Violência conjugal e prevenção de DST/HIV VIOLÊNCIA CONJUGAL E SU AS IMPLIC AÇÕES NA SUAS MPLICAÇÕES PREVENÇÃO DE DST/HIV CONJUG AL VIOLENCE AND ITS IMPLIC ATION ONJUGAL MPLICA IN STD/HIV PREVENTION Normélia Maria Freire Diniz* Regina Lúcia Mendonça Lopes** Telmara Menezes Couto*** Nadirlene Pereira Gomes**** Sandra Lúcia Belo Alves***** Jeane Freitas de Oliveira****** RESUMO: Estudo quantitativo, realizado numa maternidade pública de Salvador, em 1999. Objetivou investigar a incidência da violência conjugal sofrida por mulheres e seu conhecimento sobre medidas preventivas de DST/HIV, analisando a implicação da violência no uso de tais medidas. Para coleta de dados, utilizou-se a entrevista com formulário, sendo a amostra composta por 157 mulheres. Destas, 86% referiram sofrer violência conjugal. Do total, 94,90% já ouviram falar sobre DST/HIV. Conclui-se que, na violência conjugal, as relações de gênero influenciam na adesão às medidas preventivas de DST/ HIV, sendo um processo social cristalizado por relações desiguais entre os gêneros, determinando a violência de gênero. Palavras-chave: DST/HIV; prevenção; saúde da mulher; violência conjugal. ABSTRACT ABSTRACT:: This is a quantitative study, done in a governmental maternity of Salvador (BA), in 1999. The aim of this study was to investigate the incidence of conjugal violence endured by women, and their acquaintance with measures to prevent STD/HIV, analyzing the implication of violence upon the adoption of those measures. For data collection, interviews guided by questionnaires were used. The sample was composed by 157 women; 80,25% of them admitted to have endured conjugal violence and 94,90% had already heard about STD/HIV. The results point to the conclusion that, in a conjugal violence context, gender relations can influence the adhesion to measures to prevent STD/HIV, in a social process crystallized by unequal relations between genders that determines gender violence. Keywords: STD/HIV; prevention; woman’s health; conjugal violence. I NTRODUÇÃO E mbora as mulheres há muito tempo convivam com a problemática das doenças sexualmente transmissíveis (DST), foram surpreendidas com a chegada da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS), numa época em que era ainda muito recente a conquista dos seus direitos sexuais. Conhecedoras da forma de transmissão dessas doenças, elas não possuem, no entanto, o poder de controlar o comportamento sexual de seus parceiros e, não raro, ao tentarem se proteger, sofrem atos de violência. A violência praticada contra a mulher de algum modo interfere nesta situação e vem p.80 • R Enferm UERJ 2003; 11:80-4. a u m e n t a n d o d i a a p ó s d i a . Pa r a n ó s , a violência incidida sobre a mulher é entendida como violência de gênero, fenômeno presente no cotidiano doméstico e conjugal das mulheres. Em monografia sobre violência 1 doméstica realizada por Freitas e Bispo (p.11) em uma Maternidade Pública de Salvador, as puérperas entrevistadas assim conceituam a violência: [...] é tudo aquilo que a gente faz obrigado como cozinhar, arrumar a casa, lavar roupas e fazer sexo sem estar com vontade;... é fazer algo contra a vontade, satisfazer o desejo dos pais, do marido, dos filhos e depois se sentir insatisfeita. Diniz NMF, Lopes RLM, Couto TM, Gomes NP, Alves SLB, Oliveira JF Ou seja, ela é reconhecida pelas mulheres como violência de gênero. Nessa perspectiva, o gênero é constitutivo nas relações sociais, sendo que a violência segue a ordem regida pelo masculino. Na vida diária, são os homens que estabelecem até onde as mulheres podem ir e qual o seu papel. Até mesmo as relações mulher mulher são ditadas pelas regras do universo masculino, sendo a violência importante componente de controle social e parte do processo de normalização. Para Saffioti2, a violência doméstica é possível graças ao estabelecimento de territórios físico e simbólico, onde o homem tem praticamente o domínio total. Seu território geográfico é constituído pelo espaço do domicílio. Todas as pessoas que vivem sob o mesmo teto, vinculados ou não por laços de parentesco ao chefe do local, lhe devem obediência. Dessa forma, não se trata de ter sob o seu jugo apenas as mulheres, filhos e outros parentes que eventualmente morem na mesma casa, pois agregados de forma geral devemlhe obediência. Mais do que isso, até mesmo pessoas assalariadas estão sujeitas a esse constrangimento: é o caso da empregada doméstica, que, contratada para realizar o serviço da casa, é, muitas vezes, obrigada a prestar favores sexuais ao dono da casa. Conforme Bunch apud Saucedo3, é no espaço doméstico familiar que podemos encontrar maior incidência - 40 a 80% - desse tipo de violência. É comum pensar em violência como atos que provocam algum tipo de lesão física, caracterizada pela ocorrência de empurrões, tapas, murros, queimaduras, ameaças com arma mortal, cárcere privado, não garantia da sobrevivência familiar, entre outros. Todavia, ela pode assumir outras formas como: a violência emocional, marcada por humilhações que objetivam diminuir e até acabar com a auto-estima, ameaça de espancamento, acusação de traição; a violência sexual, determinada pela imposição de relações sexuais, de práticas sexuais que não agradam e que colocam em risco a saúde da parceira, de ocorrência de relações sexuais com outras pessoas, de críticas ao desempenho sexual, entre outras; e a violência por atos destrutivos, que se dão através da descarga de agressividade sobre objetos pertencentes à companheira, bem como a prática de quebrar os móveis, revirar a casa, destruir ou esconder bens ou objetos pessoais da companheira, entre outras4. A violência de gênero coloca a mulher em uma situação particularmente vulnerável quanto às DST/AIDS, pois as dificuldades na prevenção estão relacionadas às questões de poder legitimadas pela sociedade, constituindo um obstáculo muitas vezes intransponível. Essa condição de assimetria é uma construção social e, como tal, passível de modificação. Relações desiguais de gênero remetem a distintos padrões sexuais masculinos e femininos5. As práticas relacionadas à prevenção das DST/ HIV não fazem parte do cotidiano feminino devido a essas relações desiguais, que resultam em violência contra a mulher, quando esta passa a reivindicar o uso de medidas preventivas. Como afirma Andrade6, ter informação sobre a AIDS não significa tê-la incorporada a práticas sexuais seguras. O estudo******* teve como objetivos investigar a incidência da violência conjugal sofrida por mulheres, identificar o conhecimento de medidas preventivas de DSTs/HIV e analisar a implicação da violência no uso de tais medidas. METODOLOGIA I nvestigou-se mulheres que procuraram o programa de planejamento familiar para assistência no ambulatório da maternidade pública Albert Sabin, situada na cidade de Salvador Bahia, em 1999. Dessas mulheres, foram selecionadas 157, que responderam a uma entrevista acompanhada de um formulário semiestruturado contendo as seguintes variáveis: sociodemográficas, violência vivida pelas mulheres, conhecimento sobre as DST/HIV, conhecimento sobre medidas preventivas, significado do condon, relação com o companheiro e o sentimento na prevenção dessas doenças. Obedecendo às normas éticas, de acordo com a Resolução 196/967, o projeto foi aprovado pela Instituição, campo de pesquisa. Com relação às participantes, foi-lhes explicado o significado da pesquisa, a garantia do anonimato e a livre participação. Para o estudo, de natureza quantitativa, utilizamos o programa EPI-INFO, sendo os dados analisados conforme a temática de gênero e violência conjugal. R Enferm UERJ 2003; 11:80-4. • p.81 Violência conjugal e prevenção de DST/HIV RESUL TADOS ESULT E DISCUSSÃO Após a sistematização das informações, verificou-se ser a amostra caracterizada por uma população jovem (14-20 anos), na sua maioria solteira (77,7%), sendo que 63.5% destas vivendo em uniões consensuais. A maioria, ou seja, 47.8%, cursou o 10 Grau incompleto, seguida de 25,5% com o 2 0 Grau incompleto. Quanto à condição financeira, 61,4% dependiam do marido ou do companheiro e 29,2% eram dependentes do pai ou da mãe, refletindo limitação econômica. Com relação à variável vivência de violência, 86% das entrevistadas sofreram essa experiência. (Figura 1) reitos Humanos – Brasil8, como aquela que se dá entre cônjuges, ex-cônjuges, companheiros, ex-companheiros, incluindo outras relações interpessoais, como noivos ou namorados. Das entrevistadas que vivenciaram a violência conjugal, 91,1% sofreram violência emocional, 83,7% violência física, 48,1% violência sexual e 42,9%, atos destrutivos. Esses resultados corroboram outros estudos sobre a tipologia da violência contra a mulher1,2,3,4,5,6. (Figura 2) Quanto à variável conhecimento sobre as DST/HIV, 94,9% declararam ter ouvido falar sobre essas doenças, sendo a AIDS a mais conhecida (87.8%). Apenas 6% informaram terem sido acometidas por algumas DST. Destas, a maioria FIGURA 1: Distribuição da violência de gênero sofrida por mulheres presentes em ambulatório da maternidade pública. Cidade de Salvador-Ba., 1999. FIGURA 2: Formas de violência sofrida por mulheres presentes em ambulatório da maternidade pública. Cidade de Salvador-Ba., 1999. Verificamos que as mulheres compreendem a violência doméstica como aquela que se dá no espaço doméstico, identificando como agressor o marido ou o companheiro. Tais achados confirmam diversos estudos sobre a violência e a mulher1,2,3,4,5,6. Vale ressaltar que a violência conjugal é conceituada pela Organização das Nações Unidas, conforme documento da Secretaria Nacional dos Dip.82 • R Enferm UERJ 2003; 11:80-4. referiu ter contraído o HIV, e através de relações sexuais com o marido ou companheiro. Esse dado mostra que a transmissão se deu numa relação conjugal estável. No tocante à variável conhecimento sobre medidas preventivas das DST/HIV, podemos perceber que 97,3% da amostra referiram o condon como uma da forma de prevenção. Destes, 80,3% Diniz NMF, Lopes RLM, Couto TM, Gomes NP, Alves SLB, Oliveira JF apontaram apenas o condon como a resposta considerada correta. No entanto, apenas 6,6% declararam usar o preservativo como forma de prevenção de DST/HIV. Assim, a variável conhecimento não determina uma mudança de comportamento no que se refere à prática do uso do condon. Relacionando a variável conhecimento e prática de prevenção das DST/HIV à variável escolaridade, o estudo mostra que existe uma relação entre o nível de escolaridade (42,7% 10 Grau completo e 47,8 % 10 Grau incompleto) e conhecimento, embora tal situação não implique uma prática sexual segura. O baixo índice de uso do condon (6,6%) independe da vivência de violência doméstica. Assim, percebe- se que não é a violência, isoladamente, que impede o uso de medidas preventivas, uma vez que as mulheres que não referiram vivência de violência, na sua maioria, também não se previnem. Em se tratando da justificativa para o não uso do condon, 34,0% apontaram a não aceitação pelo parceiro. Neste caso, o homem é quem tem o poder para decidir o uso de medidas preventivas, independente do desejo da mulher. Tal fato reflete as questões de gênero, permite a compreensão da construção das relações desiguais entre homens e mulheres9. Assim, a sociedade outorga ao homem o poder de controlar a mulher, inclusive sua sexualidade. Mantega 10 já apontava esse pensamento ao afirmar que a sexualidade tem estado comprometida com as relações de dominação. Quando abordamos a respeito do diálogo da mulher com o companheiro sobre a prevenção das DST, 46,2% não conversam sobre o assunto. Entre as que dialogam, em 7,0% dos casos os companheiros ou não aceitam o uso de preservativo ou não as escutam. Quanto à dificuldade de prevenir as DST, 27,9% apontaram o medo da violência associada a outros sentimentos, como a solidão e a vergonha. C ONCLUSÃO D as 157 mulheres jovens investigadas, a maioria (86%) sofre violência conjugal compreendendo a violência de gênero, o que compromete a boa convivência, o respeito mútuo, o diálogo e a tomada de decisões em consenso. Consideramos que as questões em relações às desigualdades entre gênero remetem a padrões sexuais masculinos e femininos diferenciados e, em relação às práticas de prevenção das DST/HIV, estas não fazem parte da vida das mulheres. Nesse sentido, constatou-se que apenas o conhecimento sobre medidas preventivas das DST não é suficiente para que estas sejam incorporadas pelas mulheres nas suas relações sexuais. Percebe-se, então, que, apesar de as informações serem suficientes, elas não correspondem a mudanças esperadas face à prevenção das DST/HIV e à adoção de uma prática sexual segura. REFERÊNCIAS 1. Freitas SB, Bispo TCF. Violência doméstica incidida sobre a mulher [monografia]. Salvador (BA): Escola de Enfermagem, Universidade Federal da Bahia; 1997. 2.Saffioti HIB. Violência doméstica ou a lógica do galinheiro. In: Kupstas M. Violência em debate. São Paulo: Moderna; 1997. p.39-57. 3. Saucedo I. Violência domestica: un problema emergente. In: Hardy E, Osis MJD, Crespo ER. Ciências sociais e medicina. São Paulo: CEMICAMP; 1995. p. 34-9. 4. Verado MT. Violência no relacionamento amoroso. São Paulo: IMEP; 1990. (Série Violência de Gênero). 5. Gregori MF. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e práticas feministas. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1993. 6. Andrade SMO. O que diz e faz a população heterossexual de Campo Grande MS sobre as práticas sexuais de risco frente à AIDS. R Divulgação Saúde Debate 1997; 18: 26-3. 7. Brasil, Conselho Nacional de Saúde. Resolução n.º 196. Dispõe sobre pesquisa envolvendo seres humanos. R Bioética 1996; 4: 15-5. 8. Brasil, Ministério da Justiça, Secretaria Nacional dos Direitos Humanos. Glossário. Brasília: Ministério da Saúde; 1998. 9. Scott J. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Recife: SOS Corpo; 1995. 10. Mantega G. organizador. Sexo e poder. São Paulo: Brasiliense; 1979. R Enferm UERJ 2003; 11:80-4. • p.83 Violência conjugal e prevenção de DST/HIV VIOLENCIA ENTRE CÓNYUGES Y SUY AS IMPLIC ACIONES EN LA SUYAS MPLICA PREVENCIÓN DE LAS EST/VIH RESUMEN: Estudio cuantitativo hecho en una maternidad pública de Salvador – Brasil, en 1999. Buscó investigar la incidencia de la violencia conyugal en mujeres, y su conocimiento a cerca de medidas preventivas de EST/VIH, analizando la implicación de la violencia en el uso de tales medidas. Para la colecta de datos, fue utilizada la entrevista con formulario, siendo la muestra compuesta por 157 mujeres. De estas, 80,25% refirieron sufrir la violencia conyugal. Del total, 94,90% ya oyeron hablar sobre EST/ VIH. Se concluye que en la violencia conyugal, las relaciones de género influyen en la adhesión a las medidas preventivas de EST/VIH, siendo un proceso social cristalizado por relaciones desiguales entre los géneros, determinando la violencia de género. Palabras clave: EST/VIH; prevención; salud de la mujer; violencia conyugal. Recebido em: 17.08.2001 Aprovado em: 30.08.2002 Notas * Profª Adjunta do DECOM. Drª em Enfermagem – Universidade Federal de São Paulo. Pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Saúde da Mulher (GEM) da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (EEUFBA). Coordenadora do Projeto. ** Profª. Titular do DECOM. Dr.ª em Enfermagem – UFRJ. Pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Saúde da Mulher (GEM/EEUFBA) e do CNPq. *** Enfermeira Obstétrica. Mestranda da EEUFBA – Área de Concentração Enfermagem na Atenção à Saúde da Mulher. Membro da Diretoria da ABENFO-Ba **** Mestranda da EEUFBA – Área de Concentração Enfermagem na Atenção à Saúde da Mulher ***** Enfermeira Obstétrica. Mestre em Enfermagem – UFBA. ****** Profª Auxiliar do DECOM. Mestre em Enfermagem – UFBA. Pesquisadora do GEM ******* Recorte do projeto CNPq/PIBIC – 1999, intitulado Violência conjugal e suas implicações para prevenção de DSTs/HIV, vinculado à linha de pesquisa Mulher, Saúde e Violência do Grupo de Estudo sobre Saúde da Mulher (GEM), do Departamento de Enfermagem Comunitária da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia/DECOM/ EEUFBA. p.84 • R Enferm UERJ 2003; 11:80-4.