pela constituição de sujeitos autônomos!
Educomunicação e Software Livre
Donizete Soares1
O que educomunicação tem a ver com software livre? Que da comunicação se aproxime, vá lá –
afinal para que servem os softwares senão para a comunicação? Mas educação + comunicação
[é assim que a educomunicação é geral e equivocadamente apresentada], o que tem a ver com
software livre? Que relações são possíveis entre esses campos de saber e prática?
Perguntas como estas me levaram a produzir este texto2, que tem como objetivo apresentar algumas aproximações entre educomunicação e software livre. Ambos os campos são razoavelmente
recentes e disponíveis a muitas explorações e, por isso, despertam os mais diversos interesses,
inclusive o de serem entendidos com maior profundidade.
Convém, então, observá-los e tecer considerações que muito aproximam esses campos. Podemos dizer, logo de início, que há elementos, características, aspectos mais que suficientes para
afirmarmos que software livre e educomunicação partilham de história parecida, circundam e expressam o mesmo conceito e, de forma peculiar, adotam procedimentos bastante similares.
História
Tanto educomunicação como software livre surgiram na segunda metade do século 20, no continente americano, num tempo em que ainda eram fortes os reflexos das guerras mundiais e seus
desdobramentos, que fizeram daquele o 'século mais sangrento da história', conforme o autor de
'A era dos extremos', Eric J. Hobsbawm.
O neologismo 'educomunicação' foi criado por Mário Kaplún, pensador e ativista argentino, nos
anos de 1970, possivelmente para nomear diversas ações parecidas com as que ele realizou em
vários cantos latino-americanos. Por educomunicação ele entendia 'educação para a comunicação'. Suas intenções ao ligar educação e comunicação, entretanto, visavam muito mais que uma
simples leitura crítica de produções midiáticas, em especial o cinema e o rádio. Pretendiam fazer
da aprendizagem, preparo para a atuação política, exigindo dos grupos participantes, além de
compreensão, postura crítica em relação ao mundo configurado para a América Latina, à época vivendo sob várias modalidades de ditadura civil e militar.
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Professor de filosofia e co-responsável pelo iGENS
Escrito em São Paulo, no mês de maio de 2014
A educomunicação surgiu, então, num contexto sócio-político-cultural que demandava pessoas interessadas em alterar aquele cenário ou, mais exatamente, por sujeitos históricos vocacionados
para ideais democráticos. Para tanto, era preciso que educação e comunicação não fossem tratadas como 'disciplinas' separadas uma da outra – como convém a uma certa visão tecnicista do
mundo –, mas como saberes que conversam entre si, que estão inter-relacionados.
À medida que 'a comunicação é uma via de mão dupla', a educação uma vez pensada e repensada – assim como a política, a saúde, a economia, a cultura, a tecnologia... – pode vir a ser mais do
que instrumento de poder nas mãos de quem precisa da submissão dos outros para viver, dentre
eles, os que habitavam um pedaço do mesmo solo americano, que muito lucraram com as guerras
mundiais e seus desdobramentos. Em especial, lucraram – e ainda lucram – seja pela força das
armas, seja pela colonização cultural, fazendo da América Latina um grande mercado consumidor,
em particular, de tecnologia.
Pois foi justamente nesse espaço controlador de mercado – e de cabeças –, concentrador de riqueza e fértil para o crescimento dos que centralizam informações que geram riqueza, que surgiu
algo como que o seu contrário: no lugar de códigos e informações a sete chaves trancados, o
software livre, disponível para toda e qualquer pessoa. Ou seja: o que durante mais de 20 anos
era restrito apenas aos que dominavam a tecnologia nas grandes empresas e nos equipamentos
governamentais, a partir dos anos de 1980 teve – e tem – de conviver com códigos e informações
que primam pelo fato de serem acessíveis, copiáveis, redistribuíveis e modificáveis.
Quem esteve à frente do 'Movimento do Software Livre' foi o então funcionário do laboratório de
inteligência artificial do MIT, Richard Stallman. Em 1983, fora do ícone da era tecnológica, Stall man lançou o Projeto GNU – algo como 'GNU's Not Unix', referindo-se ao sistema operacional
que, antes aberto aos desenvolvedores, a empresa dona do sistema, a partir de 1979, restringiu licenças visando lucrar com o Unix.
O Projeto GNU foi e continua sendo responsável por uma série de softwares livres, permitindo que
um número cada vez maior de pessoas use e abuse dessas criações no sentido de que seus códigos estão abertos e, portanto, cada um pode usá-lo de acordo com suas necessidades. Outro sujeito importante na história do software livre é o finlandês Linus Torvalds – outro nada satisfeito
com os recursos do Unix e do Minix [adaptação do Unix] – que desenvolveu o kernel ou 'núcleo'
do sistema operacional, e o chamou de Linux. Assim surgiu o primeiro sistema computacional livre, o GNU/Linux.
É claro que esses dois nomes são apenas alguns dos tantos outros que ativamente participaram
dos processos que resultaram no software livre. É claro também que essa história, assim como a
história da educomunicação, é longa e complexa – aliás, há alguma história que não seja longa e
complexa? Mas o que interessa, aqui, é mostrar que historicamente educomunicação e software
livre mais que se aproximam: surgem na mesma época e são reações ao autoritarismo de governos e empresas, cujos interesses são somente dominar e lucrar.
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Conceito
Há pelo menos um conceito que sustenta teorias e práticas, tanto da educomunicação quanto do
software livre, que, sem ele, não é honestamente possível se referir a cada um desses dois campos de pesquisa e ação: a liberdade.
Ou seja: se entendermos por educomunicação algo mais do que a simples e equivocada junção
de educação e comunicação – tendo em vista, sobretudo o quê e o como, de fato, acontece nas
instituições escolares e nos ditos 'meios de comunicação social' – veremos que, assim como educação e comunicação, a educomunicação é fenômeno social, isto é, expressão de relações pessoais em grupos sociais insatisfeitos com a situação em que vivem e, portanto, interessados nas
reais e possíveis alterações dessa realidade. Vale dizer: educação, comunicação e educomunicação são fenômenos sociais que expressam necessidades e reais possibilidades de satisfação dessas necessidades.
Diga-se o mesmo a propósito do software livre [fenômeno social que expressa insatisfação e interesse em alterar códigos que privam a liberdade das pessoas], que traz na sua própria denominação a razão de ser de sua existência: 'ser livre'. Diferentemente da educomunicação, que surge
em meio a segmentos chamados 'populares' [essencialmente porque não dominam – em especial,
mas não só – o código escrito], o software livre tem origem no meio acadêmico e, talvez por isso,
tenha conseguido, logo de início, formular com extrema clareza não apenas a quê e por quê veio:
“Software livre é o software que respeita a liberdade do usuário e a solidariedade social de sua
comunidade. Os programas que não são livres são software proprietário, ou seja, privam o usuário de sua liberdade e os mantém em um estado de desunião e impotência. Desunião porque
cada um é proibido de compartilhá-lo com os outros, e impotência porque os usuários não possuem o código-fonte do programa. Ou seja, não podem trocar nada, nem sequer podem averiguar o
que realmente o programa está fazendo, e o programa pode fazer coisas muito ruins.” - como diz
Robert Stallman num pequeno vídeo publicado no site do GNU, que vale a pena ser visto, discutido e divulgado.
Ainda de acordo com o criador do Movimento Software Livre, o usuário de código aberto tem quatro liberdades essenciais: liberdade 0 – “executar o programa como queira”; liberdade 1 – “estudar
o código-fonte do programa e alterá-lo para que o programa faça o que se deseja”; liberdade 2 –
“ajudar ao seu próximo, ou seja, a liberdade de fazer e distribuir cópias exatas do programa tanto
quanto queira”; liberdade 3 – “contribuir com a sua comunidade, a liberdade de fazer e distribuir
cópias de suas versões modificadas do programa”.
O elogio à liberdade presente nesses princípios [princípio é começo, início, mas é também o que
permanece] nos aproxima e nos torna humanos, afinal, há algo mais profundo e revelador do humano de cada um de nós do que a necessidade e o sonho de ser livre?
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A não ser a busca e a prática da liberdade, não há outro compromisso e não pode ser outro o ob jetivo de quem realiza ações na perspectiva da educomunicação. Ora, não há educação realmente se quem educa não nutre o mais profundo respeito pelo outro; também não há comunicação realmente se não são sujeitos [isto é, indivíduos que se sabem humanos] que trocam informações
entre si. Educação e comunicação, portanto, somente são possíveis se o que as move do início ao
fim é a busca e o exercício da liberdade; caso contrário, servem apenas de nomes de práticas que
a cerceiam. Sendo assim, somente quando tratamos educação e comunicação como expressões
de cultivo da liberdade faz sentido afirmar que educomunicação = educação + comunicação; caso
contrário, é tão somente um neologismo que serve para denominar ações que primam por privar
os indivíduos de se tornarem sujeitos de suas próprias histórias.
Metodologia
Por metodologia entende-se pesquisa, estudo e escolha do ou dos caminhos mais adequados
para se chegar a um determinado lugar ou atingir determinado objetivo. São os caminhos e/ou
procedimentos da educomunicação e do software live, portanto, que vale observar e constatar que
também nesse aspectos os dois campos de pesquisa e ação mantém profundas aproximações.
No vídeo, Stallman fala que “o software livre respeita a liberdade do usuário e a solidariedade social de sua comunidade” e, de modo incisivo, lembra que “a escola tem a missão de ensinar não
somente sobre fatos, não só técnicas, mas sobretudo o espírito da boa vontade e o hábito de ajudar ao próximo”. Como fazer isso? Adotando e sistematicamente disseminando o software livre, já
que as linhas de código, uma vez abertas e disponíveis, permitem que os estudantes, caso queiram, possam copiá-las, alterá-las, distribuí-las... Ocorre que práticas como essas vão além da técnica de manipular códigos e afins. O aprendizado decorrente delas propicia não apenas o fortalecimento do indivíduo, mas o leva a perceber que os saberes que ele detém resultam de saberes
acumulados na história da humanidade. Portanto, o saber não é dele e somente tem valor se ele
compartilhar o que sabe com outros que, como ele, sabem o que ele sabe e também o que ele
não sabe. Mais ainda: tal forma de aprendizado leva os estudantes a perceberem a existência do
outro como necessária e fundamental para a existência de si mesmos e de cada um dos outros –
condição necessária para se pensar e falar em comum, grupo, comunidade.
Bem ao contrário dos que se comprazem [agem de modo condescendente] com a interpretação
tendenciosa dos escritos de Darwin, segundo a qual 'somente os mais fortes vencem', justificando
assim a competição [motor do sistema econômico-político-cultural que tem o capital como centro],
solidariedade ou apoio mútuo é o que essencialmente caracteriza as relações humanas e sociais
nos espaços do software livre. Adotando formas de auto e/ou de co-gestão, indivíduos e grupos ou
comunidades ao redor do mundo, incansavelmente debruçam-se sobre linhas de código e criam e
recriam informações... e as distribuem livremente.
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Ora, nada disso é diferente quando falamos da educomunicação como 'campo de pesquisa, de
reflexão e de intervenção social, cujos objetivos, conteúdos e metodologia são essencialmente diferentes tanto da Educação Escolar quanto da Comunicação Social'. Ou seja, quando tratamos da
educomunicação = educação + comunicação [enquanto fenômenos sociais que expressam necessidades e sonhos, que podem ser satisfeitos e almejados porque fundados nos princípios da liberdade], os caminhos e/ou procedimentos, tendo em vista a solidariedade ou apoio mútuo, são
os da co-gestão ou compartilhamento de aprendizagens nos processos de produção coletiva de
comunicação que, aliás, do nosso ponto de vista [iGENS], é a condição sem a qual não há educomunicação. É o que chamamos 'Educação pelos Meios de Comunicação', somente possível se
educação e comunicação resultarem da ação efetivamente livre – só não fala e faz quem não quiser – dos participantes dos grupos que optam pela produção coletiva de comunicação, entendendo que produzir, neste sentido, é o mesmo que engendrar, originar, ocasionar, ou seja, inventar o
que ainda não é, o que ainda não existe, mas que pode vir a ser, que pode existir.
Enfim
Como se vê, as aproximações entre software livre e educomunicação são mais que possíveis.
Que os fundamentos de cada um desses campos de pesquisa e ação sejam tão importantes e essenciais a ponto de que, sem eles, não se pode honestamente falar em software livre e nem em
educomunicação – como, a meu ver, de fato, o são –, todavia, no momento, ao que parece, só é
possível observar e tecer algumas considerações.
No Brasil atual, o campo da educomunicação, graças à ignorância e uns e ao oportunismo de outros [sempre de plantão em busca de projeção pessoal e alguns trocados], o que mais temos visto
são ações mascaradas de educação + comunicação, mas comprometidas com a reprodução social e deixando de lado as reais possibilidades de realização de ações, projetos e programas, visando alterações sociais não porque alguém decidiu, mas porque os indivíduos livremente optaram
por isso, ainda estão longe da compreensão da educomunicação como intervenção social. Com
relação ao software livre, certamente porque ainda não é um 'produto' que ameaça o mercado, os
riscos de deturpação de seus princípios, ao menos por enquanto, são menores. Por outro lado, a
falta de opção política, investimento material [em especial nas redes escolares] que incentiva e
possibilita e criação de comunidades de desenvolvedores, não só dificultam a divulgação e o conhecimento do seu modo essencialmente livre de ser e de acontecer, mas contribuem, paradoxalmente, para que não saiamos da histórica condição de colonização cultural.
É possível que atropelos como estes sejam menos devastadores se os que navegam pelas mesmas águas – desde que decididamente identificados e efetivamente comprometidos com a busca
e o exercício da liberdade [indivíduos em processo de constituição de sujeitos autônomos] – se
encontrarem e conversarem mais. Compartilhar processos, certamente, é bem interessante.
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