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MIGUEL BOMBARDA:
O médico, o político e a sua época
MIGUEL BOMBARDA:
The doctor, the politician and his time
Adrian Gramary
Médico Psiquiatra
Centro Hospitalar Conde de Ferreira
Rua Costa Cabral 1212 (Porto)
e-mail
[email protected]
Na manhã do dia 03 de Outubro de 1910, o Professor
Miguel Bombarda recebeu no seu gabinete, das mãos de
um ajudante, o cartão-de-visita de um antigo doente seu: o
Tenente de infantaria Aparício Rebelo dos Santos.
O Tenente, que se encontrava na sala de espera, provavelmente tinha lido na imprensa os violentos ataques que
Bombarda dirigira nos últimos tempos contra a Companhia
de Jesus. Aparício Rebelo dos Santos, homem monárquico,
conservador e antigo aluno jesuíta, sofria de uma psicose
delirante crónica e tinha chegado recentemente de França,
para onde o seu pai o tinha levado, após solicitar de
Bombarda a alta contra parecer médico do Hospital de
Rilhafoles, com o objectivo de sondar a opinião de psiquia-
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Volume IX Nº6 Novembro/Dezembro 2007
tras franceses de renome, a procura de uma solução para
2002, dedicado à figura de Miguel Bombarda, coincidindo
a doença do filho. Bombarda, a cujos ouvidos tinham
com os 150 anos do seu nascimento.
chegado notícias sobre a cura miraculosa do seu ex-
E qual é o perfil que nos transmite a leitura destas duas
paciente, ficou curioso e fê-lo passar.
obras? Uma primeira imagem que surge é a do republicano
O que Bombarda não pensou é que o tenente persistia no
socialista e maçon, o polemista anticlerical de raiz voltaire-
seu delírio, centrado numa perseguição protagonizada por
ana (nesse sentido, tornou-se famosa a polémica que man-
um ente abstracto que ele chamava “o Hospital”, e que,
teve sobre a alma com o Padre Santana), flagelo implacável
nesse dia 03 de Junho, tinha decidido pôr fim a situação,
da Companhia de Jesus e consciência crítica demolidora
descarregando a sua Browning em aquele que representa-
dos obstáculos levantados pela Igreja à emancipação do
va simbolicamente a instituição: o seu primeiro médico,
saber. “O clericalismo, eis o inimigo!” escreveu referindo-se
Miguel Bombarda.
aos jesuítas.
A biografia escrita por Paulo Araújo, “Miguel Bombarda:
Outra imagem imprescindível, no fundo intimamente ligada
Médico e Político”, editada este ano por Caleidoscópio,
com a anterior, é a do cientista, o “médico social” crente no
recupera vários postais comemorativos com imagens do
valor ilimitado da Ciência como motor fundamental do pro-
funeral público de Bombarda, num dos quais o director de
gresso. Suas são as palavras exultantes: “Na religião da
Rilhafoles ostenta o significativo título de “vítima da reac-
vida, que é o progresso, a civilização, a felicidade moral e
ção”. A sua morte, acontecida em vésperas da proclamação
material, gritaremos: Irmãos, temos que viver!” Como cien-
da República, tornou-se um acontecimento com repercus-
tista espalhou os seus esforços titânicos não só na psiquia-
sões sociológicas inesperadas, e o seu funeral, efectuado
tria, mas também como higienista e promotor da luta anti-
em conjunto com outro herói da República, o almirante
infecciosa.
Cândido dos Reis, teve o tratamento de um funeral de
Em termos científicos, Bombarda foi filho do seu tempo,
estado e arrastou milhares de lisboetas para as ruas da
integrando na sua pessoa todas as linhas de força (posi-
cidade.
tivismo, materialismo, evolucionismo) que faziam bulir a
Este livro, que por paradoxos do destino sai do prelo, coin-
ciência europeia da segunda metade do século XIX. Assim,
cidindo com a extinção, como instituição autónoma, do hos-
foi introdutor em Portugal da “doutrina do neurónio” criada
pital que levava o nome do insigne psiquiatra, é uma obra
por Ramon y Cajal e das descobertas de Claude Bernard
breve e compacta, rigorosa e de grata leitura, que permite
no âmbito da fisiopatologia experimental, erguendo-se
uma aproximação rápida e completa à figura do médico e
ainda como defensor entusiasta da vacina contra a raiva
político.
que Pasteur tinha descoberto em França.
Outro livro, publicado em 2006, “Miguel Bombarda (1851-
A ele devemos a criação da revista “A Medicina
1910) e as singularidades de uma época” debruça-se
Contemporânea”, que se transformou em espaço privilegia-
também na rica e complexa personalidade deste pai fun-
do para as suas conhecidas polémicas intelectuais, e do
dador da psiquiatria portuguesa. Já Barahona Fernandes
laboratório de histologia do Hospital de Rilhafoles para o
falava das “realizações multifárias” de Miguel Bombarda e
qual convidou Marck Athias, tendo também um papel pro-
os coordenadores do livro, Ana Leonor Pereira e João Rui
tagonista na criação da Liga Nacional contra a Tuberculose.
Pita, aceitaram o desafio que implicava congregar os meios
Os contributos de Bombarda à psiquiatria portuguesa são
necessários, vindos de todas as áreas do saber, para traçar
amplamente conhecidos e começaram com as reformas
um retrato, forçosamente multidisciplinar para ser completo,
fundamentais (administrativas, higiénicas, terapêuticas e
da personalidade multifacetada de Bombarda.
reabilitadoras) que fez no Hospital de Rilhafoles.
O fruto deste esforço é uma obra coral e impar que recolhe
Tal como Alzheimer e Kraepelin faziam nessa altura na
as comunicações apresentadas por ocasião do 1º
Alemanha, reduziu radicalmente o uso das medidas de con-
Congresso Internacional de Cultura Humanística-Científica
tenção física, aplicando a balneoterapia como estratégia
Portuguesa Contemporânea realizada em Coimbra em
terapêutica alternativa, melhorou as condições higiénicas
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do hospital, criou um formulário hospitalar e implementou o
tuguesa e conta com o contributo de pessoas pertencentes
modelo de asilo-colónia que implicava a aplicação de
a diversas áreas do conhecimento (farmácia, filosofia,
estratégias de ergoterapia nos doentes mentais.
sociologia, filologia, psicologia, psiquiatria) que traçam uma
Mas o seu contributo não se esgota nisso, deixando-nos
visão de conjunto de valor inestimável sobre o psiquiatra
escritos psiquiátricos de grande interesse (como “O Delírio
português e a sua época.
de Ciúme”, recuperado em 2000 numa valiosa colecção de
clássicos da psiquiatria dirigida por José Manuel Jara, que
infelizmente não teve continuidade; os estudos sobre o
delírio de perseguição, a pelagra ou os microcéfalos; e o
famoso livro sobre a consciência e o livre arbítrio), tendo
ainda um papel protagonista na criação da especialidade
de Psiquiatria na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa.
Um famoso filósofo espanhol afirmou que o eu é “o eu e as
suas circunstâncias”.
E, quais foram as circunstâncias de Bombarda?
A sua foi, sem dúvida, uma época de grandes transformações políticas e sociais, a época do fim da monarquia e
da instauração da Primeira República em Portugal, da
expansão da Revolução Industrial e da organização internacional do movimento operário a nível internacional.
Em termos de enquadramento intelectual, Bombarda foi
contemporâneo da geração de 70, do Realismo e do
Naturalismo na literatura e da revolução kraepeliniana em
Psiquiatria.
Dispersas pelo meio dos textos referidos também encontramos pérolas de sabedoria que nos demonstram que
Bombarda era filho da sua época, para o bom e para o mau,
e que também ele, apesar do seu espírito positivista e
racional, não conseguiu evitar a confusão, frequente na
psiquiatria, entre o conceito e o preconceito, entre ciência e
crença.
Só assim podemos ler com clemência frases como “a
degenerescência da religiosidade” ou “a mulher é uma
degenerada – inferioridade psíquica, estreita dependência
do homem e certo grau de anomalia mental que a torna
meia antagónica com o meio social”.
A leitura dos dois livros referidos oferece-nos uma visão
mais rica e complexa de Bombarda e faz-nos partícipes
das novas linhas de investigação existentes sobre as suas
realizações e a sua figura.
Em particular, o livro coordenado por Ana Leonor Pereira e
João Rui Pita torna-se leitura obrigatória para quem estiver
interessado em perceber os primórdios da psiquiatria por-
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