EVASIONISMO NA PSICODELIA DE RONNIE VON Sílvio José Stessuk Universidade Estadual de Londrina (UEL) [email protected] To make this trivial world sublime, Take half a gramme of phanerothyme. ALDOUS HUXLEY To fathom hell or soar angelic, Just take a pinch of psychedelic. HUMPHRY OSMOND Introdução Entrado já o séc. XXI na segunda década, a ampla maioria do público brasileiro continua equivocadamente associando o nome do cantor, compositor e polímata Ronnie Von1 apenas à estética considerada kitsch (ou, para os puristas, “brega”, conceito de notável imprecisão) dos anos 70 e 80 dos novecentos. Parte consideravelmente menor desse público consegue se lembrar da presença decisiva de Ronnie Von, então alcunhado “O Príncipe” ou “O pequeno Príncipe”, no vivo cenário musical dos anos 60, como cantor, compositor e apresentador do programa televisivo “O pequeno mundo de Ronnie Von” (1966-1967), transmitido pela TV Record e propagandeado como o grande rival do programa “Jovem Guarda” (1965-1968), da mesma emissora, apresentado por Wanderléa, Erasmo Carlos e Roberto Carlos, dito “O Rei”. Algumas das figuras expressivas lançadas para o grande público por meio de “O pequeno mundo de Ronnie Von” foram, por exemplo, Eduardo Araújo, Jerry Adriani, Os Vips, Os Mutantes2, Gilberto Gil, Gal Costa e Caetano Veloso. É também como apresentador de televisão que boa parcela do público contemporâneo ainda conhece Ronnie Von, que comanda o conceituado programa “Todo seu”, da TV Gazeta, desde 2004 até a atualidade. 1 Ronaldo Lindenberg Von Schilgen Cintra Nogueira (Niterói-RJ, 1944-...). Banda de apoio do programa, antes se chamavam O’Seis e em seguida Os Bruxos, tendo o nome definitivo sido proposto pelo próprio Ronnie Von, com base na leitura de O império dos mutantes, de Stefan Wul (1958). 2 1 Bem mais estreita e, no entanto, muito mais perspicaz, é a faixa de público que aprecia Ronnie Von pela sua ousada e inovadora incursão pelo universo do rock psicodélico e da música concreta, incursão que, dentre outros fatores, contribuiu poderosamente para a eclosão do Tropicalismo e, mais tarde, para o substancial viés do psicodelismo mais hard do rock nacional da década de 70. Noutras palavras, Ronnie Von é o responsável por introduzir a música psicodélica – tal como um dos responsáveis pela música concreta – no Brasil, imediatamente na esteira da psychedelia anglo-estadunidense aberta (com a ressalva para algumas canções precursoras de origens diversas, nos dois lados do Atlântico), pelas bandas The Mothers of invention, cuja cabeça era Frank Zappa (Freak out!, Junho de 1966), The Beatles (Revolver, Agosto de 1966, e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, Junho de 1967) e, bem assim, The 13th Floor Elevators (The psychedelic sounds of the 13th Floor Elevators, Agosto de 1966), The Doors, liderado por Jim Morrison e Ray Manzarek (The Doors, idem) e Pink Floyd, na oportunidade podendo contar com Syd Barrett como band leader (The piper at the gates of down, Agosto de 1967). Embora bastante incompreendida à época de seu lançamento, hoje em dia a denominada “fase psicodélica” da carreira de Ronnie Von tem sido freqüentemente descrita, pela crítica especializada e pelo público aficionado, como um dos pontos estéticos mais altos na história do rock brasileiro. Contrastando com as tendências musicais um pouco mais amenas e ingênuas (pelo menos em regra) do movimento da Jovem Guarda, que então imperava entre nós, e antecipando com clareza as tendências mais provocadoras e inventivas do que logo viria a ser a Tropicália, essa fase vem marcada pelo experimentalismo criativo e é composta pelos álbuns Ronnie Von (Janeiro de 1969), A misteriosa luta do Reino de Parassempre contra o Império de Nuncamais (Outubro de 1969) e A máquina voadora (Abril de 1970)3 – entretanto cabendo anotar que algumas canções dos álbuns anteriores e posteriores de Ronnie Von não deixam de conter certos traços de psicodelia. Dentre todos os temas e questionamentos abordados pela trilogia psicodélica, o senso rebelde de evasionismo merece relevo, surgindo, por exemplo, em faixas emblemáticas como “Chega de tudo” (do primeiro álbum mencionado), “Atlântida” e “De como meu herói Flash 3 Nos dois primeiros discos, os arranjos são do conceituado maestro vanguardista Damiano Cozzella; no terceiro, de Francisco de Moraes e Djalma Mellin. 2 Gordon irá levar-me de volta a Alfa do Centauro, meu verdadeiro lar” (do segundo) e “A máquina voadora” e “Viva o chopp escuro” (do terceiro). Através do presente trabalho, o que se pretende é pesquisar o perfil e o alcance do senso de evasionismo como uma das linhas temáticas estruturantes nos três álbuns psicodélicos de Ronnie Von, passíveis de serem lidos em conjunto, de acordo com uma perspectiva de progressividade conceitual. Levando em consideração que o evasionismo permeia praticamente toda a obra musical do artista, antes e depois da psicodelia, porém optando-se, por medida econômica, pelo recorte estilístico, em princípio pode-se visualizar na trilogia o desabrochar mais consistente das inquietações evasionistas no primeiro álbum de 1969, o aprofundamento e problematização dessas inquietações no segundo álbum (no qual, aliás, há espaço para um momento destoante de auto-ironia, proposto pela canção “Pare de sonhar com estrelas distantes”) e a resolução final de reafirmação da atitude de evasão no álbum de 1970, com o seu título bastante revelador. Também como medida de economia, para que o texto não se alongue demais, serão comentadas com mais vagar tão-só algumas canções de cada long play, reservando-se uma pesquisa mais detida e completa para outra oportunidade. Para ir avante, é antes conveniente uma rápida passagem pelas conceituações de música psicodélica e música concreta, somente com o interesse de estabelecer um patamar e de trazer à colação silhuetas menos difusas dessas práticas, a fim de continuar, com passos mais seguros, rumo à investigação mais aplicada das letras e sonoridades trazidas pelos álbuns mencionados4. 1. Música psicodélica e música concreta a) Música psicodélica De acordo com Kid Vinil, um dos maiores especialistas brasileiros no estudo do gênero rock, 4 Além de Ronnie Von, outras pessoas atuam como compositores nas faixas dos três álbuns. Porém, como neste caso não se trata de uma análise genética, considerações sobre a autoria das letras e das músicas não têm razão de ser – cada canção será tratada apenas como texto lingüístico-musical cantado por Ronnie Von, independentemente de quem sejam seus autores. 3 O rock psicodélico apareceu em meados da década de 60 como resultado da mistura do merseybeat inglês, do folk rock e pitadas de elementos indistintos. O estilo não se prendia mais à estrutura musical de verso e refrão, e explorava uma forma livre de composição, alterando sons e vozes em estúdio. Inicialmente eram os Yardbyrds, na Inglaterra, e os Byrds, nos Estados Unidos, que faziam esse tipo de som. Mais tarde, os Beatles e os Rollings Stones incorporaram a psicodelia a seus estilos, lançando álbuns clássicos como Revolver e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, e Their Satanic Majesties Request, dos Stones. As bandas inglesas iam para o lado fantasioso e surrealista, mas grupos como Pink Floyd e Traffic tocavam instrumentais longos assim como seus contemporâneos americanos Grateful Dead, The Doors e Jefferson Airplane. Em outros lugares da América, as garage bands começavam a introduzir a psicodelia em seu som mais cru, conseguindo resultados interessantes. (VINIL, 2008, p. 62) De modo geral, a característica musicalmente mais relevante do psychedelic rock se reporta a uma tessitura melódica e harmônica filigranada e mais complexa do que os outros estilos de rock anteriores, contemplando as armaduras de clave, inversões da escala pentatônica, drones etc... Esses fatores e outros mais favoreciam improvisações e solos instrumentais longos, à maneira das jam sessions do jazz. Nesse contexto, a guitarra assume distorções à base de feedbacks e pedais de efeito, como o fuzz, o reverb, o overdrive e, sobretudo, o wah-wah, popularizado por George Harrison e Jimi Hendrix. Deve-se também a George Harrison a inserção de sistemas melódicos e instrumentos orientais, principalmente indianos, destacando-se os exóticos glissandos do sitar5 e a tabla. Constantes são os teclados, em especial o então recentemente inventado mellotron. Outros instrumentos elétricos, igualmente novos, que se fazem ouvir amiúde, são o teremim, o tannerin e o sintetizador (moog), este mais um aporte de George Harrison. Do ponto de vista vocal, são típicos (porém não exclusivamente) os arranjos polifônicos como aqueles explorados pelos Beatles (“Paperback writer”, Junho de 1966, compacto estadunidense) e pelo grupo capitaneado por Brian Wilson, The Beach Boys (“Sloop John B”, do antológico Pet sounds, de Maio do mesmo, “Good vibrations”, de Outubro do mesmo ano, e muitas outras). Enfim, a fisionomia sonora da psicodelia se completa com o emprego de técnicas eletrônicas inéditas de gravação de voz e instrumentos em estúdio: backmaskings ou mensagens 5 Bem mais conhecido, no Brasil, como “cítara”, apesar de essa denominação se referir, preferencialmente, a um instrumento de cordas distinto, oriundo da Europa. 4 ao contrário (divulgadas por John Lennon), pannings (idem), flanings (elaboradas por Ken Townsend, engenheiro de som que trabalhou com os Beatles na gravação e edição de Revolver), phasings, pitch shiftings, overdubbings, ecos, reverberações, samplings e loops6. Conforme se pode conferir, praticamente todas essas técnicas foram criadas ou, pelo menos, melhor veiculadas a partir das sessões de gravação de álbuns dos Beatles. Todas essas estratégias criativas dedicadas à busca por novos sons consistem em nada mais do que atitudes que tendem a responder, acompanhar e replicar a busca por novas palavras: os ambientes oníricos desenhados pelo arrojo de criação verbal, temática e simbólica das inovadoras letras das canções exigiam correspondentes inovações arrojadas de melodia e de harmonia. Os motivos e imagens são recebidos, dentre mais fontes, do clima do mal du siècle do oitocentos (Ultra-Romantismo e Simbolismo) e das vanguardas de inícios do séc. XX (Surrealismo, Dadaísmo, Cubo-Futurismo). De forma que os apelos do subjetivismo profundo, do estranhamento, da liberdade irracional ou loucura, da imaginação sem freios – ou senza fili, senza confini – e do esoterismo (de coloração hindu, zen-budista, hermético-cristã, druídica, ameríndia etc...) conformam um substrato poético revolucionário que, partindo da contracultura beat, define seu melhor instante no movimento hippie – ao qual o psicodelismo está intimamente vinculado – e tencionará ir além, até o rock progressivo dos anos 70. É certamente claro que essa estruturação de pensamento e de discurso revela de forma inconteste sua articulação com as experiências de estímulo por substâncias psicotrópicas – e daí nos encontrarmos com a ancestralidade do ópio e do láudano de Edgar Allan Poe, do absinthe de Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, do haxixe e do vinho ensejadores dos Paraísos artificiais (1860) de Charles Baudelaire e do peiote milenar redescoberto por Aldous Huxley (As portas da percepção, 1954). Logo, música e letra psicodélicas dos anos 60 e 70 devem ser entendidas, em princípio, como reflexos ou mimeses dos estados distorcidos de percepção da realidade provocados pelo uso dos alucinógenos mais modernos: a heroína de Velvet Underground e Big Brother and The Holding Company e a maconha e o LSD consumidos pelos integrantes das bandas The Beatles, The Rolling Stones, The Who, The Doors, Os Mutantes, no Brasil, e de tantas outras. 6 O excesso de vocábulos anglófonos se justifica pela ausência de correspondentes adequados em português, de acordo com o jargão de musicistas e engenheiros de som. 5 Contudo, convém anotar que alguns artistas realizavam a mimese das alterações da percepção mesmo sem jamais terem utilizado drogas, substituindo o delírio psicotrópico artificial pela imaginação onírica natural, como é bem o caso de Ronnie Von. Vale dizer, o que importa não é a forma de produção, e sim o produto psicodélico e a atmosfera exuberante de ampliação de percepções sensórias que o cerca. De um modo ou de outro, o psicodelismo é cristalinamente uma estética de evasão: não à toa as experiências com alucinógenos eram com frequência chamadas de viagens, o que se aplica também à mecânica do sonho. O rock psicodélico é um traçado sensorial, principalmente sonoro, de fuga deste mundo cotidiano, opressor, cinzento e inóspito para outro mundo, mais aventureiro, mais livre, mais colorido, enfim, mais propício a receber as almas cansadas dos viajantes que fogem da banalidade do séc. XX. b) Música concreta A citação a seguir é algo longa, porém, sobre o assunto, Otto Maria Carpeaux discorre com precisão: A música concreta tem origens remotas. Em 1913, o futurista italiano Luigi Russolo propôs a substituição da música tradicional por orgies de bruits (orgias de barulho) produzidos por objetos das mais diversas espécies, menos por instrumentos musicais. Só produziu escândalos. Mas esse bruistisme não deixou de chamar a atenção do mais radical dos vanguardistas de então: na marcha final da Histoire du Soldat, de Stravinsky, o diabo faz um pouco de música “bruitista”. A idéia do bruitisme foi desenvolvida pelo engenheiro francês Edgar VARESE (1885), emigrado para os Estados Unidos. Quis “organizar os ruídos”, “organizar o barulho”. Inventou novos grupos de instrumentos de percussão. Sua obra Hyperprism (1923) está escrita só para instrumentos de percussão e de sopro. Arcana (1927), para grande orquestra, passa por ser a obra capital do bruitisme. Varese ainda usa instrumentos musicais tradicionais, embora não para fins da música tradicional. Seus discípulos americanos avançam mais, começando a “maltratar”, deliberadamente, os instrumentos. Henry Cowell trabalha com ton-cluster (grupos ou “cachos de sons”), tocando o piano com o braço e com os punhos (técnica que Bartók usou incidentalmente no Concerto nº2 para piano e orquestra). John CAGE (1912) dá mais um passo, pela transformação permanente do instrumento: é o prepared piano (“piano preparado”), em cujas cordas se colocam pedaços de borracha ou de metal ou de madeira para produzir sons inéditos. Para esse instrumento escreveu Cage 16 sonatas e um concerto com orquestra. 6 Só depois da Segunda Guerra Mundial foram essas experiências conhecidas ou levadas a sério na Europa. Pierre Schaeffer fundou em 1949, em Paris, o Club d’Essai no qual, ao lado da execução de música dodecafônica de Boulez e outros, também se experimentava música concreta, produzida por objetos: vassouras em fricção com o chão, peças de metal e de madeira, batidas umas contra as outras, o ruído da água que sai da torneira, ruídos de máquinas, ruídos de rua etc. Esses sons foram gravados em discos, mais tarde em fitas eletromagnéticas, que se podem depois cortar e combinar à vontade, assim como se cortam e combinam as fitas cinematográficas. É uma técnica que lembra a da collage na pintura moderna. A obra mais conhecida, produzida dessa maneira por Schaeffer e colaboradores, é a Symphonie pour un homme seul. Essa música concreta, produzida por instrumentos (ou mais exatamente: objetos) que não têm relação nenhuma com o tradicional sistema sonoro, significa a abolição total desse sistema. (CARPEAUX, 1999, p. 389-390; sic; versaletes do autor) Musique concrète – o que realmente a define é a procura por novas sonoridades mediante a utilização criativa de objetos os mais variados como se fossem instrumentos musicais, ou a utilização criativa dos instrumentos habituais, quando tocados de modo inusitado. Por “objetos”, deve se compreender tanto artefatos – “vassouras (...), peças de metal e de madeira (...), ruídos de máquinas”, helicópteros, aviões... – como elementos naturais – “o ruído da água”, o vento, pedras, fenômenos atmosféricos, crepitar de chamas... –, e ainda elementos humanos – “o ruído das ruas”, o som de passos, recortes de diálogos, fragmentos de filmes... Tais objetos sonoros, uma vez gravados, são submetidos à montagem no plano da composição, ou seja, são editados – e, nessa situação, a música concreta tem estreita relação com a música eletrônica ou eletroacústica. Vale mencionar que esses objetos podem ser colhidos como ready-mades, bem como construídos segundo uma intenção prévia ou mesmo ao acaso. A música concreta constitui o primeiro grande ponto de contato entre as vertentes erudita e popular da arte musical no séc. XX. As diversas experiências levadas a efeito por Edgar Varèse, John Cage, Pierre Henry, Karlheinz Stockhausen e outros compositores de avant garde, nas duas décadas anteriores, foram cruciais para o desenvolvimento das experiências propostas pelos compositores e instrumentistas de rock que, concomitantemente, estavam delineando o quadro bizarro do psicodelismo nos anos 60. Uma vez mais, os Beatles estão entre os pioneiros. “Tomorrow never knows”, de Revolver, dentre outras exemplificações menores que não são citadas agora para não incorrer em 7 fastio, é cinco vezes atravessada, incluindo nos segundos iniciais e finais da canção, por sons etéreos que, à primeira audição, lembram grasnidos de gaivotas, mas são, na verdade, o som de risadas – previamente gravadas para depois serem agregadas à faixa – tocadas em velocidade dupla. Já em “I am the walrus” (de Magical Mistery Tour, Novembro de 1967, edição estadunidense), são agregados, na parte final, vários trechos de uma leitura dramática do Ato IV, Cena 6, de O rei Lear, de William Shakespeare, transmitida pela rádio BBC. Entretanto, o melhor exemplo, talvez, de canção psicodélica que se vale de uma ampla collage de intervenções concretas, sem mencionar outros efeitos eletrônicos, é “A day in the life”, a ambiciosa faixa final de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band: desde logo, a sua abertura é preenchida pelo cross-fading com os aplausos que finalizam a peça anterior, a “Reprise” da canção que dá título ao álbum; a certa altura, foi introduzida uma parte orquestral (depois repetida na conclusão), composta por 40 instrumentos, soando improvisos, em crescendo, a partir de uma nota atonal – essa parte foi quadruplicada, para se proporcionar a impressão auditiva de uma orquestra com 160 musicistas; à frente, pode-se ouvir o toque de um despertador – previsto apenas para marcar provisoriamente a entrada da seção cantada por Paul McCartney, para depois ser cortado na edição, o alarme foi mantido ao se perceber que combinava muito bem com o verso que se lhe seguia – “Woke up, fell out of bed”; o acorde final, que dura 45s, é composto em tom de Mi maior, tocado simultaneamente em três pianos (John Lennon, Paul McCartney, Ringo Starr e o assistente Mal Evans) e um harmônio (a cargo do produtor George Martin); segue-se um som em alta frequência, inaudível para ouvidos humanos, e a coda, com o fundo de backmasking de risos e conversas (gravados durante uma festa oferecida pelos Beatles), sobre o qual a frase “Never could see any other way” é reproduzida, a intervalos, por uma voz feminina – esses risos, conversas e voz, nas edições em vinil, permanecem até que a agulha seja retirada do sulco, sugerindo um moto-perpétuo. Cumpre mencionar ainda o radical experimento “Revolution 9” (The Beatles ou White album, Novembro de 1968), uma longa collage confusa de sobras de estúdio, frases e palavras soltas, fragmentos de diálogos (com as vozes de muitas pessoas, incluindo John Lennon, George Harrison, Ringo Starr e Yoko Ono), gritos, choros, risadas, sons de microfonia, buzinas, tiros etc..., tudo tecido ao redor de um eixo sonoro que vem a ser a expressão “Number 9”, dita em tom monocórdio pelo engenheiro de som Geoff Emerick e repercutida em sequências de fade in e fade out – ou 8 a abolição da melodia e da harmonia, em benefício de uma expressão sonora mais audaciosa, mais coerente e mais intensa do caos do mundo do pós-guerra – de onde se procura evadir por meio da experiência musical. Outras bandas psicodélicas que enveredaram pela música concreta: The Mothers of Invention, The Beach Boys, Pink Floyd, Cream, Lovin’ Spooonful, Love, Grateful Dead, Jefferson Airplane etc... Passemos agora à trilogia de Ronnie Von. 2. Ronnie Von (1969) Como já referido, o álbum de 1969 abre a fase psicodélica na carreira de Ronnie Von. Logo, não é estranho o fato de que a faixa inicial se intitule precisamente “Meu novo cantar”. Fica clara a consciência do artista de estar ingressando num estágio distinto em sua obra. Mas não se trata somente disso. Ronnie Von, nesse primeiro momento, já declara que o que virá é inédito: estruturações poemáticas, arquiteturas sonoras, técnicas de gravação, inquietações, atitudes diferentes daquelas que, em geral, eram convencionalmente empregadas na música popular brasileira daquele tempo; o que se ouve, portanto, é a proposição de uma estética inovadora para o nosso meio musical. Com essa constatação, infere-se que esse long play não se exaure numa mera coletânea aleatória de baladas desvinculadas umas das outras. É sim uma organização conceitual de canções que, a partir de um ponto inicial, progridem sempre em torno de uma preocupação temática central: o ímpeto de evasão. Observaremos as três primeiras faixas do lado A do vinil, para análise dessa hipótese. “Meu novo cantar” é dividida em duas partes. A introdutória é declamada e quase toda sem instrumentação. Desde logo se mostra patente a desorientação do eu lírico, sua solidão e a sensação de dúvida sobre a própria identidade: Olha, eu não sei de onde venho Nem pra onde vou Ninguém me escuta E eu nem sei quem sou 9 O indivíduo anuncia ainda ter procurado seu “caminho no vento” e ter pedido “ao mar uma trajetória”, em vão. Tendo embarcado sua “vida em um navio de prata”, que “não mais navega/ Sobre os dias e noites”, confirma que não sabe “se ir ou se ficar” – é, por conseguinte, a idealização da realidade (“navio de prata”) que se frustra em face da monotonia do cotidiano (“dias e noites” sem “mar” ou “vento”). O que se demanda, então, é o encontro do eu perdido no íntimo do eu, pois Bom, se eu não me conheço Como posso gostar de mim? Sei que eu deixei meu rosto Em alguns espelhos esquecidos E uma rosa amarrotada de silêncio Me viu por dentro Com as sílabas finais da palavra “amarrotada”, surgem os primeiros acordes de uma guitarra distorcida, de maneira que a imagem insólita “rosa amarrotada de silêncio” realiza a passagem do estado inicial de desorientação imóvel para a mobilidade psicodélica da busca. A “rosa (...) viu por dentro” do eu lírico, tendo assim se constituído numa bússola para a viagem rumo a “Palavras, sonhos, vultos” que “Não são alegres nem tristes”, mas que “Estão ocultos na canção” – e pela primeira vez o indivíduo se sente confiante, já que “Eu, eu sou amigo do canto”, e o “canto” é o hálito do espírito, vem do eu. Eu, porto de partida, eu, porto de chegada. Inicia-se a segunda parte, agora apresentando os instrumentos – à base de teclado, bateria e metais – que preenchem freneticamente o relativo “silêncio” anterior com a nova atitude de deixar para trás a desorientação. O vocal se acelera, acompanhando a instrumentação, e predomina a idéia de que, apoiado no “Meu canto”, que “é pra valer” e “pra mudar”, Um dia vou criar Um mundo muito certo Onde o inferno vai estar longe E o céu aqui bem perto E onde 10 Ainda resta uma esperança De que um dia uma criança Possa ir brincar Sem ter perigo pro seu brinquedo se quebrar A imagem resgata a inocência infantil como parâmetro para a criação do “mundo muito certo” para onde se quer fugir. A canção seguinte, “Chega de tudo”, conforme denota o título, segue o mesmo diapasão de recusa enfática da realidade e anseio pela evasão libertária. Mantendo a presença dos metais, como na faixa inicial, porém com andamento ainda mais vibrante, o que o som e a letra desenham vale como um passo adiante na rebeldia psicodélica: Chega de tudo, eu não quero saber Me dê a sua mão E abra o portão Vamos sair7 (...) Pois nesse mundo quem manda sou eu Sou jovem a semana inteira Em frente, uma intervenção concreta materializando, em sons de vidros estilhaçados, o nome da canção introduz “Espelhos quebrados”, a letra mais delirante e enigmática do long play8 – os primeiros versos são estes: Sinto as nuvens de papel Hoje um carro sobe ao céu O sapato é de jornal Mas o incenso é nacional Os “espelhos” do título poderiam acaso ser uma retomada de “alguns espelhos esquecidos” em que “deixei meu rosto”, como declarado na faixa inaugural? Se sim, a circunstância de terem sido “quebrados” pode representar um rompimento com certos aspectos do passado, 7 Na última menção da estrofe, substituído por “Vamos sorrir”. Oportuno mencionar que, no arcabouço instrumental da canção, se salienta o belo diálogo de cordas entre violinos e violoncelo. 8 11 de forma a libertar “meu rosto”. Decerto, “as nuvens de papel” sentidas pelo eu lírico, bem como a ascensão de “um carro (...) ao céu”, sugerem outra vez a procura de liberdade, o que fica confirmado pelo rompimento com a imagética lógica, sintoma mais clássico de psicodelia e de evasão. A canção funciona como um convite à viagem cheia de novidades e surpresas, à viagem para outra realidade. E o convite, será feito a uma companheira, à faceta do eu que se prendia ao passado, ao ouvinte? Quem quer que seja, teima em permanecer imóvel, sentado numa “cadeira”, comportamento ironizado no refrão: Vem me dizer9 se a cadeira vai morrer De tédio, sozinha, sem você Morrer de tédio, sozinha, sem você Isto é, “a cadeira”, que representa a imobilidade e o “tédio”, não “vai morrer” se “você” mesmo deixá-la para se livrar do “tédio” e viajar. As demais faixas do long play continuam atendendo, umas de forma mais clara, outras não tanto, ao princípio geral do intento evasionista. Em “Sílvia, 20 horas, domingo” – espécie de hino do psicodelismo brasileiro com seu solo distorcido de guitarra –, a expectativa de um novo encontro com “Sílvia” acena ao eu lírico com a promessa de uma fuga dominical em relação à semana comum do dia a dia; o começo da canção contempla uma vinheta bem humorada, um jingle em estilo radiofônico, a evocar o mundo urbano (representado pelo “Bar Pires”, localizado na “Augusta, quase esquina Jaú”), enquanto Sílvia (do latim silva, “selva”), a qual há de ser encontrada “Na mesma praça”10, e a quem o eu lírico entregará, “com carinho, uma flor” e “rosas”, restabelece a antiga noção bíblica da amada como o refrigério de “um jardim fechado” (Cântico dos Cânticos, 4.12). Outras canções evidenciam contrapontos de dúvida quanto à capacidade do eu lírico para abrir ou construir, com o material do canto, uma rota de evasão “Da cidade, desse trânsito infernal/ De assaltos a trens e bancos” – “Nada de novo” (versos citados) e “Tristeza num dia alegre”. “Contudo, todavia”, a “Esperança de cantar” vem para assegurar a tranquilidade delicada de “Menina de trança”, a confiança subversiva de “Anarquia” e o mistério claro de “Mil 9 Às vezes substituído por “Vem sem saber”. Referência, feita em off, ao refrão do grande sucesso de rádio de Ronnie Von, “A praça” (Ronnie Von 2, Maio de 1967). 10 12 novecentos e além”. A faixa de encerramento, que transforma a faixa de início em “Canto de despedida”, ratifica a decisão da fuga e explica sua razão de ser: Meu amor, não se canse de me esperar Pois vou juntar felicidade, Vou juntar muita saudade, Vou juntar muito dinheiro E só pra gente se juntar E quando eu chegar Vai ter rei, vai ter rainha, Vai ter meu pai, minha madrinha, Vai ter padre, coroinha, Todo mundo a me esperar 3. A misteriosa luta do Reino de Parassempre contra o Império de Nuncamais (1969) Se o primeiro long play de Ronnie Von de 1969 é um fabuloso álbum de psicodelia, o segundo pode ser chamado de a própria psicodelia. Não é exagero: há, mesmo no exterior, quem considere essa pérola cult simplesmente o melhor álbum psicodélico de todos os tempos. Considerando-se o exíguo espaço da zona de satélite ocupado pela música brasileira em fins da década de 60 e as dificuldades com que o idioma português ainda hoje se depara para ser aceito em mercados fonográficos estrangeiros, “A misteriosa luta do Reino de Parassempre contra o Império de Nuncamais”, com certeza, faz bela figura na discografia da história do rock. O longo nome já dá conta do risco de dilaceramento íntimo de que as faixas se ocupam. Drasticamente premido entre os fortes anseios de evasão para longes lugares (o “Reino de Parassempre”) e o não menos forte apelo da segurança do lar (“o Império de Nuncamais”), o eu lírico se expressa em “luta”, numa clave dramática. O barroquismo não se revela, portanto, somente na elongatura do título do álbum e da primeira canção, mas de fato na hesitação estética e existencial entre o cá e o lá, a terra e o céu. A canção de abertura é proposta através de um lance concreto de tempestuosidade, fixado no som de trovões que, no princípio, certamente surpreende o ouvinte. “De como meu herói Flash Gordon irá levar-me de volta a Alfa de Centauro, meu verdadeiro lar”, flagra a sensação de desenraizamento do indivíduo no mundo moderno, sonhando por uma via de escape. 13 A personagem de ficção científica dos quadrinhos, criada por Alex Raymond em 1934, “Saviour of the Universe”, veste na letra o papel messiânico de quem irá resgatar o eu lírico, egresso de “Alfa do Centauro, meu verdadeiro lar”, de seu exílio “nos ares da Terra”, onde “Tudo está tão confuso/ E (...) eu já me afoguei”. Assim sendo, o desencanto e a recusa da vida banalizada são óbvios: Vença os abismos do espaço com sua nave de prata Saia do futuro, viaje pelo tempo, venha me buscar Não há mais dias novos, nada mais tem cor e a vida é tão ingrata E neste ponto escuro eu não quero mais ficar! A alusão à “nave de prata” de Flash Gordon indica que o eu, fragilizado por ter embarcado sua “vida” no próprio “navio de prata”, o qual “não mais navega” (cf. “Meu novo cantar”, do álbum anterior), solicita auxílio para prosseguir em sua viagem. O indivíduo, então, se furta à responsabilidade de construir sua rota pessoal de evasão através do canto, desejando ao invés um idealizado, porém pré-fabricado caminho, onde o esforço pessoal de criação já não é mais necessário: Em Alfa do Centauro, meu planeta tão lindo, preciso rever Minha sereia azul querida e meu cavalo de asas também Em nossa nebulosa, os amigos saudosos esperam nos ver Preciso lá voltar e para sempre ficar com o mundo que é meu Entretanto, esse desejo desesperado por uma evasão que se dirige para fora do eu, e não para o seu interior é, duas faixas além, veementemente criticado e contraposto na canção “Pare de sonhar com estrelas distantes”. O que pode soar como simples censura à amada distraída também é uma censura ao eu fugitivo que se esquece de si próprio, ao focar a sua atenção no que é exterior ao eu: Você vive em outro mundo e o que eu digo Não ouvirá, não ouvirá Procurando o meu rosto no infinito Não encontrará, não encontrará 14 Pare de sonhar com estrelas distantes Ao seu lado estou ofertando o amor Pare de sonhar com estrelas distantes É nesse ponto tenso entre a vontade de evasão para fora ou para dentro de si que se situa o eixo do álbum. As outras canções que o integram, algumas delas regravações, são: “Dindi”, “Onde foi”, “My chérie amour”, “Atlântida” (“Atlantis”), “Por quem sonha Ana Maria”, “Mares de areia”, “Regina e o mar”, “Foi bom”, “Rose Ann”, “Comecei uma brincadeira” (“I started a joke”). 4. A máquina voadora (1970) Esse long play, que conclui a trilogia psicodélica, é aberto pela canção de mesmo nome, cuja letra é a seguinte: Quero todo o universo sem fim Às alturas vou subir Vejo o espaço acima de mim E por ele vou sumir Vou vagar em pleno ar Vou voar, vou voar... Em meu brilhante pássaro de prata Vou navegar pelas nuvens soltas Leve para o alto toda minha vida Meu aeroplano... Combustível, metal e poema Minha máquina voadora Vejo os homens de cima em cena Entre a música de um motor Vou vagar em pleno ar Vou voar, vou voar... A experiência de Ronnie Von como piloto de avião certamente contribuiu bastante para a imagem criada. Não é demais dizer que, na faixa, o evasionismo do artista vai “às alturas”. Para relembrar os discos anteriores, em “Meu novo cantar” fala-se sobre a “a vida” embarcada “em um navio de prata”, o qual, sem “mar” e sem “vento”, “não mais navega” – é o início do périplo de evasão. Após, em “De como meu herói Flash Gordon irá levar-me de volta a 15 Alfa de Centauro, meu verdadeiro lar”, a “nave de prata” é a do herói que virá resgatar o eu lírico. E agora, em pleno 1970, já é “meu” o “brilhante pássaro de prata”, é “Minha” a “máquina voadora” movida a “Combustível, metal e poema”, enfim, “Meu” o “aeroplano” – então, é com o seu próprio ímpeto individual, com o seu próprio “cantar” ou “poema”, que o eu ascende e enceta a fuga, assim levando “para o alto toda a minha vida”, a qual se confunde e integra ao “espaço acima de mim”. O álbum continua com outras faixas, a maioria delas convidando à vida intensa: “Baby de Tal”, “O verão nos chama”, “Seu olhar no meu”, “Imagem”, “Continentes e civilizações”, “Viva o chopp escuro”, “Enseada”, “Tema de Alessandra”, “Águas de sempre”, “Cidade” e “Você de azul”. Contudo, o objetivo da evasão, aonde se quer chegar, revela-se claramente desde o primeiro verso do long play: “Quero todo o universo sem fim”... Conclusão O aspecto pasargadiano encontrado na trilogia psicodélica de Ronnie Von é um assunto que ainda merece pesquisa de maior fôlego. Nestas páginas, o que se buscou foi simplesmente fazer apontamentos para futuros estudos. Também o papel de Ronnie Von na entrada do psicodelismo e da música concreta no panorama musical brasileiro merece atenção à parte. É fato que os experimentos realizados pelo cantor nessa fase de sua carreira têm sua importância subestimada, pois, mesmo em sua biografia autorizada, pouco se tece sobre a questão. Sendo assim, a reavaliação da obra de Ronnie Von é um imperativo que deverá contribuir substancialmente para um conhecimento mais atualizado da história do rock nacional. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DISCOGRÁFICAS GUERREIRO, Antonio, e PIMENTEL, Luiz Cesar. Ronnie Von – O Príncipe Que Podia ser Rei. São Paulo: Planeta do Brasil, 2014. HUXLEY, Aldous. As portas da percepção. 2ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 2002. HUXLEY, Laura Archerá. The letters of Aldous Huxley. London: Chatto and Windus, 1968. 16 LEE, Marvey, and SCHLAIN, Bruce. Acid dreams – The complete social history of LSD: the CIA, the Sixties and Beyond. 2ª ed. New York: Grove Press/Atlantic, 1992. SPITZ, Bob. The Beatles – A biografia. São Paulo: Larousse do Brasil, 2007. VINIL, Kid. Almanaque do rock – Histórias e curiosidades do ritmo que revolucionou a música. São Paulo: EDIOURO, 2008. VON, RONNIE. A máquina voadora. 2ª ed. Polysom, 2013 (vinil). VON, RONNIE. A misteriosa luta do Reino de Parassempre contra o Império de Nuncamais. 2ª ed. Polysom, 2013 (vinil). VON, RONNIE. Ronnie Von. 2ª ed. Polysom, 2013 (vinil). WUL, Stefan. O império dos mutantes. 2ª ed. Lisboa: Livros do Brasil, 1996. 17