Leia o texto e em seguida responda em seu caderno: 1) 2) 3) 4) Quais as características da liberdade? O que é determinismo? Como conciliar liberdade e determinismo na vida humana? Disserte: Afinal, somos livres? Texto do livro: Filosofando - Introdução à filosofia Maria Helena Pires Martins, Maria Lúcia de Arruda Aranha CAPÍTULO 30 A LIBERDADE Não há determinismo ou escolha absoluta: jamais sou coisa, jamais sou consciência nua. (Merleau-Ponty) 1. Introdução As Moiras, divindades da mitologia grega, são três irmãs que dirigem o movimento das esferas celestes, a harmonia do mundo e a “sorte dos mortais”. Elas presidem o destino (moira, em grego) e dividem entre si as Diversas - funções: Cloto, que significa "fiar", tece os fios dos destinos humanos; Láquesis, que significa "sorte", põe o fio no fuso; Átropos, ou seja, "inflexível", corta impiedosamente o fio que mede a vida de cada mortal. Está implícita nesse mito a ideia de que a ação humana se acha ligada aos desígnios divinos. Os relatos de Homero e Hesíodo revelam como os heróis até se orgulham de ser escolhidos por certos deuses, que os fazem seus protegidos, defendendo-os da ação malévola de outros deuses. Vamos reler agora a citação do psicólogo americano Watson feita no Capítulo 16: "Deem-me doze crianças sadias, de boa constituição, e a liberdade de poder criá-las à minha maneira. Tenho a certeza de que, se escolher uma delas ao acaso, e puder educá-la, convenientemente, poderei transformá-la em qualquer tipo de especialista que eu queira - médico, advogado, artista, grande comerciante, e até mesmo em mendigo e ladrão - Independente de seus talentos, propensões, tendências, aptidões, vocações e da raça de seus ascendentes". Prosseguindo nesse ideal de controle do comportamento, Skinner, outro psicólogo experimental, imagina uma utopia no romance Walden II, onde todos os atos humanos seriam cientificamente planejados e controlados. Aí as pessoas são felizes, pois os técnicos e cientistas cuidam para que elas queiram fazer precisamente as coisas que são melhores para elas e para a comunidade. Nesse mundo, as questões sobre determinismo e liberdade são reduzidas a pseudoquestões de origem linguística... O mito relatado no primeiro parágrafo perde-se no tempo da história da Grécia Antiga. Homero talvez tenha vivido no século IX a.C. e sabe-se que ele apenas recolheu as histórias transmitidas desde longo tempo pela tradição oral. Já os americanos Watson e Skinner, psicólogos da corrente comportamentalista, são nossos contemporâneos. O que distingue essas duas posições tão distantes no tempo é que a primeira é mítica e a segunda, científica, O que as aproxima é que, em ambos os casos, inexiste a liberdade humana, porque no mito o homem se acha submetido ao destino inexorável, e no discurso científico daqueles psicólogos o homem está sujeito ao determinismo. Tentaremos colocar a questão da liberdade sob um ponto de vista diferente, examinando inicialmente duas posições antagônicas - o determinismo e a liberdade incondicional - para em seguida apresentar a superação dessa dicotomia humana. Watson. apud E. Heidhreder, Psicologias do século XX. p. 218. 2. O que é determinismo Segundo o determinismo científico, tudo que existe tem uma causa. O mundo explicado pelo princípio do determinismo é o mundo da necessidade, e não o da liberdade. Necessário significa tudo aquilo que tem de ser e não pode deixar de ser. Nesse sentido, a necessidade é o oposto de contingência, que significa “o que pode ser de um jeito ou de outro”. Exemplificando: se aqueço uma barra de ferro, ela se dilata; a dilatação é necessária, no sentido de que é um efeito inevitável, que não pode deixar de ocorrer. No entanto, é contingente que neste momento eu esteja usando roupa vermelha ou amarela. Ora, se a ciência não partisse do pressuposto do determinismo, seria impossível estabelecer qualquer lei. A física, a química, a biologia se constituíram em ciências ao longo dos três últimos séculos procurando descobrir as relações constantes e necessárias entre os fenômenos. Não haveria conhecimento científico se tudo fosse contingente, isto é, pudesse acontecer ora de uma forma, ora de outra. Já no século XVIII, os materialistas franceses D'Holbach e La Mettrie explicam os atos humanos como simples elos de uma cadeia causal universal, O físico Laplace resumiu assim esse determinismo: "Um calculador divino, que conhecesse a velocidade e aposição de cada partícula do universo num dado momento, poderia predizer todo o curso futuro dos acontecimentos na infinidade do tempo". No século XIX, o positivismo, na ânsia de aplicar o mesmo método das ciências da natureza às ciências humanas, estende a estas o determinismo, considerando a escolha livre unia mera ilusão. A psicologia de Watson e Skinner reflete, no século XX, a influência da visão positivista nas ciências humanas. Um dos discípulos de Comte, Taine (1828-1893), tornou-se conhecido sobretudo pelas leis da sociologia, segundo as quais toda vida humana social se explicaria por três fatores: A raça, que é a grande força biológica dos caracteres hereditários determinantes do comportamento do indivíduo; O meio, pelo qual o indivíduo se acha submetido aos fatores geográficos (como o clima, por exemplo), bem como ao ambiente sociocultural e às ocupações cotidianas da vida; O momento, pelo qual o indivíduo é fruto da época em que vive, estando subordinado a uma determinada maneira de pensar característica do seu tempo. O pressuposto do pensamento de Taine é o determinismo, pois o ato humano não é livre, já que é causado por esses fatores e deles não pode escapar. Vamos encontrar o reflexo dessa visão determinista na clássica teoria de Lombroso, jurista que pretendia, pela análise das características físicas dos indivíduos, identificar o criminoso "nato". Também a literatura foi influenciada pelo determinismo positivista: a estética naturalista1 oferece inúmeros exemplos da tentativa de explicar o comportamento humano como decorrente de fatores determinantes, sem nenhuma possibilidade de transcendência. Émile Zola, romancista francês, afirmou: "O romance experimental é uma consequência da evolução científica do século; cabe-lhe continuar e completar a fisiologia...; ele substitui o estudo do homem abstrato, do homem metafísico, pelo estudo do homem natural, submetido às leis físico-químicas e determinado pelas influências do meio". 3. A teoria da liberdade incondicional Contrapondo-se ao determinismo, há teorias que enfatizam a possibilidade da liberdade humana absoluta, do livre-arbítrio, segundo o qual o homem tem o poder de escolher um ato ou não, independentemente das forças que o constrangem. Segundo essa perspectiva, ser livre é decidir e agir como se quer, sem qualquer determinação causal, quer seja exterior (ambiente em que se vive), quer seja interior (desejos, caráter). Mesmo admitindo que tais forças existam, o ato livre pertence a uma esfera independente em que se perfaz a liberdade humana. Ser livre é, portanto, ser incausado. Bossuet (séc. XVII). no Tratado sobre o livre-arbítrio, diz o seguinte: "Por mais que eu procure em mim a razão que me determina, mais sinto que eu não tenho nenhuma outra senão apenas a minha vontade: sinto aí claramente minha liberdade, que consiste unicamente em tal escolha. E isto que me faz compreender que sou feito à imagem de Deus". 4. Superação da dicotomia Determinismo ou liberdade? 1 No Brasil, enquadram-se nessa linha os romances de Aluísio Azevedo: O mulato, O cortiço e Casa de pensão. Afinal. "o homem é livre ou é determinado?" A questão assim colocada gera um falso problema. Na verdade, o homem é determinado e é livre. É preciso considerar os dois polos contraditórios, superando o materialismo mecanicista, segundo o qual o homem é determinado bem como a tese da liberdade incondicional. Segundo a concepção dialética, embora os polos determinismoliberdade se oponham, na verdade estão ligados: “o homem é realmente determinado”, pois se encontra situado em um tempo e espaço e é herdeiro de certa cultura; mas o homem é também um ser consciente, capaz de conhecer esses determinismos; tal conhecimento permitirá a ação transformadora que, a partir da consciência das causas (e não à revelia delas), pode construir um projeto de ação. Portanto, só a consciência do determinismo não é suficiente, pois a liberdade se torna verdadeira quando acarreta um poder, um domínio do homem sobre a natureza e sobre a sua própria natureza. A consciência que o homem tem das causas se transforma, por sua vez, em outra causa, capaz de alterar a ordem das coisas. Com isso, não se rompe o nexo causal, mas introduz-se outra causa a consciência do determinismo - que transforma o homem em ser atuante, e não simples efeito passivo das causas que agem sobre ele. Vejamos o exemplo da ação do vírus da tuberculose no corpo humano: pela ordem natural da ação das causas, a morte é inevitável. Pelo menos era assim no século passado, e a despeito da aura romântica que envolvia os jovens poetas tuberculosos, a doença era implacável. Quando Locke descobre o nexo causal da doença, pela ação do bacilo, o conhecimento das causas possibilita a ação efetiva: remédios, alimentação, clima, repouso etc.., e eis o fantasma da doença letal deixando de assombrar as pessoas. O filósofo personalista Mounier diz: "Enquanto se desconheceram as leis da aerodinâmica, os homens sonhavam voar; quando o seu sonho se inseriu num feixe de necessidades, voaram". Lembremos aqui o significado do conceito de necessidade. Descobrir o feixe de necessidades é conhecer as leis da aerodinâmica, ou seja, saber o que faz voar um corpo mais pesado do que o ar. Não há mágica: há conhecimento dos determinismos. O sonho se concretiza no trabalho do homem como ser consciente e prático. Do ponto de vista psicológico, ocorre o mesmo processo. Suponhamos que alguém tenha um temperamento agressivo. Se ele se reconhece assim, cuida para não ser levado pelo impulso, para saber usar a agressividade conforme a ocasião e conveniência. Aliás. uma das grandes contribuições de Freud é ter mostrado que o neurótico não é livre, pois se acha dominado por forças inconscientes que mascaram suas ações. A atitude obsessivo-compulsiva, como a de lavar as mãos seguidamente, por considerá-las sempre sujas ou cheias de micróbios, não representa o ato livre de alguém preocupado com a higiene. Trata-se de um sintoma e, portanto tem um significado latente, oculto, que pode ser investigado. A interpretação é sempre relativa a cada caso concreto, mas, para fins de exemplificação, vamos supor que o significado fosse a culpa resultante de desejos sexuais reprimidos e considerados "sujos" pelo paciente. A cura da neurose estaria em trazer à consciência a causa escondida, ajudando o paciente a lidar com o seu próprio desejo. A liberdade situada O que observamos na posição que pretende superar a antinomia determinismo-liberdade é que a discussão sobre liberdade não se faz no plano teórico, a partir do conceito da liberdade abstrata. Ao contrário, trata-se da liberdade do homem situado, do homem enquanto ser de relação. Na linguagem da fenomenologia, traduzimos esses dois polos como sendo a facticidade (ou imanência) e a transcendência humanas. Polos antitéticos (ou seja, contraditórios, relativos à tese e a antítese), mas indissoluvelmente ligados. A facticidade é a dimensão de "coisa" que todo homem tem, é o conjunto das suas determinações. São os "fatos" (donde facticidade) que estão aí, tais como são e sem possibilidade de ser de outra forma. O fenomenólogo Luijpen diz: "Refletindo sobre sua existência, o homem se encontra, com efeito, como 'já' imerso em determinado corpo e 'já' envolvido em determinado mundo. Acha-se como holandês, judeu, inteligente, aleijado, operário, emocional, doente, rico, gordo, ou outra coisa qualquer. Tudo isto constitui o que ele já é. a saber, seu passado. Esse 'já' é também chamado a 'determinação' do homem". A transcendência é a ação pela qual o homem executa o movimento de se ultrapassar a si mesmo. E a sua dimensão de liberdade. A liberdade não é uma dádiva, algo que é dado, nem é um ponto de partida, mas é o resultado de uma árdua tarefa, alguma coisa que o homem deve conquistar. A liberdade não é a ausência de obstáculos, mas o desenvolvimento da capacidade de dominá-los e superá-los. O filósofo francês Gusdorf conta que “um grande pintor, tendo feito em algumas sessões o retrato de um freguês, teve que ouvir deste a objeção que o preço exigido era muito alto por algumas horas de trabalho”. “Algumas horas’, respondeu o artista”. "mas toda a minha vida”. Isso significa que a aparente simplicidade do trabalho executado naquele curto espaço de tempo na verdade era o resultado de muita disciplina e domínio das dificuldades enfrentado durante longo período de aprendizado. A juventude é a fase em que se torna mais forte a reivindicação de liberdade. Mas também é o período em que se inicia o exercício desse poder. Por isso, ainda segundo Gusdorf, "a liberdade adolescente é uma adolescência da liberdade, uma liberdade de aspiração (...). A juventude é o tempo de aprendizado da liberdade". É importante rever o Capítulo 2 que trata do trabalho como forma por excelência do agir livre humano, a fim de melhor compreender como a alienação no trabalho é desumanizadora, por retirar do homem aquilo que o caracteriza fundamentalmente, ou seja, a capacidade de transcendência. 5. A estrutura do homem Tentaremos explicitar mais detalhadamente as conclusões a que chegamos até aqui. Como se dá o entrelaçamento de responsabilidade, liberdade e necessidade? É preciso examinar a estrutura do homem, e para tal usaremos o esquema utilizado pelo filósofo Van Riet6 como ponto de partida para sua teoria do conhecimento. Embora originalmente o ponto de referência para o filósofo tenha sido o homem enquanto sujeito que conhece, vamos fazer a adaptação à questão da liberdade, isto e, o homem enquanto ser livre. Segundo Van Riet, o homem possui uma estrutura formada por aspectos distintos, mas ligados entre si: empírico (ou corpóreo), pessoal (ou voluntário) e a perceptivo (ou intelectual). Aspecto empírico Chama-se empírico o aspecto da estrutura humana referente aos fenômenos que podem ser constatados pela experiência. O homem é um corpo e, como tal, está sujeito às leis da física (ocupa lugar no espaço, está sujeito à lei da queda dos corpos etc.). O homem é um corpo biológico, um organismo vivo, e responde às influências do mundo de forma coordenada: busca ar e alimento, se reproduz, herda e transmite caracteres segundo leis conhecidas pela genética. O homem é um ser psicológico e, como tal, percebe o mundo, reage emocionalmente a ele e elabora as próprias vivências. Por exemplo, o processo de aprendizagem se faz a partir de funções específicas que se desenvolvem gradativamente: não adianta querer ensinar álgebra a uma criança que ainda não aprendeu aritmética elementar. Isso sem falar na existência de caracteres patológicos que podem influenciar o comportamento das pessoas. O homem e um ser cultural, vive no meio humanizado, transformado por sua própria ação. Ao nascer, já recebe língua, costumes, moral, religião, organização econômica e política, uma história, enfim. E a isso que chamamos historicidade, ou seja, o homem se encontra sempre situado em determinada época, numa certa cultura. O aspecto empírico refere-se à facticidade humana. Se considerássemos apenas o aspecto empírico do homem, concluiríamos que ele é determinado e não é livre. Aspecto pessoal O aspecto empírico não é, entretanto, determinante de forma absoluta. Podemos constatar que, diante dos determinismos, o homem tem uma reação pessoal. O aspecto pessoal é também chamado voluntário, pois não se explica só pelo fato de o homem estar situado na sua facticidade, mas por ser capaz de transcender, decidir, escolher, e, consequentemente, de ser responsável por seus atos, comprometido neles, engajado numa ação. Exemplo interessante é o da linguagem, que faz parte do aspecto empírico, já que se trata de um fato da cultura herdada. No entanto, as mesmas palavras usadas por todos podem ser organizadas de modo original, de tal forma que é possível reconhecer o estilo inconfundível de cada um. Isso decorre da originalidade e criatividade humanas. Nossa própria experiência pode ser retomada em vários sentidos diferentes: nunca lemos o mesmo livro da mesma forma, nossas lembranças são reelaboradas nos contextos vividos; descobrimos coisas novas a cada vez que ouvimos a mesma musica. Mas aí surge um problema: se o aspecto pessoal justifica a liberdade do homem, e essa liberdade é pessoal e intransferível, cabe a cada homem decidir sobre o que é melhor para si; querer determinar o que é melhor para todos seria violar a liberdade de cada um. Entretanto, o resultado de tal postura sem dúvida individualista é o relativismo moral e o solipsísmo (o homem voltado para si mesmo e incapaz de comunicar-se com o outro). Tal posição é muito comum hoje em dia. principalmente quando as pessoas “justificam o individualismo dos seus atos: “Estou na minha...” Permanecer nesse estágio pessoal resulta em empobrecimento da moral, pois o indivíduo não é capaz de descentrar-se de si próprio”. Aspecto a perceptivo O terceiro aspecto da estrutura do homem chama-se a perceptivo, porque se procura fazer uma abordagem além da percepção, e que portanto seja abstrata, conceitual. intelectual. Nesse aspecto as afirmações subjetivas aspiram à objetividade, permitindo ao sujeito a superação das contingências da própria experiência e colocando-se do ponto de vista dos outros. A descentralização do sujeito em busca da relação intersubjetiva (isto é, entre os sujeitos) possibilita a comunicação e retira o indivíduo do seu universo fechado. Retomemos o exemplo da linguagem: pelo aspecto empírico, ela é um determinismo, pois a recebemos como herança cultural; pelo aspecto pessoal, transcendemos o determinismo pela elaboração original de um discurso criador e pessoal; pelo aspecto a perceptivo, por mais original que seja nosso discurso, nós nos fazemos entender, pois existe na linguagem o sentido intersubjetivo que supera o pessoal. Conclusão Fizemos a exposição dos três aspectos da estrutura do homem em determinada sequência, o que não deve ser entendido como três momentos isolados que surgem nessa ordem de experiência. A moral é tecida na trama dos três aspectos que, embora contraditórios, se acham indissoluvelmente ligados. Prender-se ao aspecto empírico é mergulhar na heteronomia, é regular-se por leis externas, é sucumbir ao determinismo. Privilegiar o aspecto pessoal é negar a dimensão intersubjetiva da moral. Ater-se exclusivamente ao aspecto a perceptivo é tornar a moral e a liberdade conceitos abstratos e descarnados. A relação que se estabelece entre os três aspectos é dialética, pois supõe a reciprocidade de influências, em que a atuação de um aspecto, mesmo "negando" o outro, de certa forma o "conserva". Só assim será possível superar a heteronomia, indo em direção à autonomia: a realização do ato moral livre.