Ano IX, n. 70, outubro de 2009.
ISSN 1518-1324
SérieAnis
Ética ▫ Bioética ▫ Direitos Humanos ▫ Direitos Reprodutivos ▫ Sexualidade ▫ Gênero ▫ Feminismo ▫ Deficiência ▫ Desigualdade ▫ Raça ▫ Justiça Social
CONSTRUINDO CORPO, ATRIBUINDO DIREITOS: O EMBRIÃO COMO
SUJEITO DE DIREITOS NO DEBATE LEGISLATIVO SOBRE ABORTO
Rosana Castro
<[email protected]>
<[email protected]>
Antropóloga, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética,
Direitos Humanos e Gênero.
RESUMO
O presente artigo foi escrito a partir de pesquisa etnográfica realizada
nas audiências públicas e votação do projeto de lei 1135/91 em julho
de 2008 na Câmara dos Deputados. Discutia-se em tais ocasiões a
proposta de descriminalização do aborto no Brasil, a qual foi rejeitada.
Os argumentos trazidos à baila para justificação de tal rejeição se
basearam nas noções de que a vida tem início na concepção, por um
lado, e de que o embrião se constitui como um sujeito de direitos, por
outro. Ambas as perspectivas se articulam a partir da construção
discursiva de um corpo do embrião que comprova a existência da vida
desde a fecundação e, ao mesmo tempo, é índice de sua condição
como cidadão.
Palavras-chave:
Aborto – Direitos reprodutivos - Embrião
Corpo - Legislativo
ABSTRACT
This article is based on an ethnographic research made during the
public hearings and voting of the bill 1135/91 in July, 2008 at the
Brazilian Parliament. At such occasions the congressmen discussed the
possibility of decriminalization of abortion in Brazil, which was
rejected. The discussion about this rejection was based on the ideas
that life begins at the moment of fecundation and that the embryo is a
citizen. Both perspectives articulate from the discursive construction
of a body of the embryo which testifies the existence of human life
since fertilization and, at the same time, indicates its condition as a
citizen.
Key-words:
“Há debate entre quem considera
o embrião humano pessoa,
sujeito de direitos e quem o
considera material celular.”
(LUNA, 2007:414)
O presente trabalho foi construído a
partir de etnografia realizada em três ocasiões
que fizeram parte das últimas tramitações do
Projeto de Lei (PL) 1135/91 na Comissão de
Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) da
Câmara dos Deputados. Este PL, o qual
propunha a descriminalização do aborto no
Brasil a partir da supressão do artigo 124 do
Código Penal, foi matéria de discussão de duas
audiências públicas em julho de 2008 e de
votação em caráter simbólico naquele mesmo
mês 1 . As audiências se configuraram como
situação na qual especialistas, membros de
entidades religiosas e organizações da
sociedade
civil
se
pronunciaram
e
apresentaram aos deputados da CCJC
argumentos
que
sustentavam
posições
contrárias ou favoráveis à proposta em
Abortion – Reproductive rights - Embryo
Body - Legislation
questão. A votação, por sua vez, foi ocasião na
qual os deputados expuseram seu juízo a
respeito do assunto.
Após o cômputo da posição dos
parlamentares, teve-se a decisão final da CCJC
pela rejeição da proposta de descriminalização
do aborto a partir do posicionamento de
esmagadora maioria dos parlamentares pela
sua inconstitucionalidade. Tal veredicto foi
enunciado tendo duas noções por base: por um
lado, interpretações sobre o fato de a
Constituição Federal exprimir no artigo 5° a
inviolabilidade do direito à vida. Por outro, tais
parlamentares assumiram como verdadeira a
perspectiva de que a vida tem início na
fecundação e, assim sendo, o aborto se
configuraria como uma violação do direito do
concepto à vida.
A atribuição desse e outros direitos ao
concepto fez parte de um sistemático construto
discursivo que, através da sustentação da
noção de que a vida tem início na concepção,
buscou reiterar a perspectiva de que o embrião
1
SérieAnis, Ano IX, n.70, p.1-7, Brasília, LetrasLivres, outubro de 2009.
Publicação Eletrônica
Ano IX, n. 70, outubro de 2009.
ISSN 1518-1324
SérieAnis
Ética ▫ Bioética ▫ Direitos Humanos ▫ Direitos Reprodutivos ▫ Sexualidade ▫ Gênero ▫ Feminismo ▫ Deficiência ▫ Desigualdade ▫ Raça ▫ Justiça Social
é portador de propriedades tais – inclusive a
própria vida – que lhe outorgam legitimidade
para gozar das garantias constitucionais como
qualquer cidadão. Nesse caminho, buscou-se
argumentar que o concepto guarda em si
mesmo uma série de características que, ao
serem
reconhecidas,
deveriam
automaticamente lhe conceder direitos e
garantias constitucionais.
À luz desse contexto etnográfico, o
presente trabalho tem como objetivo retomar
as narrativas proferidas a respeito do concepto
e problematizar a construção do embrião
humano como sujeito de direitos. Para tanto,
trazem-se
aqueles
trechos
de
dos
participantes
das
pronunciamentos 2
audiências públicas e dos parlamentares que se
mostraram emblemáticos no sentido de afirmar
a existência da vida desde a concepção e, a
partir desse evento, a formação de um novo
cidadão.
Ressalte-se que, aqui, tomar-se-ão os
discursos emitidos tanto nas audiências quanto
na votação em um mesmo turno de análise,
sem separá-los, portanto, de acordo com a
natureza de cada ocasião. Tal disposição se faz
pertinente já que serão levados em conta
somente os discursos que corroboram
especificamente para a construção do concepto
como sujeito de direitos e, assim sendo,
conforme a etnografia permitiu concluir, tanto
parlamentares contrários à aprovação do PL
1135/91 quanto representantes da sociedade
civil
signatários
da
mesma
opinião
argumentaram
de
maneira
semelhante,
podendo, assim, ser agrupados sob o mesmo
prisma analítico. Nesse sentido, entendendo
que a fala de quaisquer desses contrários à
descriminalização do aborto pode ser tomada
como representativa de todos de igual opinião,
os argumentos trazidos à baila são considerados
emblemáticos.
Materializando a “vida” e corporalizando o
concepto: o embrião como sujeito singular
No decorrer das ocasiões em que foi
realizada a etnografia ficou evidente a
utilização sistemática de informações oriundas
do campo das ciências naturais para
fundamentação dos argumentos de rejeição da
proposta de descriminalização do aborto,
inclusive por parte daqueles que se declaravam
cristãos ou eram representantes de entidades
religiosas 3 . Os discursos que assim procederam
recorreram principalmente à biologia, com o
intuito fundamental de afirmar a existência da
vida a partir do momento da fecundação 4 . O
uso de tais categorias adquiriu força tal que se
tornaram
orientadoras
das
investidas
argumentativas dos especialistas e das
justificativas dos parlamentares para seu
posicionamento contrário à descriminalização
do aborto. Denota-se, pois, fenômeno no qual
“a biologia transforma-se em base para a
construção cultural de categorias sociais”
(LUNA, 2007: 418).
Com base em tal conhecimento
biológico – tido como certo e irrefutável – a
respeito da fecundação e formação do
embrião, destaca-se o primeiro esforço de
construção discursiva do concepto como sujeito
de direitos: a separação entre os corpos deste
e da gestante. Avaliando a concepção como
momento de gênese de um novo ser humano, o
esforço
inicial
daqueles
contrários
à
liberalização do aborto foi assinalar que a
substância que forma o embrião não é algo
pertencente ao corpo da mulher:
“Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, o
corpo da criança não é o corpo da mãe.
Retirar um feto não é como retirar um
pedaço de carne, uma pele, uma espinha,
uma verruga ou algo estranho que surge em
nosso corpo, como pedra de rim ou vesícula.
Portanto, ter direito a dispor de seu corpo é
uma coisa, ter direito a dispor do corpo do
filho é outra”. (Pastor Abner Ferreira –
Assembléia de Deus/RJ).
A demarcação dos contornos limítrofes
entre as substâncias da gestante e do embrião,
entendidas ambas sob a mesma categoria de
“corpo”, funcionou no discurso contrário à
descriminalização do aborto como trampolim
para a inserção do argumento da distinção
entre os corpos como marcador da condição de
singularidade do concepto. Para muitos, estava
preenchido o critério que faria do embrião um
sujeito de direitos inalienáveis:
“[...] fica evidente que não há prolongamento
corpóreo entre a mãe e o filho. Não há
prolongamento corpóreo, há uma nova vida
concebida e, sendo uma nova vida concebida,
ela detém todos os direitos inalienáveis a
qualquer cidadão brasileiro ou a todos aqueles
que ainda têm expectativa de direitos,
sobretudo esse direito constitucional ferido,
afrontado e agredido na pretensa proposta
legislativa apresentada” (Deputado Zenaldo
Coutinho - PSDB/PA).
Evidencia-se,
assim,
que
o
entendimento sobre a formação de uma nova
vida estava ancorado na existência de uma
nova substância, um novo “corpo”. Assim,
2
SérieAnis, Ano IX, n.70, p.1-7, Brasília, LetrasLivres, outubro de 2009.
Publicação Eletrônica
Ano IX, n. 70, outubro de 2009.
ISSN 1518-1324
SérieAnis
Ética ▫ Bioética ▫ Direitos Humanos ▫ Direitos Reprodutivos ▫ Sexualidade ▫ Gênero ▫ Feminismo ▫ Deficiência ▫ Desigualdade ▫ Raça ▫ Justiça Social
apoiando-se nas informações do campo da
biologia, afirmou-se a existência de “vida” e
inalienabilidade do direito ao gozo dessa
propriedade do concepto tomando por
referência a existência de uma dimensão
material que o separa e singulariza perante a
mulher que o gesta.
A definição dos limites entre o que
constitui o embrião e o que se situa em seu
exterior permite caracterizar o deslocamento
do foco na questão debatida: se, por um lado,
as feministas presentes e (os poucos)
parlamentares favoráveis à aprovação do PL
1135/91 buscaram caracterizar a proposta de
descriminalização do aborto como um ato que
permitiria que mulheres pudessem determinar
sobre seus corpos 5 quanto à interrupção ou
prosseguimento do processo gestacional, por
outro, os contrários trabalharam arduamente
para retirá-las desse primeiro plano de
discussão e pôr o embrião em seu lugar. O
sentido desse deslocamento era a busca pela
legitimidade do concepto como sujeito de
direitos a partir da demarcação discursiva de
sua existência material como índice para tal.
Além disso, essa etapa argumentativa
denota construção discursiva com intuito e
efeito de concretizar a noção de vida. O uso da
retórica baseada na biologia permitiu fazer da
categoria “vida” algo existente materialmente,
palpável, encarnado, e, mais que isso,
personalizado (DUARTE et tal, 2006). Nesse
sentido, ao expressarem que sua missão
naquele debate era a “defesa da vida” –
expressão utilizada pela quase totalidade dos
contrários à aprovação do PL 1135/91 –, estes
pareciam se reconhecer como signatários de
uma frente disposta a defender o concepto
frente à possibilidade de interrupção da
gestação. Eis, portanto, que a idéia de “vida”
adquire materialidade e corporalidade e,
conforme
problematizarei
a
seguir,
propriedades que lhes deveriam inspirar
garantia de direitos.
Escrutinando e individualizando o embrião: o
concepto como sujeito de direitos
Centrando-se
definitivamente
no
embrião, após o cumprimento da tarefa
discursiva de separação entre os “corpos”
deste e da gestante, os pronunciamentos
caminharam para uma especificação deste
organismo, tratando-o, pois, como uma
realidade absolutamente destacada da mulher –
a não ser pela simbiose nutritiva que os
conecta no interior do corpo feminino. Nesse
caminho, seguimos, então, para as declarações
que buscaram corroborar a noção de que, de
fato, o corpo da gestante e do concepto se
constituíam como unidades distintas, e, mais
que isso, autônomas entre si.
Nesse momento da argumentação, o
recurso a tecnologias visuais de diagnóstico
obstétrico foi fundamental para dar base aos
discursos: “A ciência, hoje, nos permite entrar
dentro (sic) do útero. Ela permite a todas as
mulheres verem os filhos, por meio de uma
ecografia”
(Lenise
Garcia
–
bióloga,
representante da CNBB e presidenta do
Movimento Nacional da Cidadania em Defesa da
Vida – Brasil Sem Aborto). Tais declarações
buscaram fazer crer que as imagens de exames
ultra-sonográficos constituíam a própria
realidade existente no útero. A verbalização
dessa idéia deixa pulsante uma particularidade
simbólica do tipo de instrumento técnico sobre
o qual se fez referência, que, utilizada
perspicazmente
e
sem
qualquer
questionamento ou reflexão no decorrer do
discurso, deixou ainda mais candente sua
importância:
“O exame ultra-sonográfico coloca em
evidência uma particularidade que atravessa
todas as tecnologias de imageamento
médico. Trata-se do que designo aqui como o
‘mito da objetividade da imagem técnica’.
[...] A tecnologia de imageamento médico
supostamente produziria verdades acerca da
saúde e da doença dos sujeitos que
prescindiriam de ou se sobreporiam às suas
vivências
e
subjetividade.”
(CHAZÁN,
2007:115)
Apesar de as condições de saúde ou
doença do concepto não terem sido o assunto
nas audiências e na votação, as cenas do vídeo,
cujo conteúdo supostamente foi produzido por
aparelhos médicos de imageamento, serviram
antes para corroborar a noção de que a vida
tem início na concepção e que a evidência
cabal desse fato era a presença física do
embrião que ali se desenvolvia. Nesse sentido,
trazer às vistas dos presentes na ocasião a
imagem do embrião atribuía estatuto de
verdade às declarações quanto à sua existência
singular. Apoiando-se, pois, na suposta
objetividade que a imagem proporcionava, os
pronunciamentos buscaram dar proeminência a
aspectos fisiológicos do desenvolvimento inicial
do concepto, tais como tamanho, crescimento
e movimentações in utero:
“Aparecerá aí uma câmara intra-útero. O
vídeo está mostrando que a criança está
3
SérieAnis, Ano IX, n.70, p.1-7, Brasília, LetrasLivres, outubro de 2009.
Publicação Eletrônica
Ano IX, n. 70, outubro de 2009.
ISSN 1518-1324
SérieAnis
Ética ▫ Bioética ▫ Direitos Humanos ▫ Direitos Reprodutivos ▫ Sexualidade ▫ Gênero ▫ Feminismo ▫ Deficiência ▫ Desigualdade ▫ Raça ▫ Justiça Social
desenvolvendo os músculos para andar. [...]
(Exibição de vídeo). [...] O feto salta e pula,
usando as paredes como trampolim. (Exibição
de vídeo). Ele está fortalecendo os músculos
da perna e desenvolvendo a enervação que
controla isso. (Exibição de vídeo). Aumenta 5
vezes de tamanho, em 5 semanas. (Exibição
de vídeo). Sete centímetros inteiramente
formados. Isso é o que nos diz a ciência”
(Lenise Garcia).
Tais informações estavam circunscritas
discursivamente ao domínio das verdades
objetivas às quais, a partir de dados
quantificáveis em medidas e proporções em
relação ao tempo de gestação, auferiram
concretude ao caráter autônomo do embrião
em relação ao corpo da gestante (CHAZÁN,
2007). Seu crescimento e seus movimentos
foram interpretados como evidências de que
este se constituía como uma entidade tão
distinta da gestante que tinha a capacidade de
levar seu desenvolvimento adiante sem
necessidade de quaisquer contribuições da
mulher que o gesta. Entendia-se, a partir de
então, o embrião como uma unidade humana,
além de singular, independente: “O feto é uma
personalidade independente que apenas se
hospeda no organismo materno” (Pastor Abner
Ferreira – Assembléia de Deus/RJ).
Nesse contexto, a experiência da
mulher foi reduzida à sua dimensão corporal e
ela passa a ser ignorada como sujeito que
pudesse decidir sobre o destino do processo
gestacional que acontece em seu corpo. Dessa
forma, relegou-se à mulher a função de
“hospedeira” e receptáculo para o concepto. A
gestação pareceu ser entendida, pois, como um
evento que dizia respeito exclusivamente ao
desenvolvimento do concepto; este, por sua
vez, apareceu nos discursos como ser cujo
desenvolvimento não dependia da gestante ou
qualquer outra pessoa, construindo-se assim
sua característica de autonomia.
Indo além das inferências permitidas
pelo ultra-som obstétrico, a argumentação
deteve-se ainda sobre as possibilidades de
conhecimento trazidas por um tipo de
tecnologia que alcança o interior das células
embrionárias, permitindo acessar o seu
funcionamento. A partir de então, a exposição
passou a não dedicar mais qualquer atenção à
mulher, nem mesmo para considerá-la como
“ambiente” no qual o embrião se desenvolve; a
atenção se voltara inteiramente para o
concepto em sua mais tenra etapa de
desenvolvimento. A partir de então, inclusive
as relações de parentesco entre a gestante e o
concepto foram obscurecidas.
Partiu-se, pois, para um escrutínio
detalhado do concepto em termos fisiológicos.
Tomaram-se por base as células que o
constituem, ou melhor, as estruturas que
formam suas células e, então, o discurso passou
a se centrar no interior do núcleo das células
que compõem o embrião, dando destaque ao
DNA: “E a ciência nos diz que tudo aquilo que
somos está programado no DNA de cada um”
(Lenise Garcia).
O DNA foi citado como a substância que
define o embrião como pertencente à espécie
humana. Nesse sentido, argumentou-se que o
DNA presente nas células embrionárias era o
marcador do concepto como membro da
comunidade humana, e, portanto, o aborto se
configuraria como ameaça à existência de um
membro qualquer dessa comunidade. Mais que
isso, apontou-se o DNA como a estrutura
responsável pela caracterização de cada
humano em particular. Argumentou-se, então,
que o DNA era o definidor do “programa”
responsável por fazer cada um ser o que é, seja
em termos físicos, psicológicos ou de aptidão:
“Nós temos nos 2 pares de 23 cromossomos
cerca de 30 mil genes. É um imenso livro,
que estamos começando a ler, mas que cabe
inteiro no zigoto, na primeira célula que se
forma no momento da fecundação. E já está
definido, a essa altura, se é homem ou se é
mulher; se tende a ser alto ou baixo; se terá
cabelo louro ou moreno, encaracolado ou
liso. Também estão definidas a cor dos olhos,
as eventuais doenças genéticas e, inclusive,
as tendências herdadas, como o dom para
música, para pintura, para poesia. Então, o
zigoto de Mozart já tinha dom para música, o
zigoto de Carlos Drummond de Andrade já
tinha dom para poesia” (idem).
Nesse raciocínio, entendeu-se que, se o
DNA presente desde o momento de formação
do zigoto era o responsável, por um lado, por
caracterizar aquela célula como substância da
espécie humana e, por outro, por produzir as
características que diferenciam e singularizam
aquele humano ainda não nascido, o embrião
era, ainda que em fase de desenvolvimento, a
própria pessoa que ainda estaria por vir ao
mundo (MACHADO, 2008). A exclusividade do
DNA em cada célula que se forma na concepção
foi entendida como característica do próprio
embrião enquanto pessoa. Assim, a idéia de o
DNA ser sempre inédito a cada fecundação foi
utilizada discursivamente como fator que
consagrava, definitiva e irrevogavelmente, o
embrião como indivíduo. Esse estatuto se
4
SérieAnis, Ano IX, n.70, p.1-7, Brasília, LetrasLivres, outubro de 2009.
Publicação Eletrônica
Ano IX, n. 70, outubro de 2009.
ISSN 1518-1324
SérieAnis
Ética ▫ Bioética ▫ Direitos Humanos ▫ Direitos Reprodutivos ▫ Sexualidade ▫ Gênero ▫ Feminismo ▫ Deficiência ▫ Desigualdade ▫ Raça ▫ Justiça Social
devia, em última estância, ao fato de ele ser
portador de um DNA que o define tanto
enquanto homo sapiens quanto como um
indivíduo único e singular da espécie humana.
A materialidade do embrião como índice de
cidadania
A
individualização
discursiva
do
concepto passou por duas etapas. A primeira se
refere à sua singularização a partir da
construção de uma separação deste em relação
à mulher que o gesta, buscando legitimar a
existência do embrião como distinta a partir do
convencimento de que ambos constituem
“corpos” diferentes. Nesse caminho, destaca-se
ainda
a
argumentação
relativa
à
individualização que especifica o concepto,
momento discursivo no qual lhe atribuíram
características únicas a partir da noção de que
o DNA que ele porta garante seu perfil inédito
em relação a qualquer outro membro da
espécie humana, da qual ele próprio faz parte.
Eis, portanto, que esta segunda etapa se
caracterizou pela afirmação sistemática do
pertencimento do embrião à espécie humana,
comunidade da qual faz parte enquanto
membro único e singular. Ambos os momentos
discursivos objetivaram configurar o embrião
como um indivíduo empírico, ou seja, “como
um representante da espécie humana”
(FRANCHETTO et tal, 1981: 36).
Detenhamos atenção para o esforço de
denotar o embrião como membro da espécie
humana. Foi fundamental, para o discurso
daqueles contrários à descriminalização,
encontrar um ponto de conexão simbólica entre
indivíduos nascidos e não nascidos, e este foi a
caracterização de ambos como pertencentes à
espécie homo sapiens. Tal empenho se fazia
importante pois, à medida que se caracterizava
o embrião como pertencente à espécie
humana, podia-se reivindicar direitos humanos
para ele, entendidos, nesse contexto, como
aqueles direitos que contemplam qualquer
representante da espécie:
“Quando nós falamos de direitos humanos,
temos de olhar o direito de cada indivíduo.
Isso é algo que se baseia não em teorias, mas
na realidade humana. Então, é a realidade
humana, é a análise do que é o ser humano
que me diz que todos somos iguais. E a nossa
Constituição, felizmente, abarca isto: que
todos são iguais perante a lei” (Lenise
Garcia).
Dessa forma, buscou-se inferir que se o
embrião é indivíduo humano e todos os viventes
também o são, ter-se-ia que ter garantias da
mesma qualidade de direitos, os quais foram
abarcados sobre a nomenclatura genérica de
direitos humanos. Levados à instância federal
que regulamenta a disposição a respeito dos
direitos dos brasileiros, dotou-se de igualdade o
concepto e pessoas nascidas a partir do
estatuto de humanidade atribuído a ambos –
aludido na fala citada sob a expressão
“realidade humana”. Referindo-se diretamente
à proposta descriminalização do aborto,
argumentou-se que tanto a gestante como o
ter
garantida
a
embrião
deveriam
inviolabilidade do direito à vida, já que ambos
pertenciam igualmente à espécie humana na
condição de indivíduos.
Desqualificou-se, nesse raciocínio, a
proposta de descriminalização do aborto
contida no PL 1135/91 a partir da reivindicação
de igualdade de direitos entre gestante,
concepto e os demais brasileiros. Argumentouse que, da mesma forma que o Estado dispõe
de meios para proteção da integridade e
dignidade dos cidadãos, o concepto deveria ser
protegido através da manutenção da punição
para as mulheres que abortam, a qual operaria
como garantia para aqueles cidadãos ainda não
nascidos diante da possibilidade de terem sua
vida interrompida.
Tal
reivindicação
por
igualdade
encontra-se inserida em um sistema de valores
compartilhados mais amplo denominado
individualismo, ideologia na qual o indivíduo se
afirma como categoria que normatiza as
representações dominantes (FRANCHETTO et
tal, 1981). O antropólogo Louis Dumont,
responsável
pela
sistematização
desse
pensamento a respeito do individualismo,
realça uma importante distinção analítica a
respeito do indivíduo, a qual é de grande valia
neste momento:
“Assim, quando falamos de ‘indivíduo’,
designamos duas coisas ao mesmo tempo: um
objeto fora de nós e um valor. A comparação
obriga-nos a distinguir analiticamente esses
dois aspectos: de um lado, o sujeito empírico
que fala, pensa e quer, ou seja, a amostra
individual da espécie humana, tal como a
encontramos em todas as sociedades; do
outro o ser moral independente, autônomo e,
por conseguinte, essencialmente não-social,
portador de nossos valores supremos, e que
se encontra em primeiro lugar em nossa
sociedade” (DUMONT, 2000: 37. Grifos do
autor).
5
SérieAnis, Ano IX, n.70, p.1-7, Brasília, LetrasLivres, outubro de 2009.
Publicação Eletrônica
Ano IX, n. 70, outubro de 2009.
ISSN 1518-1324
SérieAnis
Ética ▫ Bioética ▫ Direitos Humanos ▫ Direitos Reprodutivos ▫ Sexualidade ▫ Gênero ▫ Feminismo ▫ Deficiência ▫ Desigualdade ▫ Raça ▫ Justiça Social
Os trechos acima analisados revelam
essas duas dimensões do indivíduo sendo
atribuídas ao concepto. Entendeu-se que este
tanto é um indivíduo empírico quanto um ser
portador de valores soberanos, tais como
independência e autonomia, fatos que
evidenciam claramente que a construção do
embrião como indivíduo como algo que está
circunscrito ao horizonte da ideologia do
individualismo tal qual proposta por Dumont
(2000). No decorrer deste trabalho se
encontraram
dois
processos
operando
articuladamente, os quais coincidem com a
distinção formulada por Dumont a respeito do
indivíduo: primeiramente, separou-se sua
substância daquela que o gera, demarcando e
definindo, pois, seu “corpo” como prova de sua
realidade empírica. Feito isso, atribuiu-se ao
concepto autonomia e independência, no que
diz respeito a seu desenvolvimento in utero e
igualdade – a qual foi reivindicada devido ao
seu pertencimento genético à comunidade
humana –, fatos estes que consagraram, pois,
moralmente o embrião como indivíduo.
Apesar da separação analítica aqui feita
dessas etapas que se puseram em seqüência,
propõe-se a consideração de que ambos os
esforços discursivos operaram como processos
articulados entre si. Isso porque foi justamente
a partir da elaboração de um discurso no qual
se defendia a verificabilidade da existência
material do embrião que se interpretava seu
desenvolvimento
como
independente
e
autônomo. Desse modo, afirmou-se que, por
ser investido de singularidade corpórea e
supostamente não precisar de ninguém para se
desenvolver, o concepto era um indivíduo
portador dos valores independência e
autonomia.
significativa quanto aquela da atribuição de
independência, autonomia e reivindicação de
igualdade, valores que compõem a categoria
indivíduo e, segundo o autor, prescindiriam de
sua existência.
Cabe ainda salientar que as implicações
desse debate sobre a descriminalização do
aborto, tomando por base os termos pelos
quais se justificou a rejeição do PL 1135/91,
coadunam a promoção da noção do concepto
como cidadão e a conseqüente desqualificação
da mulher como sujeito de direitos:
“Sr. Presidente, por fim, a autonomia da
mulher em relação ao seu corpo, quando
exerce a maternidade, é relativa e não
absoluta. [...] Isso inclui o direito da
autonomia da mulher sobre o seu corpo, até
porque a criança que está sendo gerada não é
extensão, não é prolongamento do seu corpo.
É outro indivíduo em formação, outro ser,
outra vida” (Deputado João Campos PDSB/GO).
Assim sendo, o reconhecimento da
categoria indivíduo como índice para a
legitimação do concepto como sujeito de
direitos trouxe em seu bojo a desqualificação
da mulher como cidadã. A autonomia da
mulher foi amplamente relativizada à medida
que se erigia o reconhecimento do embrião
como sujeito cujos direitos devem ser
garantidos. Nesse sentido, a materialização da
vida como valor no concepto e a atribuição de
predicados tais a este que permitissem seu
reconhecimento como indivíduo e cidadão,
desenhou um quadro no qual o embrião assumia
sobre
a
centralidade
no
debate
descriminalização do aborto e, à sua sombra, a
própria mulher que o gesta se eclipsava
enquanto sujeito de direitos.
Evidencia-se, assim, à luz da distinção
analítica proposta por Dumont (2000), a
fundamental importância da afirmação da
materialidade nesse contexto de disputas
políticas para reivindicação de direitos. A
corporalidade
se
revelou
elemento
indispensável na construção de um discurso no
qual o indivíduo é a categoria normatizadora e,
que, portanto, a atribuição de valores passava
necessariamente pelo esforço de afirmação de
uma realidade objetiva que demonstrasse a
unidade material do sujeito sob escrutínio.
Nesse sentido, o discurso de construção do
concepto-indivíduo-cidadão
aqui
analisado
deixa nuançada a distinção proposta por
Dumont, pois que a afirmação de uma
individualidade
empírica
revelou-se
tão
6
SérieAnis, Ano IX, n.70, p.1-7, Brasília, LetrasLivres, outubro de 2009.
Publicação Eletrônica
Ano IX, n. 70, outubro de 2009.
ISSN 1518-1324
SérieAnis
Ética ▫ Bioética ▫ Direitos Humanos ▫ Direitos Reprodutivos ▫ Sexualidade ▫ Gênero ▫ Feminismo ▫ Deficiência ▫ Desigualdade ▫ Raça ▫ Justiça Social
________. A personalização do embrião
humano: da transcendência da Biologia. Mana.
v. 13: p. 411-440, 2007.
Referências Bibliográficas
MACHADO L. Z. Os novos contextos e os novos
termos do debate contemporâneo sobre o
aborto. Entre as questões de gênero e os
efeitos das narrativas biológicas, jurídicas e
religiosas. Série Antropologia (Brasília), v. 419,
p. 1-32, 2008.
CHAZÁN L. Meio quilo de gente: um estudo
antropológico sobre ultra-som obstétrico. Rio
de Janeiro: Fiocruz; 2007.
DUARTE LFD et al (orgs.). Família, reprodução
e ethos religioso: subjetivismo e naturalismo
como valores estruturantes. “In”: Duarte LFD
et al. Família e Religião. Rio de Janeiro: Contra
Capa; 2006. p. 15-50.
WOITOWICZ KJ. A luta pelos direitos
reprodutivos na pauta da mídia feminista. In:
Seminário Internacional Fazendo Gênero 8;
2008; Florianópolis/SC. Seminário Internacional
Fazendo Gênero 8 - Corpo, violência e poder;
Florianópolis/SC: Universidade Federal de
Santa Catarina.
DUMONT L. O Individualismo: uma perspectiva
antropológica da ideologia moderna. Rio de
Janeiro: Rocco; 2000.
FRANCHETTO B, HEILBORN ML, CAVALCANTI
MLVC. Perspectivas Antropológicas da Mulher 1.
Rio de Janeiro: Zahar; 1981.
LUNA N. As novas tecnologias reprodutivas e o
estatuto do embrião: um discurso do magistério
da Igreja Católica sobre a natureza. Gênero.
2002; v. 3 (1): p. 83-100.
Notas:
1
As audiências públicas referidas ocorreram em 2 e 3 de julho de 2008; a votação aconteceu em 9 do mesmo mês.
2
Tal feito é possível devido ao fato de o áudio das ocasiões em que foi realizada etnografia ter sido gravado e transcrito.
3
Naara Luna (2002) alerta para o crescente recurso a discursos biologizantes nas disposições oficiais eclesiásticas, fato que parece encontrar
eco no debate público sobre aborto.
4
O uso de idéias do campo da biologia parecem ter dois sentidos. O primeiro e mais imediato é o do reforço dos pronunciamentos a partir da
autoridade que a biologia possui: “Questões discutidas muito antes da emergência da biologia como ciência necessitam do calço da ‘ciência da
vida’ para alcançar o estatuto de verdade” (LUNA, 2007: 434). Além disso, o uso de discursos embasados na biologia operava no sentido de
afastar uma possível desqualificação dos argumentos pela sugestão de que estes fossem de cunho religioso; preocupação bastante presente
nesse debate público em que, a todo o momento, reclamava-se uma posição dos parlamentares coerente com princípio da laicidade do Estado.
5
Tal posicionamento pode ser sintetizado na noção de direitos reprodutivos, a qual, em suma, “trata-se do direito de regular a capacidade
reprodutiva das mulheres e de assumir a autodeterminação sobre seus próprios corpos” (WOITOWICZ, 2008: 2)
SérieAnis
É uma publicação seriada da organização não-governamental Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero para divulgação de resultados de pesquisa
sobre ética, bioética, direitos humanos, direitos reprodutivos, sexualidade, gênero, feminismo, deficiência, desigualdade, raça e justiça social.
São publicados trabalhos originais, cujo objetivo é promover a discussão acadêmica.
Bibliotecária Responsável
Kátia Soares Braga - CRB/DF 1522 [Anis]
Editora Científica
Tatiana Lionço [Anis]
Editores Executivos
Cristiano Guedes [UnB] e Fabiana Paranhos [Anis/UnB]
Conselho Editorial
Alessandra Barros [UFBA], Cristiano Guedes [UnB], Dirce Guilhem [UnB],
Fabiana Paranhos [Anis/UnB], Marilena Corrêa [UERJ], Malu Fontes [UFBA],
Roger Raupp Rios [JFRS], Sérgio Ibiapina Costa [ICF], Tatiana Lionço [Anis]
Qualis Saúde Coletiva/B4/Capes
Qualis Serviço Social/B5/Capes
Endereço Eletrônico www.anis.org.br/serieanis.cfm
Endereço Caixa Postal 8011 – CEP 70.673-970 – Brasília-DF – Brasil | Telefone +55 61 3343.1731 | E-mail [email protected]
7
SérieAnis, Ano IX, n.70, p.1-7, Brasília, LetrasLivres, outubro de 2009.
Publicação Eletrônica
Download

do arquivo