Resumo Histórias e histórias: o jornal como testemunha Simone da Silva Lopes PROALFA – UERJ Só se aprende a escrever escrevendo. Só se aprende a ler lendo. A folha de papel, em branco ou não, apesar de assustadora para quem está no início, não deve ser um empecilho para a escrita produtiva, autônoma; antes, cabe a nós, educadores, perceber e aguçar o papel ativo dos alunos no uso social da língua. A partir dessa concepção, relataremos e analisaremos nossa experiência em EJA na confecção de um jornal - o Reviver- como produto final de um projeto intitulado “As histórias que constroem a história do Brasil”. O objetivo, além de produzir textos de circulação real, desenvolvendo a leitura e a produção de texto, era refletir sobre fatores históricos e culturais a partir das experiências individuais dos educandos. Assim, por meio desse paralelo, percebe-se que, embora nossos nomes não estejam eternizados nos livros, somos, todos, produtores e produtos da História. (Palavras-chave: leitura, letramento, escrita, história Histórias e histórias: o jornal como testemunha Simone da Silva Lopes PROALFA – UERJ Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais. Rubem Alves I- Introdução O presente texto pretende relatar o processo de confecção de um jornal por alunos inseridos no contexto da EJA. Tal trabalho foi realizado no PROALFA − Programa de Alfabetização, Documentação e Informação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro − cujo objetivo norteador é a formação de sujeitos autônomos na escrita e proficientes na leitura. Suas ações extensionistas-educativas na área de alfabetização são desenvolvidas em cinco projetos: classes de alfabetização e letramento de jovens e adultos, apoio educacional à enfermaria do Hospital Pedro Ernesto, ciclos de estudos em alfabetização, acervo especializado em alfabetização Emília Ferreiro e apoio pedagógico à formação dos estagiários. Nosso trabalho faz parte do projeto Classes de Alfabetização e Letramento de Jovens e Adultos, que se compõem de quatro turmas cujos alunos pertencentes são, em sua maioria, mulheres de terceira idade. Em se tratando de uma educação não-formal, não há obrigatoriedade de obedecer à padronização dos conteúdos escolares, o que permite maior flexibilidade e liberdade de planejamento. Dessa forma, as ações educativas têm como foco a leitura, a matemática e a escrita, e tais especificidades são desenvolvidas por meio de módulos temáticos, tendo em vista a elaboração de um produto final. Os temas anuais, subdivididos em módulos, são escolhidos pela Coordenação Pedagógica em conjunto com os professores, mas objetivando atender aos interesses dos alunos. Outro diferencial do trabalho desenvolvido no PROALFA é que cada turma das classes de alfabetização e letramento conta com um ou dois professores regentes, responsáveis pelo direcionamento do projeto a ser realizado e que, além disso, são os que mais possuem contato com os educandos, visto que estão diariamente em contato com eles. Igualmente importantes são os professores das oficinas, cuja responsabilidade é tratar especificamente de leitura, escrita e matemática, acompanhando o trabalho do regente, mas detentor de autonomia para realizar suas próprias escolhas. Vale ressaltar que as aulas são ministradas três vezes por semana, três horas por dia; desse tempo, cada oficina dispõe de uma hora e meia, cabendo ao regente o tempo restante. Embora muitos acreditem que há limites para o aprendizado, o que nos move é a certeza de que esta é uma idéia falsa. Não há barreiras para o aprender nem para o ensinar. Por isso, no início de 2005, quando da escolha do tema para o projeto, optamos por estudar a história, pois reconhecemos a sua importância na construção da cidadania. Assim surgiu o projeto “Histórias e histórias: ressignificando o passado, compreendendo o presente e construindo o futuro”. Visando a ultrapassar as barreiras do anonimato histórico e suscitar nos alunos a consciência de que são construtores dessa história, surge, para o primeiro módulo do referido ano, o subtema “As histórias que constroem a História do Brasil”. Este era o nosso objetivo: fazer com que uma turma de 19 alunos idosos, como já dissemos, mulheres em sua maioria, olhassem criticamente para o seu país; mais do que isso, que se vissem como personagens principais de uma história que ajudaram a construir. Sendo assim, acreditando na eficiência da pedagogia de projetos, decidimos que a nossa turma desenvolveria um trabalho que concatenasse as suas histórias com a do Brasil numa espécie de diálogo − “Paralelo de notícias: Eu e a História”. Essa certeza precisava ser materializada pela escrita, visto que também era nosso objetivo dar continuidade ao processo de alfabetização e letramento. Por isso, julgamos pertinente que nosso produto final fosse um jornal − veículo de comunicação portador de uma história viva, que acontece sob nossos olhos e da qual muitas vezes acreditamos não fazer parte. A partir de então, nossa prática pedagógica procurava conciliar nossos objetivos, relativos ao projeto, com os interesses dos alunos, levando em conta suas realidades e valorizando-as para conduzi-los a um novo conhecimento. Nesse sentido, em detrimento da concepção behavorista, segundo a qual o aprendizado dá-se por meio de estímulos e respostas, adotamos os referenciais construtivista e sociocontrutivista, respeitando os estágios de desenvolvimento do educando, mas acreditando que o meio tem vital importância nesse processo. O aluno, então, torna-se centro do processo de ensino-aprendizagem, cabendo ao professor o papel de mediador, fornecendo os subsídios necessários para que os alunos construam seu conhecimento de forma ativa, crítica e significativa. Uma variável importante permeava nosso trabalho: a heterogeneidade. Alguns alunos, embora já alfabetizados, nunca haviam sentado nos bancos escolares; outros tiveram acesso a um nível mínimo de escolarização e, uma pequena parte da turma, já apresentava um nível mais elevado de conhecimento, o que era revelado na facilidade em fazer contas e na desenvoltura da escrita e da leitura. Se no primeiro momento tal diferença nos chocou, no decorrer das aulas percebemos a importância da heterogeneidade para o desenvolvimento da turma, ou seja, a troca de conhecimento entre os alunos fomentava a aprendizagem. A Zona de Desenvolvimento Proximal, conceito proposto por Vigotsky, explica o êxito dessa interação: “a ZDP é definida com a distância entre o nível de resolução de uma tarefa que uma pessoa pode alcançar atuando independentemente e o nível que pode alcançar com a ajuda de uma colega mais competente ou experiente nessa tarefa”. (Onorubia, 2003 p.127) Assim, seguimos com o projeto, aproveitando o individual e o diferencial de cada aluno para alimentar nossos objetivos e elucidar as atividades propostas. II- O Trabalho Pedagógico O módulo iniciou em 15 de Março e terminou em 30 de Junho. Ainda que nosso objetivo estivesse bem claro para nós, acreditamos ser importante que eles decidissem sobre quais temas gostariam de saber mais, afinal, era a história deles a matéria prima para o nosso trabalho. Então, logo nas primeiras aulas, fizemos essa investigação e eles levantaram temas como história de Brasília, história do Rio antigo, história de São Paulo, 20 anos de Ditadura, imigração, Era Vargas entre outros. Como não somos especialistas no assunto e não dispomos do tempo necessário para atender a tantas solicitações, tivemos que fazer escolhas. Nesse sentido, optamos por trabalhar, paralelamente, a história de Brasília, os fatos referentes à Ditadura Militar e à Era Vargas e o jornal propriamente dito. Tendo em vista que nosso objetivo no presente texto é tratar da construção do jornal, deter-nos-emos, desse ponto em diante, somente ao seu processo de feitura. Em um módulo de estudos que gira em torno do estudo da História, acreditamos ser importante tratar dos aspectos históricos do próprio jornal, processo que se deu por meio do levantamento de hipóteses e a constatação, ou não, das mesmas a partir de informações levadas por nós, professoras. Como estratégia de desenvolvimento e aprimoramento da escrita, de posse dessas informações construímos um texto coletivo, que posteriormente foi levado para a turma e lido em voz alta pelos alunos. Passada essa fase inicial, começamos a discutir sua função social e importância enquanto registro da história; depois, observamos sua arquitetura e organização. Levamos para a turma diferentes jornais para que eles pudessem fazer comparações e perceber as diferentes maneiras com que os jornais abordam as notícias, identificar os diferentes cadernos e seus objetivos, enfim, queríamos que a partir daquele momento eles lançassem um olhar investigativo sobre o jornal.. Essa atividade foi realizada em grupo e os resultados obtidos foram socializados com a turma, de modo que todos conhecessem um pouco sobre os três jornais mais lidos: O Globo, O Dia e Extra. Em seguida, passamos a análise da primeira folha que, segundo a aluna Else, “é a vitrine do jornal”. Concluímos que é através dela que escolhemos as notícias ou cadernos que serão lidos, e quais são as principais manchetes do dia. Como os grupos estavam com um jornal, eles diziam quais os elementos que compunham a capa e nós anotávamos no quadro-negro − chamada, título, nome, data, preço, edição, índice, fundador, foto, legenda, manchete. Esses itens foram identificados na primeira folha do jornal através de etiquetas. Na aula posterior, entregamos a eles uma folhinha explicativa sobre esses itens e lemos em voz alta a título de sistematização dos conhecimentos. Acreditamos que seria de extrema importância no processo de construção do nosso jornal que nossos alunos visitassem uma redação de verdade e conhecessem de perto os bastidores do universo jornalístico. Assim, fizemos uma visita pedagógica à redação do Jornal do Brasil, onde fomos muito bem recebidos pelo editor da época, o jornalista Marcus Barros Pinto. Ele nos concedeu uma breve palestra, fornecendo-nos informações valiosas para nosso trabalho, tanto sobre o JB como sobre o jornalismo de uma forma geral. Os alunos gostaram muito, mas lamentaram não ter sido possível conhecer o maquinário gráfico. Nós, professoras, imediatamente didatizamos a visita. Como era nossa intenção que essa visita se tornasse a manchete de nosso jornal, decidimos realizar a partir dela uma atividade introdutória sobre a elaboração de notícias, mas que ainda não poderia ser o texto jornalístico propriamente dito, visto que os alunos ainda não haviam chegado a essa etapa. Então, sem utilizar a nomenclatura correspondente, fizemos a introdução dos elementos que compõe o LIDE (primeiro parágrafo da notícia, que contem suas informações principais, a, resumindo-a − O QUE, QUEM, QUANDO, ONDE, COMO, POR QUE). Dessa forma, registramos os dados que nos seriam úteis no futuro, pois não podíamos apenas contar com a memória, sobretudo em se tratando de idosos. Nas aulas decorrentes, fizemos atividades de leitura/compreensão de notícias de jornal, utilizando as estratégias de leitura, (antecipação, verificação etc), visando a uma maior intimidade dos alunos com esse tipo de texto. Também falamos sobre a importância dos títulos e subtítulos e nos detivemos ao primeiro parágrafo, o lide. Finalmente, iniciamos as atividades em que os alunos, divididos em dupla, tinham que identificar e transcrever as informações principais primeiro parágrafo. Nosso objetivo era que eles internalizassem essa estrutura que seria de grande valia para o nosso jornal e por isso nós também refletíamos conjuntamente sobre o lide das notícias trabalhadas. Para fins didáticos, também distribuímos uma folha explicativa. Ao sentirmos que já era possível avançar, decidimos iniciar a escrita autônoma de notícias. Retornamos a atividade do lide sobre a visita ao JB e utilizando a estratégia do texto coletivo construímos nossa notícia. Foi um trabalho muito rico, pois discutimos vários aspectos lingüísticos desse tipo de texto, como: uso da 3ª pessoa (“Os alunos visitaram”, ao invés de “Nós visitamos”), passado X futuro (visitaram X visitarão), uso da vírgula, a importância de se informar a idade dos envolvidos em uma notícia e como ela aparece e o uso das aspas para indicar a fala alheia. Depois de pronta, digitamos, levamos para sala de aula e cada um leu um parágrafo. A fim de iniciar uma escrita individual das notícias e estimular o estudo fora do ambiente “escolar”, nós formulamos respostas fictícias para as perguntas que estruturam o primeiro parágrafo e cabia aos alunos, em casa, o transformarem num lide. Em aula, cada um leu o seu e nós comentávamos os aspectos mais relevantes; em seguida, fazíamos outro, coletivamente. A produção de uma notícia completa, em dupla, sem nossa interferência direta iniciou-se a partir de Poema tirado de uma notícia de jornal, de Manuel Bandeira. Destacamos no quadro os elementos do lide e discutimos itens interessantes que, geralmente, aparecem numa notícia: nome todo, idade e profissão. Ao longo, tivemos que fazer várias intervenções, pois os alunos manifestam uma forte tendência a contar “causos” ao invés de redigir textos jornalísticos. Os resultados foram ótimos e vários alunos nos parabenizaram, o que nos fez começar a perceber que nosso trabalho estava dando resultado. Na aula posterior, cada dupla leu o seu trabalho para a turma, e pudemos perceber as diferentes histórias que cada um criou a partir de um mesmo referencial. Nesse mesmo dia propusemos uma escrita de notícia individual a partir do Rap do Silva, do MC Bob Rum. Lemos a letra, ouvimos a música, discutimos o conteúdo e identificamos os elementos do lide no quadro. Percebemos, entretanto, que a escrita individual foi mais difícil até mesmo para os alunos mais espertos, mas após as interferências, todos, cada um a seu tempo e ritmo, conseguiram realizar a tarefa. Depois, todos leram seus textos e fizeram comentários. Com essa atividade terminamos a primeira fase da produção do jornal, que consistia na identificação de sua importância/função social, conhecimento de sua estrutura/organização e produção autônoma de um tipo de texto, dentre os vários, que figuram em um jornal – a notícia. Agora era preciso que nos dedicássemos a sua confecção propriamente dita. As aulas seguintes foram dedicadas à escolha dos grupos responsáveis pelos cadernos, os temas que iriam abordar, a produção dos textos, as correções, a escolha dos nomes dos cadernos, dos títulos e tudo o mais que fosse inerente a produção do jornal. Não houve mais aulas expositivas e a tarefa dos alunos ao chegar em sala era se reunir com o grupo e trabalhar. Durante esse período, eles se comportaram como jornalistas de verdade, que correm atrás da informação, pois era comum saírem de sala para realizaram entrevistas, como foi o caso do grupo da cultura e do Caderno principal, que entrevistaram a responsável pelo acervo, Tathyanne Ferreira, e a coordenadora do PROALFA, Professora Doutora Anna Helena Moussatché. Auxiliávamos cada grupo individualmente e procurávamos atender suas necessidades, como livros e materiais da Internet para pesquisa, sugestão de temas e tudo que nos fosse solicitado. A confecção e as características de bons títulos foram trabalhadas em cada grupo, de acordo com os temas das notícias dos mesmos. Coube ao grupo responsável pelo caderno principal intitular a notícia da visita ao JB, que já estava pronta. Cada grupo produziu as chamadas dos cadernos, que devem constar na primeira página, ou “vitrine” do jornal. Como resultado desse trabalho, surge o jornal Reviver, composto pelos seguintes cadernos − Caderno Principal, Golaço, Boa Saúde, Espaço Cultural, História e histórias. III- Conclusão Escrever é tarefa difícil, ninguém discute. Igualmente indiscutível deve ser o fato de que é obrigação da escola formar alunos proficientes em sua língua, tanto na oralidade quanto na escrita. Nossos alunos, como já foi dito, em sua maioria não tiveram a oportunidade de se sentarem nos bancos escolares ou tiveram uma passagem rápida por esses, o que neles gerou um enorme sentimento de frustração e inferioridade ao longo da vida. Chegando ao PROALFA, trazem consigo o enorme desejo de serem inseridos no mundo, do qual julgam não fazerem parte, e um estereótipo de escola. Temos, então, duas obrigações fundamentais: mostrar-lhes que, mesmo não possuindo alto nível de escolaridade, são cidadãos que merecem respeito, que têm algo a dizer e a fazer, que suas opiniões são importantes e que são figuras ativas nesse mundo do qual não se julgam parte. A outra missão é fazê-los compreender que não se aprende a escrever repetindo dez vezes a mesma palavra para não mais errar a sua grafia ou decorando o “beabá; antes, queremos que as suas leituras de mundo sejam a mola propulsora para a leitura da palavra. O texto, e só ele, fornece os subsídios para um processo de aquisição de escrita que, além de alfabetizar, seja eficaz no que tange ao letramento. Assim, julgamos vitoriosa nossa incursão no mundo dos textos jornalísticos, não apenas porque cumprimos os objetivos do nosso projeto, mas sobretudo porque pudemos constatar uma mudança de postura por parte dos nossos alunos: ao final, já se viam como produtores de História, indivíduos ativos no processo de construção e transmissão do conhecimento. Acreditamos que cumprimos nosso papel de professoras não porque lhes ensinamos um conteúdo, mas sim porque ajudamos a descobrir e despertar um conhecimento que estava dentro de cada um, adormecido e esquecido. Mais do que isso, fizemos com que percebessem do que são capazes. Esse é trabalho do professor, mediar a relação entre o aluno e o conhecimento, respeitando e legitimando o que trazem consigo e levando-os a desbravar novas possibilidades. Certamente, esse é um dos momentos que fazem de nós, professores, seres imortais. IV- Referências Bibliográficas. ONRUBIA, Javier. Ensinar: criar zonas de desenvolvimento proximal e nelas intervir. In: COLL, César et al. O Construtivismo na Sala de Aula. São Paulo: Ática, 2003.