A RESERVA DE VAGA PARA DEFICIENTE FÍSICO EM CONCURSO PÚBLICO E O PRINCÍPIO DA EFETIVAÇÃO DA NORMA * LAURA FIGUEIREDO – advogada, pós graduada em Ciencias Políticas y de La Administración pela Universidad de Barcelona(ES), especialista em Direito Tributário pela Unisul(SC), pós graduanda em Direito do Estado (Faculdade Social da Bahia), Presidente do Instituto Sergipano de Direito do Estado. A maioria das normas jurídicas têm uma finalidade social, ou seja, o legislador, ao editar uma norma, deve observar a função social que ela exerce ou que ela provocará quando da sua aplicabilidade. Após a Constituição Federal de 1988, essa função toma contornos mais evidentes, já que a “Constituição Cidadã” traz, dentro dos princípios nela inseridos, a preocupação na formação de uma sociedade mais justa, sem desigualdades, promovendo o bem estar de todos e a inserção dos menos favorecidos em todos os meios sociais e econômicos. Assim, inclusive, é o fundamento das leis com previsão de cotas para as classes consideradas “excluídas” de alguma forma desse meio social. Daí surgiram as leis que prevêem cotas para as classes afrodecendentes, mulheres, índios, portadores de deficiências dentre outras. E essas leis não devem ter outra interpretação senão a da hermenêutica teleológica como forma de alcançar o máximo do seu objetivo, num Estado Democrático de Direito, objetivando o bem estar comum. Desse diapasão, é importante destacar o seguinte entendimento: Vê-se assim que a ciência jurídica exerce funções relevantes não só para o estudo do direito, mas também para a aplicação jurídica, viabilizando-o como elemento de controle do comportamento humano ao permitir a flexibilidade interpretativa das normas, autorizada pelo artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, e ao propiciar, por suas criações teóricas, a adequação das normas no momento de sua aplicação, ou seja, a sua atualização. A dogmática jurídica possui uma função social, podendo ser vista como uma agência de socialização, por permitir a integração do homem e da sociedade num universo coerente (33), destacando ainda que o ideal dos juristas é descobrir o que está implícito no ordenamento jurídico, descobrindo-o, reformulando-o e apresentando-o como um todo coerente e adequado às valorações sociais vigentes. LARENZ sustenta que: "É missão dos tribunais decidir de modo ‘justo’ os conflitos trazidos perante si e, se a ‘aplicação’ das leis, por via do procedimento de subsunção, não oferecer garantias de uma tal decisão, é natural que se busque um processo que permita a solução de problemas jurídicos a partir dos ‘dados materiais’ desses mesmos problemas, mesmo sem apoio numa norma legal. Esse processo apresentar-se-á como um ‘tratamento circular’, que aborde o problema a partir dos mais diversos ângulos e que traga à colação todos os pontos de vista – tanto os obtidos a partir da lei como os de natureza extrajurídica – que possam ter algum relevo para a solução ordenada à justiça, com o objectivo de estabelecer um consenso entre os intervenientes." (34) Para cumprir tão árdua tarefa deverá o aplicador do direito basear-se no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, vez que contém um parâmetro à atividade jurisdicional, fornecendo as várias trilhas possíveis para uma decisão, que, ao aplicar a norma ao caso concreto, atenda à sua finalidade social e ao bem comum. (...) A norma contida no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil indica ao intérprete-aplicador o critério do fim social e do bem comum como idôneos à adaptação das leis às novas exigências sociais e seus valores, constituindo uma espécie de janela da norma, pois propicia a norma a ser aplicada respirar a atmosfera fático-social e valorativa que a envolve, sendo dever do intérprete-aplicador abrir essa janela perscrutando as necessidades práticas da vida social, a realidade sócio-cultural e seus valores. Fazendo isto, estaremos injetando vida a norma, atualizando-a para que se compatibilize com os anseios vigentes da sociedade. (Anderson Sant'Ana Pedra; fonte: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3762) Nesse contexto, é dever do legislador - e mais ainda do intérprete - extrair a função social objetivada pela norma e a sua mais extrema aplicabilidade, pois a norma que tem cunho social e na prática é de alguma forma inviabilizada, não é norma. Os concursos públicos devem, por força de lei, reservar vagas para os portadores de deficiência física (Art. 37, VIII da Constituição Federal de 1988, Lei 7.853/99, Lei n° 8.112/90 e Decreto n° 3.298/99). Lei 8.112/90 Art. 5o São requisitos básicos para investidura em cargo público: § 2o Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso. Decreto 3.298/99 Art. 37. Fica assegurado à pessoa portadora de deficiência o direito de se inscrever em concurso público, em igualdade de condições com os demais candidatos, para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que é portador. § 1o O candidato portador de deficiência, em razão da necessária igualdade de condições, concorrerá a todas as vagas, sendo reservado no mínimo o percentual de cinco por cento em face da classificação obtida. § 2o Caso a aplicação do percentual de que trata o parágrafo anterior resulte em número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subseqüente. Contudo, a depender no número de vagas ofertado no concurso, não se consegue oferecer ao menos uma vaga para o deficiente físico, já que se deve obedecer aos percentuais estabelecidos no decreto acima transcrito. E é efetivamente o que ocorre em muitos concursos públicos pelo país. Os certames que oferecem apenas uma vaga é o grande exemplo disso. O que deveria ocorrer era a abertura de uma vaga especial para deficiente físico, porém, como não há possibilidade de abertura de nova vaga, tal concurso não fará a reserva do deficiente físico. Isso ocorre também com os concursos com até mais de uma vaga, já que a maioria dos editais limitam o número de vagas para deficientes em 20% do número total de vagas. Daí surge um problemas gravíssimo quanto à efetivação da norma: nem todos os concursos cumprirão as leis e a constituição federal para efetivação da política de inserção no emprego público dos portadores de deficiência física. Nessa esteira de pensamento, o beneficiário da norma social não pode ficar à sorte, pois a lei não é fonte de imprevisibilidade, incerteza mas, pelo contrário, ela é concreta, objetiva, certa e tem uma finalidade que deve ser alcançada, ou não estará cumprindo sua função social, gerando mera expectativa de direito. Por conseqüência, aqueles editais que não permitem objetivamente a reserva de vaga do deficiente físico, dentro de uma interpretação sistemática da legislação pátria, incluindo aí a Lei de Introdução ao Código Civil, Constituição Federal (art. 37, Decreto 3298/99 e Lei 8.112/90, em seu art. 5°, §2°, está eivado de nulidade, pois não atinge a finalidade da função social e, principalmente, deixa a lei no “mundo das idéias”, sem praticidade alguma e, pior, porque não dizer, ludibriando o destinatário da norma. Assim, não se pode chegar à efetividade da norma sem que ela, na prática, seja viável, alcançável e justa. Como já demonstrado, o art. 37, VIII da Constituição Federal garante ao portador de deficiência o direito de participar de concursos públicos em igualdade tratamento e oportunidade, essa é a interpretação que se extrai do dispositivo constitucional, dentro de uma hermenêutica sistemática e teleológica da Constituição Federal. Ora, a igualdade de tratamento e oportunidade confere ao deficiente físico, no mínimo, uma vaga destinada a essa classe, em qualquer concurso público pois, não sendo essa a interpretação correta, nem todo concurso atingirá esses princípios. Entende-se que a aplicação dos percentuais previstos em lei federal para a designação de vagas para portadores de deficiência física somente seria possível naqueles concursos onde se pudesse evidenciar, matematicamente, esse numerário. Caso contrário, ao menos uma vaga deveria ser destinada para atendimento à legislação ordinário federal. Nesse sentido, vejamos o julgado do STF: Por ofensa ao art. 37, VIII, da CF (a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão), o Tribunal deu provimento a recurso extraordinário para reformar acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais que negara a portadora de deficiência o direito de ter assegurada uma vaga no concurso público ante a impossibilidade aritmética de se destinar, dentre as 8 vagas existentes, a reserva de 5% aos portadores de deficiência física (LC 9/92 do Município de Divinópolis) (STF – Pleno – RE n° 227.299/MG – Rel. Min. Ilmar Galvão, decisão 14/06/2000. Informativo STF, n° 193) E neste ponto, volta-se ao tópico anterior que enuncia: para a efetivação da norma há que se buscar a interpretação mais adequada para se chegar aos fins propostos por ela, ou não será atingido o seu objetivo social, dentro de uma análise constitucional. Dentro dessa perspectiva, a efetivação do princípio constitucional da igualdade deve ser considerado no que se chama de IGUALDADE PERANTE A LEI e IGUALDADE NA LEI. Uma não existe sem que a outra esteja presente. Ou seja, identificada a igualdade perante a lei, essa somente será efetivada se, automaticamente, esteja consagrada, na prática, a igualdade na lei. E isso deve ser verificado no edital de concurso público. De nada adianta a reserva de vagas para deficientes físicos se estas vagas, na prática, nunca serão preenchidas por eles, por óbices da própria lei. Ou, ainda, que somente haja reserva de vagas para deficientes físicos a partir de um número mínimo total de vagas para o concurso, compreendendo-se, assim, uma flagrante infração ao princípio da igualdade e, por isso, a inconstitucionalidade de determinados editais. Nessa esteira de pensamento, colaciona-se o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal: O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é – enquanto postulado de nossa ordem político-social – suscetível de normativa. regulamentação Esse princípio – ou cuja de complementação observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei – que opera numa fase de generalidade puramente abstrata – constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição já destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva da inconstitucionalidade. (STF, MI 58, rel. Min Celso de Mello, julgamento em 14/12/90, DJ de 19/04/91) Nesse contexto estão as políticas de ações afirmativas que tentam inserir na sociedade a efetivação do princípio da igualdade previsto na Constituição Federal, em seu art. 5°. Desse princípio, vários outros se desenrolam, entre eles o da dignidade da pessoa humana, onde as vagas dos deficientes físicos em concurso público tentam inserir este grupo na disputa de vagas para o serviço público. Sem dúvida, o princípio da dignidade da pessoa humana está estritamente ligado aos fins sociais das chamadas “ações afirmativas”, em qualquer nível de governo. Por isso, a inserção dos deficientes físicos no mercado de trabalho, no setor público e privado, tem, dentre outros objetivos, atingir a dignidade de cada deficiente que necessita prover seu próprio sustento, até porque as deficiências físicas, em sua maioria, não são incapacidades totais do ser humano, configurando-se apenas em limitações que restringem a ampla e irrestrita capacidade para qualquer trabalho. Muito além do próprio sustento material, estão as razões psicológicas, meritórias, satisfativas, dentre outros elementos que compõem a razão da existência de cada ser humano. Nesse contexto, e para encerrar o entendimento, é primoroso o estudo do professor Ricardo Maurício Freire Soares, na seguinte passagem: “Com efeito, o legislador constituinte brasileiro conferiu ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana a qualidade de constitucional, norma embasadora informando as de todo prerrogativas o e sistema garantias fundamentais da Carta Magna de 1988, negativos ou positivos, encontram seu fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, como princípio constitucional de evidente densidade axiológica e teleológica, deve-se reconhecer a força normativa da dignidade da pessoa humana, dotada de plena eficácia jurídica nas relações públicas e privadas, seja na perspectiva abstrata do direito objetivo, seja na dimensão concreta de exercício de direitos subjetivos. O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade física e moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo, relacionando-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência”. (Hermenêutica e Interpretação Jurídica, Ed. Saraiva, 2010, p. 140) Dessa forma, fica evidenciada a necessidade de se rever as normas editalícias de concurso público, caso contrário, estaremos criando um estado platônico tanto de normas quanto de políticas públicas e, pior, se a intenção da norma é a redução da desigualdade, estará, na realidade, causando uma estagnação irreversível. CONCLUSÃO Os programas federais e leis que pretendem inserir no mercado de trabalho, principalmente no serviço público, o portador de deficiência é um avanço no sentido de aproveitar a força de trabalho de uma parcela da população que sofre com o preconceito e o isolamento dentro dos diversos grupos sociais. Abrindo um parêntese, esse tipo de norma em nada se assemelha às normas internas implementadas pelas universidades públicas do país quanto instituem o sistema de cotas sociais e raciais. Neste último, a chamada “política afirmativa” disfarça um problema crônico da péssima qualidade do ensino público médio e fundamental; cria uma desigualdade entre os candidatos que estão na mesma condição de disputa, ou seja, haverem terminado os ensinos médio e fundamental; fere o princípio da isonomia, fazendo clara distinção entre os candidatos; em alguns casos, fere também o princípio da razoabilidade, quando dispõe de metade das vagas para atender a essas políticas, dentre outros fatores políticos, sociais e legais que não se aplicam ao sistema de reserva de vagas para os deficientes físicos. No presente trabalho, o que se demonstra não é a legalidade ou inconstitucionalidade da norma, até porque já concebida como constitucional. Mas sim a sua efetivação, como qualquer outra norma inserida no sistema normativo e que encontre óbice em outra lei ou ato com força de lei. Se os editais de concurso público continuarem com essa “previsão teórica” da reserva de vaga do deficiente físico, sem que, na prática, isso se efetive, estaremos aceitando mais uma lei inaplicável, ferindo o Estado Democrático de Direito e atrasando o crescimento social do país. A efetivação da norma jurídica talvez seja mais importante do que a própria norma, pois a existência de uma lei que não se impõe na prática gera, em muitos casos, muito mais incômodo do que a falta dela. Por isso, é dever do Estado e, principalmente, do judiciário, corrigir essas falhas, dando efetivação à norma o que, alegremente, já vem ocorrendo em alguns tribunais do país quando anulam editais de concurso e ordenam a abertura de ao menos uma vaga para deficientes físicos, em estrito cumprimento à Constituição Federal e norma infraconstitucional. *LAURA FIGUEIREDO – advogada, pós graduada em Ciencias Políticas y de La Administración pela Universidad de Barcelona(ES), especialista em Direito Tributário pela Unisul(SC), pós graduanda em Direito do Estado (Faculdade Social da Bahia), Presidente do Instituto Sergipano de Direito do Estado.