse articulada. Para que ela viesse
realmente a funcionar, deveria ser primeiramente muito bem elaborada.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
65
Assim, apesar da proposta da nova política habitacional (e como
será visto mais adiante, do Favela-Bairro, consequentemente) ter surgido
em parte pelas determinações do Plano Diretor, ela na realidade vinha
muito a calhar numa cidade como o Rio de Janeiro, onde a proliferação de
favelas aumentava cada vez mais34, e essa população seria então um dos
elementos fundamentais para o sucesso da política em elaboração.
Mesmo que não faça parte da “cidade formal”, a população
residente em favelas faz parte da “cidade real”, ainda que residam em
locais com escassez de infra-estrutura urbana, de normas urbanísticas e
principalmente com ocupação irregular do solo. Este “segmento social”
residente em favelas possui, em grande maioria, peculiaridades sociais,
econômicas
e
espaciais.
São
pessoas
de
uma
maneira
geral
“marginalizadas” pela sociedade, conhecidas como faveladas, que é um
termo que adquire contornos pejorativos ao ser utilizado.
Contudo, apesar de marginalizada, essa população contribui
significativamente para a circulação monetária. Seus salários são baixos
(vide quadro abaixo), porém eles são grande parte da mão-de-obra
utilizada pela classe média, numa gama variada de serviços.
Figura II.7 – Quadro comparativo dos salários dos chefes de família residentes
na favela e no restante da cidade.
Item comparativo
Favela Cidade
“formal”
Renda média dos chefes de família (em sal. mínimos) 1,71
5,84
Chefes de família que ganham até 2 sal. mínimos
72,3% 35,5%
Chefes de família que ganham mais de 2 sal. mínimos 0,61% 15,1%
Fonte: “Uma cidade e dois mundos”, Jornal do Brasil, caderno Cidade, página
31, 27 de março de 1997.
34
Segundo IPLANRIO (1997), a população favelada da cidade do Rio de sofreu, em
apenas 2 anos, um acréscimo de 12%, chegando mesmo estar atingindo, no início do
século XXI, a marca de um milhão de pessoas.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
66
Por outro lado, eles também são consumidores da indústria
movimentada pela mesma classe média. Portanto, podemos ver que ainda
que seja de maneira tênue, já existe um elo de integração ao menos pelo
viés econômico. Na realidade, existe não apenas um elo, mas uma
dependência mútua da classe média e da população residente em favela,
em termos econômicos.
Assim, considerando-se todos os aspectos envolvidos, esse era
um contingente da população que não poderia ser desprezado em termos
de atitude política. Na realidade, desde a abertura política, na passagem
dos anos 70 para os anos 80, a população favelada já estava,
gradativamente, voltando a ocupar lugar de destaque no cenário político,
sendo cada vez menos desprezada em termos de “votos em potencial”35.
Apesar disso, esse contingente de moradores de habitações
precárias sempre foi um “incômodo” para a cidade, turística por natureza, e
também para seus habitantes “legais”. Sem falar na condição de vida dos
próprios moradores das favelas. Dessa maneira, trazer para o cenário
político um programa que “integrasse” as favelas à cidade seria positivo
para os dois lados. Tanto a população favelada ganharia, deixando de
morar numa favela, quanto a população formal teria a possibilidade de “se
livrar” do cenário miserável e de pobreza.
A qualidade da paisagem na cidade do Rio de Janeiro é um
ponto sensível da opinião pública, e toca a fundo o imaginário da
população. O uso de um discurso que busque a melhoria da cidade pela
eliminação das favelas da paisagem funciona muito bem junto à
população. Transmite a idéia de preocupação, de atenção para com a
cidade e seus habitantes. Essa estratégia, de atuar no imaginário da
35
Tal fato deve-se à retomada das eleições diretas, primeiro para governador de estado, e
posteriormente para prefeito da capital, advindos da abertura política no final do regime
militar.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
67
população em relação à paisagem da cidade, já havia sido utilizada pelo
poder público na ocasião do Promorar, no Rio de Janeiro.
Como será visto mais adiante, um dos pontos mais marcantes
do discurso utilizado no Promorar era que as palafitas, às margens da baía
de Guanabara e ao lado do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro,
iriam desaparecer do cenário, deixar de existir. Quando, futuramente,
compararmos o Favela-Bairro e o Promorar, neste trabalho, veremos que
esta estratégia é um dos pontos em comum entre os dois programas
habitacionais.
No Favela-Bairro, objeto do presente item, tal estratégia, quando
anunciada, se transformou possivelmente num dos maiores chamarizes de
votos que o Rio de Janeiro já havia visto, o que de fato, funcionou até certo
ponto, dado que o candidato do Prefeito que havia instituído o FavelaBairro foi vencedor das eleições municipais. Apesar disso, como será visto
mais tarde, os problemas advindos da execução do programa contribuíram
para a não reeleição do próprio prefeito, então candidato a Governador do
Estado do Rio de Janeiro. Possivelmente, essa derrota já foi um reflexo da
dicotomia existente entre o discurso e a prática efetiva, como voltaremos a
comentar mais adiante.
Obviamente, no âmbito da população formal, existe uma facção
que continua sustentando a remoção das favelas. No entanto, pelas
premissas já explanadas anteriormente, e até por falta de terras para
acomodar quase um milhão de pessoas, essa possibilidade de remoção
nunca foi cogitada pela atual política habitacional da cidade do Rio de
Janeiro, que, muito pelo contrário, sempre teve no bojo de seu discurso o
aproveitamento do esforço coletivo já despendido nas favelas, na
construção de suas próprias casas. Por isso, reafirmamos, nunca se falou
em remoção massiva na atual política habitacional do Rio de Janeiro.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
68
Dessa maneira, diante do entendimento de que as favelas e
seus habitantes também fazem parte da cidade36; e à luz da nova
legislação, estabeleceu-se que a época de remoções / reassentamentos
em grandes conjuntos habitacionais havia ficado definitivamente para trás,
para alívio da população favelada. O cerne da futura política habitacional
agora não seria mais a produção de casas, mas a produção de cidades37.
De fato, o foco do novo discurso se baseava não apenas na
satisfação da população favelada, não removendo-a, mas também na
visão de tratar a cidade como um todo. A situação política tem, por
característica natural, um equilíbrio frágil, por isso a necessidade de
gerenciamento do atendimento às diversas facções da população se torna
imperativa, para que não haja um desequilíbrio na oferta de “atenções”.
Era necessário que todos, de uma maneira geral, estivessem satisfeitos
com o poder público.
A partir de então, a maneira encontrada pela prefeitura para
equacionar este problema (a partir da aceitação das favelas) era trabalhar
com novas formas de políticas habitacionais, tratando a habitação não
como uma unidade individual (esteja ela em favela ou num bairro formal),
mas como parte de um todo urbanístico de uma cidade, que precisa de
tratamentos diversos, e não só da produção de mais moradias. O objetivo
pretendido pelo poder público municipal era que os investimentos públicos,
direcionados à coletividade, como infra-estrutura e melhoria do ambiente
urbano, colhessem maiores frutos na medida em que contribuíssem para a
36
Segundo BURGOS (1998), a definição atribuída à favela no Plano Diretor Decenal
(1992) não possui características morais ou culturais, apenas a leitura de um espaço mal
servido urbanisticamente. Dessa forma, “despida de preconceitos, tal representação da
favela mostra-se compatível com sua efetiva integração à vida social e política da cidade.”
(BURGOS, 1998:48).
37
“Produção de cidades” é um termo amplamente utilizado pelo atual (1994 - ... )
Secretário Municipal de Habitação, Sérgio Magalhães, para designar a principal
característica da política habitacional da PCRJ.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
69
fixação da população nos locais onde reside, incentivando os moradores a
melhorarem suas próprias residências.
Obviamente, após o processo de regularização urbanística, procederse-ia à regularizando da situação fiscal das moradias nas favelas,
aumentando a receita do município. Esse fato atende, parcialmente, aos
interesses de uma parcela específica da população, residente em algumas
áreas da zona sul da cidade, e que sempre se mostrou insatisfeita com o
poder público, por ter que pagar altas taxas de Imposto Predial e Territorial
Urbano por estarem em terrenos altamente valorizados, quando, na
realidade, são vizinhos de favelas que não pagam nada para estarem ali,
nos mesmos terrenos valorizados38.
Após a implantação da nova política, as favelas passarão a
pagar o IPTU regularmente, ainda que este venha a ter um valor mais
baixo do que aquele que pagam as moradias que sempre têm sido
“formais”.
Se a prefeitura de fato conseguir a integração de todas as
favelas à cidade, isso significará a inclusão de 1.000.000 de novos
habitantes na legalidade urbana (aproximadamente 1/5 da população, que
está concentrada em 2% do território do município39), com acesso a novas
redes de iluminação pública, água, esgoto e drenagem das águas pluviais,
além de outros serviços básicos como telefones públicos e residenciais,
sistema de coleta de lixo, possibilidade de combate a incêndios em quase
38
Como exemplo dessa situação pode ser citado o bairro de São Conrado, que tem o
valor de IPTU mais alto da cidade, mas que encontra-se permeado pelo menos por duas
(grandes) favelas: Vidigal e Rocinha, sendo esta considerada inclusive a maior favela da
América Latina.
39
A dimensão da concentração populacional das favelas pode ser dada pela sua
densidade demográfica: 37.076 hab/km², enquanto a média da cidade não passa de
4.366 hab/km². (Dados extraído da matéria “Uma cidade e dois mundos”, do Jornal do
Brasil, caderno Cidade, página 31, em 27 de março de 1997).
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
70
todas as ruas, correio em cada residência e socorro médico de
emergência, por exemplo.
Acreditamos que, na época da elaboração da política, contavase com a capacidade que as concessionárias teriam para atender à
demanda que seria criada, mas de qualquer maneira, a regularização dos
serviços de infra-estrutura também traria um retorno fiscal aos cofres
públicos.
Para operacionalizar tão ousados objetivos e então pôr em
prática o que preconizava o Plano Diretor seria necessária a elaboração de
uma nova política habitacional propriamente dita, incluindo sua parte
logística. Na realidade, membros da equipe de elaboração do Plano Diretor
também fizeram parte da assessoria que acabou por elaborar os
programas habitacionais da prefeitura naquela gestão (FINEP/IBAM,
1996). Portanto, a “colocação em prática” nada mais foi do que um
desdobramento dos conceitos já estabelecidos anteriormente pelo mesmo
grupo ideológico de profissionais.
As diretrizes contidas no Plano Diretor podem ser vistas como o
preenchimento de uma lacuna que despontara anteriormente (1987) em
dois programas: o Projeto Mutirão e o Mutirão Reflorestamento (ambos da
esfera municipal). O primeiro visava a “urbanização simplificada”, e o
segundo, o reflorestamento de algumas encostas.
No entanto, nenhum dos dois pôde ser viabilizado em sua
totalidade, por falta de uma política maior que desse condições de base e
apoio, não só para estes dois (FINEP/IBAM, 1996), mas também para
outros que precisavam ser criados para atender necessidades específicas,
como crédito de material de construção para o morador aumentar /
reformar / construir sua casa.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
71
Dessa forma, foi durante um seminário sobre habitação, em
agosto de 1993, na Câmara dos Vereadores, que foi anunciada a criação
do GEAP – Grupo Executivo de Assentamentos Populares (SMH,1995).
Participavam do GEAP representantes de todas as secretarias municipais
que se relacionam com o tema (IPLANRIO, 1996), procurando estabelecer,
assim, propostas interligadas de governo.
Até então, não havia um órgão ou departamento no governo
municipal responsável exclusivamente pela pasta de habitação. Ela era
distribuída entre as várias secretarias afins, com ações dispersas. Com a
criação do GEAP, ligado diretamente ao prefeito, o grupo teve a
incumbência de elaborar a política habitacional para o município. A
principal recomendação que o GEAP fez à prefeitura foi que fosse criado
um órgão (uma Secretaria) específica para a área de habitação. Assim, em
29 de dezembro de 1993 foi criada a SeH – Secretaria Extraordinária de
Habitação, sendo o titular de sua pasta o então Secretário-Executivo do
GEAP, arquiteto Sérgio Magalhães.
A criação do GEAP nada mais foi do que a personificação da
entidade que conduziria a nova política habitacional. Na apresentação
desta política em publicação da então recém-criada Secretaria Municipal
de Habitação, o prefeito César Maia anuncia oficialmente o conceito que
estava sendo adotado: “a habitação não é só casa, mas integração à
estrutura urbana (infra-estrutura sanitária, de transporte, de educação, de
saúde e de lazer); e que compete à coletividade prover a estrutura
urbana” (grifos no texto original). E ainda: “serão adotados pelo Município
do Rio alguns procedimentos básicos: os investimentos públicos devem
direcionar-se àquelas ações próprias da coletividade (infra-estrutura e
ambiência
urbana);
os
investimentos
públicos
em
unidades
habitacionais devem se dar somente quando necessários à melhoria
da ambiência urbana, (grifo nosso) da infra-estrutura, ou para enfrentar
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
72
situações de risco; e o oferecimento para construir em terra infraestruturada” (Secretaria Municipal de Habitação, 1995:[1]).
Essa intenção de criação dos espaços de uso comunitário no
discurso da política habitacional estava bem explícita, dado que, conforme
dito anteriormente, eles seriam elementos fundamentais para contribuir no
processo da integração favela-cidade. Seria, dentre outras coisas, através
de símbolos e signos impressos por eles que a favela estaria caminhando
em direção à “integração”, já que as favelas são vistas como “manchas” na
cidade, “buracos-negros” onde não existe infra-estrutura. Ninguém que
resida na cidade “formal” vai em busca de socorro médico, por exemplo,
dentro de uma favela. A situação oposta é a que acontece, e
possivelmente quando percebeu isso, o poder público elaborou uma
política que preconizasse a construção de vários tipos de espaços de uso
comunitário, como postos de saúde (do exemplo mencionado acima),
escolas, creches etc. Tudo para que a favela pudesse ter uma certa
autonomia, e ao mesmo tempo, “ser interpretada” como mais um bairro da
cidade, onde os serviços (e o poder) públicos estão presentes.
Além disso, com a possibilidade da integração, desenhou-se no
imaginário da opinião pública que ela (a integração) viria do mesmo modo
acabar com um outro fator que também sempre incomodou à população
formal, que é o aspecto estético da favela (DUARTE, 2000), com
edificações sem acabamento, sem afastamento umas das outras, e sem
alinhamento. Dessa forma, a política habitacional anunciada estava se
propondo a fazer algo que muitos ansiavam: “acabar” com as favelas,
ainda que não as removesse.
No entanto, como será visto mais adiante, ao não se concretizar
na sua totalidade, esse discurso foi perdendo apoio popular e
consequentemente, votos. Ficaram decepcionados tanto os que residem
nas favelas, ao não terem todas as promessas de facilidades urbanísticas
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
73
totalmente cumpridas, quanto os que lá não residem, ao verem que as
favelas não estão sendo “isoladas”, nem “integradas”, pelo menos no
sentido estético da palavra.
Em pesquisa com os moradores de uma favela beneficiada com
o programa Favela-Bairro, Mata Machado, pudemos constatar que depois
de transcorrido algum tempo do início das obras, a população foi aos
poucos notando que os resultados acabavam ficando aquém de suas
expectativas, devido a várias circunstâncias que serão melhor descritas no
próximo capítulo.
Além disso, os moradores da parte “formal” da cidade também
vêm demonstrando sua insatisfação com o Favela-Bairro, através de
home-pages estabelecidas exclusivamente para esse fim40, ou mais
comumente, em cartas enviadas aos jornais:
“Lenta e inexoravelmente vamos perdendo nossos espaços com
as favelas-bairro. Eles podem tudo, com a conivência e a
complacência das autoridades (...). Brevemente abandonaremos
nossos lares e a eles entregaremos nossos bens que tanto
lutamos para conquistar...Favela não se urbaniza! Favela se
erradica.” Jornal O Globo, 10/10/99, seção Cartas dos Leitores.
“...não é somente a Rocinha que cresce desordenadamente e,
sim, quase todas as favelas do Rio. A devastação é geral,
desfigurando toda a cidade (...). Com exceção do Parque da
Catacumba, não se tem conhecimento de outra desmobilização
de favelas. Aliás, naquele tempo a força da autoridade
prevalecia. Era muito diferente de hoje, que o domínio da cidade
está com a bandidagem”. Jornal O Globo, 10/10/99, seção
Cartas dos Leitores.
40
Ver a home-page http://www.geocities.com/Athens/Crete/6913/favela1.htm, que será
citada mais adiante neste capítulo.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
74
“...nossa cidade está se transformando numa ‘Cidade-Favela’ e a
Tijuca é o protótipo do ‘Bairro-Favela’. Existem favelas por todos
os lados, crescendo com a total conivência das autoridades
municipais. A política iniciada no governo César Maia foi
totalmente desvirtuada pelo atual prefeito...”. Jornal O Globo,
11/10/99, seção Cartas dos Leitores.
Tais opiniões vêm exemplificar o nível de insatisfação que o
tratamento político dado às favelas começou a gerar, passado algum
tempo do discurso anunciado, sem que este tenha sido concretizado.
- OS PROGRAMAS DA ATUAL POLÍTICA HABITACIONAL CARIOCA
Com um discurso que atendia às expectativas de diversos
segmentos da população do Rio de Janeiro, a concretização da política
habitacional seria feita através de seis programas habitacionais, todos
imbuídos dos mesmos conceitos gerais, de não remoção, de integração,
da produção de cidades e da melhoria da ambiência urbana:
1. Programa Regularização de Loteamentos (Regularização/Saneamento);
2. Programa Regularização Fundiária e Titularização;
3. Programa Novas Alternativas (Vazios/Fraldas/Recomposição do Tecido);
4. Programa Morar Carioca (Legislação/Estímulo);
5. Programa Morar sem Risco (Recompor/Reassentar) e
6. Programa Favela-Bairro (Urbanização/Integração).
Neste trabalho, o foco será dado ao Favela-Bairro, carro chefe
da política habitacional da prefeitura41.
41
Para maiores detalhes a respeito dos outros programas, ver BURGOS (1998), SMH
([1996]) e a home-page da SMH (http://www.rio.rj.gov.br/habitacao).
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
75
II.5.1) PROGRAMA FAVELA-BAIRRO
O Programa Favela-Bairro será abordado por nós com maior
profundidade para que este sirva de base na análise entre o discurso e a
prática das políticas habitacionais, comparando-o com outro momento da
política habitacional, o Projeto Rio. Dessa forma, as informações aqui
relacionadas serão remetidas para o próximo capítulo.
Além desta razão, o Favela-Bairro é o programa que tem maior
alcance e maior dotação de orçamento, dentre os outros da prefeitura do
Rio de Janeiro. Como carro-chefe da política habitacional carioca, o
Favela-Bairro tem por objetivos urbanizar favelas e dar títulos de
propriedade às unidades nelas existentes e que sejam passíveis de
legalização na forma de “Áreas de Especial Interesse Social” (AEIS).
Casas e barracos em áreas de risco, por exemplo, são demolidos e seus
ocupantes remanejados preferencialmente para o interior da própria favela.
O início do Favela-Bairro aconteceu com um “Concurso público
para seleção de propostas metodológicas e físico-espaciais relativas à
urbanização de favelas no município do Rio de Janeiro“ (IPLANRIO/PMRJ,
1994: capa), organizado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil – IAB/RJ.
Tal concurso, em 1994, selecionou 15 equipes multidisciplinares (DUARTE,
SILVA & BRASILEIRO, 1996) coordenadas por arquitetos para atuarem nas 15
primeiras favelas escolhidas pela prefeitura para receberem a intervenção
do Favela-Bairro42.
Essas favelas foram escolhidas tendo em vista critérios como
nível de urbanização existente e número de moradores. Para esta primeira
42
Na realidade, foram 16 favelas. A 16ª foi a do Andaraí, onde a própria prefeitura
executou o projeto-piloto do Favela-Bairro. As demais foram: Caminho do Job, Canal das
Tachas / Vila Amizade, Chácara de Del Castilho, Conj. Res. Fernão Cardim, Ladeira dos
Funcionários / Parque S. Sebastião, Mata Machado, Morro da Fé, Morro do Escondidinho,
Morro dos Prazeres, Morro União, Parque Proletário do Grotão, Parque Royal, Serrinha,
Três Pontes e Vila Candido / Guararapes / Cerro-Corá.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
76
fase do programa, o que continuou posteriormente, seriam favelas de porte
médio, de 500 a 2500 domicílios. Segundo BURGOS (1998), as favelas
maiores acarretariam altos custos, e as menores, dispersão das ações. De
fato, posteriormente foram lançados dois programas que beneficiam tais
situações. Um para as grandes favelas da cidade, financiado pela Caixa
Econômica Federal, e o “Bairrinho”, uma espécie de Favela-Bairro em
menor grau de intervenção, para favelas de até 500 domicílios.
Os objetivos do programa Favela-Bairro anunciados pelo
IPLANRIO foram:
• “Implantação de melhorias físico-ambientais que integrem as
favelas aos bairros onde se localizam, preservando suas
especificidades, através da complementação da estrutura
urbana em cada uma das favelas;
• Introdução de valores urbanísticos presentes no restante da
cidade, tais como condições básicas de acesso e circulação
viárias, infra-estrutura urbanística essencial, equipamentos
urbanos, contando com a adesão e a participação da população
residente durante o processo de implantação das melhorias
físico-ambientais.” (IPLANRIO/PMRJ, 1994: [2]).
O Favela-Bairro segue a mesma linha de toda política
habitacional atual da prefeitura. A partir de então, as favelas passaram a
ser reconhecidas como partes integrantes da cidade pelo poder público
municipal43, faltando dotá-las de elementos que as trouxessem para a
formalidade e legalidade urbanística, inserindo-as nas redes de infraestrutura urbana, reconhecendo seus logradouros e regularizando a
situação fundiária de suas terras.
Nesse ponto, fica claramente marcada a intenção proposta no
discurso da SMH, ao implantar a nova política habitacional. Mais do que
43
Cabe aqui a lembrança do Código de Obras de 1937, que reconhecia a existência das
favelas, mas como parte NÃO integrante da cidade, e determinava o seu extermínio.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
77
isso, o próprio prefeito se repetia constantemente, ao afirmar várias vezes
o discurso adotado, de que “habitação não é só casa”.
Esse elemento do discurso parece ter sido de muita importância,
dada a ênfase que era dada a ele. Os espaços de uso comunitário estão
sempre continuamente marcados – e em evidência – no discurso político
utilizado. Eles estariam representando, na verdade, um dos fatores que
faria o “diferencial” do programa, dado que pretendia-se que ele não fosse
apenas “mais um“ programa de urbanização de favelas. A urbanização
somente traria a infra-estrutura básica, já fornecida em outros programas
de urbanização. Mas, ela era considerada “básica” demais para ser
oferecida somente ela. Aí é que entram os EUCs, oferecendo uma gama
de serviços variados nas favelas, e que seriam os verdadeiros condutores
da tão “almejada” e propalada integração.
Na realidade, esse discurso alimentava o imaginário dos
moradores das favelas, no sentido de “melhorar de vida”, de “morar num
lugar melhor”, com mais facilidades urbanísticas. Assim, quando o discurso
foi anunciado, disparou uma série de vontades e desejos na população,
que passou, então, a ansiar pelo fornecimento dos espaços de uso
comunitário.
Dessa forma, segundo o edital do concurso, as propostas
metodológicas das equipes deveriam conter propostas para os seguintes
itens: sistema viário (inclusive ampliação dos acessos às comunidades),
abastecimento d’água, esgotamento sanitário, drenagem, recolhimento de
lixo, energia elétrica, iluminação pública, equipamentos urbanos, transporte
coletivo e arborização (IPLANRIO/PMRJ, 1994).
Para elaborar esse escopo de propostas, a prefeitura se baseou
em alguns pressupostos, como a consideração que deveria ser feita ao
histórico da comunidade e o entendimento de que a população favelada
não é uma categoria estanque, isolada. As desavenças existentes entre as
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
78
várias lideranças e associações da comunidade também deveriam ser
levadas em consideração.
Ainda, dentre os pressupostos, constava o aproveitamento do
investimento já feito pela população em suas próprias residências. Assim,
os reassentamentos, como já mencionado, só deveriam ser previstos em
casos de famílias localizadas em áreas de risco, mas preferencialmente a
transferência
deveria
ser
feita
para
dentro
da
própria
favela
(IPLANRIO/PMRJ, 1994).
O edital do concurso estava ditando as regras para um
experiência até então inovadora. Como conseqüência, várias dúvidas
foram suscitadas. Para o seu devido esclarecimento, a Comissão
Organizadora do Concurso promoveu um encontro na sede do IAB/RJ,
entre as equipes participantes e o Secretário Extraordinário de Habitação.
Nesse encontro foi apresentado um argumento para a própria
realização do concurso, um dos pontos diferenciadores entre as antigas
políticas habitacionais e a atual. Até praticamente a extinção do BNH,
quase toda materialização de políticas habitacionais era planejada e
projetada por funcionários públicos que estavam habituados a executar a
mesma fórmula de projeto de moradia. Com o concurso, começaram a
trabalhar na política habitacional profissionais com perfis diferentes
daqueles que trabalhavam anteriormente nos projetos de habitação de
interesse social.
Em épocas passadas, o arquiteto/engenheiro que projetava os
conjuntos habitacionais era um funcionário público, ou então o projeto era
primeiro concebido por ele e desenvolvido por uma empresa contratada
pelo poder público especificamente para esse fim. Em muitos casos, a
“receita” do projeto já estava pronta, não fazendo diferença em que
localidade ou para que população se destinaria o novo projeto. Por esse
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
79
motivo, podemos encontrar a mesma planta de conjunto habitacional em
vários estados do país.
Atualmente, no Rio de Janeiro, a produção dos espaços de
interesse social tem sido, em grande parte, concebida e planejada por
escritórios de arquitetos atuantes no mercado de projetos de arquitetura,
com diferentes linhas de tipologias projetuais e experiências nos mais
variados programas. Essa mudança no perfil do profissional vem
imprimindo maior dinamismo e variação na produção dos espaços nas 115
favelas44 beneficiadas pelo Programa Favela-Bairro.
Dessa forma, o Poder Público estava convocando profissionais
atuantes no mercado para concorrerem entre si, como melhor forma
encontrada de estabelecer as linhas de planejamento da produção
propriamente dita da política habitacional. Na esfera pública, com seus
próprios funcionários, havia um certo desgaste, e algumas velhas fórmulas
de soluções arquitetônicas não correspondiam mais às necessidades e
também à realidade. Daí a existência do concurso. Nas palavras do então
Secretário Extraordinário de Habitação:
“Não há conhecimento sistematizado sobre o que fazer nas
favelas. Se houvesse normas claras sobre como projetar em
favelas e que estas condicionassem o desenho, o concurso seria
outro: de provimento de cargos para contratar profissionais para
desenvolver um trabalho para o qual existe uma metodologia
própria no poder público.” (Concurso Favela-Bairro: Encontro em
19/04/94, Perguntas e Respostas, apud RIBEIRO, 1996:12)
Na realidade, a criatividade dos arquitetos contratados não só
deu vazão como também foi útil ao discurso político anunciado; a própria
utilização dos arquitetos (e consequentemente, de projetos que seriam
inovadores), era útil ao discurso, porque “ao utilizar propostas inovadoras”,
44
Dados de julho de 1999, divulgados em propaganda televisiva pela prefeitura.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
80
o poder público daquele momento estaria se desvencilhando de qualquer
“ranço” ainda existente de antigas políticas habitacionais, promovendo
ainda mais sua posição de vanguarda.
Contudo, como será visto mais tarde, essa proposta em relação
aos escritórios particulares deixou muitos profissionais frustados, ao verem
seus projetos simplesmente descartados ou não executados.
Apesar do conhecimento de causa que as equipes vencedoras
do concurso demonstraram ter na apresentação das propostas, uma
análise mais detida dessas mesmas propostas mostra, segundo RIBEIRO
(1996:14), que elas se constituíam muito mais em uma “declaração de
princípios” do que etapas de uma metodologia de intervenção em favelas.
Tal fato dificultou a previsão do que seriam os projetos e as obras.
Em 16/12/94, é criada a Secretaria Municipal de Habitação. A
mudança de condição de extraordinária para Secretaria Municipal de
Habitação veio consolidar uma política que àquela altura, estava ainda nos
seus primeiros passos. No entanto, é com a assinatura do Decreto n.º
14.332 de 07 de novembro de 1995, que cria o Programa de Urbanização
de Assentamentos Populares – PROAP-RIO, que a Secretaria Municipal
de Habitação e principalmente o Favela-Bairro passam por profundas
modificações. O PROAP é financiado pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), com contrapartida local do Município do Rio de
Janeiro de R$ 100 milhões, um terço do investimento total previsto pelo
PROAP45. Dos programas habitacionais da Prefeitura, dois fazem parte do
PROAP: Favela-Bairro e Regularização de Loteamentos.
Com a assinatura do PROAP, iniciou-se uma sistematização de
planejamento e apresentação dos projetos de urbanização. Até então, o
conhecimento que se tinha, tanto da parte dos escritórios como da parte
45
Até então, na primeira fase do programa, o investimento era exclusivo da Prefeitura,
que somava R$ 43 milhões. (IPLANRIO, 1996).
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
81
dos técnicos da prefeitura, havia sido adquirido pela prática acontecida na
primeira fase do programa. A instituição do decreto normatizou os
procedimentos para a “urbanização de assentamentos populares”, que
naquele texto, possuía a seguinte descrição:
“...promoção de obras e ações destinadas a permitir a
implantação, operação e manutenção de equipamentos e
serviços de abastecimento d’água; esgotamento sanitário;
circulação viária; drenagem pluvial; contenção e estabilização de
encostas; reflorestamento; coleta de lixo e limpeza pública;
iluminação pública; educação sanitária e ambiental; creche,
praças, parques e jardins; esporte e lazer e outros programas
sociais. Complementam a urbanização, integrando o PROAPRIO, as ações destinadas à regularização urbanística e fundiária
dos assentamento populares e programas de geração de
emprego e renda”. (RIO DE JANEIRO, 1995:27).
Na prática, tal normatização resultou num espesso caderno de
encargos, mudando (e aumentando) as atribuições dos escritórios
projetistas. O antigo escopo para entrega dos projetos não existia mais, e
agora todas as entregas e responsabilidades estavam muito bem descritas,
amarradas inclusive às normas técnicas brasileiras. Onde antes havia
apenas itens como estudo preliminar, plano de intervenção, anteprojeto e
projeto básico, de uma forma genérica, agora existiam vários outros46.
Além disso, vários setores da Secretaria Municipal de Habitação foram
redefinidos em função do PROAP (FINEP/IBAM, 1996).
46
Fazem parte do escopo do Favela-Bairro as elaborações dos seguintes projetos:
abastecimento d’água, esgotamento sanitário, drenagem, viário, iluminação pública, coleta
de lixo, edificações, áreas desportivas e de lazer, estabilização de encostas, comunicação
visual, paisagismo, mobiliário urbano, serviços adicionais de geotecnia, serviços
adicionais de topografia, alinhamento, informações fundiárias, folders, painéis de
exposição e placas indicativas, além das especificações gerais, todos em fases de
diagnóstico, plano de intervenção, anteprojeto e projeto executivo, de onde constam, além
das disciplinas citadas acima, espaços para programas de geração de renda e avaliação
de impacto ambiental nas comunidades (RIO DE JANEIRO, 1995).
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
82
Uma outra importante modificação com a implementação do
PROAP foi a assinatura de um convênio com a CEDAE, Companhia
Estadual de Águas e Esgotos, sob o n.º 35, de 21 de setembro de 1995.
Dentre outras coisas, este convênio determina que a CEDAE deveria ser
ouvida quando da seleção das comunidades, para se pronunciar em
relação à possibilidade de adução de água. Cabe lembrar que o FavelaBairro é um programa da esfera municipal, e que durante o tempo de sua
existência o Governador e o Prefeito têm sido sempre de partidos políticos
diferentes. Tal fato contribuiu para a pouca ou inexistente integração entre
a CEDAE e a Prefeitura. Essa falta de entrosamento gera até hoje
problemas de adução e manutenção de estações de tratamento de esgoto
construídas pela prefeitura e que deveriam ser mantidas pela CEDAE47, a
despeito do convênio assinado, como será visto mais tarde neste trabalho.
Com o PROPAP mudou também o caráter urbanístico global do
programa, dado que as intervenções em infra-estrutura e saneamento
básico são os componentes de maior identidade com o perfil dos projetos
que o banco prioriza e financia.(FINEP/IBAM, 1996).
Durante a consolidação do programa, foi introduzida outra forma
de terceirização (além dos escritórios de arquitetura). Como possibilidade
prevista no Regulamento Operacional do PROAP, os serviços de
supervisão e gerenciamento dos projetos de arquitetura e urbanísticos
também foram terceirizados, tendo em vista que o número de favelas no
programa mais do que dobrara depois das 15 iniciais.
47
Em pesquisa realizada pelo IBAM, constatou-se que na opinião dos integrantes da
Secretaria Municipal de Habitação, a GEORIO é o órgão que melhor se integra
institucionalmente com a Secretaria; e a CEDAE, o órgão com a mais difícil integração
(FINEP/IBAM, 1996:40). Nas palavras do próprio secretário, em entrevista concedida ao
programa “Deles e Delas”, da Rede CNT, em 15/02/98: “É uma integração muito fraca
[com a CEDAE] , por enquanto. Vai melhorar, se Deus quiser...” [referindo-se à possível
eleição de César Maia, do mesmo partido, para o Governo do Estado, o que não chegou a
se concretizar].
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
83
Entre as funções das três empresas contratadas, tem-se o
“acompanhamento na elaboração e execução dos projetos, apoio na
fixação de cronogramas e na padronização das informações, além da
assessoria na formulação de instrumentos de controle gerencial sobre o
processo de implementação do programa” (FINEP/IBAM, 1996:27). Tais
empresas começaram a atuar no ano de 1996, ano do início das obras em
várias favelas. Na prática, elas serviam como “intermediário” na lida diária
de projetos e obras, entre os escritórios projetistas e a Secretaria Municipal
de Habitação.
II.5.2) PROGRAMA FAVELA-BAIRRO – A OUTRA FACE
Apesar de todo o discurso pautado no caráter humanitário que
fala de integração social-espacial-cultural e geração de renda, o FavelaBairro vem despertando também algumas insatisfações. A mais comum
delas é a de moradores (principalmente) vizinhos à favelas beneficiadas,
que se sentem injustiçados por pagarem um alto valor de Imposto Predial e
Territorial Urbano – o IPTU, estando ao lado de uma favela. Esses
moradores usualmente alegam que adquiriram sua residência por compra
legal, mas no entanto, bem ao lado delas, invasores que se instalaram num
terreno que não lhes pertencia estão ganhando a sua respectiva
titularização, além de melhorias urbanas que nem sempre as regiões de
entorno possuem.
O fato de saber que, após regularizadas, as favelas também
pagarão imposto, não lhes devolve a sensação de tranqüilidade, e mesmo,
alegam, de justiça, já que afirmam estar pagando imposto sobre aquilo que
compraram, ou seja, algo que teve já um custo inicial, e os moradores da
favela pagarão imposto sobre algo que lhes será cedido.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
84
Através de entrevistas e de cartas de leitores aos jornais,
verifica-se que existe o sentimento por parte de certas pessoas que o
Favela-Bairro estaria, de uma certa forma, “premiando” pessoas invasoras
do espaço alheio, incentivando ainda mais a proliferação de novas favelas
e novas invasões.
Na favela de Mata Machado, por exemplo, da primeira fase do
programa, acontece uma situação inusitada: toda a favela se situa em área
de preservação ambiental, no Alto da Boa Vista – uma área de encostas
acentuadas. A altitude média da favela gira em torno de 255 metros acima
no nível médio do mar. Pela legislação urbanística da cidade, a construção
em áreas situadas acima da altitude 100 é limitada em 10% da área do
terreno, o que promove uma densidade ocupacional muito rarefeita,
preservando, assim, as especificidades naturais das suas respectivas
regiões.
Ocorre que no limite mais alto de Mata Machado, onde é
possível encontrar até um talvegue ocupado por barracos, existe um muro
(vide figura II.8) separando-a de uma propriedade privada, na continuação
da floresta, cujo proprietário inclusive procurou a equipe de projetistas do
Favela-Bairro Mata Machado, alegando que se sentia injustiçado. Apesar
desse proprietário não ter o direito de construir mais do que 10% de sua
área, seus vizinhos moradores da favela o fazem, por isso o sentimento de
injustiça reportado por ele48. Na realidade, os moradores da favela não têm
nem mesmo um parâmetro de taxa de ocupação, já que naquela área da
favela não há delimitação física de lotes.
48
A intenção dele era ter os arquitetos projetistas como intermediários numa negociação
com a prefeitura, que lhe permitisse fazer um arruamento e lotear a sua propriedade para
um condomínio de luxo, numa taxa de ocupação ligeiramente acima da permitida pelas
normas urbanísticas. Tal intenção advinha do desejo pessoal dele de obter uma
compensação pelo fato de a prefeitura haver solicitado a desapropriação de uma parte de
sua gleba, para remanejamento interno de moradores em Mata Machado.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
85
Figura II.8 – Limite superior da favela Mata Machado, onde podem ser vistos os
muros que a separam de outras propriedades. (Em destaque, na linha
tracejada amarela, o muro de divisa com a floresta, que fica sob as
copas das árvores). Notar a diferença da taxa de ocupação entre a
favela e as propriedades privadas.
Afora esse fato, o que ocorre também em Mata Machado, com a
presença do Favela-Bairro, é a oficialização da mudança do uso de
segmentos da Floresta da Tijuca, já que em um outro limite de Mata
Machado, o vizinho é a própria floresta, que foi sendo paulatinamente
desmatada para dar lugar aos barracos49. Com a titularização que advirá
do Favela-Bairro, o poder público municipal está, na realidade, transferindo
oficialmente o uso e a ocupação do solo, de floresta para residências.
49
A respeito do desmatamento ocorrido em Mata Machado, ver SOARES, 1999.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
86
Neste caso, mais do que nunca, o invasor, antes ilegal, está sendo
premiado, com a titularização de uma área de preservação ambiental, o
que, até certo ponto, pode ser considerado um crime ecológico (DUARTE
& BRASILEIRO, 1998).
Inspirados pelos acontecimentos em Mata Machado, vários
grupos de pessoas têm invadido outras partes do Alto da Boa Vista, na
esperança de serem beneficiados com algum programa habitacional da
Prefeitura do Rio de Janeiro (BRASILEIRO, SILVA & SOARES, 1998). Em
que pese o fato de algumas dessas novas favelas estarem realmente se
beneficiando ou em vias de, através do Programa Bairrinho, isso gera um
diferencial nas duas velocidades de ação. De um lado, a prefeitura
arregimenta centenas de profissionais para trabalharem na urbanização
das favelas do Rio, e do outro, as favelas se apressam em crescer ou se
formar em núcleos novos, para que também sejam elas beneficiadas pela
política habitacional.
Ainda no concurso de seleção de propostas metodológicas para
o Favela-Bairro, a Equipe 101 já alertava à SMH sobre a possibilidade de
inchamento da própria favela e das favelas de entorno, se as ações não
fossem
concretizadas
em
velocidade
suficiente
para
coibir
este
crescimento (EQUIPE 101, 1996). Sustentamos que, somente o fato de a
prefeitura
não
tomar
conhecimento
das
invasões
que
estão
se
multiplicando em volta de Mata Machado já se constitui num crime em
relação à floresta (DUARTE & BRASILEIRO, 1998).
Além deste tipo de situação, é comum ver noticiado nos jornais
cariocas que um grupo pequeno de pessoas ou uma pessoa unicamente
paga alguns reais para que famílias ocupem uma gleba vazia, a fim de ter
a posse consolidada. Quando esta, enfim, é cedida pelo poder público, o
real invasor aparece, lucrando com a valorização que a posse imprimiu aos
terrenos.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
87
Ainda, há casos que podem ser considerados absurdos, em que
as famílias pagam aluguel para o real invasor dos terrenos. Tais posturas
só vêm acentuar que a invasão de terras hoje no município do Rio de
Janeiro pode vir a ser um bom negócio para várias pessoas.
Nas favelas já contempladas pelo Favela-Bairro, a prefeitura
institui o POUSO – Posto de Orientação Urbanística e Social, que funciona
como uma espécie de Departamento de Licenciamento e Fiscalização50 na
favela. Segundo o Secretário Municipal de Habitação, o POUSO
representa o poder público dentro das favelas, para tentar evitar esse tipo
de expansão desordenada naquelas já urbanizadas:
“A expansão vertical ou sobre áreas não previstas se dá através
de uma legislação clara, simples, objetiva e fácil de ser
perseguida e controlada. E também com a presença do Estado,
a presença do Governo no interior da favela, porque não se pode
imaginar que uma vez construído tudo, devemos deixar ao
arbítrio dos moradores a preservação dos espaços, a
preservação dos sistemas, sem que haja a presença efetiva do
serviço público, seja levando o serviço, seja controlando o
serviço. Então da mesma forma se dá, por exemplo, num bairro
como Ipanema (…) como é que se cobra [o cumprimento das
normas]? Se cobra estando presente. Então a prefeitura está em
cada Favela-Bairro, com um escritório que se chama POUSO –
Posto de Orientação Urbanística e Social – que faz o controle
urbanístico, faz a assistência técnica para se construir de acordo
com as regras, e também incorpora outros serviços. Como por
exemplo, um contrato que fizemos com a Caixa Econômica, de
financiamento de material de construção, para que as famílias
busquem o crédito, melhorem suas casas, segundo orientação
técnica que a prefeitura e até associada com ONG’s e
universidades oferece aos moradores. Então, eu acho que é um
conjunto de medidas que tem que ter perseverança, tem que ter
continuidade, para que se alcance essa transformação efetiva.
50
Os Departamentos de Licenciamento e Fiscalização – DLF’s existentes nas várias
Regiões Administrativas da cidade são os órgãos que licenciam e fiscalizam
urbanisticamente as construções.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
88
Nós não podíamos fazer todas as obras, fazer todo o serviço e
dizer : ‘agora se virem!’, não dá. A cidade significa bens,
equipamentos, serviços e presença do governos. Presença dos
governos inclusive naqueles serviços mais do cotidiano, e que
Ipanema tem! Ninguém constrói na calçada em Ipanema porque
o governo é presente. Os governos sempre foram presentes em
Ipanema. Agora, se o governo durante 15 dias, um mês, não sei
quanto, deixar de consertar a iluminação pública, se não recolher
o lixo, se o comerciante que está com a sua loja funcionando
muito bem, achar que está apertado seu espaço, crescer sobre a
calçada e ninguém tomar conhecimento, em pouquíssimo tempo
vira favela…” .51
Conforme mostrado no discurso acima, o POUSO tem por objetivos
orientar os moradores em obras feitas por eles mesmos, nas suas
residências, e cuidar para que a favela não venha a sofrer uma expansão
desordenada principalmente na vertical, porque a horizontal, além de em
muitas favelas não haver mais espaço, como é o caso de Mata Machado, o
próprio programa vem tentando delimitar fisicamente, com a construção de
pequenos muros52.
Como instrumento oficial dessa delimitação, estão sendo elaborados
os Projetos de Alinhamento das favelas, sendo elas decretadas AEIS –
Área de Especial Interesse Social. Mesmo assim, com os PA’s
demarcando legalmente o que os muros fazem fisicamente, ainda não foi
possível notar os efeitos práticos da limitação, se ela realmente está
funcionando como tal, ou se ela se constitui em apenas mais uma parede
51
Entrevista concedida por Sérgio Magalhães ao Programa “Deles e Delas”, da Rede CNT
de Televisão, em 15/02/98.
52
“…algumas das favelas já estão inclusive com uma limitação física, para o não
crescimento. Na favela do Vidigal, por exemplo, nós estamos construindo um pequeno
muro, dessa altura [± 70cm] até onde pode-se construir, até onde está urbanizado. Até foi
objeto de uma polêmica recente, as pessoas achavam que isso era um demérito para os
moradores da favela, o que obviamente não é, é simplesmente uma preservação do que
já está feito, do investimento, da qualidade de vida. É necessário que os limites físicos
fiquem bem claros, para que seja possível inclusive o controle” (MAGALHÃES, 1998).
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
89
que, uma vez construída, será utilizada pela população para fazer parte
integrante de suas casas, como acontece com muitas obras de contenção
de encostas feitas em favelas.
Assim, apesar de a prefeitura efetivamente demonstrar que está
preocupada com a expansão das favelas da cidade, cuidando para que tal
fato não ocorra nas já urbanizadas, ela ainda permanece impávida diante
do surgimento de novas favelas. Até nos meios mais elitistas de
comunicação, como internet, é possível encontrar reclamações a respeito
do processo e da pouca velocidade de implantação da política habitacional.
Uma moradora do bairro do Recreio dos Bandeirantes instituiu uma home
page com fotos de “antes” e “depois” das obras do Favela-Bairro na favela
Canal das Tachas, próxima à sua casa, além de várias outras
argumentações contra o programa:
“A implantação do projeto Favela Bairro como está sendo feita
em nada contribuiu para a melhoria da região. Pelo contrário,
visando exclusivamente o lucro fácil, aproveitadores iniciaram
um processo de favelização dos lotes lindeiros, até então ainda
não atingidos pelas favelas, e a fiscalização da Prefeitura é
inoperante. O Favela Bairro que serviria para frear o processo
geral de favelização da cidade, age de forma justamente
contrária: incentiva a favelização e as invasões, quando inclui no
Programa indiscriminadamente todas as áreas favelizadas da
cidade.
Invade-se tudo: morros, canais, ruas, praças, propriedades
particulares, sítios tombados, surgem loteamentos clandestinos
e favelas da noite para o dia, às escâncaras, sem qualquer
fiscalização. Aguardam o Favela Bairro e a urbanização
prometida pelos governantes.
Todos fingem: Os favelados fingem serem todos pobres, a
Prefeitura finge que acredita, e a sociedade finge que não vê. Só
não fingem os Bancos Internacionais que emprestam dinheiro
com altos juros.” 53
53
Texto extraído do site http://www.geocities.com/Athens/Crete/6913/favela1.htm, em 08
de março de 1999.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
90
Realmente, o Favela-Bairro vem fazendo muito menos do que
se prestou a fazer, quando o seu discurso foi anunciado. Conforme será
visto no próximo capítulo, estaremos analisando essa dicotomia entre
discurso e prática não só no Favela-Bairro, mas em outro momento da
política habitacional também.
II.6) CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRESENTE CAPÍTULO (2ª PARTE)
Todo este trabalho tem seu enfoque nos espaços de uso
comunitário das habitações de interesse social. Ao longo da história, temos
visto que os programas habitacionais os consideram em seus discursos,
mas nem sempre nas suas realizações.
No entanto, o programa que analisamos nesta seção, o FavelaBairro, foi um programa de vanguarda ao ousar em não oferecer casas em
sua política habitacional, mas sim infra-estrutura básica e espaços de
uso comunitário. O espaço da moradia em si deixou ser o foco principal.
Morem os cidadãos na favela ou não, a preocupação da política
habitacional, segundo a Prefeitura, é com o espaço da coletividade, com a
ambiência urbana (Secretaria Municipal de Habitação, 1995).
Reconhecendo que ainda existe um enorme déficit habitacional,
MAGALHÃES54 sugere que os vazios urbanos infra-estruturados devam
ser aproveitados, e que essa decisão não pode ser centralizada. Como
ressalta o Secretário Municipal de Habitação, cabe às famílias a decisão
de escolher onde morar, seja comprando um imóvel pronto ou construindose um.
Como a Prefeitura pretende que, após o Favela-Bairro, as
favelas sejam bairros como outros quaisquer, onde se pagam impostos e
54
“Quem decide onde morar?” Artigo publicado na seção Opinião do jornal O Globo,
em13/06/98.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
91
onde se têm direitos como moradores de qualquer parte da cidade, não
haveria mais a possibilidade de se “morar numa favela”. O direito de
escolha seria então, total: onde morar, como morar.
Contudo, cabe lembrar também que nem sempre as famílias
têm muita “decisão de escolha”, tendo em vista a atual situação econômica
do país, com altos níveis de desemprego. Tal situação até não é nova;
sempre a presença de favelas e sub-habitações no Rio de Janeiro esteve
relacionada na maioria das vezes às dificuldades financeiras dos seus
moradores.
Por não ter casa própria, e por não ter condições de pagar um
aluguel, muitas famílias montam barracos em espaços livres da cidade,
formando novas favelas, porque às vezes até mesmo o aluguel de um
barraco numa favela já existente, pode vir a se tornar dispendioso. Assim,
quando especificamente o Favela-Bairro anuncia que vai “urbanizar e
integrar” as favelas existentes à cidade formal, é natural que as pessoas
que
morem
nesses
locais
anseiem
por
este
momento,
mesmo
considerando-se que o programa não terá velocidade suficiente para
beneficiar todas as favelas de uma só vez.
Quem mora nas mais precárias condições acalenta o sonho de
poder morar numa edificação de alvenaria, ainda que isso demore a
ocorrer, e ainda que no Favela-Bairro nem sempre isso ocorra, salvo se a
construção estiver localizada numa região de risco físico. Esse morador,
assim como aquele que já mora numa casa de alvenaria, sonha em deixar
de morar “numa favela”, em condições precárias, mesmo que ele não
mude de casa propriamente, mas que passe a morar “num lugar melhor”.
Pode ser feita uma analogia a esse fato, tomando-se como
exemplo os moradores de conjugados nos bairros de Copacabana ou
Botafogo, que preferem morar em “centros nervosos”, na zona sul da
cidade, que é melhor servida de todo o tipo de serviço e equipamento, do
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
92
que morar numa casa mais confortável na zona oeste da cidade, onde os
bairros são menos sofisticados e a oferta de serviços e opções de lazer
são bem menores. Abstraindo-se o fato da proximidade ou não com o
mercado de trabalho, o sentimento é o mesmo, de “morar num lugar
melhor”, não propriamente e necessariamente numa “casa melhor”.
Trazendo-se esse exemplo à luz do Favela-Bairro, podemos
estudar o caso da comunidade Fernão Cardim, da primeira fase do FavelaBairro, no bairro de Pilares. Um morador dessa comunidade declarou, com
extremo orgulho, que agora não mora mais “numa favela”, mesmo que
esse específico morador tenha continuado a morar, após as obras, numa
pequena casa, de sala/cozinha, quarto e banheiro, situada num dos
menores e mais apertados becos da favela55.
O sentimento de poder “dar o seu endereço”, e este não ser
mais numa favela, possui extremo poder de incutir nas pessoas um forte
orgulho. De fato, Fernão Cardim é uma das favelas com o seu projeto
executado na sua quase totalidade. Pela imagem do rio que passa pela
comunidade (que agora é uma avenida), é possível ter uma idéia do
sentimento do morador no caso citado (figuras II.9 e II.10)
55
Dados recolhidos pela autora em visita à citada favela, em 04/12/99.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
93
Figura II.9 – O rio Faria antes das obras.
Figura II.10 – O rio Faria canalizado, depois das obras que deram origem à
“Avenida Canal”.
De certa forma, uma das maneiras de tornar público e de a
Prefeitura “exibir a seu favor” este sentimento, é expondo a própria favela.
Talvez pelo próprio fato de ter seu projeto urbanístico concretizado na sua
quase totalidade, Fernão Cardim, juntamente com outras duas ou três
favelas, sempre aparece nas publicações da Prefeitura, a respeito do
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
94
Programa Favela-Bairro56. Juntamente com as outras, ela funciona como
uma espécie de “vitrine” do programa. No próprio site oficial do programa,
não são mostradas todas as favelas da primeira fase, mas Fernão Cardim
está entre as que aparecem. Pode-se depreender de tais fatos que a
Prefeitura elege algumas favelas para “mostrar” o programa, e essas são
aquelas que “melhor” o fazem.
Assim, para tornar públicas as realizações, houve a necessidade
de se acelerar os trabalhos em algumas delas, para que fossem
“inauguradas”, principalmente tendo em vista a proximidade das eleições
municipais de 1996. O que aconteceu é que em quase todas que contavam
com a possibilidade de “oferecer algum retorno” e de ficarem prontas a
tempo, as obras foram aceleradas, a ponto de serem abertas várias frentes
simultâneas de trabalho.
Em Mata Machado, não incluída no time de favelas utilizadas
como vitrine pela prefeitura, às vésperas da “inauguração” (na realidade
uma visita do prefeito antes das eleições57), havia uma profusão tal de
operários que, coloquialmente, dizia-se que eles estavam “batendo as
56
Em tempo: em IPLANRIO (1996), na apresentação do programa, são mostrados 3
“estudos de caso”: Fernão Cardim, Parque Royal e Ladeira dos Funcionários; em
SECRETARIA MUNICIPAL DE HABITAÇÃO (1999), aparecem várias fotos, de várias
favelas, e Fernão Cardim e Parque Royal, além de Serrinha, outra “estrela” da 1a fase,
estão de novo entre elas. Há tempos que a prefeitura elegeu essas favelas como “vitrines”
do programa, e de fato, elas estão entre as mais bem-sucedidas em termos de aceitação
popular e da opinião pública em geral a respeito do Favela-Bairro.
57
A respeito das inaugurações ocorridas antes das eleições municipais de 1996, deu-se
um fato interessante: até um certo momento, o candidato do prefeito, seu Secretário
Municipal de Urbanismo, o acompanhava nas inaugurações. Porém, após a sua presença
em alguns desses eventos, ele foi proibido, pela legislação eleitoral, de comparecer à
inaugurações de obras. Na realidade, a proibição era extensiva a todos os candidatos,
inclusive o do Governo do Estado, que estava então inaugurando a expansão do prémetro nos subúrbios da cidade. Não fosse essa lei, provavelmente o Secretário Municipal
de Urbanismo estaria presente a todas inaugurações do Favela-Bairro ocorridas naquela
época.
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
95
cabeças” na obra. Além disso, nessa ocasião, além da presença dos
arquitetos projetistas, o que era diário, havia também vários visitantes na
obra, o que contribuía ainda mais para a movimentação na favela, na
expectativa da “inauguração”, ainda que parcial, das obras. (ver figura
II.11). Cabe informar que passadas as eleições, três anos depois, já em
1999, é que as obras foram reiniciadas.
Figura II.11 – O movimento das obras em Mata Machado, às vésperas das eleições.
Nesse processo, então, Fernão Cardim foi uma favelas que teve
seu
projeto (e principalmente
seus espaços de uso comunitário)
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
96
executados na sua quase totalidade58.
Já Mata Machado, como mencionado anteriormente, não faz
parte do elenco das favelas-modelo do programa. Menos da metade dos
itens de seu projeto urbanístico foi ou será executada, mesmo com a
continuidade das obras, por vários motivos, que serão melhor ilustrados no
próximo capítulo. De antemão, pode-se dizer que a falta de organização
interna e a dificuldade nas relações entre a SMH e os vários órgãos
públicos envolvidos no processo, desdobrou-se em vários pequenos
entraves, contribuindo para que a obra não pudesse ser concluída no
prazo previsto. Mais do que isso, entre a 1a e a 2a (ainda em curso no
desenvolvimento desta dissertação) etapas de obra, o projeto teve que ser,
por assim dizer, refeito, e principalmente, mais detalhado.
A não conclusão das obras no prazo previsto fez com que o
projeto de Mata Machado passasse a fazer parte do escopo de projeto de
outras fases do Favela-Bairro, mais rígido e mais exigente para com os
projetistas. Nessa fase de maior detalhamento, por determinação da
própria SMH, vários espaços de uso comunitário foram retirados do
projeto, que constou basicamente da complementação da infra-estrutura
urbana.
Por este fato, pode-se notar que o peso dado aos EUCs no
anúncio do programa e na sua execução é substancialmente diferente.
Ainda, note-se que tais determinações foram ocorrendo ao longo dos anos
de 1997 e 1998, quando não havia proximidade de eleições municipais.
58
Como informação adicional, vale ressaltar que até os meses que precederam a
finalização da presente dissertação, Fernão Cardim era a única favela que tinha sido
transformada em bairro oficialmente, com suas ruas reconhecidas de fato como
logradouros públicos. O decreto que a reconheceu como parte integrante do Bairro do
Engenho de Dentro foi assinado pelo prefeito em 06/05/99 (Dado extraído do site
http://www.fau.ufrj.br/prourb/cidades/favela/projfernao.html , em 19/11/99).
CAPÍTULO II - ANÁLISE DA POSTURA GOVERNAMENTAL
EM RELAÇÃO AOS ESPAÇOS DE USO COMUNITÁRIO
97
Havia, sim, eleições para o Governo do Estado, da qual foi candidato o
prefeito que havia lançado o Favela-Bairro, César Maia.
Assim, nas favelas, a expectativa dos serviços públicos, dos
EUCs e da tão propalada integração com os bairros de entorno, o “deixar
de ser favela”, normalmente tem o poder de superar o desânimo popular,
quando o programa é anunciado, e mais ainda, quando ele se realiza. No
entanto, nem sempre esse discurso se concretiza, diminuindo novamente a
“decisão de escolha” dos moradores, do local em que querem (e podem)
morar.
Será visto no próximo capítulo que muitas vezes o fornecimento
de espaços de uso comunitário está relacionado à busca da legitimação do
poder e/ou da aceitação popular do poder público, e assim a escala de
fornecimento (ou não) de espaços de uso comunitário varia ao sabor do
momento político da circunstância.
Capítulo III
PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
E
ste capítulo trará a análise comparativa entre dois
momentos da história da política habitacional carioca: o
Promorar e o Favela-Bairro. A escolha de tais
momentos justifica-se por motivos próprios de cada um deles.
O momento caracterizado pelo programa Promorar foi escolhido
por conter, dentre os variados momentos da história aqui vistos, pontos
que são contraditórios e pontos que são comuns em relação à política
habitacional praticada atualmente no município do Rio de Janeiro.
O Promorar era financiado pelo BNH, que ao longo de sua
trajetória,
concedeu
financiamentos
basicamente
para
conjuntos
habitacionais construídos distantes das localizações originais das favelas.
Nessa época, o fato de um conjunto habitacional ser construído ao lado da
favela que teria uma parte removida, era visto, até certo ponto, como um
fato inovador. Além disso, fazia parte do projeto a urbanização da área já
consolidada da favela, sem a sua remoção. Essa prática estava
acontecendo em 1979, início da abertura política do país, com a
perspectiva da retomada das eleições para governadores, paralisadas
durante o regime militar. Assim como o Favela-Bairro, carro-chefe da atual
política habitacional da Prefeitura do Rio de Janeiro, o Promorar se
propunha, dentre outras coisas, a urbanizar favelas, experiência até então
pouco praticada pelo Governo Federal.
Além disso, a escolha do Promorar reside também no fato de a
autora ter participado, ainda na graduação em Arquitetura, de uma bolsa
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
99
de iniciação científica, concedida para o estudo da Vila Pinheiros, fruto do
referido programa.
O segundo momento político, o Favela-Bairro, foi escolhido por
trazer no seu discurso não somente a urbanização das favelas cariocas
mas a integração espacial, social e cultural delas à cidade. Sua
implantação representou uma guinada na atitude do poder público em
relação às favelas, considerando-se as políticas anteriores, que defendiam
a remoção, ou até mesmo ignoravam as favelas através da falta de uma
política de habitação voltada especificamente para a questão.
Contudo, até o surgimento deste programa, não era comum se
falar a respeito de integração de favelas à cidade. Ineditamente, é
encontrado na fala do Secretário Municipal de Habitação que o morador da
favela é o mesmo morador do restante da cidade. A adoção de tal conceito
se mostra inteiramente adversa da prática utilizada até então, que
considerava que os favelados precisariam “se moldar” à sociedade para
estarem habilitados a viver numa cidade formal:
“Levantamento sobre sua composição demográfica [da favela]
permite afirmar que o favelado carioca tem as mesmas origens
regionais
do
carioca
não-favelado.
É
originário
predominantemente da cidade do Rio de Janeiro, depois do
estado do Rio de Janeiro e em terceiro lugar de outros estados
do Brasil”. (Sérgio Magalhães, Jornal O Dia, 19/02/98, página 6).
“Não podemos identificar diferenças entre os moradores da
favela e do asfalto sob o ponto de vista étnico ou religioso, por
exemplo. O nosso gueto, a favela, não é determinado por uma
moral diferente. A cultura da favela é a mesma do asfalto, não há
razão importante para a favela ser excluída. Ela pode ser
integrada. Há uma desintegração por razões econômicas e
sociais, mas com a possibilidade de integração por razões
culturais, permitindo que o investimento em infra-estrutura dê
resultado em curto prazo. O gueto foi formado apenas pela
ausência do poder público”. (Sérgio Magalhães, Jornal do Brasil,
05/01/97, página 27).
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
100
Além disso, é sempre bom lembrar, a escolha do programa
Favela-Bairro, para criar a contrapartida na análise, deve-se também à
experiência própria da autora no programa habitacional em uma das
favelas59, tanto em fase de projeto quanto na fase de execução das obras.
Outras circunstâncias indicam alguns pontos antagônicos
desses dois momentos no âmbito da história da política habitacional
brasileira. Enquanto o Promorar aconteceu no curso do regime autoritário,
já moribundo, carente de legitimação e tentando se beneficiar da abertura
política que ainda estaria por vir; o outro, o Favela-Bairro, está
acontecendo durante um governo neoliberal, que foi democraticamente
eleito, mas que mesmo assim continua lutando por uma aceitação popular
mais efetiva.
Apesar das diferenças, os discursos políticos que sustentaram
tanto o ideário do Promorar quanto o do Favela-Bairro seguem uma
mesma lógica, pautada, em última análise, pela busca de maiores índices
de popularidade do governo. Independentemente de tipo de regime, partido
e plataforma política, as ações que materializaram o ideário e os discursos
dos dois programas habitacionais possuem semelhanças.
Intriga-nos especialmente o fato de, assim como em muitos
outros programas habitacionais, esses dois discursos sempre incluírem o
fornecimento de espaços de uso comunitário como fatores marcantes no
seu conteúdo. No anúncio desses programas habitacionais foi sempre
amplamente divulgado que a população receberia, juntamente com a
moradia, postos de saúde, escolas, creches, áreas para lazer, parques etc.
Porém, o que se pode constatar é que tão logo os serviços básicos de
infra-estrutura e/ou as unidades habitacionais ficam prontos, o programa
sofre uma retração nas ações, restando inacabado.
59
Favela Mata Machado, no Alto da Boa Vista.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
101
Este foi exatamente o caso do Promorar e do Favela-Bairro. Por
quais razões o espaço de uso comunitário teria sua existência
considerada suficientemente importante para ter anunciada a sua
execução, mas não a ponto de tê-la efetivada?
Podemos, a princípio,
supor que alavancas eleitorais façam parte do universo de motivos?
Tentaremos aqui analisar as possíveis causas para essa situação, e se de
fato existe um padrão de dicotomia entre discurso e realização.
III.1) P ROMORAR
Nos momentos que antecederam o Promorar, o regime militar
contava então com o seu último presidente, General João Baptista
Figueiredo. Nessa época de um quase “apagar das luzes” do governo
militar, os seus níveis de popularidade estavam em franca queda, e havia
toda uma estratégia de marketing onde a postura adotada era a abertura
política (DUARTE, 1993).
Na realidade, ao lado do marketing, havia várias medidas que
acenavam realmente para a abertura política, como a anistia e o retorno
das eleições para Governadores de Estado. Com a intenção de continuar a
participar do poder mesmo após a saída do Presidente, o seu partido,
PDS, “se organizou para adquirir cada vez mais a simpatia das camadas
populares” (DUARTE, 1993:35), organizando uma série de programas
sociais - entre eles, o Promorar.
Mais do que isso, ao anunciar o Projeto Rio, a parte do
Promorar que seria executada no Rio de Janeiro, na região da favela da
Maré, o Poder Público tomava para si as reivindicações populares já de
tempos passados, que preconizavam a urbanização e a não remoção das
favelas. Com o Promorar, a área consolidada da favela da Maré seria
urbanizada, e somente seriam removidas as famílias que habitassem as
palafitas sobre as poluídas águas da Baía de Guanabara (ver figura III.1).
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
102
Figura III.1 – As palafitas da Favela da Maré.
No mesmo fluxo de organização política e anseio pela
continuidade do poder, surgiu como candidato natural à sucessão de
Figueiredo, o titular do Ministério do Interior, Ministro Mário Andreazza.
Na época, o BNH, órgão que comandava a política habitacional
do país, fazia parte do Ministério do Interior, sendo portanto, de certa
forma, comandado pelo próprio Andreazza. Assim, o Ministro assumiu
pessoalmente (e principalmente perante a imprensa)
o comando do
Promorar. Freqüentemente, em manchetes dos jornais da época,
Andreazza pode ser visto “em mangas de camisa” no canteiro de obras na
Maré (ver figura III.2).
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
103
Figura III.2 – O então Ministro do Interior, Mário Andreazza, em visita ao local
das obras. Logo à sua direita, o prefeito do Rio, Israel Klabin.
O anúncio das obras do Promorar no complexo da Maré tinha a
função não só de atender aos apelos populares, mas também atuar num
complexo de favelas que, pela sua posição geográfica, estava na “porta de
entrada” da cidade, ao lado do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro
(DUARTE, 1993). A visão dos insalubres barracos sobre as águas era
repugnante tanto para os moradores da cidade quanto para (e
principalmente) os que chegavam de fora.
Além desse fato, segundo a publicidade feita pelo Promorar, a
área remanescente do aterro e da urbanização da Maré daria lugar, dentre
outras coisas, à construção de uma via expressa, paralela à avenida Brasil,
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
104
que serviria para desafogar o seu tráfego. A via expressa60, de acordo com
o que era amplamente anunciado, uniria os subúrbios da cidade ao Centro
e à Zona Sul, locais onde estava concentrada a maior parte das ofertas de
emprego da cidade, e que causavam diariamente um grande fluxo de
veículos, provocando imensos congestionamentos na avenida Brasil61.
Ainda, o Promorar defendia que, na outra parte do aterro feito na
Baía de Guanabara, os terrenos seriam comercializados à entidades
privadas, para a instalação de comércios e indústrias, o que, segundo o
BNH, geraria um duplo benefício público: os cofres públicos ganhariam
com a venda desses terrenos e os seus ocupantes gerariam empregos
para os habitantes da Maré.
Vê-se portanto, que os trabalhos na região da Maré estariam
estrategicamente atendendo às aspirações de uma grande gama de
segmentos da população: as camadas populares veriam que “finalmente” o
governo estaria apresentando preocupações “sociais”; as camadas
preocupadas com a paisagem que os estrangeiros viam em local próximo
ao aeroporto estariam livres dessa preocupação; a classe trabalhadora que
necessitava trafegar pela Av. Brasil estaria contemplada com a via
expressa e, o segmento mais preocupado com a ecologia teria na
anunciada despoluição da baía o seu alento (DUARTE, 1993).
Dessa forma, a concretização do Projeto Rio era divulgada
como um programa que traria um grande benefício aos habitantes não só
do Complexo da Maré, mas aos da cidade como um todo. E como seu
“maestro condutor”, aparecia o Ministro Mário Andreazza.
60
Hoje, a via expressa existente no local é a Linha Vermelha, concluída no início dos anos
90.
61
Para se ter uma idéia, nessa época, o volume de tráfego na Avenida Brasil era de
350.000 veículos/dia, e os primeiros engarrafamentos nessa avenida datam dos anos 50
(DUARTE, 1993).
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
105
Nos anúncios oficiais do Projeto Rio, foi divulgado que os
serviços a serem executados seriam:
1. “Programa de equipamentos sociais: creches, escolas, postos de
saúde, equipamentos de lazer, cinemas, teatros equipamentos
esportivos etc.; (grifo nosso)
2. Programa de limpeza e tratamento das águas da baia de Guanabara;
3. Planejamento das margens da baía através de parques públicos,
parques de lazer, centros comerciais e um grande programa de
reflorestamento; (grifo nosso)
4. Urbanização de pelo menos 15 favelas, das quais também as favelas
da Maré, assim como a concessão de 12.000 certificados de
propriedade aos habitantes;
5. A transformação no sistema de vias de circulação automotiva, e
principalmente a construção da linha vermelha, que ligaria os
subúrbios ao Centro do Rio;
6. O Projeto Rio previa também um plano de assistência social e
financeira aos habitantes que seriam transferidos para os novos bairros
[Vila do João, Vila Pinheiros e Conjunto Pinheiros]” (DUARTE,
1993:38).
Assim, grande parte do Projeto Rio estava pautado sobre
benefícios que seriam públicos, extrapolando o limite do objeto “casa”.
Apenas a parte que tangia a concessão das unidades residenciais e dos
títulos de propriedade eram referentes a benefícios que seriam usufruídos
de forma particular (privada) por cada habitante do Complexo da Maré. E
esse fato foi amplamente divulgado pelo governo através da imprensa,
como pode ser visto por algumas manchetes da época:
“Queremos a Universidade [UFRJ] e as associações de favelados
participando do projeto. Não pretendemos impor nada e sim que as
soluções venham também de baixo para cima. Pretendemos aceitação
do projeto e não impô-lo a ninguém. Por isso, nada faremos sem que
haja consenso. As críticas serão aceitas”.
(Mário Andreazza, em entrevista ao jornal O Globo, em 16/06/79,
página 15).
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
106
“…não vamos permitir em hipótese alguma que os favelados
sejam prejudicados. Pelo contrário, nossa meta prioritária é dar-lhes
melhores condições de vida, através da construção dos conjuntos
residenciais (…) que terão todas as condições de saneamento básico,
além de áreas de lazer”.
(Mário Andreazza, em entrevista ao jornal O Globo, em 10/06/79,
página 25).
“…a idéia principal do Projeto Rio é a solução do problema social
existente na área”.
(Mário Andreazza, em entrevista ao jornal O Globo, em 16/06/79,
página 15).
“Estamos construindo aqui uma nova cidade. Para vocês terem
uma idéia, basta dizer que, quando a área estiver aterrada,
representará cerca de 18 vezes o Parque do Flamengo”.
(Mário Andreazza, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 02/03/80).
“Um parque na zona norte, idêntico ao do Flamengo, com todas
as suas atrações (…) é o que o Ministro Mário Andreazza pretende que
seja transformada a área da favela da Maré”.
(Jornal do Brasil, em 16/06/79).
“As unidades residenciais terão centros comunitários com postos
de saúde, creches, clubes, escolas e áreas de recreação, lazer e
esportes, com o aproveitamento inclusive da ilha do Pinheiro, além de
novas opções de praias, com águas mais limpas, saneadas e livres da
poluição.”.
(Jornal do Brasil, em 16/06/79).
“…a favela será recuperada e urbanizada. Em termos de
habitação, assistência médica, educação e lazer, eles receberão o que
a Prefeitura considera padrão-ideal”.
(Israel Klabin, então Prefeito do Rio de Janeiro, em entrevista ao jornal
O Globo, em 15/06/79, página 17).
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
107
“O Projeto Rio: (…) urbanização de toda a área e instalação de
sistemas de água, esgoto, luz e gás; construção de 21 escolas, 23
creches, 4 postos de saúde, 3 centros de recreação e esportes, 2
postos policiais e criação de 3 parques com áreas verdes”.
(Propaganda do BNH veiculada nos jornais, quando da entrega dos
primeiros 302 títulos de propriedade ao moradores do Timbau, parte da
área consolidada da Maré, no Jornal do Brasil, em 11/06/81, página 5 –
vide figura III.4).
“O presidente da entidade [associação de moradores] conta que
houve muita curiosidade em torno do material exposto e que a reação
dos favelados foi de pasmo diante do que estavam vendo. Outros riam
e chamavam de ‘sonho’ ou ‘milagre’ àquela série de desenhos
coloridos com legendas indicativas de play-ground, 3 campos de
futebol, concha acústica, quadra coberta, quadras de patinação e mais
as áreas para banheiros, telefones, estacionamento de carros. Além
disso, havia também na parede os desenhos da área do lodaçal,
transformada agora em um bonito conjunto de escolas: creche,
maternal, escolas de primeiro e segundo graus. Em outra folha de
cartolina, os favelados viram ainda o projeto de um grande parque
arborizado, cercado com muros, exclusivo para o descanso e lazer dos
que moram hoje nos barracos, em cima da lama.”
(Jornal O Globo, em 29/06/81, página 21).
“[O Projeto Rio] sempre prosseguirá dentro do espírito que
começou (…) todas as promessas feitas aos favelados serão
cumpridas”
(Mário Andreazza, em entrevista ao jornal O Globo, em 07/06/81,
página 10).
Pelas manchetes, comprova-se que a concessão de espaços de
uso comunitário estava bem evidenciada no discurso do governo.
As
notícias de que os favelados não seriam removidos para locais distantes, e
que iriam residir numa área cercada de verde, com um parque “semelhante
ao do Flamengo”, próximos a facilidades tais como creche, postos de
saúde, postos policiais, escolas etc., se configuram como sendo molas
propulsoras da imaginação da população concernida. Pode-se até dizer
que estava sendo estimulado, nos habitantes da Maré, o sonho de viver
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
108
num verdadeiro núcleo habitacional, nos moldes dos famosos condomínios
de classe média alta que estavam surgindo na Barra da Tijuca.
Isso estava acontecendo de tal forma que, como pôde ser
verificado na penúltima manchete citada, nem os próprios favelados
pareciam acreditar muito no projeto de intervenção na área da Maré. Na
realidade, nos parece que a real intenção de tanto alarido em torno do
espaço de uso comunitário se explica pela possibilidade de melhoria de
qualidade de vida que ele poderia trazer aos habitantes: além da unidade
habitacional, a parte social estaria por assim dizer resolvida, através da
concessão de todos aqueles espaços de uso comunitário.
Figura III.3 – Assinatura do protocolo que criou o grupo de trabalho encarregado de
elaborar o Projeto Rio.
O Promorar era, como dissemos, resultado de um conjunto de
ações dos Governos Federal, Estadual e Municipal. A cargo dos órgãos
estaduais e municipais, haviam ficado os EUCs. Até 1982, a parceria entre
as três esferas do governo estava operando bem, (ver figura III.3, acima)
mas no entanto, nesse ano, que era eletivo, o partido do governo do
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
109
estado, PP (partido popular), foi anexado ao PMDB, partido de oposição ao
Governo Federal, PDS. Com isso, agências estaduais que colaboravam
com o BNH no Projeto Rio foram “marginalizadas” (VALLADARES,
1988:86), e dessa forma, não participaram mais do projeto. Segundo
Valladares (1988), esse fato marca o inicio de um segundo período no
Projeto Rio, onde o Governo Federal toma para si as rédeas da execução
do projeto, relançando uma nova publicidade massiva, desta vez,
apresentando como responsáveis somente os membros do Governo
Federal.
Na ocasião da entrega dos primeiros títulos de propriedade, que
foram para os moradores da área consolidada na parte conhecida como
Timbau, somente Figueiredo e Andreazza aparecem (DUARTE,1993). Não
há qualquer menção ao Governador Chagas Freitas ou ao Prefeito Israel
Klabim, figuras fáceis nas manchetes sobre o Projeto Rio do período 19791981. São feitas, inclusive, onerosas publicidades “pagas” nos jornais de
maior circulação, assinadas pelo BNH / Ministério do Interior (ver figura
III.4).
Na corrida eleitoral para o governo do Estado no Rio de Janeiro,
o PDS, através do BNH, agora lidando somente com os órgãos federais,
comandou os trabalhos com tal urgência que a Vila do João foi inaugurada
em agosto de 1982, três meses antes da data marcada para eleição. A
inauguração da Vila do João, em agosto, tinha o propósito de haver tempo,
ainda, de influenciar a opinião pública a respeito dos benefícios do Projeto
Rio, não só para os seus moradores, como para os habitantes da cidade
como um todo, que deixaram de ter um quadro miserável, como os das
palafitas, em sua paisagem.
Presentes
na
inauguração,
o
presidente
João
Baptista
Figueiredo62, o Ministro Mário Andreazza e a ampla cobertura da imprensa
(DUARTE, 1993). A pressa na inauguração da Vila do João fez com que
62
Cujo nome inclusive foi dado à vila, “João”.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
110
várias etapas do processo de intervenção fossem eliminadas, e a Vila do
João contava então, no dia de sua inauguração, com 1564 casas, infraestrutura completa, uma creche, um posto de saúde, uma escola primária
e um terreno para esportes63 (DUARTE, 1993).
A inauguração do Conjunto e da Vila Pinheiros não pôde ser
acelerada para aquele ano, e aconteceu no ano seguinte, com a eleição
para o governo do estado já definida, tendo ganho um candidato que
também fazia oposição ao Governo Federal, Leonel Brizola, do PDT.
O resultado dessa eleição contribuiu ainda mais para o BNH se
afastar das premissas iniciais do Projeto Rio. Um dos fatores que marcou
esse afastamento foi a desvinculação da participação dos moradores no
projeto. No primeiro período do Projeto Rio, a participação popular havia
conseguido modificar os planos para a Vila do João.
Porém, no segundo período, após o rompimento com o Governo
Estadual, a população que iria ser transferida para Vila Pinheiros não
conseguiu interferir, e mesmo sem que desejassem residir em prédios de
apartamentos, o Setor Pinheiros recebeu 70 prédios de 5 pavimentos
(DUARTE, 1993). Ou seja, mesmo apesar de todas as declarações do
Ministro do Interior dizendo que a população e a sociedade seriam ouvidas,
o Conjunto e a Vila Pinheiros foram construídos sem a participação
popular. Mais do que isso, após o anúncio da construção de vários
espaços de uso comunitários, alguns até “gigantescos”, como um parque
maior que o do Flamengo, o Conjunto e a Vila Pinheiros não receberam
nenhum espaço de uso comunitário64.
63
Nas realidade, esses foram os únicos espaços de uso comunitário construídos em todo
o Projeto Rio, incluindo a Vila Pinheiros, o Conjunto Pinheiros e a área consolidada das
favelas.
64
Mesmo as unidades habitacionais da Vila Pinheiros não foram executadas na sua
totalidade. Das 146 quadras previstas inicialmente, apenas 76 foram construídas, com um
total de 1704 casas, 51% a menos do que o previsto originalmente (DUARTE, 1993).
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
111
Essa
ausência
se
refletiu
inclusive
na
segurança
das
comunidades, como por exemplo a anunciada criação de um parque na
Ilha dos Pinheiros. A ilha era utilizada pela Fundação Oswaldo Cruz para a
criação de macacos Rhesus, e deixou de ser uma ilha, tendo o canal à sua
volta sido aterrado. O anúncio feito pelo Ministro do Interior divulgava que a
área seria transformada em parque, com sua vegetação nativa, para as
atividades de lazer das futuras Vilas do João e Pinheiros (nome inclusive
dado em função da ilha anexada pelo aterro ao continente).
Realmente, a sua vegetação não foi destruída pelas obras do
Promorar, mas em pesquisas feitas anos depois, o que pôde ser
constatado é que essa mesma vegetação havia sido abandonada, e seu
uso era feito por marginais e traficantes da comunidade, como local de
esconderijo65, facilitando assim o seu modus vivendi, a despeito da
insegurança que eles geravam para os demais moradores.
65
Dados do Grupo Habitação-FAU-UFRJ, 1990.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
112
Figura III.4 – Anúncio do BNH sobre o Projeto Rio.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
113
A noção dos espaços de uso comunitário que deixaram de ser
construídos, no âmbito do Promorar, pode ser melhor vista pelo quadro a
seguir, adaptado do original de Lícia Valladares.
Figura III.5 – Quadro resumo comparativo entre metas previstas e metas realizadas
na área prioritária até 1984
LOCAL
I) GERAL
II) ÁREA CONSOLIDADA
1 – Urbanização
2 – Espaços de uso
comunitário
3 – Comercialização
de terrenos
III) FAMÍLIAS
PALAFITADAS
GERAL
VILA DO JOÃO
VILA PINHEIROS
METAS PREVISTAS
METAS REALIZADAS
Aterro: 256 ha
256 ha de aterro
Rede de água
Rede de esgoto
Eletrificação
Escola de 1º grau
Escola de 2º grau
Escola profissionalizante
Posto de saúde
Posto policial
Áreas verdes e de lazer
Distribuição
de
12.000
títulos de propriedade
Não foi construída
Não foi construída
Sim
Não foi construída
Não foi construída
Não foi construída
Não foi construído
Não foi construído
Não foram construídas
Distribuídos 4.869
habitações: 9.531
infra-estrutura completa
2 creches
Escola de 1º grau
Escola de 2º grau
Posto de saúde
Posto policial
Escolas profissionalizantes
Quadras de esporte
Áreas verdes e de lazer
Infra-estrutura completa
2 creches
Escola de 1º grau
Escola de 2º grau
Posto de saúde
Posto policial
Escola profissionalizante
Quadras de esporte
Áreas verdes e de lazer
5.186 unidades construídas
Sim
Apenas 1 foi construída
Sim
Não foi construída
1 (instalação provisória)
Sim
1 (atendimento precário)
Não foram construídas
1 (abandonada)
Sim
Não foram construídas
Não foi construída
Não foi construída
Não foi construído
Não foi construído
Não foi construída
Não foram construídas
Não foram construídas
Fonte: VALLADARES, 1988 (adaptação nossa)
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
114
Da construção de novas unidades, urbanização da área nova e
da parte consolidada das favelas e fornecimento do espaço de uso
comunitário, vemos que aproximadamente 54% das unidades previstas
realmente foram construídas, enquanto que a distribuição dos títulos de
propriedade da área consolidada ficou na marca de 40%; na urbanização,
as novas “Vilas” receberam a infra-estrutura completa, enquanto que a
área consolidada somente recebeu a energia elétrica66.
Na parte de EUCs, a área consolidada não recebeu nenhum,
enquanto que a área das “Vilas” recebeu cerca de metade dos espaços
que estavam previstos. Ou seja, entre a construção de espaços que teriam
o uso privado e espaços que teriam o uso público, a prioridade foi para os
primeiramente citados.
Mesmo assim, em relação aos serviços básicos que foram
prestados, SOUZA e SILVA constatou, em pesquisa realizada com os
moradores da área consolidada, que ‘’ os benefícios relativos à infraestrutura67 e à urbanização68 trazidos pelo Projeto não são suficientes para
excluir estas questões do rol dos principais problemas ainda existentes na
área. Elas representam hoje [1984] o primeiro principal problema da Favela
da Maré, para 56% dos casos pesquisados, e o 2º maior problema para
44% dos mesmos.” (SOUZA e SILVA, 1984:349-350).
Dos dados trazidos por VALLADARES e SOUZA e SILVA
depreende-se que, para um programa que surgiu com um discurso
inovador, de manutenção da população próxima ao local da favela, ele
realmente se confirmou. Porém, no tocante à cessão de espaços de uso
66
Note-se que na área consolidada da Favela da Maré, os próprios moradores haviam
construído rede de esgoto, abastecimento de água e eletrificação, mas além de atender
precariamente às moradias, tais redes possuíam deficiências crônicas, como a falta de
vazão da água e lançamento in natura do esgoto na Baía de Guanabara.
67
68
“Água, esgotos, drenagem” . Definição de SOUZA e SILVA, 1984.
“Pavimentação, alinhamento, ordenação da ocupação”. Definição de SOUZA e SILVA,
1984.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
115
comunitário à população, vemos que este item do programa ficou em
segundo plano, atrás, mais uma vez, do “número total de unidades”
entregues nas Vilas do João e Pinheiros. Mesmo havendo um ligeiro
progresso em termos de espaços de uso comunitário, estes ainda assim,
não receberam o peso, em termos igualitários, em relação aos espaços
privados, ou seja, as unidades habitacionais69.
A maior parte dos EUCs programados para serem executados no
Projeto Rio não o foram (VALLADARES, 1988).
O fato de o Governo
Federal ter descartado do Projeto Rio as agências estaduais, responsáveis
pela construção dos EUCs, não fez com que ele, Governo Federal,
chamasse para si as responsabilidades anteriormente assumidas com a
população. O que no anúncio do programa era um dos grandes símbolos da
melhoria de qualidade de vida para a população, já com as necessidades
básicas sanadas, não passou, salvo algumas poucas exceções, de projetos
que não saíram do papel, das manchetes de jornais e do imaginário da
população que aguardou por ele.
III.2) F AVELA -B AIRRO
No âmbito do Programa Favela-Bairro, o ideário e o discurso da
política habitacional possuem semelhanças e diferenças em relação aos do
Promorar. São dois momentos políticos inteiramente distintos; o
financiamento para o primeiro é, predominantemente, externo; os do
segundo, interno. O Favela-Bairro faz parte de uma política habitacional
que basicamente urbaniza favelas; o Promorar fazia parte de uma política
habitacional que aos poucos experimentava a urbanização como
69
Mesmo assim, em relação às unidades habitacionais, segundo SILVA e SILVA, o
PROMORAR, depois de alguns anos, tornou-se extremamente autoritário, “...ao impôr-se
às populações, derrubando barracos sem oferecer nenhuma indenização, e obrigando as
famílias a comprarem uma casa, muitas vezes em piores condições do que a que foi
demolida, ao não apresentar possibilidades de abrigar mesmo uma família pequena”
(SILVA e SILVA, 1989:77).
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
116
alternativa, e ainda removia milhares de barracos. No entanto, nos dois
casos a concessão de EUCs é amplamente divulgada e anunciada, e nem
sempre essa concessão se concretiza de forma satisfatória.
Ao falar de Favela-Bairro, deve ser lembrado que a conjuntura
existente no país contribuiu para a elaboração do um Plano Diretor
Municipal imbuído do conceito de não remoção de favelas70, o que por sua
vez, acarretou na elaboração dos preceitos que regem a atual política
habitacional carioca e consequentemente, o Favela-Bairro. Por esse fato, o
Favela-Bairro não teria mesmo como efetuar grandes remoções de favelas,
ficando portanto sua atuação restrita à urbanização.
Outro fato que contribuiu para a adoção oficial do preceito de
urbanização e não remoção, foi a modificação no sentido do conceito da
habitação propriamente dita. Existe, atualmente, a noção de que a
habitação se constitui também de “necessidades habitacionais, com uma
mudança no modelo de moradia” (BONDUKI, 1999).
Apesar do perigo existente, de se elevar muito o nível de
tolerância a habitações precárias na tentativa de se fugir do modelo pronto,
“passou-se a aceitar o conceito de habitação da cidade real”
71
. A cidade
real é aquela que inclui as favelas, diferente da cidade considerada ideal,
que não as leva em conta.
Anteriormente, as políticas públicas ditavam um modelo de
habitação e aquela que não se encaixasse nesse modelo era considerada
sub-habitação, a qual o Estado tentava, paulatinamente, substituir pela sua
concepção de modelo de habitação, nos conjuntos habitacionais fornecidos
à população. Tal prática teve seu ápice nos anos 60, durante as remoções
massivas de favelas no Rio de Janeiro. Com a flexibilização do conceito de
70
Ver na página 61 deste trabalho, a transcrição do artigo do Plano Diretor que impede a
remoção das favelas.
71
BONDUKI, entrevista concedida à autora, em dezembro de 1999.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
117
habitação da cidade real, a urbanização passou a se tornar uma alternativa
a ser considerada oficialmente como atitude política em relação às favelas.
Na realidade, o Favela-Bairro busca mais do que apenas a
urbanização das favelas. Ele tem no seu bojo a intenção de integrar as
favelas à cidade, não só espacialmente, mas também social e
culturalmente. Para isso, além de urbanizar, também faz parte da sua
filosofia implantar nas favelas signos e símbolos dos bairros formais da
cidade, espaços de uso comunitário como praças, áreas de lazer, creches,
espaços para geração de renda, serviços públicos tais como limpeza
urbana, programas de educação ambiental e geração de renda e também
a titularização dos lotes, conforme pôde ser verificado anteriormente,
quando da apresentação do programa no presente trabalho.
O conceito adotado e divulgado pela Prefeitura do Rio de
Janeiro na implantação do Favela-Bairro é o de que “a habitação não é só
casa, mas integração à estrutura urbana (infra-estrutura sanitária, de
transporte, de educação, de saúde e de lazer)” (Secretaria Municipal de
Habitação, 1995:[1], grifo nosso)
Outro conceito adotado pela Prefeitura é o aproveitamento do
esforço coletivo já despendido na construção das casas das favelas.
Considera a Prefeitura que o investimento feito pelos moradores nas suas
próprias casas não deve ser desprezado. Pelo contrário, deve ser
aproveitado como ponto de partida e complementado com os EUCs. Não é
objetivo do Favela-Bairro o fornecimento de unidades habitacionais, salvo
situações de risco, como casas situadas em áreas sob torres de alta
tensão, margens de rios, encostas instáveis etc. Assim, pelo fornecimento
de infra-estrutura urbana e pela construção de EUCs, a Prefeitura estaria
conduzindo a integração das favelas à cidade.
Cabe recordar que o Favela-Bairro foi iniciado com um concurso
público para equipes multidisciplinares chefiadas por arquitetos e
urbanistas. Tal atitude, por parte da Prefeitura, demonstrou que havia uma
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
118
preocupação com o tipo de urbanização que estava sendo proposta. Havia
o desejo de que não houvesse uma intervenção estanque, orientada
somente pelos princípios do poder público.
A abertura dos projetos a profissionais atuantes no mercado fez
com que um novo fôlego, até então não visto nos programas habitacionais
oficiais, fosse dado a esse programa, o que ocasionou uma série de
novidades nos planos de intervenção, como o projeto de uma piscina
comunitária ou a tentativa da mudança de mentalidade da população em
relação à questão ambiental pela construção dos espaços, pela
Arquitetura. Além disso, a participação da população também fez parte das
premissas do programa72.
A idéia da integração entre favelas e cidade foi concebida num
sentido amplo, que incluía não só a integração física mas também a social
e cultural, como dito anteriormente. Vários aspectos do programa
contribuiriam para esta integração. O discurso amplamente divulgado
principalmente nos primeiros anos do programa trazia os seguintes itens:
“O que melhora com o Favela-Bairro:
•
a integração da favela à cidade;
•
os acessos, o sistema viário, o saneamento, a iluminação
publica;
•
os serviços de recolhimento de lixo e limpeza urbana;
•
a convivência comunitária, pelos espaços públicos e
equipamentos criados; (grifo nosso)
•
atendimento à criança em idade pré-escolar;
•
a redução de enchentes na malha urbana;
as condições ambientais internas e externas; o sentimento
de cidadania e de pertencer à cidade”. (SMH, 1996:1)
O discurso do Favela-Bairro tenta todo o tempo fazer ver à
coletividade (principalmente à população vizinha às favelas) que o
72
Cada fase do projeto deveria ser apresentada para a comunidade, antes da aprovação
pela SMH (Equipe 101, 1994).
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
119
beneficio será para a sociedade como um todo, e não só para a população
diretamente afetada. A imprensa, preocupada em “cobrir” a nova política e
o novo discurso, publicava nos primeiros anos do programa, quase
diariamente, reportagens sobre o Favela-Bairro. Um jornal carioca (O Dia)
chegou mesmo a ter uma coluna fixa sobre o assunto. A coluna se
chamava “Favela-Bairro”, abordava vários aspectos do programa, como
por exemplo entrevista aos arquitetos projetistas das favelas, e era
municiada pela própria SMH.
Ainda nos jornais, era comum ver noticias como esta:
“[O Favela-Bairro] faz parte de uma nova mentalidade
administrativa de reconhecer a favela como realidade urbana e
de buscar sua integração com os bairros formal e legalmente
constituídos. É o fim de uma postura administrativa que ora
negava a presença das favelas e ora partia para a radicalização,
com amplos programas de remoção, sem consultas, sem
entendimento. Era o peso puro e simples do poder público.”
(Jornal do Brasil, 05/09/96, página 22).
Como estratégia de seu governo, o então Prefeito do Rio de
Janeiro, César Maia, reservou para a segunda metade de seu mandato a
maior parte das obras a serem executadas, não só as do Favela-Bairro,
mas de outros programas também. Tal fato impulsionou, por assim dizer, a
sua posição no ranking das eleições municipais no ano de 1996. Não que
ele próprio fosse candidato, mas sim o seu Secretario de Urbanismo, Luiz
Paulo Conde, e que de fato, foi o vitorioso. Com isso, César Maia
demonstrava ter um olho no futuro, visando as eleições para Governador
do Estado, em 1998.
O Favela-Bairro tomou novo impulso em 1995, quando foi
assinado o PROAP-RIO, Programa de Urbanização de Assentamentos
Populares. O PROAP é financiado pelo BID – Banco Interamericano de
Desenvolvimento. No PROAP-RIO I, o BID fez um investimento de R$ 200
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
120
milhões, enquanto que a Prefeitura entrou com uma contrapartida de
R$100 milhões.
Até então, os procedimentos técnicos para a execução do
Favela-Bairro haviam sido muito experimentais. Prefeitura e escritórios iam
descobrindo, aos poucos, o melhor método para projetar uma urbanização
de favela. Porém, após a entrada do BID, houve uma normatização de
procedimentos e apresentação de projetos, já beneficiada pela experiência
adquirida na primeira fase do programa.
Assim, os produtos a serem entregues pelos escritórios
projetistas à SMH estavam todos descritos e amarrados a um espesso
caderno de encargos73, que trazia vários itens a serem atendidos pelos
projetistas, desde os serviços de topografia até à programação visual de
folders e placas das obras.
Outro
fator
introduzido
pelo
PROAP
foi
a
figura
das
“gerenciadoras”, que na realidade só entraram em cena no fim de 1996,
quando muitas favelas já estavam na fase final das obras e/ou entregues
parcialmente à população. As “gerenciadoras” são empresas tercerizadas
pela Prefeitura para o gerenciamento e coordenação dos projetos. No
início, apenas uma empresa fazia esse trabalho; posteriormente, três
assumiram essa função, dividindo-se entre os projetos das várias fases do
Favela-Bairro.
Na realidade, acreditamos que o surgimento de tal figura no
processo de implantação do Favela-Bairro se deu por duas razões: pelo
aumento do número de favelas no programa e devido aos problemas que
aconteceram na 1a fase do programa, ficando a seu cargo o desatamento
deles e a prevenção do surgimento de outros.
73
Já mencionado anteriormente neste trabalho, no item II.5) “A atual Política Habitacional
Carioca (1993 - ... )”.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
121
Tais problemas, como dissemos, começaram a surgir ainda
antes da entrada das “gerenciadoras”, com as obras de execução das
favelas da primeira fase já transcorrendo. Um dos mais relevantes era a
falta de entendimento entre órgãos de outras esferas que não a municipal,
promotora do programa. Cabe lembrar que em toda a existência do FavelaBairro, os governos do município e do estado têm sido de partidos políticos
diferentes, e até os meses que precederam a finalização da presente
dissertação, não havia nenhum entendimento entre os dois. Com isso,
itens que dizem respeito à CEDAE (Companhia Estadual de Águas e
Esgotos), à SERLA (Superintendência Estadual de Rios e Lagoas) e outros
órgãos da esfera estadual, ficaram pendentes dentro do programa em
algumas favelas, aguardando uma solução.
Atualmente, depois da posse do atual Governador, que se deu
em 01/01/1999, é possível notar o inicio de um entendimento entre as duas
esferas. Já podem ser lidas em jornais declarações do Prefeito e do
Governador regozijando-se pelo início do diálogo e a intenção de formar
parcerias74.
Além dos problemas ocorridos entre órgãos de esferas
diferentes, vários outros aconteceram também entre órgãos da esfera
municipal, e como aqueles originados entre esferas diferentes, culminaram
na não concretização de vários pontos dos projetos urbanísticos para as
favelas, notadamente EUCs.
74
Nota-se o maior entendimento entre as duas esferas através de atos como assinatura
de um “protocolo de parceria para a urbanização do morro Dona Marta, que inclui
saneamento básico, reflorestamento, melhoria da rede elétrica e reorganização do acesso
viário” (Jornal O Globo, 08/01/2000, página 18). Segundo o acordo, haverá um
investimento de R$ 20 milhões, divididos igualmente entre estado e município. Talvez pelo
frescor dessas declarações, no Favela-Bairro ainda não foi possível notar efeitos práticos
desse entendimento.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
122
Considerando-se que o Favela-Bairro é um programa de
urbanização, e não de fornecimento de unidades habitacionais (como diz o
próprio Secretario Municipal de Habitação75), se há uma ausência no
fornecimento dos EUCs, o que sobra para a realização do Favela-Bairro é
a infra-estrutura urbana, considerada essencial para o funcionamento de
uma edificação como “casa”, como local de moradia, que precisa de água,
luz e saneamento (vide item I.3 – conceituação de urbanização) para
funcionar como tal, e não um simples conjunto edificado de quatro paredes
e um teto.
Para
ilustrar
os
eventos
acontecidos
no
Favela-Bairro,
tomaremos como exemplo a favela de Mata Machado, da primeira fase do
programa76.
Na favela de Mata Machado, houve uma total deformação na
execução do projeto urbanístico que havia sido previsto originalmente. O
projeto constava dos seguintes itens:
75
“…o Secretário de Habitação destacou ainda que nesta administração o poder público
se voltou para a construção da cidade e não mais parta a velha política de construção de
casas (Jornal do Brasil, 05/09/96, página 22, grifo nosso).
76
Como dito anteriormente, a autora participou da urbanização desta favela, tanto na fase
final do projeto quanto na fase da execução da obra, de onde foram coletadas várias
informações para a pesquisa.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
123
Figura III.6 – Itens previstos no projeto urbanístico de Mata Machado.
ITENS PREVISTOS NO PROJETO BÁSICO
1. Toda a rede de infra-estrutura básica
2. Creche
3. Duplicação do acesso existente e criação de outro;
4. Remodelação de uma praça já existente;
5. Criação de dois passeios à beira-rio;
6. Recuperação de um talvegue que estava edificado com a sua
desocupação e criação de um pomar comunitário;
7. Construção de um pequeno prédio de 3 pavimentos de uso misto
e de 10 casas unifamiliares para abrigar as famílias oriundas de
remoções dentro da própria favela.
ITENS PREVISTOS NO PROJETO DA ÁREA DA ANTIGA FÁBRICA DE DISCOS
1. Quadra poli-esportiva
2. Ginásio comunitário
3. Adaptação de dois prédios existentes para transformação em
escola de 1o grau
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
124
Legenda
Habitações
Vilas e Ruas
Área anteriormente pertencente à
PolyGram: escola 1º grau, centro
de serviços, centro cultural, centro esportivo,
campos de esporte e locais possibilitando as
atividades geradoras de renda
Criação de um novo
acesso à comunidade
Alargamento e duplicação
do acesso principal da
comunidade
Terreno da
PolyGram
Tijuca
Estrada de Furnas
ro
aS
ilva
Rio
Cachoeira
Creche, utilização de
edificação existente
R. J
air
Ca
lda
s
Co
rrêa
R
iro
d
Recuperação e
embelezamento das
margens do rio
aproveitando seu
potencial paisagístico
(LARGO BEIRA-RIO
Rio Gávea
Pequena
Rua d
as
nd
ib e
Palme
iras
ea
.L
Dr
R.
Barra da
Tijuca
Reestruturação e tratamento
paisagístico da praça central
com equipamentos que estimulem
o convívio da comunidade:
jornaleiro, telefone público etc.
Comunidade
de Maracaí
Floresta
Atlântica
R. So
dré
Cotas mais elevadas
Floresta
Atlântica
Associação de
Recuperação e
embelezamento das moradores e
Fundação Leão XIII
margens do rio
aproveitando seu
potencial paisagístico
(LARGO BEIRA-RIO)
TALVEGUE OCUPADO
Famílias a serem relocadas
para área adjacente no
interior de Mata Machado
Criação de um
parque através
de reflorestamento
com árvores
frutíferas
Figura III.7 – Esquema do projeto urbanístico para Mata Machado .
Recuperação da vila
magnólia:
área de lazer,
churrasqueira e lagos
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
125
Os itens constantes do projeto da área da antiga fábrica de
discos (PolyGram) fazem parte de um projeto complementar ao projeto
básico, numa área contígua à favela, onde anos atrás funcionava a fábrica
da PolyGram Discos. Por sugestão da equipe de projetistas, o poder
público municipal comprou a área da fábrica desativada para que sua
utilização, com fins educativos, culturais e esportivos, pudesse ser
efetuado não só pela comunidade de Mata Machado, mas pelos bairros do
seu entorno também (ver figura III.8).
Figura III.8 – Perspectiva ilustrativa do projeto do Complexo Esportivo e de
Lazer, na terreno da antiga fábrica de discos.
As obras em Mata Machado começaram em 1996, ficaram
interrompidas durante dois anos, e foram retomadas em meados de 1999.
Na primeira fase de obras, somente dois terços da favela recebeu a infraestrutura, além da duplicação do acesso existente. Nada mais foi
executado, por uma série de motivos, dentre eles, a inexperiência em
gerenciamento de um programa de urbanização desse porte por parte da
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
126
SMH, que acarretou numa dificuldade de organização generalizada, que se
refletiu, por exemplo, em Mata Machado, na falta dos serviços de
topografia mais detalhada e sondagem, que teriam que ter sido fornecidos
pela prefeitura.
Tal ausência fez, por exemplo, com que uma pedra de mais de
dois metros de diâmetro encontrada no sub-solo, caminho para um ramal
de esgotos, tivesse que ser quebrada, a frio, lentamente, durante dois
meses da obra (ver figura III.9). Além dessa, várias outras rochas também
surgiram como empecilho na primeira fase das obras, o que acabou por
acarretar a necessidade de mais dinheiro do que o previsto originalmente,
consumindo, assim, toda a verba destinada para a favela antes do término
da execução dos serviços.
Além disso, a já mencionada falta de articulação política entre os
órgão públicos envolvidos no projeto também atrapalhou, sobremaneira, o
desenrolar das obras em Mata Machado.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
127
Figura IIII.9 – Fotos da execução da infra-estrutura paralisada, aguardando a demolição
da grande pedra, localizada no subsolo da praça principal. No alto, à
esquerda, a pedra aparece em primeiro plano, à esquerda da tubulação. No
alto, à direita, ela aparece ao fundo, sendo trabalhada pelo operário. Acima,
parte da pedra já desmontada, aguardando transporte.
No intervalo de dois anos em que a obra ficou paralisada, houve
um maior detalhamento do projeto, porém neste detalhamento privilegiouse a infra-estrutura em detrimento dos outros itens. Tal privilégio foi
determinado pela própria SMH e pela gerenciadora terceirizada que, no
momento, coordenava o projeto de Mata Machado.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
128
Assim, para a segunda fase de obras, o que está previsto para
ser executado77 é somente a complementação da infra-estrutura, a
remodelação da praça existente, a creche e a construção do novo acesso.
Nenhum dos outros itens do projeto original citado anteriormente será
executado ou sequer teve seu projeto detalhado, com exceção das casas
para reassentamento, que apesar de possuírem projeto executivo pronto,
não possuem projeto de implantação detalhado, devido à ausência de
serviços de topografia fornecidos pela SMH na área prevista para
reassentamento.
Quanto ao projeto complementar, na área da antiga fábrica de
discos, este foi descartado posteriormente pela SMH, que em seu local
construiu apenas uma quadra de esportes, diferente da projetada
originalmente.
Em Mata Machado, o desenrolar dos projetos e obras geraram
uma série de fatos interessantes e pontos truncados; alguns foram
solucionados; outros, não. O mais peculiar deles é a respeito dos itens
água/esgoto.
Como dito anteriormente, a concessionária responsável pelos
serviços de abastecimento d’água e esgotamento sanitário é a CEDAE,
órgão do Governo Estadual. Mata Machado está situada no Alto da Boa
Vista, um bairro no Rio de Janeiro que fica numa cadeia de montanhas,
onde a infra-estrutura urbana chegou tardiamente em relação ao resto da
cidade, e em certos pontos, ainda encontra-se muito precária. Nesse
sentido, Mata Machado conta apenas com um ramal de abastecimento
d’água, que serve à escola municipal da comunidade e ao posto policial
localizado em seu interior. Os 600 domicílios que lá existem, ou “sangram”
esse ramal até a sua quase exaustão ou recolhem água diretamente das
nascentes do maciço da Tijuca.
77
Cabe ressaltar que a finalização das obras em Mata Machado está prevista para um
período posterior ao da finalização da presente dissertação.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
129
Na ocasião do primeiro projeto de abastecimento d’água, feito
juntamente com o projeto básico, verificou-se junto à CEDAE que não
havia previsão para mais um ramal de abastecimento para o Alto da Boa
Vista. As obras se iniciaram, e parte do projeto foi executada. Quando
houve a necessidade de um maior detalhamento do projeto, gerou-se um
impasse de tal tamanho que não havia como terminar o projeto de
detalhamento.
A SMH não poderia dar uma posição pela CEDAE, que por sua
vez, só passava a informação do “não-abastecimento” de maneira informal,
através de contatos não oficializados com seus técnicos. Ao todo, foram 4
anos de indefinição quanto a essa questão.
O Favela-Bairro daria à população a rede completa de
abastecimento d’água, inclusive com reservatórios superior e inferior, mas
não poderia se responsabilizar pelo fornecimento do combustível da rede:
a água. Tal fato impedia o andamento do detalhamento, que necessitava
da definição do ponto de ligação com a rede, vazão prevista etc. A
“resolução” do problema só foi possível graças à gerenciadora, que
finalmente, no ano de 1998, conseguiu uma resposta oficial da CEDAE,
confirmando realmente que não havia a previsão de mais um ramal para o
Alto da Boa Vista.
Pensou-se, então, na possibilidade da conexão da rede no único
ramal existente, que levaria, aos poucos, água para os reservatórios. No
entanto, não houve também a possibilidade do fornecimento de uma maior
vazão para o ramal já existente. Dessa forma, o projeto foi o máximo
possível detalhado, e ele está sendo implantado, porém sem um ponto de
ligação com a rede, à espera da água que algum dia talvez a CEDAE
venha a fornecer.
Também dentro do âmbito da CEDAE, houve problemas em
relação ao esgotamento sanitário. Mata Machado, como dissemos, está
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
130
situada numa área de montanhas. Mais do que isso, está inserida na maior
floresta urbana do mundo (ver figura III.10).
Figura III.10 - Vista aérea geral de Mata Machado, encravada na Floresta da Tijuca.
Pelo interior da favela passam dois rios, que se juntam e
seguem num só leito, ainda dentro da favela. Antes do Favela-Bairro, o
esgoto dessa e de outras comunidades era jogado diretamente nos rios,
sem qualquer tratamento.
Na realidade, os rios faziam também o papel de condutores de
lixo, o que contribuía para poluí-los ainda mais. Mesmo com a implantação
do Favela-Bairro, a orientação dada pela SMH, na fase inicial, era de que
por um determinado tempo, o esgotamento sanitário da comunidade
continuaria pelo rios, já que a CEDAE (mais uma vez) não tinha previsão
para a passagem de um ramal coletor de esgoto em menos de 2 ou 3 anos
(tal fato se deu em 1994).
Já no diagnóstico da favela, a equipe de projetistas firmou uma
postura veementemente contrária a essa determinação (EQUIPE 101,
1994), mas nada de concreto pôde fazer a respeito. O que restava ser feito
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
131
era estabelecer, no projeto, toda uma vertente voltada para o lado
ambiental da questão.
Assim, apesar de no primeiro projeto de esgotamento sanitário
(ainda na época do projeto básico) a rede estar lançando os dejetos nos
rios, houve a preocupação, por parte dos projetistas, de evitar que pelo
menos o lixo não escoasse mais por suas águas. Para isso, no projeto
constavam dois passeios à beira-rio (EQUIPE 101, 1995), em áreas que
eram vistas como locais menos privilegiados, a ponto de apenas os fundos
das casas estarem voltados para elas, e nunca as fachadas principais.
Ao transformar este espaço num local nobre de circulação
pública, pretendia-se que a própria população não mais arremessasse lixo
nas águas dos rios78. Além disso, na parte de maior altitude da
comunidade, há um talvegue, que se encontrava repleto de barracos, e
com criação de animais como porcos e galinhas, o que compromete a
qualidade da água das fontes situadas no entorno.
Para esse talvegue, foi projetado um pomar (EQUIPE 101,
1995), com a retirada dos barracos e dos animais. O pomar teria a função
de revitalizar a função natural do talvegue, estimulando o desenvolvimento
da vegetação com a canalização natural da água. No entanto, esses itens
do projeto não foram e talvez nem sejam executados, como também a
previsão de um ramal de esgoto para a área dentro desses 2 ou 3 anos
ainda não se concretizou.
Na segunda fase do projeto, já com a presença da gerenciadora,
chegou-se a esboçar o projeto de uma estação de tratamento de esgoto,
com visita de técnicos à favela para escolha do local mais apropriado,
escolha do sistema a ser adotado na estação etc. Porém, por motivos
como a limitação da verba disponível para Mata Machado e o não
compromisso da CEDAE em fazer a manutenção periódica da estação, já
78
Durante as obras, até uma velha geladeira foi encontrada num dos rios.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
132
que essa seria a sua jurisdição, mesmo a Prefeitura tendo feito a sua
construção, a solução da estação de tratamento de esgoto não foi adiante,
e ela nem consta do projeto executivo final da projetista.
Os exemplos de água e esgoto são os mais peculiares, uma vez
que denotam como a falta de entendimento entre órgãos do poder público
pode ser prejudicial à concretização do projeto como um todo, e
consequentemente, à população. E frisamos que isso aconteceu com a
infra-estrutura básica, como o próprio nome diz, base para qualquer projeto
de urbanização de favelas.
Além disso, em Mata Machado, a equipe de projetistas tentou
incluir no projeto boxes para comércio na praça principal da favela, mas
por recomendação da Secretaria Municipal de Trabalho eles foram
retirados do projeto. A alegação, por parte daquela Secretaria, é que o
processo de escolha dos moradores que teriam o direito de uso dos tais
boxes poderia gerar complicações79, e segundo ela, “seria difícil de
administrar”.
Outro exemplo é referente à escola municipal existente na
favela. Tal escola possui um pequeno “anexo”, distante cerca de 30 metros
do prédio principal, e ambos estão situados na praça principal da
comunidade. Este pequeno “anexo” consiste em 2 salas de aula adaptadas
sob um antigo e precário estábulo de animais conhecido no local como
“vacaria”.
A intenção dos projetistas era remover a escola propriamente
dita para a entrada da favela, num prédio maior (os antigos escritórios
utilizados pela fábrica PolyGram), que pudesse inclusive aumentar o
número de vagas disponíveis. O prédio principal da escola seria adaptado
para creche, e o pequeno edifício do “anexo” seria demolido para dar lugar
79
Apesar disso, em favelas como Fernão Cardim e Chácara de Del Castilho eles puderam
ser criados.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
133
à integração urbanística entre a praça e um dos rios que passam pela
comunidade (vide figura III.11).
Figura III.11 – Esquema do projeto urbanístico para a praça principal de Mata
Machado. Em destaque, com linhas tracejadas cor laranja, as
edificações que seriam demolidas para a implantação total do
projeto e a integração da praça com o rio.
O objetivo desta integração era retirar o status de “fundos” que o
rio ocupava, sendo alvo de despejo de lixo, e trazê-lo para a condição de
“frente”, sendo parte integrante da paisagem da praça principal. No
entanto, no mesmo momento em que a equipe elaborava o projeto com a
aquiescência da SMH e dos moradores, a Secretaria Municipal de
Educação realizava obras de reforma no anexo da escola, investindo um
capital num local que seria demolido dali a pouco tempo.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
134
Além disso, depois de os projetos estarem prontos (inclusive o
de adaptação do prédio existente na entrada da favela para uma grande
escola, que contou até com a contagem unitária de vasos sanitários e
esquadrias que seriam reaproveitadas), a SMH resolveu não executar o
projeto da escola. Podemos supor que engrenagens complicadas como
transferências patrimoniais e orçamentárias entre diferentes secretarias
possam ter contribuído para essa mudança. No momento, o prédio e toda
a área que daria lugar ao Complexo Esportivo e de Lazer se encontram
abandonados, sendo alvo de depredações de toda a espécie.
Exemplos à parte, o que se pode apreender sobre o programa
Favela-Bairro na favela Mata Machado, é que a execução dos trabalhos
transformou o resultado das obras em uma simples dotação de infraestrutura básica precária, muito mais próxima dos antigos projetos de
urbanização executados eventualmente em governos anteriores do que
próxima das propostas de integração cultural e dotação de espaços de uso
comunitário anunciados juntamente com as propostas iniciais do programa.
Como mencionado anteriormente, o Programa Favela-Bairro
trouxe a novidade de terceirizar os projetos arquitetônicos e urbanísticos,
sem usar a mão-de-obra pública para elaborá-los. No entanto, com o
decorrer
do
tempo,
pudemos
encontrar
vários
profissionais
que
trabalharam em projetos do Favela-Bairro frustrados, porque por algum
motivo, seus projetos não eram executados plenamente.
Justamente, todos os problemas estudados aqui neste trabalho,
que impediram a concretização de vários EUCs, deixaram para trás
também um legado de profissionais que esperavam, realmente, contribuir
com seus projetos, para o bom andamento da política habitacional na
cidade. Na favela Mata Machado, o que se tem hoje são os trabalhos
sendo executados por funcionários da SMH, sem a supervisão da equipe
projetista.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
135
Considerando-se que nem numa obra num sítio convencional o
as built é igual ao projeto, menos ainda numa favela, onde o espaço físico
é infinitamente mais labiríntico. Daí, pode-se imaginar a deturpação que os
projetos sofrem, ao serem adaptados sem o conhecimento e o
consentimento de seus autores.
Em outras favelas da mesma fase do programa aconteceram
fatos semelhantes, não sendo construídos vários EUCs que haviam sido
previstos originalmente no projeto. Mais da metade das 15 favelas da
primeira fase não tiveram seus projetos executados em sua totalidade. Tal
fato nos remete à outras épocas, quando nos projetos financiados pelo
BNH os projetos também não eram construídos integralmente.
Assim como naquela época, o fator político é decisivo para
essas questões. Muitos dos entraves acontecidos no Favela-Bairro devemse à pouca articulação política entre diversos órgãos públicos, já
mencionados anteriormente, mas que também podem ser exemplificados
com outras comunidades além de Mata Machado.
De maneira oposta, na favela Ladeira dos Funcionários/ Parque
de São Sebastião, por exemplo, a articulação política entre a Prefeitura e o
Exército (Arsenal de Guerra), o Ministério da Saúde (SUCAM) e a RFFSA
foi positiva, porque a partir dela é que foi possível a cessão de terrenos
destes órgãos para a construção do conjunto de moradias e algumas
praças (FÁBRICA ARQUITETURA, [sd]).
No entanto, na favela Chácara de Del Castilho, essa mesma
articulação não aconteceu. A falta de um acordo com a Secretaria
Municipal de Saúde e também com a Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social acarretou na anulação do posto médico previsto.
Além disso, as negociações entre a Prefeitura e a Flumitrens também
dificultaram o avanço da obra de uma via marginal à comunidade, paralela
à linha férrea (ARQUITRAÇO, [sd]).
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
136
Já na favela Fernão Cardim, em Pilares, encontramos um
exemplo de favela de 1a fase do Favela-Bairro que teve quase a totalidade
de seus EUCs executados, faltando aqueles que estavam previstos para
um terreno cuja situação fundiária parece estar relacionada ao Governo
Estadual80. Entre os EUCs que deixaram de ser construídos neste terreno,
estão um Centro de Serviços Comunitários e um Mercado de Mão-de-obra.
A falta das articulações entre órgãos públicos de esferas
diferentes ou da mesma esfera pode ser explicada por vários motivos, que
não pretendemos esgotar neste trabalho. No entanto, alguns podem ser
citados:
•
no caso de esferas diferentes, muitos dos entraves acontecem
devido às diferenças políticas, pois seus dirigentes principais
estariam ligados a diversos partidos políticos, o que gera uma
dificuldade natural em se admitir um ideal comum para um
determinado ponto. Além disso, por vezes, o órgão já possuía
outro destino para o espaço solicitado pela Prefeitura do Rio de
Janeiro;
•
no caso de órgãos da mesma esfera (entre as Secretarias
Municipais, por exemplo), o que pôde ser constatado é que é
evitado o deslocamento de previsões orçamentárias, e cada
secretaria também tem suas próprias funções especificadas
para as dependências que lhe serão afins. O interessante é que,
pelo menos em tese, todas deveriam estar subordinadas a uma
mesma figura, o Prefeito.
Além da falta de articulação entre órgãos públicos, os momentos
políticos também contribuíram para a não realização de vários EUCs em
favelas contempladas pelo programa Favela-Bairro. Com as eleições
80
Dado obtido pela entrevista realizada com o Vice-presidente da associação de
moradores de Fernão Cardim, Sr. Davi, em 04/12/1999.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
137
municipais em 1996, muitas favelas tiveram suas obras “aceleradas”,
meses antes da disputa eleitoral.
Como já foi dito anteriormente, o Favela-Bairro era um grande
trunfo do governo municipal para eleger prefeito o seu candidato, que na
época era o Secretário Municipal de Urbanismo. Como o referido candidato
e atual Prefeito é arquiteto, a sua imagem pública está sempre relacionada
a “homem de grandes obras (civis)”, e o Favela-Bairro faz parte dessas
obras. De tempos em tempos, pode-se ver nos jornais manchetes como
esta:
“Não é de surpreender que o prefeito Luiz Paulo Conde insista
tanto em destacar a importância do projeto Favela-Bairro na sua
administração (…). O Secretário Municipal de Habitação, Sérgio
Magalhães, conta que (…) [n]uma pesquisa para descobrir qual
das obras da Prefeitura era a mais importante (…) deu FavelaBairro na cabeça”. (Jornal do Brasil, 05/01/97, página27).
III.3) ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS ANÁLISES EFETUADAS NO CAPÍTULO
Tanto no Promorar quanto no Favela-Bairro houve (e está
havendo) a urbanização de favelas. Tanto num programa como no outro,
houve problemas ligados ao fato dos poderes envolvidos serem de partidos
políticos diferentes (basta lembrar da cisão política entre Governo do
Estado e Governo Federal no Promorar, e do sempre ausente
entendimento entre o Governo do Estado e o Governo Municipal, no
Favela-Bairro).
No entanto, no discurso que anuncia os novos programas
habitacionais,
essas
diferenças
políticas
não
são
levadas
em
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
138
consideração, e passa-se para a população a noção de que o quê será
feito está em consonância com as suas aspirações81.
Esse procedimento se manifestou de maneira semelhante nos
dois momentos. O Governo Federal contava com o Governo Estadual no
Projeto Rio, e depois que o descartou, não continuou o seu trabalho; no
Favela-Bairro, a Prefeitura anunciou que levaria água e saneamento básico
a várias favelas, sem antes consultar o órgão estadual responsável por
esse setor. Na hora do discurso, são vislumbradas várias alianças
políticas, que nem sempre se concretizam, ou que deixam de existir antes
do beneficio direto e real para a população.
Na realidade, os dois programas analisados nos levam a crer
que discursos políticos se pautam pela idéia de que os EUCs podem ser
usados como um grande símbolo de status e de melhoria de qualidade de
vida em campanhas políticas, mas ficam relegados ao segundo plano na
hora de sua execução, expostos aos mais variados tipos de situações
complexas, desde a falta de verba até à eleição já definida.
Tal fato pode vir da idéia de que, ao anunciar um programa
habitacional, interessa ao poder público mostrar que o básico é mais do
que óbvio que seja oferecido – é praticamente obrigatório (entenda-se
pelo básico as unidades habitacionais no Promorar e programas de
remoção; e a infra-estrutura, no caso do Favela-Bairro e programas de
urbanização) -
porém, é divulgado que a grande diferenciação do
programa que está sendo anunciado virá nos EUCs, pontes para melhoria
da qualidade de vida dos habitantes de uma cidade, e que serão
oferecidos àquela determinada população junto com o componente básico
do programa habitacional.
81
Curiosamente, no momento em que as pesquisas eleitorais mostram que um certo
patamar de votos foi alcançado, alguns elementos do discurso são deixados para segundo
plano.
CAPÍTULO III – PROMORAR X FAVELA-BAIRRO:
ANÁLISE DE DOIS MOMENTOS DISTINTOS
139
Como exemplo de EUCs que foram utilizados peculiarmente
pelo poder público como símbolos de status e melhoria de qualidade de
vida, temos: ciclovia, cinema, pavilhão de espetáculos, piscina, pista de
skate, mini-anfiteatro, caramanchões, teatro, churrasqueiras, pomar, largos
à beira-rio, concha acústica, grande parques verdes, ginásio comunitário.
Esses são exemplos de alguns EUCs previstos para o Projeto Rio e
também para algumas favelas da primeira fase do Favela-Bairro. No
entanto, a grande maioria desses itens programáticos aqui citados não
foram construídos.
Por tudo exposto, pode-se resumir que no caso do Promorar, a
falta de prioridade dada aos espaços de uso comunitário é, na realidade,
direcionada para a construção das unidades habitacionais e, no caso do
Favela-Bairro, a infra-estrutura é a prioridade do Programa. Mesmo assim,
no Promorar, nem todas as unidades foram construídas, e no FavelaBairro, a própria favela Mata Machado, analisada mais de perto por nós
neste trabalho, tem nos itens água e esgoto exemplos-máximos de como
por vezes, nem com a infra-estrutura básica, o Favela-Bairro pôde ser fiel
ao discurso do próprio programa.
Via de regra, os exemplos analisados nos fazem supor que o
fornecimento dos espaços privados em políticas habitacionais está sempre
à frente do fornecimento de espaços de uso comunitário, sendo estes os
preteridos em ocasiões de desentendimentos políticos e de outros
problemas operacionais.
Os espaços de uso comunitário deveriam constar nos itens de
qualquer programa habitacional com o mesmo nível de importância dado à
unidade habitacional ou à infra-estrutura, e a implantação total de um EUC
significa que o Poder Público está de fato empenhado na melhoria da
qualidade de vida da população daquela comunidade, na medida em que
cada setor responsável estará atuando de forma sincronizada, sem
dispersão ou retrabalho.
CONCLUSÃO
U
m dos objetivos deste trabalho foi fazer uma releitura
da história da política habitacional carioca com o foco
sobre
o
fornecimento
dos
espaços
de
uso
comunitário (EUCs), ressaltando as oscilações entre o discurso e a
prática, por parte do poder público.
Sempre nos intrigou a diferença entre o tratamento dispensado
aos EUCs quando do anúncio de um programa habitacional e quando da
sua concretização efetiva. No discurso, os EUCs eram enfatizados, como
forma de sensibilizar a sociedade e a clientela envolvida diretamente,
enquanto que na prática, muitas vezes eles nem chegavam a acontecer.
Através desta releitura, pudemos entender melhor como
funcionam os diferentes mecanismos que regem as diversas composições
do discurso e da prática, o que acabou por se transformar em mais um
objetivo do presente trabalho: confrontar justamente esses dois elementos,
o discurso e a prática do fornecimento dos espaços de uso comunitário.
Para tanto, procedemos a uma busca do conceito de
“habitação”, compreendido aqui em seu sentido mais amplo, ao longo de
diferentes
momentos
da
política
habitacional
brasileira
e,
mais
especificamente, da carioca.
Vimos que já é bem antiga a compreensão de que a intervenção
em espaços públicos de interesse social não deveria se restringir ao objeto
“casa” e sim, abrigar um conceito bem mais ampliado, abraçando todos os
espaços que se articulam com o ato de morar, inclusive os EUCs.
A revisão da história da política habitacional nos mostrou que
esse entendimento se concretizou, de forma marcante, através de algumas
atuações do SERFHA. Vimos, no entanto, que foi logo após este momento
CONCLUSÃO
141
que, com o desmonte desse órgão, se fez notar uma clara ruptura entre
discurso e prática no que diz respeito aos EUCs.
Naquela ocasião, os interesses de grupos ligados ao poder se
sobrepujaram
aos
interesses
dos
favelados,
que
vinham
sendo
incentivados pelo SERFHA a se organizarem, e por intermédio deste,
estavam conseguindo trazer para as favelas vários espaços de uso
comunitário. Com o fim do SERFHA e a subsequente criação da COHAB,
a prática de trazer EUCs para as favelas cessou, e teve início a época das
remoções em massa das favelas cariocas, ao mesmo tempo em que os
discursos de políticos (principalmente em época de campanhas eleitorais)
se “recheavam” de alusões a possíveis concretizações de espaços de uso
comunitário, como moeda de troca, em programas destinados a
populações de baixa renda.
A partir de então, diversos momentos da política habitacional
apontavam para uma crescente diferenciação no conteúdo do ideário
apresentado nos “programas de intenções” de projetos habitacionais e no
resultado prático destes projetos, quando os EUCs se transformavam, via
de regra, nos primeiros pontos a serem descartados assim que os
primeiros problemas surgissem.
Nesse trabalho, procuramos averiguar as razões e as
características dessa dicotomia que passou a existir entre os EUCs
anunciados com tanta ênfase nos “programas de intenções” e os EUCs
colocados na categoria de elementos supérfluos, isto é, passível de ser
dispensada, ao longo da execução desses mesmos programas.
Para ilustrarmos tal confrontação, foram eleitos, dentre os já
vistos,
dois
diferentes
programas
habitacionais
que
marcaram
significativamente a história da política habitacional carioca: o Projeto Rio
CONCLUSÃO
142
(Promorar), do final da década de 70, e o Favela-Bairro, da década de
9082.
A revisão que fizemos da história da política habitacional nestes
dois momentos, nos levou a supor que, ao elaborar o discurso de um novo
programa, o poder público trabalha com a influência que os EUCs têm
sobre o imaginário popular.
Acreditamos
que,
no
Promorar
e
no
Favela-Bairro,
especificamente, o que foi anunciado para a população não se resumia à
entrega de novas unidades habitacionais ou de títulos de propriedade das
unidades já existentes. Foi anunciado muito mais do que isso, mais do que
esses espaços privados. Foi anunciado que espaços públicos, os EUCs, e
consequentemente as novas características de padrão de vida subjacentes
à idéia desses espaços, seriam também amplamente fornecidos à
população.
Não será demais relembrar uma citação já vista neste trabalho,
a respeito do Projeto Rio, e uma outra a seguir sobre o Favela-Bairro:
“As unidades residenciais terão centros comunitários com postos
de saúde, creches, clubes, escolas e áreas de recreação, lazer e
esportes, com o aproveitamento inclusive da ilha do Pinheiro,
além de novas opções de praias, com águas mais limpas,
saneadas e livres da poluição.” (Jornal do Brasil, em 16/06/79).
“…uma política habitacional que, ao invés de produzir casas,
tem como objetivo a construção de cidade (serviços e
equipamentos públicos) (…) abrindo e pavimentando ruas;
construindo redes de água, esgoto e drenagem, creches, praças,
áreas de lazer e quadras poliesportivas; canalizando rios;
contendo e reflorestando encostas…” (Home-page83 da SMH,
visitada em 15/07/99).
82
Os motivos para a escolha de tais programas estão expostos no capítulo anterior.
83
http://www.rio.rj.gov.br/habitacao/.
CONCLUSÃO
143
O que foi constatado durante esta pesquisa é que os EUCs
representam fundamentalmente, um elemento simbólico que constitui parte
do ideário das políticas habitacionais. Nos discursos, eles aparecem como
símbolos de melhoria da qualidade de vida, extremamente úteis em épocas
de campanha eleitoral.
Como exemplo, podemos citar a ênfase dada à construção de
ciclovias, elemento que constava tanto das propostas do Promorar quanto
de alguns projetos do Favela-Bairro. Poder usufruir de uma ciclovia para
momentos de lazer e exercício, poder freqüentar parques verdes e lagos
dentro de seu próprio bairro (aquele que teria sido a favela, em “algum dia
no passado”), são imagens apreendidas pela população de uma forma
bem mais intensa do que a de simples espaços de uso comunitário.
Representam uma idéia, vendida pelo discurso do poder público à
população, que a absorve prontamente. É a idéia de “liberdade”, dada pelo
marketing, de “poder se dar ao luxo de ter um tempo para o lazer”, por
exemplo, que se tem ao pensar num ciclista com a brisa marítima batendo
no seu rosto, ao passear pela ciclovia.
Essa imagem, quando bem “vendida”, tem a capacidade de se
sobrepor aos poucos metros de concreto asfáltico colocado na beira da
Baía de Guanabara84 para esse fim, uma vez que mesmo quando o
referido espaço de uso comunitário é realmente fornecido, isso não garante
à população que ela usufruirá de toda aquela sensação que se teve a
intenção de transmitir ao anunciar o programa.
Contudo, procuramos mostrar que, apesar de tais discursos, as
populações tanto do Promorar quanto de algumas favelas concernidas pelo
Favela-Bairro, não contam hoje efetivamente com todos os espaços de uso
comunitário anunciados.
84
Como o colocado na Favela Parque Royal, na Ilha do Governador, da primeira fase do
Favela-Bairro.
CONCLUSÃO
144
Com o tempo decorrido entre o discurso e a sua concretização,
as situações políticas se modificam, as diferenças e os interesses dos
diversos partidos políticos emergem, problemas e conflitos acontecem, e
acarretam na realização prática de algo diferente daquele que havia sido
divulgado anteriormente. Como a prioridade da execução quase sempre
está com as unidades habitacionais e/ou com a infra-estrutura básica, o
item a ser descartado da execução de um programa habitacional é
geralmente o EUC.
A análise desses dois momentos da política habitacional
enfatiza a lacuna entre “vender” uma campanha política e concretizá-la
depois de tê-la ganha ou perdida. Isso nos faz supor que o que
primeiramente garante um voto é o discurso que consegue atuar no
imaginário da população, com a idéia de uma cidade bonita, limpa, de
habitantes
saudáveis.
Nesse
sentido,
a
imagem
de
programas
habitacionais que comportam EUCs são fundamentais. Acreditamos que
possamos entender que, assim, as ações vão, de uma certa maneira,
sendo medidas voto a voto, de forma a resguardar verba e/ou contatos
políticos para regiões onde as pesquisas eleitorais estejam acenando com
baixos índices. Essa poderia ser uma das razões pelas quais podem ser
vistos vários conjuntos habitacionais, até mesmo anteriores à época do
PROMORAR, que reúnem milhares de unidades habitacionais e uma taxa
deficiente de EUCs para a população.
Quando, no Promorar, chegou-se a anunciar a construção de
uma concha acústica, esse fato chamou a atenção da opinião pública e
despertou muito interesse. No que se refere à população diretamente
beneficiada, ela mesma não foi muito crente dessa execução85. Mas para o
restante da população, a imagem que fica é que o poder público não vai só
dar casas. Ele também vai fornecer outros espaços, preocupado que está
com a questão social e com a cidade como um todo.
85
Vide manchetes citadas à pagina 107.
CONCLUSÃO
145
Na concretização do programa, a concha acústica não foi
construída. Ela até poderia ser considerada um item dispensável do
projeto,
muito
embora
devam
necessariamente
ser
levados
em
consideração os benefícios culturais que ela traria. Mas para uma
população que vivia em barracos precários de madeira sobre dejetos de
esgoto misturados à água já poluída da baía, morar em casas de alvenaria
já representou uma melhora em muitos níveis, a tal ponto que, em
pesquisas posteriores (DUARTE & SILVA, 1990), foi comprovado que a
população pouco se lembrava da “tal” concha acústica que constava no
projeto.
Isso seria, segundo os citados autores, a “volta da política da
bica d’agua” (DUARTE & SILVA, 1990:13) na qual os interesses
eleitoreiros se apoiavam na satisfação de algumas necessidades de um
grupo social tão acostumado às privações, à miséria, tão afastado de sua
plena cidadania e da consciência de seus direitos que via como um “favor
pessoal” qualquer melhoria a que tinha acesso.
Assim como o grupamento social da Maré, o restante da
população da cidade formal e da opinião pública “esquece” as promessas
como as da concha acústica e, ao passar agora na área do Projeto Rio,
não vê mais o degradado cenário das palafitas, e sim as milhares de casas
coloridas entregues pelo programa habitacional. O que fica na memória
coletiva é isso, é o pensamento de que “já melhorou muito”, porque a
aparência incomoda bastante, mas esquece-se de que os símbolos
expostos no discurso ajudaram na concretização do conjunto, uma vez que
contribuíram para a sua legitimação, na medida em que eram eles que
demonstravam a preocupação do governo com a questão do bem estar
social. A visão distanciada produz conceitos distorcidos da realidade.
Já no caso do Favela-Bairro, essa dicotomia pode não estar tão
aparente, mas, principalmente pelos motivos já expostos de conflitos entre
setores públicos, ela também acontece. Os EUCs são anunciados, mas
nem
sempre
são
construídos.
Diferentemente
daquela
população
CONCLUSÃO
146
beneficiada pelo Projeto Rio, os EUCs para a população das favelas
beneficiadas pelo Favela-Bairro são muito mais expressivos, porque a
casa, eles já possuíam. O poder público apresenta agora o discurso de
estar “complementando” as moradias que essa população já ocupa,
passando a fornecer os serviços de uma cidade na favela, ou melhor, no
“novo bairro”.
No Favela-Bairro, podemos encontrar exemplos onde os EUCs
simplesmente foram descartados, mesmo o poder público já tendo pago
pelo seu projeto. A favela Mata Machado, estudada neste trabalho, é um
exemplo muito representativo desta situação. O fato do poder público ter
contratado, aprovado e pago pelos projetos dos espaços de uso
comunitário demonstra que, até certo ponto, ele tinha a intenção de
executá-los. Porém, quando os elementos da situação se transformam,
sejam eles de ordem política, econômica ou outra, os espaços de uso
comunitário são os primeiros a serem descartados do projeto.
Nossa pesquisa nos fez supor que o que fica no imaginário da
população carioca a respeito da urbanização/integração das favelas é a
infra-estrutura, representada principalmente pela imagem do asfaltamento
das ruas da favela. Ou seja, o processo de “urbanização” estaria se
resumindo, perante a opinião pública, apenas ao fornecimento desses
elementos.
Tenham tido ou não seus EUCs concretizados, a imagem das
favelas beneficiadas pelo Favela-Bairro, para a opinião vinda dos setores
“do asfalto” ainda é de “favela”, termo compreendido aqui em seu sentido
pejorativo que inclui a noção de pobreza, insalubridade, marginalização
etc. Observamos que, mesmo que uma específica favela já tenha passado
pela intervenção do Favela-Bairro, ela ainda é conhecida como “favela” (no
sentido acima exposto), salvo pequenas possíveis exceções.
Vimos que esse fato ocorre porque a opinião pública de uma
maneira geral, é muito sensível ao aspecto estético das favelas, mais do
CONCLUSÃO
147
que ao bem-estar de quem está morando nelas (DUARTE, 2000) (se a
população possui rede de abastecimento d’água ou praças etc.). Assim,
apesar de não ser possível estabelecer uma tipologia única para
caracterizar as favelas, de uma certa forma, o aspecto de “obra
inacabada”, a falta de afastamento entre as casas e a falta de alinhamento
nas ruas, quase sempre estreitas, são fatores que já se tornam suficientes
para fazer com que uma favela seja considerada “indesejada” pela opinião
pública.
Ciente destes fatores, ao apresentar um discurso de integração
das favelas à cidade, o poder público municipal do Rio de Janeiro
despertou no imaginário da opinião pública que alguém poderia,
finalmente, “dar um jeito” nas favelas do Rio, mesmo que fosse pelo
caminho da integração. Porém, mostramos neste trabalho que, passados
alguns anos desde o início do programa, vem se estabelecendo, por parte
de alguns segmentos da sociedade, uma rejeição aos resultados do
programa, inclusive com o discurso de que “a cidade é que estaria se
integrando às favelas”, formando assim o que está sendo popularmente
chamado de “Bairro-Favela”86.
Tais opiniões só surgiram ao longo da consolidação do
programa. Ressaltamos que, quando, em 1996, o candidato apoiado pelo
então prefeito conseguiu se eleger para sucedê-lo, ele na realidade ainda
estava usufruindo da boa imagem que o programa tinha até então.
Acreditamos que, naquele momento, o imaginário da população estava
ainda estimulado pelos símbolos de melhoria de qualidade de vida, fosse a
população formal, esperando que as favelas estivessem realmente por
transformar-se em “bairros”, ou fosse a própria população favelada,
86
Ver neste trabalho, no capítulo II (Análise da postura governamental em relação
aos espaços de uso comunitário através da política habitacional brasileira - A
atual Política Habitacional Carioca), páginas 73 e 74, a transcrição de cartas de leitores de
um jornal carioca, a respeito da insatisfação com o programa Favela-Bairro.
CONCLUSÃO
148
esperando pelos elementos transformadores de suas vidas no espaço em
que residiam.
As questões levantadas nos levaram a considerar a existência
não de um tipo somente de EUCs, mas sim de duas coisas completamente
distintas: de um lado, os espaços de uso comunitário do discurso e do
marketing, e de outro, o espaços de uso comunitário descartáveis da fase
da concretização. O que é dito e anunciado, é uma idéia. O que é
concretizado (quando de fato o é), é um elemento que por si só não
garante a realização da idéia lançada pelo poder público.
Não seria possível, no âmbito desse trabalho, analisar todas as
diversas causas da não realização dos EUCs dos programas implantados.
No entanto, vimos que basta um obstáculo (financeiro, por exemplo)
aparecer, para serem eles os primeiros fatores a ser descartados.
Vimos, nos dois casos estudados, que um tipo de problema
capaz de causar grandes obstáculos na implantação de programas
habitacionais se refere à falta de articulação política entre as esferas do
poder público. Mostramos que, para o perfeito desenvolvimento de um
programa habitacional, na maioria das vezes, é necessário que mais de
uma esfera governamental esteja envolvida, mesmo que a esfera
promotora seja uma só. Tal fato acontece pelas especificidades de cada
um dos vários benefícios anunciados. Por exemplo: muitas vezes, para
poder dar uma praça à população, o município precisa negociar a
desapropriação de uma área sob a jurisdição federal; ou então a esfera
estadual é a que detém as concessionárias de um determinado tipo de
serviço, e a esfera federal necessita delas para poder concretizar algum
empreendimento. Invariavelmente, o discurso de um programa habitacional
anuncia benefícios que só poderão se concretizar se, dentre outras coisas,
as três esferas do poder tiverem algum entrosamento.
Por esse motivo, a interferência entre os poderes, no nosso
entender, se constitui num dos entraves para a concretização do discurso
CONCLUSÃO
149
proferido no anúncio das políticas habitacionais. Na realização do Projeto
Rio, os três poderes caminharam juntos até uma determinada época, e
posteriormente, com a cisão política entre a esfera federal e as esferas
estadual e municipal, o programa ficou sob a responsabilidade de um
poder só, que não conseguiu levar a cabo todas as realizações
pretendidas. Trata-se justamente do fornecimento de todos os espaços de
uso comunitário previstos para Projeto Rio, pelo qual eram responsáveis o
estado e o município.
Após a cisão, a esfera federal não assumiu as tarefas das outras
esferas, fornecendo a partir de então somente as unidades habitacionais
para a população. Não podemos afirmar que a cisão tenha sido a única
responsável pela não realização da maior parte dos espaços de uso
comunitário no Projeto Rio, mas certamente, ela contribuiu em muito para
isso.
Na atual política habitacional carioca, temos uma situação
semelhante, entre o poder municipal e o estadual. Como mencionado
anteriormente, em nenhum momento da existência do programa FavelaBairro os poderes estadual e municipal estiveram em consonância, e isso
gerou vários conflitos. A bem da verdade, o momento de conjunção pode
até estar surgindo atualmente, como visto no capítulo anterior. É realmente
de se esperar que isto aconteça, em prol de uma melhoria de vida em
vários setores, para a população.
Como perspectiva de futuro no Rio de Janeiro, temos visto,
quase
imperceptivelmente,
algumas
poucas
modificações
surgindo
vagarosamente em relação às favelas da cidade. Bem aos poucos, podem
ser vistas favelas que, depois das obras do Favela-Bairro, deixaram de ser
“evitadas”, e passaram a fazer parte do itinerário de alguns cariocas, como
forma de encurtar alguns caminhos ou fugir de congestionamentos. Como
exemplo pode ser citada a favela Fernão Cardim, em Pilares. Suas ruas
atualmente, são utilizadas como uma opção viável para fugir dos
congestionamentos na saída de um shopping próximo, permitindo assim o
CONCLUSÃO
150
acesso mais rápido à principal rua do bairro, a Dom Helder Câmara (antiga
Avenida Suburbana).
Se hoje em dia, Fernão Cardim passou a fazer parte do itinerário
de algumas pessoas, é porque seus acessos foram ampliados, fazendo
com que ela deixasse de ser um “feudo” isolado, com características muito
peculiares. Devido a seus acessos e ao restante dos espaços de uso
comunitário ali implantados, ela agora é de fato, um “bairro” da cidade,
como qualquer outro.
Como se pode ver, os EUCs são elementos integradores de
várias camadas sociais, porque é no âmbito da sua dimensão física que
acontece o convívio e a integração social e cultural entre as pessoas. Eles
dão condições para a melhoria da qualidade de vida, porque uma cidade
sem espaços de uso comunitário para sua população, se torna uma cidade
inóspita, fechada em espaços privados, tendo que ser compartilhada
também nos espaços privados.
Uma cidade que seja agradável de se habitar e que tenha boa
qualidade de vida é uma cidade que permite o encontro, o livre acesso, o
lazer, a prática de esportes ao ar livre, e que cuida da saúde e da
educação de seus habitantes também. Uma cidade não pode ser composta
somente por casas ou por alguns desses elementos isoladamente.
É nesse sentido que defendemos a presença dos espaços de
uso comunitário, principalmente em habitações de interesse social. Eles
funcionarão, sobretudo, como ponto atenuador das diferenças socioculturais. Se eles deixarem de ser apenas “cores” de um discurso
eleitoreiro e se houver vontade política para levar a cabo sua concretização
em programas de interesse social, aí sim, estaremos no caminho certo
para a possibilidade de uma cidade mais igualitária para todos os seus
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ASSINADAS
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3. Jornal do Brasil, 11/06/81, página 5.
4. Jornal do Brasil, 05/09/96, página 22.
5. Jornal do Brasil, 27/03/97, página 31. (“Uma cidade e dois
mundos”).
6. Jornal O Globo, 10/06/79, página 25.
7. Jornal O Globo, 16/06/79, página 15.
8. Jornal O Globo, 15/07/79, página 7.
9. Jornal O Globo, 15/07/79, página 17.
10. Jornal O Globo, 07/06/81, página 10.
11. Jornal O Globo, 15/03/98, página 17. (“Em São Conrado,
Rocinha II vai ganhando forma”).
12. Jornal O Globo, 10/10/99, Seção Carta dos Leitores.
13. Jornal O Globo, 11/10/99, Seção Carta dos Leitores.
14. Jornal O Globo, 08/01/00, página 18.
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SITES CONSULTADOS
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Janeiro,
em
consulta
pela
internet,
site
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consultado
em
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março
de
1999:
http://www.geocities.com/Athens/Crete/6913/favela1.htm
3. PROGRAMA de Pós Graduação em Urbanismo da FAU/UFRJ,
responsável pelo site da internet consultado em 19 de
novembro
de
1999:
http://www.fau.ufrj.br/prourb/cidades/favela/projfernao.html
4. SECRETARIA Municipal de Habitação, responsável pelo site da
Internet
visitado
em
15
de
julho
de
1999:
http://www.rio.rj.gov.br/habitacao
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