LOUREIRO, Gustavo Kaercher. Algumas reflexões sobre a base normativa do setor elétrico brasileiro. Rio de Janeiro: IFE, 5 julho 2007. ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A BASE NORMATIVA DO SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO Gustavo Kaercher Loureiro¹ É opinião comum de tantos quantos se ocupam do setor elétrico brasileiro – entes institucionais, agentes econômicos, consumidores e estudiosos – que sua base normativa é extensa e pouco orgânica. Mesmo no plano da legislação ordinária encontram-se leis e atos equivalentes editados em épocas muito diversas, sob pressupostos constitucionais, sociais e econômicos diferentes, por vezes bastante extensos e carentes seja de ordem interna, seja de uma clara coordenação de conjunto. Em face dessa situação que prejudica uma compreensão segura do marco jurídico do setor elétrico, desnecessariamente nascem disputas, retraem-se investimentos, torna-se complexo o exercício de competências públicas e não se logra obter o pleno entendimento, por parte dos consumidores, de seus direitos e deveres. Em síntese: perdem o Estado e a Sociedade. _______________________ ¹ E-mail: [email protected]. Co-coordenador do Grupo de Estudos de Direito da Energia Elétrica – GEEL.UnB da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Coordenador do Centro de Estudos de Serviços e Políticas. Públicas Alternativas - CESPPASE da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Professor. Tais problemas podem ser divididos em dois grupos. Um primeiro, de incerteza relativa aos diplomas normativos (“Problemas relativos às Leis”). Um segundo, atinente aos textos desses diplomas (“Problemas de Textos”). I. Os problemas relativos às Leis Ressentindo-se da ausência de uma Lei-Quadro ou Lei Geral - existente, por exemplo, no âmbito das telecomunicações - há hoje no país uma enorme quantidade de Leis, Decretos e Atos Administrativos Normativos pouco articulados entre si. Em números aproximados, há cerca de 40 leis ordinárias, de períodos diferentes, que tratam de temas ligados à indústria elétrica. O número de Decretos supera a centena e muito mais numerosas são as Resoluções, Portarias e outros Atos baixados por diversos centros de competência tais como a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL e o Ministério de Minas e Energia – MME. Ao problema do número exacerbado, somam-se outros complicadores. Em primeiro lugar, o arco temporal é bastante extenso, cobrindo mais de 70 anos de regulação da indústria. Norma com força de Lei, o Código de Águas (Decreto 24.643) composto de mais de 200 artigos ainda hoje é utilizado por agentes setoriais, estudiosos e inclusive referido nos contratos de concessão e outros atos de delegação, juntamente com outras Leis do mesmo período e com seu Regulamento, o Dec. 41.019, de 1957 (outra norma complexa, que também supera os 200 artigos, integralmente dedicados à indútria elétrica). Prosseguindo no tempo, encontram-se as Leis 3.890, de 1961, 5.655, de 1971, 8.631 de 1993, para mencionar algumas poucas. Todas elas convivem com as Leis do chamado Novo Modelo, editadas entre 1995 e 2002 (Leis 9.074, de 1995, 9.427, de 1997, 9.648, de 1998, 10.438, de 2002, as mais relevantes), as quais, por sua vez, foram severamente alteradas pelas Leis do “Novíssimo Modelo”, de 2004 (sobretudo a Lei 10.848, de 2004). Em segundo lugar, esses diplomas tratam parcial e fragmentariamente de tópicos da indústria elétrica. Possuem pouca organicidade interna e quase nenhuma externa. Aliás, é digno de nota que boa parte parte das principais leis do setor elétrico - Leis 9.648, 10.438, 10.847 e 10.848 - longas e complexas como são, não possuem qualquer tipo de estrutura ou divisão de seus artigos em Seções, Capítulos, Títulos ou Livros, mas apenas texto corrido. É freqüente que uma Lei trate de um tema sem que se tenham lançado, antes, os pressupostos para sua plena compreensão, ou, o que dá no mesmo, que trate apenas parcialmente de certas figuras jurídicas, fazendo com que a complementação venha a posteriori, no bojo de outra Lei que “resgata” os assuntos pendentes, também ela, por isso, forçada a assumir uma forma tortuosa, fragmentária. Podem ser citados como exemplos a regulação da atividade de geração, cujas figuras do concessionário de serviço público, do autoprodutor e do produtor independente foram criadas pela Lei 9.074 de 1995, sem que restasse estabelecida aí (dentre outras coisas) a importantíssima questão acerca da natureza do despacho de energia, objeto de disciplina legal apenas em 1998, com a Lei 9.648 (na verdade, a situação era ainda mais delicada, pois as modalidades de operação previstas no Decreto 2003, de 1996, já tratavam do despacho centralizado, apenas para o produtor independente de energia e autoprodutor e sem que lei alguma tivesse previamente disciplinado o tema). Ainda com respeito à última figura mencionada, seu efetivo regime jurídico só pouco a pouco restou claro, com a disciplina contratual instituída posteriormente, também pela Lei 9.648. Nesses casos, perdeu-se muito de inteligibilidade jurídica por conta de espasmódicas disposições pertencentes a diferentes leis de diferentes períodos. Em um panorama como o descrito acima, é inevitável que existam na legislação alterações, revogações totais ou mesmo revogações parciais de um dispositivo por outro mais novo, com uma velocidade e freqüência que muitíssimo prejudicam a estabilidade regulatória e a compreensão do intérprete. Não é incomum que grande parte de uma Lei seja dedicada a alterar e a revogar dispositivos precedentes. Assim, para fazer outro exemplo, as funções e competências do Operador Nacional do Sistema foram originalmente estabelecidas pelo art. 14 da Lei 9.648.98 (cerca de três anos depois da instituição de seus “operados”, i.e., geradores despachados centralizadamente e transmissores integrantes da Rede Básica). Em 2002 esse artigo foi alterado pela Lei 10.433 sem que durasse o novo arranjo, refeito novamente pela Lei 10.848, de 2004. Modificações como essa abundam nas normas setoriais2 e aumentam de muito a instabilidade jurídica, além de contribuírem para a incerteza acerca do exato alcance de um determinado dispositivo. Inúmeras leis, de diferentes períodos, com conteúdo regulatório parcial e fragmentário, sem coordenação firme entre si. A situação é ainda agravada por outra ordem de problemas. __________________ 2 Veja-se também o art. 26 da Lei 9.427. II. Os problemas “de textos” Muito comum, também, é o caso das revogações tácitas ou do conflito, um problema que não é apenas de leis, mas de seus textos. É que por vezes um texto mais recente limitase a regular de modo (parcialmente) diverso tema já tratado por outro, sem qualquer referência à sorte da norma anterior. Para completar o diagnóstico dos problemas atuais, é de notar-se o singular hábito do legislador de elaborar longuíssimos e complexos artigos nas leis setoriais. E não são poucos os problemas que daí advêm. Não é raro encontrar artigos com mais de 10 parágrafos – o art. 4º da Lei 10.438 contém nada menos do que 17 deles - um maior número de incisos e alíneas - o art. 2º da Lei 10.848 possui 15 parágrafos e um impressionante número de incisos espalhados por entre eles - dentro dos quais são regulados assuntos os mais diversos, muitos dos quais sem qualquer relação com o caput do artigo³, prática em completo desacordo com exigência de “ordem lógica” feita pela Lei Complementar n. 95.984. Os prejuízos de compreensão decorrentes desta prática são óbvios e começam com a dificuldade de individuar o objeto do artigo em questão e com a ainda maior dificuldade de recolher todos as normas relativas a um mesmo tema, pelo simples exame do caput dos artigos. O segundo tipo de problema causado pela dimensão demasiada diz respeito à estrutura dos períodos sintáticos das normas. É que não só os textos são estruturalmente longos, com profusão de parágrafos, incisos e alíneas, mas também a construção de certos períodos não obedece a ordem direta e, por sobreposição de muitas unidades sintáticas, apresentam eles uma estrutura complexa _____________________ 3 Veja-se o art. 31 da Lei 9.427. Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas: (...) III - para a obtenção de ordem lógica: a) reunir sob as categorias de agregação - subseção, seção, capítulo, título e livro - apenas as disposições relacionadas com o objeto da lei; b) restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio; c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida; d) promover as discriminações e enumerações por meio dos incisos, alíneas e itens. 4 que contém uma variedade de proposições normativas dentro de um mesmo período sintático5. Tudo isso novamente em desacordo com as exigências de clareza e precisão da Lei Complementar 95.986. Como dito antes, é inegável o prejuízo ao país e à Sociedade que essa situação traz. Há, porém, instrumentos jurídicos aptos a resolver ou pelo menos mitigar esses problemas. Eles serão vistos em um próximo estudo. ________________________ 5 Isso sem referir problemas de aparente falta de sentido, como no caso do caput do art. 27 da Lei 9.074. Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas: I - para a obtenção de clareza: (...) b) usar frases curtas e concisas; c) construir as orações na ordem direta, evitando preciosismo, neologismo e adjetivações dispensáveis; d) buscar a uniformidade do tempo verbal em todo o texto das normas legais, dando preferência ao tempo presente ou ao futuro simples do presente; e) usar os recursos de pontuação de forma judiciosa, evitando os abusos de caráter estilístico; II - para a obtenção de precisão: a) articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma; b) expressar a idéia, quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico; (...) g) indicar, expressamente o dispositivo objeto de remissão, em vez de usar as expressões ‘anterior’, ‘seguinte’ ou equivalentes; 6