Carta da ABREM sobre a BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC) A divulgação da BNCC despertou uma série de reações na sociedade civil brasileira, materializadas em matérias de jornal, debates públicos e cartas abertas de laboratórios de pesquisa. As diversas reações apontam para o amadurecimento das instituições que não estão dispostas a deixar passar um documento de tal ressonância e declaradamente provisório sem questionamento. Assim, pesquisadores, intelectuais, diretores de escola e professores convidaram seus pares, alunos e outros parceiros a enviarem contribuições individuais e coletivas à Base, ao mesmo tempo em que apontaram falhas graves no processo de sua elaboração na condução da consulta pública, ou seja, a sociedade tem atendido de forma refletida ao convite do MEC. Problemas, desde a maior clareza na disposição dos critérios para a constituição da comissão que redigiu o documento; passando pelas limitações da própria consulta pública virtual, com poucas entradas que propiciam uma colaboração qualitativa; divergências de calendário (algumas datas, como o dia 2/12, não estão previstas no calendário oficial da página 1) e a própria divulgação do documento não podem ser ignorados. Lembremo-nos de que o documento primeiramente divulgado estava incompleto, faltava justamente a História... Quando um ex-ministro, que subscreveu a proposta, em pouco tempo, critica publicamente os consultores que a construíram e declara a limitação do resultado desse trabalho 2, a sociedade civil deve reagir para não permitir que um instrumento falho paute a vida escolar de crianças e jovens. A ABREM nasceu em 1996 da ousadia e do esforço de reunião de pesquisadores engajados na formação de estudantes brasileiros, convencidos de que suas pesquisas contribuem significativamente para o conhecimento de instituições e do patrimônio cultural que constituem quem somos em nosso país. Ora, isso passa obviamente pelo estudo da História Europeia, mas não só. Um dos ruídos que precisam ser combatidos a propósito do engajamento dos medievalistas na colaboração à Base é a vinculação exclusiva de nosso universo de pesquisa ao Ocidente Latino. Em documento recentemente divulgado por um dos laboratórios de pesquisa brasileiros, em cujas fileiras trabalham juntos medievalistas, mas também antiquistas e pesquisadores dedicados à História Contemporânea, os pesquisadores assim se expressaram: 1 http://bncc.seduce.go.gov.br/?page_id=21 (acesso em 29 de novembro de 2015). http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/10/janine-diz-que-falta-de-repertorio-em-novo-curriculoproposto-para-historia.html (acesso em 29 de novembro de 2015). 2 Priorizar o estudo da África a partir do século XVI é empobrecer a História de um continente e ignorar os trânsitos culturais entre o Magreb e a Península Ibérica, também formadores da nossa identidade brasileira, via convivência entre muçulmanos e cristãos na Península Ibérica, ao longo de sete séculos. Os portugueses que chegaram ao Brasil não eram “isentos” de África, já traziam em si elementos linguísticos, étnicos e culturais africanos, muito anteriores ao início do tráfico de escravos para o Brasil. Basta lembrar que o nascimento de Al-Andaluz se fez, sobretudo, com contingentes de muçulmanos africanos que vieram a estabelecer moradia na Península Ibérica. Ao longo de boa parte da Idade Média, houve luta, mas também convivência pacífica entre os povos do livro. Alunos do Ensino Médio precisam entender que a paz já foi alcançada entre muçulmanos e cristãos que compartilharam o mesmo território. Isso tem grande ressonância no mundo em que vivemos. Ainda sobre o estudo da África, a ênfase a partir do século XVI, prejudica a compressão de um Magreb formado por cortes brilhantes, em que sobressaiu, por exemplo, um dos maiores historiadores medievais, Ibn Khaldun (1332-1407). Lembremo-nos que esse sábio muçulmano fazia viagens pelo Mediterrâneo, entre terras islâmicas e cristãs e era recebido com honra pelas suas margens! Lembremo-nos ainda que ele é responsável por uma importante metodologia história, bem como por uma percepção da passagem do tempo, que o BNCC parece ter ignorado. 3 Está claro, portanto, que não se trata de “defender” a História Europeia ou de subscrever posições conservadoras4, mas sim de se manifestar em favor do acesso a um patrimônio cultural diversificado, cujo conhecimento é fundamental em um mundo que passa por grandes transformações sociais, um mundo que tem colocado frente a frente diferenças que só a ciência do outro será capaz de fazer dialogar e acolher. Não estamos lidando apenas com as diferentes formas de se ensinar o passado, mas também com a formação de cidadãos, suas concepções a respeito da sociedade, sua inserção no mundo. Estamos falando de cidadãos em um mundo globalizado no qual, diga-se de passagem, as fronteiras tradicionais estão em transformação ou são radicalmente postas em xeque. 3 Documento produzido pelo NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos), disponível em: http://nemed.he.com.br/nemed-sobre-o-bncc-historia-especialmente-o-ensino-medio/ (acesso em 30 de novembro de 2015) 4 http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2015/11/1709478-proposta-de-ministerio-que-altera-ensino-dehistoria-causa-reacoes.shtml?cmpid=compfb (acesso em 29 de novembro de 2015). Nesse sentido, a crítica da História Nacional, ou ainda, a incorporação da História Indígena ou da História da África, não constituem, em si, um problema. O problema está em fazer essa incorporação em detrimento de processos históricos que dão sentido ao mundo atual e mesmo às trajetórias dos povos dos continentes africano e americano após o final do século XV. Entendemos que os conteúdos de história Antiga e Medieval na educação básica são indispensáveis ao desenvolvimento da capacidade reflexiva dos estudantes para lidar com aspectos político-culturais que compõem as nossas experiências cotidianas, tanto no campo das práticas religiosas, como o cristianismo, quanto no campo das práticas políticas, como concepção de democracia e res publica, para citar alguns exemplos; além disso, contribui para desnaturalizar a forma como nossa sociedade está organizada, porquanto permite entendê-la como uma invenção humana.5 Na BNCC, sobressai, portanto, a supressão de conhecimentos que integram o patrimônio cultural do Brasil e a ênfase no estudo da História a partir do século XVI. A academia não pode concordar com essas escolhas, dificilmente sustentáveis do ponto de vista científico. É tão evidente o equívoco dessa amputação que a própria Capes tem se inclinado ao fomento da História não nacional6. Como fazer convergir a legitimidade e o reconhecimento da pesquisa nas áreas de Antiga e Medieval que a Capes e o CNPq têm dado a seus pesquisadores com a proposta do Ministério da Educação? A dissonância entre a distinção que as agências governamentais têm dado a associados da ABREM e a forma como a elaboração do documento, para os quais esses pesquisadores deveriam ter sido convocados a colaborar, é flagrante. A Associação, porém, desde seu início tem investido toda a sua energia na convergência, afinal agrega pesquisadores das áreas de Filosofia, História, História da Arte e Letras, e quer levar essa experiência à Base. Esta carta expressa uma forte preocupação com a formação das crianças e adolescentes que sonham com o Egito Antigo; que se reúnem para jogos ambientados na Idade Média; que leem livros que os fazem se perguntar: “quais são os limites entre História e Ficção?”; que lotam salas de cinema quando os filmes propõem histórias de 5 Fragmento da carta aberta (data do Recife, 25 de novembro de 2015) dos Professores universitários da Região Norte e Nordeste do Brasil, divulgada no grupo virtual da ABREM. 6 http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v22n3/0104-5970-hcsm-22-3-1019.pdf (acesso em 29 de novembro de 2015). cavaleiros ou abadias em que sucedem mistérios...; jovens que têm o direito de compreender por que a língua que falam é mais próxima da língua de Camões que podem suspeitar; que na fruição da leitura de uma peça de Ariano Suassuna está a densidade do Movimento Armorial, que inclui a Idade Média (!) e que devem conhecer a formação da cultura política de seu país, não a fim de construir linhas ininterruptas entre o passado e o presente, mas para analisarem as escolhas da sociedade de que fazem parte. Essa carta expressa preocupação, mas um autêntico desejo de colaborar. Reconhecemos o esforço dos colegas que foram convidados pelo MEC para elaborarem a BNCC. Os pesquisadores associados da ABREM estão respondendo ao seu convite para a inserção de colaboração à Base, mas queremos fazer mais. Colocamos nossa energia, pesquisa e experiência à disposição do Ministério e da comissão formada por ele. Grupos e laboratórios reconhecidos pela CAPES e pelo CNPq querem colaborar porque as áreas de Antiga e Medieval são áreas consolidadas no Brasil e as crianças e jovens brasileiros precisam ter acesso à pesquisa que fazemos para eles, para a fundamentação do espírito crítico que há de ajudá-los a serem os cidadãos de que seu país, nosso país, precisa. Diretoria da ABREM Novembro de 2015.