AS FACES DA SOCIABILIDADE FEMININA NOS ESPAÇOS DE REDENÇÃO – CE. Ythalo Viana Lima1 RESUMO Redenção é um município localizado no interior do Ceará, na macrorregião do Maciço de Baturité, e contava com 26. 415 mil habitantes de acordo com o censo de 2010. Desse número, 13. 293 eram mulheres, ou seja, mais da metade. Mesmo estando distribuídas em maior número na região, as mulheres ainda aparecem invisibilizadas ao tratar-se de sua distribuição nos espaços públicos. Além disso, a cultura machista, bastante aflorada nos estados nordestinos é mais um fator que torna singular a experiência feminina na sua totalidade e na sua relação com o poder infligido pela dominação masculina na região, no estado e no município. Identificou-se a existência de espaços específicos – pedaços – criados pelas mulheres, nos quais elas desempenhavam seu papel feminino com maior protagonismo no espaço público. Os efeitos deste protagonismo não se limitavam ao território dos pedaços, e tinham desdobramentos consideráveis nos espaços limítrofes. Este trabalho analisa, a partir de um olhar antropológico, as formas de sociabilidade das mulheres nos espaços de Redenção, sublinhando a importância dos pedaços e suas maneiras de se relacionarem entre si, com o próprio espaço e com os “outros” de fora do pedaço, através dos seus relatos de vida cotidiana e de suas atuações nos espaços. Palavras-chave: Mulheres; relações de poder; territórios. INTRODUÇÃO Este trabalho foi realizado através de pesquisa qualitativa e entrevistas não estruturadas e é uma parte do meu trabalho de conclusão de graduação. Nele eu apresento considerações resultantes de um período de seis meses que passei em campo, junto a um número de aproximadamente dez mulheres que utilizavam os espaços públicos de Redenção para as mais diversas finalidades. Meu objetivo é analisar a ocupação dos espaços públicos por parte das mulheres e sua distribuição em Redenção, no sentido de perceber os mecanismos de resistência que elas desenvolvem para interagir com aquele espaço e entre elas mesmas de forma mais plena. Os resultados que apresento aqui são produto de uma etnografia extensa na qual constato que os espaços de Redenção são fortemente marcados por símbolos de um poder masculino. Nesse sentido eu descobri e analisei formas de transgressão desse poder sendo realizados por mulheres no contexto dos próprios espaços. A partir daí, em contato mais profundo com as mulheres, realizei um exercício psicológico intenso no sentido de tentar ao máximo “entrar na cabeça” de minhas interlocutoras, identificando seus dilemas, dificuldades e prazeres. 1 Graduando do curso de Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). [email protected] No desenvolvimento do texto eu apreendo a existência de territórios, os quais chamei de pedaços, com características bem delimitadas como fronteiras simbólicas, físicas e as próprias qualidades das mulheres enquanto elementos essenciais para o exercício da autonomia feminina nos espaços públicos. REVISÃO DE LITERATURA A partir de Joan Scott (1995) e sua análise de gênero por meio da história, utilizo o leque de possibilidades oferecidas pela autora para a interpretação desta categoria. Há dois aspectos fundamentais para refletir sobre a substituição (ou redução) terminológica do termo mulheres por gênero. A primeira é a de que ‘Gênero’ parece se ajustar à terminologia científica das ciências sociais, dissociando-se, assim, da política (supostamente ruidosa) do feminismo. Nessa utilização, o termo ‘gênero’ não implica necessariamente uma tomada de posição sobre a desigualdade ou o poder, nem tampouco designa a parte lesada (e até hoje invisível). Enquanto o termo ‘história das mulheres’ proclama sua posição politica ao afirmar (contrariamente às práticas habituais) que as mulheres são sujeitos históricos validos, o termo ‘gênero’ inclui as mulheres, sem lhes nomear, e parece, assim, não constituir forte ameaça (idem, p. 75). A crítica de Scott - da substituição de um termo por outro com a finalidade da imparcialidade para a utilização acadêmica - tem seus efeitos negativos no próprio silenciamento das sujeitas da história, numa espécie de emprego do vocabulário como ferramenta de manutenção da subjugação feminina. O segundo aspecto levantado pela teórica seria o de que O termo ‘gênero’, além de um substituto para o termo mulheres, é também utilizado para sugerir que qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que um implica o estudo do outro. Essa utilização enfatiza o fato de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado nesse e por esse mundo masculino (idem, p. 75). Scott revela mais um sentido negativo ao qual o termo gênero é associado, que é essa indissociação de uma abordagem que contemple também a perspectiva masculina. Ela denuncia que através do emprego do termo há a difusão da ideia de que o estudo da história das mulheres está inevitavelmente subordinado ao mundo dos homens. Na intersecção entre espaço e gênero é importante refletir sobre como a pouca presença feminina na área pode produzir concepções diferentes sobre o espaço a depender do gênero do/a pesquisador/a, considerando a própria diferença de gênero como um fator de constituição de trajetórias distintas. A Geografia nomeia o ambiente no qual se estabelecem as relações entre o homem e o meio de espaço geográfico. Entretanto, esse meio aparece como um termo vago. Que meio? A natureza? A sociedade? Bertha Becker (2009), nitidamente influenciada pela abordagem foucaultiana de poder, incorpora a análise dessa perspectiva ao seu estudo de espaço. Ela trata a geopolítica como “política do território, [que] envolve relações de poder com o espaço geográfico” (idem, p. 34). Assim como Foucault percebe e inaugura a tese de uma rede difusa através da qual o poder se dissemina, Becker reconhece a existência desse poder pensado inicialmente por Foucault manifestado no espaço das microrrelações, constituindo-se nas relações sociais, e de relações espaço-poder no patamar do governo do território. Ao falar de território, Becker (idem) está falando essencialmente de espaços mediados por relações de poder como pressuposto básico de sua composição. Quando ela diz que o território “inclui a apropriação de um espaço, implica a noção de um limite” (ibidem, p. 37), o que ela faz, na verdade, é conceituar espaço enquanto categoria que se liga à ideia de natureza, dos elementos dispostos de maneira natural. O território representa a modificação humana do espaço. A ideia de pedaço (Magnani, 1984) a que me refiro no texto etnográfico está bastante relacionada à noção de território. Ambas as noções se referem a espaços bastante restritos, no sentido da delimitação de sua extensão por fronteiras. Entretanto, compreendo que há uma diferença essencial entre os dois conceitos que seria o lazer como ponto de partida para a análise de pedaço. O pedaço, nesses termos, é um território com a finalidade da distração, do divertimento. Segundo Magnani “a noção de pedaço (...) supõe uma referência espacial, a presença regular de seus membros e um código de reconhecimento e comunicação entre eles” (2002, p.20). O autor apreende dois elementos básicos para a formação do que ele chama de pedaço: um de ordem físico, marcado pela própria constituição do espaço enquanto pedaço e outro social “na forma de uma rede de relações que se estenda sobre esse território” (ibidem, p. 21). A intersecção nos estudos que relacionam gênero e espaço foi realizada a partir de 1970 com o surgimento da Geografia Feminista. Isto não quer dizer, entretanto, que a Antropologia esteja isolada das questões feministas (Tiffany, 1984, p.2), mas que o material produzido pela Geografia realiza as intersecções disciplinares adequadas à nossa pesquisa. Uma das primeiras observações pontuadas pelas feministas dentro da geografia foi o caráter de variação de gênero intrínseco ao espaço. Segundo Massey (1994) “a geografia, nos seus múltiplos aspectos, influencia o desenvolvimento cultural de formas particulares de gênero e suas relações” (p. 177 – tradução minha). Por outro lado a autora também propõe que o gênero influencia profundamente a produção do espaço geográfico. É necessária a introdução de estudos com base em uma geografia generificada e a consideração de “gênero de forma séria produz uma análise diferente” (ibidem, p. 181 – tradução minha). No caso da Geografia brasileira, o tema de gênero foi incorporado no final dos anos 1980 e ainda são poucos os estudos que realizam a análise nesta área. O crescimento desse debate tem acontecido eminentemente nos EUA e Europa, sendo a produção brasileira nesse aspecto ainda deficiente (Silva, 2000; Ornat 2008). Joseli Silva (2007) acredita que há diferenças de “acesso físico entre mulheres e homens a determinados espaços, como a construção de barreiras invisíveis criadas pelo olhar e força daqueles que impõem sua ordem e alcançam legitimidade”. Os estudos da Geografia, dessa forma, aliados às relações de gênero funcionam como um complemento às abordagens que buscam a desconstrução do androcentrismo que permeia a ciência até hoje. “NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS2”: UMA ANTROPOLOGIA DAS SOCIABILIDADES FEMININAS Resolvi intitular este tópico com o título de um poema de Cristiane Sobral por dois motivos. Primeiro porque sou um amante da literatura. Meu exercício de escrita ou de leitura não se limita à produção científica, mas também ao deleite da prosa e da poesia. Segundo, porque o título deste poema de Cristiane Sobral tem total relação com o assunto que trato no tópico, que é a imersão de fato no universo feminino constituído 2 Fonte: <http://arquivo.geledes.org.br/patrimonio-cultural/literario-cientifico/literatura/18318-nao-voumais-lavar-os-pratos-poesia-de-cristiane-sobral>. Acesso em: 27 mai 2015. através dos “pedaços”. Neste sentido, eu busco integrar literatura e produção acadêmica sempre que possível. Segundo Silva (2011, p. 166) “o poema ‘Não vou mais lavar os pratos’ (...) é paradigmático do anseio por liberdade, denunciando a opressão de classe, de raça e de gênero”. Buscando estabelecer uma ponte entre a citação da autora e meu trabalho, minha proposta não deixa de se conduzir pelos mesmos rumos da poesia de Cristiane Sobral, no sentido de oferecer uma tradução, das mais variadas possíveis, dos símbolos e ações de resistências femininas empregadas pelas mulheres com quem estive em contato durante a pesquisa. O território que tomei como ponto de partida fundamental da minha análise foi o das mulheres praticantes de exercício físicos na Praça do Obelisco, na área central de Redenção, ao lado dos Correios. Os exercícios feitos pelas mulheres eram uma iniciativa da Prefeitura Municipal, sob a organização do Núcleo de Apoio à Saúde da Família, e faziam parte de um projeto que tinha como finalidade desenvolver uma série de atividades para estimular a prática do exercício físico entre os/as idosas/os do município. Além dos exercícios praticados naquela praça às segundas e quartas-feiras, o instrutor físico delas e coordenador do projeto me contou que, numa quadra poliesportiva atrás da UNILAB, todas as terças e quintas-feiras, aconteciam danças, que eram caracterizadas como exercício de menor impacto. O período de duração das atividades na praça era, em média, uma hora e, diferentemente do que acontece em academias fechadas, o professor trazia instrumentos produzidos de forma mais artesanal que desempenhavam as mesmas funções que aparelhos de força, como bambolês, cones, ligas elásticas e escada dobrável. Os exercícios só passaram a acontecer naquele espaço após a revitalização da praça, feita acerca de cinco meses antes do início das atividades. Anteriormente eram realizados em uma quadra poliesportiva. O território que escolhi para a análise pode, num primeiro momento, não ser considerado como um pedaço, no sentido diretamente pensado por Magnani (2002). O primeiro significado atribuído aos exercícios era o de promoção da atividade corporal para pessoas de mais idade. Essa construção correspondia à concepção formal do órgão governamental que regulava a prática dos exercícios. Por outro lado havia outra construção que acontecia no nível das relações informais, realizada pelas próprias mulheres praticantes naqueles momentos: a ressignificação do espaço que lhes era dedicado para a prática de exercício em espaço de distração e lazer, portanto, em pedaço. A minha participação se dava de dentro do pedaço. Eu utilizava trajes finos para a prática dos exercícios e me exercitava junto com essas mulheres. As atividades eram feitas separando-se as integrantes por duplas, de maneira que partilhei alguns momentos da execução dos exercícios com algumas delas. Esse recorte empírico foi definido no momento em que eu me dei conta de que eu carregava uma situação de masculinidade diferente da maioria dos outros homens que se distribuíam pelos espaços públicos. Dessa forma, eu conseguia interagir de forma muito mais amistosa com as mulheres do que necessariamente com os homens. Entretanto o contato inicial não foi fácil. Como o pedaço se configurava para elas principalmente em espaço da diferença, ou seja, o poder masculino infligido sobre elas ganhava outra roupagem quando elas se encontravam na situação de ocupantes do pedaço, eu tive que fazer um grande esforço para mostrar para aquelas mulheres que minha presença no pedaço tinha a finalidade da convivência e sociabilidade de maneira saudável. A parte da praça onde elas se exercitavam era marcado claramente pelos instrumentos utilizados nos exercícios. Ou seja, percorriam somente a extremidade da praça que era marcada pelos instrumentos. Além disso, eu havia identificado anteriormente que aquele espaço no qual elas se instalavam era bastante utilizado pelas pessoas que transitavam entre o espaço residencial e o comercial, pois ficava em frente à saída de uma rua residencial. Portanto, durante a prática dos exercícios, ainda que pudessem utilizar a praça para fazer essa transição de uma zona para a outra, as pessoas de fora do pedaço tinham menos espaço se quisessem utilizar aquela parte da praça. Além dos equipamentos marcarem limites de território para as mulheres desportistas, em uma espécie de relação de pertencimento com o pedaço e não pertencimento com o resto da praça, esta fronteira também demarcava a experiência dos transeuntes que utilizavam a praça. Ao mesmo tempo em que os objetos tinham a função de demarcar a área para a prática do esporte, sinalizavam aquele pedaço que, por alguns minutos, era reservado às mulheres. Não era de forma harmônica que as negociações sociais aconteciam na praça durante os períodos de instalação do pedaço naquele espaço. Ou seja, surgiam conflitos inerentes às pessoas que estavam fora do pedaço, principalmente homens, e das mulheres de dentro do pedaço. As reações recorrentes, na maioria das vezes, eram olhares constantes dos homens que conversavam nos bancos próximos. Às vezes eles chegavam sozinhos ou em duplas e ficavam próximos aos limites estabelecidos fisicamente, fazendo comentários maliciosos entre si e debochando, no que parecia ser uma clara ameaça de “invasão” do pedaço. O que me surpreendia era o desembaraço com que aquelas mulheres driblavam esses tipos de situação, menosprezando a existência deles e fazendo seus exercícios tranquilamente. Uma das vezes aconteceu uma reação desse tipo, mas que ultrapassou os limites da brincadeira por parte das pessoas que estavam fora daquele pedaço. Como nos outros dias, as mulheres fazem seus exercícios normalmente. Uma delas se exercita no aparelho instalado no coreto, sozinha. Eu tentei estabelecer uma conversa inicial com ela e perguntei se ela estava cansada. Ela respondeu que “nem um pouco”, ao mesmo tempo em que continuou pulando. Perguntei há quanto tempo ela estava no grupo e ela disse que “desde que começou o projeto”. Nesse momento o professor interrompeu e complementou dizendo que o projeto teve início em 2009 e que seguia até então. Após isto ela se dirigiu para minha companheira de exercício, com perguntas sobre a origem da família dela. Logo que as duas terminaram de conversar, um homem de aproximadamente 45 anos passou perto daquela mulher com quem acabei de conversar e disse: “Tu tá fazendo isso aí querendo ficar nova? Não tem mais jeito não!”. A expressão é tão absurda que me espanto por não acreditar no que o homem tinha acabado de falar. Absurda, sobretudo, porque denuncia o desconforto que é causado nos homens a cena de um grupo de várias mulheres brincando e se divertindo entre si, sem desempenhar nenhuma atividade categorizada como produtiva. Como se não bastasse o episódio, ele continuou no espaço, parado no limite que anteriormente conceituei como a fronteira espacial daquele pedaço em relação à praça. A fala do homem representa uma violência simbólica de gênero no nível do discurso, ou como chama Butler, uma alocución insultante (2004, p. 17). Naquele momento, entretanto, tanto a presença dele quanto a sua intervenção não são acatadas nem pela mulher a quem ele dirige a agressão, nem às demais mulheres. Elas parecem ter desenvolvido formas sólidas de resistência a situações como estas. Este é um ponto importante possível de ser extraído do fato ocorrido, mas não é sobre o qual quero me deter. Quero ressaltar a importância que a constituição dos pedaços, em casos como estes, contribui de forma mais eficaz para a sociabilidade das mulheres. Além do seu aspecto de fragmento espacial, delimitando física e simbolicamente o pedaço, a rede de sociabilidade desenvolvida também pode ser pensada como um fator de constituição do pedaço, pois também instaura fronteiras. As roupas diferenciadas utilizadas pelas mulheres em relação às outras pessoas da praça, os assuntos específicos, e o próprio gênero em comum eram marcas da singularidade do seu pedaço. Neste sentido eu penso que o funcionamento desses fatores em conjunto realizava também a função de proteção das mulheres agrupadas no pedaço, porque estabelecia a distinção física e simbólica entre o nós–eles, ou entre pedaço–praça. Dessa forma, acredito, além do valor daquele pedaço enquanto um “espaço de/para mulher(es)”, principalmente na relevância da presença das mulheres, fazendo “coisas de mulher(es)” com outras mulheres para a potencialização da consistência na demarcação territorial do pedaço. A participação de sujeitos/as na constituição do seu pedaço é essencial para que o próprio pedaço passe a existir. Portanto, os pedaços podem ser fluídos. Eles existem ou deixam de existir à medida que os/as individuas/os que o compõem se juntam para determinada finalidade ou se dispersam. Neste caso eu tenho uma situação que ilustra bem a fluidez dos pedaços. Havia uma barraca de lanches na praça da matriz que costumava receber tanto homens quanto mulheres. Classifiquei-a, portanto enquanto espaço misto. A própria gestora do estabelecimento era uma mulher. No entanto, dependendo do dia a barraca recebia mais homens ou mais mulheres e a sua configuração espacial se modificava bastante. Digo que se modificava com base na própria gestora da barraca, que quando estava cercada de mais mulheres desempenhava o duplo papel de comerciante e elemento da sociabilidade. Estive presente na barraca tanto em dias de predominância de público masculino quanto feminino. Quando aquele era de maioria de homens, a gestora ficava apagada no espaço, de forma que ela os servia e eles conversavam entre si. Quando a maioria era de mulheres, o papel da dona da barraca se flexibilizava entre fazer o serviço e interagir com as outras mulheres. Houve um dia que havia três mulheres e um homem no local. Eles falavam sobre os atos valores da conta de energia. Uma das mulheres, ao que parece para explicar a condição difícil que criou os filhos, tendo que pagar contas caras, diz que teve “dois filhos em casa, sozinha”. Quando a conversa começa a enveredar para a maternidade e que as outras mulheres começam a se interessar pelo tema, o homem se levanta do banco e se afasta. Todas as mulheres do local riem dele. Alguns minutos depois eu me afasto. Sento-me em outro banco da praça fora dos limites da barraca. Outro homem se aproxima. Neste instante, duas mulheres, que são mãe e filha, dialogam. Não consigo ouvir o teor da conversa, mas em determinado momento a filha é bem enfática e diz: “Mas homem só presta pra gente usar” em alto e bom tom. Depois disso todas as mulheres olham para o único homem no local e caem na gargalhada. O homem, que tem por volta de 50 anos, fica desconcertado e sorri forçadamente. Logo ele levanta dali e sai. Dessa forma, mesmo que o território da barraca apresente o caráter transitório de pedaço para as mulheres que o frequentam, podendo significar um espaço de dominância feminina em um dia, e no outro não ter o mesmo significado, não deixa de ser um espaço rico para que as mulheres desempenhem nele seu protagonismo. Através dos exemplos que narrei aqui é nítida a fluidez da configuração dos pedaços e a relevância da existência de um código partilhado entre as mulheres, muito mais do que a existência das fronteiras simbólicas e físicas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste texto eu expus, através do trabalho etnográfico que desenvolvi no município de Redenção, a existência de territórios nos espaços públicos marcados por uma forte presença feminina, os pedaços. Tendo como marca fundamental de constituição o lazer ou o momento de ociosidade, estes territórios controlados e ocupados por mulheres em formato de redes de sociabilidade eram essenciais para a fixação das mulheres no espaço público, mesmo que para alcançar esse fim tivessem que usar estratégias de deboche contra masculinidade. Demonstrei que a força com que estes espaços eram constituídos foi representada tanto através de símbolos dispostos fisicamente no espaço, quanto de elementos simbólicos. Essa representação espacial feminina foi fundamental como elemento subversivo das relações de poder instauradas pela dominação masculina nos espaços públicos do município. REFERÊNCIAS BECKER, Bertha. O governo do território em questão: uma perspectiva a partir do Brasil. Parc. Estrat. v.14. n. 28. 2009. pp. 33 – 50. Disponível em: <http://seer.cgee.org.br/index.php/parcerias_estrategicas/article/viewFile/339/332>. Acesso em: 13 jun. 2015 BUTLER, Judith. Lenguaje, poder e identidad. Madrid: Síntesis, 2004. Disponível em: <http://www.uel.br/pos/letras/EL/vagao/EL8AArt17.pdf>. Acesso em: 04 jun 2015. MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço: Cultura popular e lazer na cidade. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. _______. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. RBCS. v. 17, n. 49, 2002, pp. 11 – 29. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v17n49/a02v1749.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2015, MASSEY, Doreen B. Space, place and gender. Minneapolis: University of Minnesota Press. 1994. pp. 175 – 249. Disponível em: <https://selforganizedseminar.files.wordpress.com/2011/07/massey_space_place_gende r.pdf> . Acesso em: 27 jun. 2015. ORNAT, Marcio Jose. Sobre espaço e gênero, sexualidade e geografia feminista. Terr@Plural, Ponta Grossa, 2 (2): 309-322 , jul./dez., 2008. Disponível em: <www.revistas2.uepg.br/index.php/tp/article/view/1182/894>. Acesso em: 30 jan. 2015. SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71 – 99. SOBRAL, Cristiane. Não vou mais lavar os pratos. Brasília: Athalaia, 2010. Resenha de: SILVA, Avani Souza. Estação Literária. Londrina. 2011. pp. 165 – 167. Disponível em: <http://www.uel.br/pos/letras/EL/vagao/EL8AArt17.pdf>. Acesso em: 27 jun. 2015. SILVA, Joseli Maria Silva. Gênero e sexualidade na análise do espaço urbano. Geosul. Florianópolis, n. 44, v. 22, 2007, pp 117 – 134. SILVA, Susana Veleda da. Os estudos de Gênero no Brasil: Algumas Considerações. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona, n. 262, nov. 2000. Disponível em <http://www.ub.edu/geocrit/b3w262.htm>. Acesso: 03 mai 2015. TIFFANY, Sharon W. Feminist Perceptions in Anthropology. In: O’BRIEN, D; TIFFANY, S.W (orgs.). Rethinking women's roles. Berkeley: University of California Press, 1984, pp. 1 – 12.