Apontamentos de Aula – Livre Arbítrio (1) 1. Leitura do texto de Savater Causalidade e Autodeterminação 2. Análise 2.1 Justificação para o louvor atribuído a Heitor (e contraste com as térmitas) 2.2 Liberdade como Autodeterminação 2.3 Heitor e as causas do seu comportamento 2.4 Formulação do problema do livre arbítrio 2.1.1 O louvor de Heitor é justificado porque: (1) Heitor não tinha inevitavelmente de enfrentar Aquiles em combate; podia seguir outro caminho: por exemplo, fingir-se doente e recusar-se a combater. Tinha, portanto, cursos alternativos de acção1 ao seu dispor. (2) Optar por um ou outro desses cursos alternativos de acção apenas dependia de Heitor: é ele o autor das suas acções. Heitor não nasceu herói; tornou-se herói ao decidir sê-lo. 2.1.2 As térmitas não merecem louvor porque: (1) As térmitas-soldado comportam-se sempre da mesma forma quando o seu formigueiro está em perigo. Mesmo que quisessem não poderiam evitar agir assim porque é essa a sua natureza. O seu comportamento é causado pelo programa genético2 que herdaram e que exclui que elas adoptem outros cursos alternativos de acção sempre que o formigueiro é atacado. (2) O curso de acção adoptado não depende delas: as térmitas-soldado não escolheram sacrificar-se para salvar as outras térmitas. Isso foi-lhes imposto pela sua natureza (os seus genes). Entende-se por curso alternativo de acção qualquer opção que esteja disponível ao agente e que este possa pôr em prática. 1 2 Entende-se por programa genético aquilo para o qual os genes predispõem o organismo. Trata-se do conjunto de instruções bioquímicas que fazem com que um organismo desenvolva características de determinado tipo, como a cor dos olhos, asas em vez de mãos, etc. Estas instruções estão no núcleo das células; os genes são o alfabeto em que estão escritas, são as unidades básicas que as compõem. 2.2 Liberdade como Autodeterminação As diferenças detectadas acima entre o comportamento de Heitor e o das térmitas-soldado permitem-nos identificar em que condições uma acção deve ser considerada livre e em que condições o não é. Isto dá-nos a seguinte definição: um agente pratica livremente uma acção X se e somente se: (1) Tem ao seu dispor mais do que um curso alternativo de acção (2) Está sob o seu controlo (apenas depende dele) praticar ou não a acção Entendida deste modo, a liberdade é sinónimo de autodeterminação. Um agente possui autodeterminação quando é ele próprio (auto) que faz acontecer (determina) a acção. É isto que significa dizer que temos nas mãos o nosso destino ou que somos os autores do que virão a ser as nossas vidas. Supomos ser os autores da pessoa em que nos tornámos porque podíamos ter escolhido outro rumo para a nossa vida (condição 1) e ainda porque nos coube realmente a última palavra na escolha do caminho que seguimos, e a ninguém mais (condição 2). Exemplos de comportamentos não livres: a cleptomania3 ou alguém que entrega a carteira sob ameaça. Em qualquer dos casos o agente não tem o controlo da situação (mesmo que faça o que deseja fazer). 2.3 Heitor e as causas do seu comportamento Heitor enfrentou Aquiles voluntariamente; o seu comportamento foi intencional. Heitor enfrenta Aquiles voluntariamente porque deseja salvar Tróia dos invasores e acredita que, nas circunstâncias em que se encontra, enfrentar Aquiles em combate é uma maneira de evitar que os invasores consigam o que querem e um dever para com os seus concidadãos (a que não deseja fugir). Este desejo e esta crença, em conjunto, causaram o comportamento de Heitor. Mas podemos agora perguntar: o que terá dado origem a este desejo e esta crença? Qual a sua causa? Se Heitor não tivesse a personalidade que tinha (honesto, corajoso, com um forte sentido de responsabilidade para com os seus concidadãos, etc.) talvez optasse por fingir-se doente para não enfrentar Aquiles. A coragem e a honestidade são características que marcam a personalidade das pessoas. Este desejo e crença de Heitor têm origem na sua personalidade. Mas qual é a causa da personalidade de Heitor? Talvez algumas das características da sua personalidade já estivessem previstas nos seus genes e nascido com ele; outras, terá Os cleptomaníacos são pessoas que sofrem de uma tendência doentia e incontrolável para roubar, não conseguindo deixar de o fazer mesmo que isso implique grandes problemas para si próprias: com a justiça, etc. O cleptomaníaco deseja fazer o que faz (roubar), embora muitas vezes preferisse não ter esse desejo. 3 sido ao longo do seu desenvolvimento, através do contacto com o seu meio ambiente, que as adquiriu. Foram, portanto, os genes e a influência do meio ambiente que deram origem à sua personalidade (que a causaram). Mas em que consiste um acontecimento ser a causa de outro, ou um acontecimento ser o efeito de outro? A queda do pedaço de giz que seguro na mão, ao abri-la, é uma consequência (um efeito) da lei da gravidade (causa). O acender de um fósforo é uma consequência de: (i) haver oxigénio no ar; (ii) a lixa estar seca; (iii) a pressão do fósforo na lixa ser a adequada; (iv) o fósforo estar em condições. A ocorrência simultânea dos factores (i)-(iv) é a causa que torna fisicamente impossível o fósforo não acender (efeito). Uma barra de metal, aquecida até à temperatura apropriada sofre inevitavelmente (é uma lei da natureza) um aumento de volume (dilatação). Estas considerações sugerem a possibilidade de os genes de Heitor em conjunção com as condições ambientais em que se desenvolveu tornarem inevitável que Heitor viesse a ter a personalidade que tinha. Esta hipótese obriga-nos a colocar as seguintes questões: Poderia o comportamento de Heitor ser diferente mantendo-se inalteradas as causas que lhe deram origem? Poderia ele agir realmente de outra maneira tendo a personalidade que tinha e sendo as circunstâncias as que eram? E será que responder NÃO a estas questões implica que Heitor não enfrentou Aquiles livremente? Procuremos ver melhor. 1.4 Formulação do problema do livre arbítrio O problema filosófico do livre arbítrio pode ser formulado em termos gerais a partir do caso particular de Heitor. Começámos por afirmar que Heitor agiu livremente; em seguida, fomos levados a pensar que ele não podia ter agido de forma diferente tendo a personalidade que tinha. Ora, será possível conciliar estas duas ideias? À primeira vista, se Heitor agiu livremente, o seu comportamento podia ter sido diferente do que foi. Mas se o seu comportamento teve origem na sua personalidade (nos seus genes e meio ambiente), sendo esse meio e esses genes o que são, ele não poderia ter agido de outro modo. Parece, portanto, haver um choque entre estas duas ideias. Note-se que a possibilidade de Heitor não ter agido livremente ao aceitar enfrentar Aquiles, surgiu quando percebemos que o comportamento de Heitor tinha uma causa, e que essa causa fazia parte de uma cadeia causal que ia tão longe quanto os seus genes e o meio ambiente em que a sua personalidade se desenvolveu. Parece, então, que o problema está em o comportamento de Heitor fazer parte de uma cadeia de causas que ele não controla (não escolheu os seus genes nem o seu meio) e estes factores determinarem à partida qual vai ser o seu comportamento: é o seu comportamento ter 0rigem em factores que não controlamos que levanta a suspeita de não ser livre. Ora, a análise anterior, parece mostrar que não temos controlo sobre as causas das nossas acções (genes e influência do meio ambiente). Significa isto que “ter uma causa” e “ser livre” são afinal coisas inconciliáveis? Será que as nossas acções terem as causas que têm implica que não sejam livres? Ao colocarmos esta pergunta estamos a colocar o problema que constitui o núcleo do debate sobre o livre arbítrio. Ela pode ser formulada assim: Será que uma acção ter causa implica não ser livre? Este é chamado o problema do compatibilismo4: a compatibilidade entre causalidade e liberdade. São duas as respostas possíveis para este problema, baseadas, ambas, em argumentos cujo valor nos caberá apreciar. A primeira diz-nos que se as nossas acções têm uma causa, então não podem ser livres, pois não poderíamos deixar de as praticar (as nossas acções são inevitáveis e decorrem de factores que não dependem de nós: genes e meio ambiente). Seria o caso de Heitor: enfrentou Aquiles porque a sua personalidade, associada à situação em que se encontrou, o deixava sem alternativa. Esta é a posição incompatibilista acerca do livre arbítrio. Pode ser formulada através da seguinte condicional: Se uma acção tem causa, então não é livre. A segunda diz-nos que não há comportamentos sem causa e que, portanto, ter uma causa não pode, só por si, implicar ausência de liberdade. Mas, para isso, é necessário rever o conceito de liberdade. O que é, então, ser livre? Talvez ser livre signifique algo mais modesto do que ser o autor da nossa própria vida. Agir livremente talvez signifique ter podido não fazer o que fizemos se tivéssemos desejado outra coisa. Heitor seria livre se, caso os seus desejos e crenças fossem outros (se tivesse outra personalidade) nada o obrigasse a enfrentar Aquiles; caso nenhum obstáculo o impedisse de recusar o combate se fosse esse o seu desejo. Mas, neste sentido, a liberdade apenas se opõe à coacção5. Já não pensamos em nós próprios como sendo os responsáveis últimos pela nossa vida, mas apenas como podendo agir sem sermos coagidos. Duas ou mais coisas são compatíveis quando são conciliáveis. A mentira não é compatível com a honestidade porque uma pessoa para ser honesta não pode enganar propositadamente as outras pessoas. 4 5 Um agente está sob coacção (ou é coagido a) quando é obrigado a fazer determinada coisa ou não pode exercer a sua vontade. Esta posição considera que não há realmente inconsistência entre liberdade e causalidade (desde que o conceito de liberdade seja redefinido) e que, portanto, o incompatibilismo é falso. A tese compatibilista pode formular-se assim: Algumas das acções que praticamos são livres, embora tenham causa Veremos melhor nas próximas aulas cada uma destas possibilidades de resposta, e o que podem significar. Argumento da Causalidade à Distância (1) Se o determinismo é verdadeiro, as acções que um agente pratica são causadas por factores fora do seu controlo (genes e meio ambiente) (2) Se uma acção escapa ao controlo do agente (se não depende de si), não somos responsáveis pela acção (3) Se o determinismo é verdadeiro, não somos responsáveis pelas acções que praticamos. (4) Se não somos responsáveis pelas acções que praticamos, não somos livres. Logo, se o determinismo é verdadeiro, não somos livres.