Construindo o setting: tradição e invenção no trabalho analítico com os
transtornos autísticos infantis
Mariângela Mendes de Almeida*
Resumo
Constantes desafios conceituais e técnicos no campo da Psicanálise de Crianças e nas formas de acesso a áreas não
integradas da mente nos demandam a necessidade de aprofundamento nas especificidades do método psicanalítico e
suas peculiaridades mais contundentes, ao mesmo tempo em que se busca extrair desta sempre viva herança o sumo
essencial nutriente para o trabalho analítico na plasticidade de cada configuração clínica. Este artigo discute aspectos
do trabalho clínico com crianças pequenas no contexto dos transtornos autísticos, considerando o legado da tradição
psicanalítica em relação aos instrumentos facilitadores do contato com o mundo interno da criança, as evoluções da
técnica quanto à necessidade de inclusão dos pais no campo analítico e aspectos desenvolvidos a partir das
modalidades de intervenções nas relações iniciais pais-bebê.
Introdução: tradições revisitadas
Como parte de nossa função analítica no trabalho com transtornos
autísticos, além do contato direto com estados de mente bastante primitivos,
acompanhamos de perto a intensa angústia de familiares e profissionais junto a
crianças em que a continuidade e espiral gradativa de trocas interativas e
dialógicas não são alimentadas pelo combustível comum do retorno
comunicacional e afetivo. Empatizamos com o sofrimento psíquico dos
cuidadores, na ausência ou prejuízo de aspectos ao mesmo tempo tão banais
quanto fundantes e essenciais do desenvolvimento infantil, como não olhar,
parecer não ouvir, não se interessar pelo brincar ou por demonstrações de
afeto, se isolar. Ausente está aqui, portanto, o compartilhar das maiores
tradições humanas e tal abismo demanda de nós, profissionais mobilizados por
instigante ressonância aos estados primitivos em todos nós, a reconsideração
de tradições conceituais e metodológicas e a constante re-invenção, na clínica
encarnada,
de
trilhas
de
possível
acesso
ao
contato
e
possível
desenvolvimento emocional (Mendes de Almeida, 2010).
Partindo-se do kleiniano original enquadre de neutralidade e máximo
rigor para o trabalho com o brincar, a fantasia e a mente infantil, provendo
exclusividade para o contato asséptico com o mundo interno da criança, longe
das interferências do mundo externo, aproveitam-se como desenvolvimentos
os
enormes
insights
propiciados
pelos
instrumentos
de
contato
contratransferenciais, para se refletir sobre configurações clínicas em que o
déficit relacional requer modalidades de construção e resgate, mais do que o
desvelamento de aspectos reprimidos do inconsciente (Alvarez, 1992).
Reflexões clínicas e conceituais contemporâneas discutem a questão da
atividade mental do analista como convocação viva e ativa do paciente para o
1
contato (a “reclamação”, ingrediente presente na “companhia viva” em Anne
Alvarez, 1992), a partir de incipientes rudimentos de interesse, elementos
proto-vinculares que se fortalecem em seu conteúdo relacional a partir do
investimento desejante e subjetivante do analista no canteiro de obras
psicanalítico (Mendes de Almeida, 2008; Silva, Mendes de Almeida, Barros
2010). Expandindo este canteiro de obras para o âmbito mais amplo de
cuidados, elemento de qualidade “externa” questionável, já que viabilizador de
novas redes internas fundantes e também demandante de nosso olhar
analítico, nos vemos muitas vezes na função de manter vivos, reconhecer
restituir, restaurar, e fortalecer os investimentos tão ameaçados de fragilização,
vulneráveis até a uma possível extinção, dos cuidadores no contexto familiar e
educacional.
Desenvolvimentos da teoria e da técnica psicanalítica (Alvarez and Reid,
1997; Lasnik, 1995), informados por contribuições de D. Stern e C. Trevarthen
na área do desenvolvimento, da observação psicanalítica da relação paisbebês e seus desdobramentos, a partir do trabalho de Gianna Williams e
Marisa Mélega (Sonzogno e Mélega 2008), da consulta terapêutica em D.
Winnicott e suas aplicações por S. Lebovici (1983), das intervenções conjuntas
nas relações iniciais (Mendes de Almeida, Marconato, Silva, 2004; Mélega,
Mendes de Almeida, 2007) e de questionamentos da própria técnica de
trabalho com os pais ao longo do trabalho analítico tradicional com a criança
(Lisondo e outros, 1996) enriquecem nossa tradição psicanalítica clássica. Tais
desenvolvimentos propiciam continência e holding a ansiedades parentais de
maneira integrada ao atendimento analítico da criança, seja em modalidades
de atendimento conjunto pais-criança, seja em atendimentos individuais à
criança, acompanhados com maior frequência e sem receio de interferências
nocivas ao setting analítico, por sessões periódicas de contato com os pais da
criança com o próprio analista. O próprio analista se dispõe muitas vezes a
articular a rede de apoio circundante, ou a fazer ligações com as instituições ou
instâncias responsáveis pelos cuidados.
No contexto das facilidades e dificuldades relativas à inclusão escolar e
social de crianças com transtornos autísticos, ressaltamos o caráter ao mesmo
tempo integrador da própria inclusão do olhar analítico junto à família e
educadores. Se por um lado, a entrada do analista pode propiciar novas
2
construções/invenções,
pode
também,
de
certa
forma,
apresentar-se
paralelamente e justamente por isso, como disruptiva em relação às "rotinas"
(inclusive psíquicas) estabelecidas como parte de uma “homeostase protetora”,
tradições frente ao sofrimento emocional.
Ilustrarei tais aspectos a partir de vinhetas filmadas do trabalho clínico
com uma criança pequena e seus pais, refletindo sobre tradições, invenções e
re-invenções relacionadas à construção de um setting facilitador para o
desenvolvimento emocional, incluindo o favorecimento da subjetivação, na
tradição dos vínculos familiares e o fortalecimento das capacidades para tolerar
estados de diversidade e plasticidade emocional, invenções inevitáveis do viver
humano.
Espaços para a invenção: a criança, seus pais e a constituição de uma
rede de continência
No trabalho com crianças pequenas com severos transtornos de
subjetivação fica dramaticamente evidente a interface tão significativa entre o
psicológico e o somático, matriz primária da maneira como os desconfortos
podem ser sentidos, percebidos, significados, registrados ou não como marca
do self a partir do olhar do outro.
Os contatos pais-profissionais, e inter profissionais (escola, fono,
analista) se mostram essenciais para criar uma rede em sintonia quanto a
situações básicas para o desenvolvimento de uma criança pequena. Refiro-me
às integrações entre hábitos da vida diária e crescimento psíquico, incluindo a
possibilidade de se vislumbrar alguma tolerância ao desconforto psíquico e sua
necessidade de significação.
Nesse contexto, demanda-se ao psicanalista um aumento de acuidade
observacional e um investimento na crença da não extinção das possibilidades
de discriminação e subjetivação, integrando dia-a-dia e mundo-pretendente-apsíquico.
Conversas periódicas com os pais, ou sessões conjuntas pais-criança, a
partir da tradição desenvolvida pelos instrumentos técnicos vinculares podem
potencializar tal integração. Ao facilitar o contato com as dificuldades da
criança e o fortalecimento dos vínculos, o trabalho conjunto também favorece o
acolhimento à ansiedade e vulnerabilidade parental, além de possibilitar que
aspectos da dinâmica emocional dos próprios pais (individualmente ou como
3
casal) sejam considerados e discriminados da preocupação com as
particularidades da criança.
Abre-se espaço também para a diminuição de
fantasias de culpabilização, aspecto muitas vezes subjacente a reduções de
investimento, descrédito e desesperança em transtornos tão assoladores da
intersubjetividade quanto os quadros autísticos.
Miragens e possibilidades na cena analítica: tradições reinventadas
A atribuição de aspectos humanizantes e subjetivantes a condutas
automáticas, evitativas, ritualísticas e estereotipadas, tradições comuns nos
estados autísticos, acontece no contexto da função de reclamação (Alvarez,
1992), de suposição do sujeito antes que ele próprio se enuncie, característica
constitutiva dos vínculos de cuidado parental inicial. Tal atribuição, incorporado
à teoria e técnica psicanalítica contemporânea, instaura-se como instrumento
essencial de acesso aos transtornos autísticos, antes mesmo que a criança
autista possa contar com tais aspectos humanizantes como estabelecidos em
seu repertório. Com as gradativas possibilidades de ampliação da utilização de
elementos relacionais, estaríamos na ordem de um incipiente brincar? De uma
genuína aquisição? Um proto-desenvolvimento?
Processos de proto-
discriminação em importante construção? Uma nova incorporação ritualizada?
Miragem ou possibilidades?
Para além do sensorial, mesmo sem ter certeza do que existe de préexistente ao nível representacional, temos visto cada vez mais que uma das
funções de nosso trabalho é atribuir a essas percepções da criança, o estofo
intersubjetivo e humanizado, repertório ao mesmo tempo tão próprio e banal
das relações iniciais, nossa tradição e nossa constante invenção, tão ausente
nos desenvolvimentos autísticos. É nosso intuito que tais expansões possam
se agregar ao repertório emocional e relacional da criança (inclusive em sua
abrangência neuropsicológica e comportamental/social). Trata-se de uma
íntima, sutil, constante e quase minimalista experiência de oscilação entre
aproximações e afastamentos, já que nossa oferta de doses de humanização
pode ser utilizada ou transformada na medida e possibilidade do momento e
necessidade da criança (em si uma experiência de intersubjetividade mesmo
envolvendo aspectos/nódulos ainda autísticos cristalizados). Miragem ou
possibilidades? O que parece um paradoxo, pode acompanhar nosso percurso
de expansão do que consideramos como “mental” (usualmente, associado ao
4
“psíquico” em que há maior elaboração), para incluir também rudimentos/proto
elementos/estados primitivos da mente. Numa alegoria-flash visual, a visão da
miragem faz parte do alimento psíquico para o caminhante no deserto poder
chegar ao oásis, da mesma maneira como a mãe suficiente boa pressupõe o
sujeito antes que o bebê plenamente o seja, e esta antecipação é fundante
para que se instaure a subjetividade.
Considerações finais: rompendo tradições para inventar o vínculo
Ressalta-se, no tratamento analítico dos transtornos autísticos, a
relevância do reconhecimento de brechas para estabelecimento de algum
contato a partir dos mínimos sinais de comunicação, valorizando-se rudimentos
potenciais para o vínculo, discriminação self-outro e construção de sentidos A
proposição da análise instaura-se rompendo esquemas de "equilíbrio"
intrapsíquico e intrafamiliar, dialogando com proteções/tradições ritualísticas,
conferindo-lhes tecido subjetivado a partir da “miragem” antecipatória do
interlocutor analista. “Inventa-se” o vínculo e a partir daí pode o vínculo se criar.
Podemos romper a “tradição” do autismo?
Amplia-se o campo de continência na criança, nos pais/família e nas
instituições envolvidas para acolher e “gestar” rudimentos/ sementes/ fiapos/
movimentos incipientes de reconhecimento de si e do outro. Tais construções
protovinculares são aqui tomadas como fundações da intersubjetividade e
permitem a ampliação, junto aos pais e profissionais, de compreensões a
respeito das formas de funcionamento da criança.
Evocam-se também as oscilações e contínuas modulações que lenta e
gradativamente vão permitindo que nós, profissionais em rede, possamos ir
acompanhando e facilitando o desenvolvimento de crianças com quadro
autístico, incluindo reflexões e intervenções que favoreçam sua genuína
inserção familiar, escolar e social, com as potenciais conexões com as
tradições e invenções envolvidas.
Voltando à alegoria da miragem, há que se considerar a resiliência dos
cuidadores/ analistas/ caminhantes e a presença possível do oásis/ áreas de
interesse pelos elementos humanos, mesmo que longínquos e ameaçados de
não aproveitamento caso não sejam achados a tempo. Com estes ingredientes,
podem
daí
advir
interessantes
e
sempre
re-inventantes
vias
de
desenvolvimento e significação.
5
Palavras chave: Autismo, Psicanálise de Crianças, Psicoterapia Paisbebê, Vínculo, Recursos Terapêuticos.
Bibliografia:
ALVAREZ, A. Live Company: Psychoanalytic Psychotherapy with Autistic,
Borderline, Deprived and Abused Children, London and New York:
Tavistock/Routledge, 1992.
ALVAREZ, A. and
REID, S. Autism and Personality - Findings from the
Tavistock Autism Workshop, London: Routledge, 1997.
LASNIK, M.C. Rumo à Palavra – Três crianças autistas em psicanálise. São
Paulo: Escuta, 1995.
LEBOVICI, S. & STOLERU, S. La mère, le nourrisson et le psychanalyste, les
interactions prècoces. Paris: Le Centurion, 1983.
LISONDO, A. B. D. e outros. Psicanálise de crianças: um terreno minado? In
Revista Bras. Psicanál. V. XXX, n. 1. São Paulo, 1996.
MÉLEGA, M. P.; MENDES DE ALMEIDA, M. Echoes from overseas: Brazilian
experiences in psychoanalytic observation, its developments and therapeutic
interventions with parents and small children. In Pozzi-Monzo M.E. and
Tydeman, B. (Eds.) Innovations in Parent-Infant Psychotherapy. (pp. 23 42). London: Karnac, 2007.
MENDES DE ALMEIDA, M. O Investimento desejante do analista frente a
movimentos de afastamento e aproximação no trabalho com os transtornos
autísticos: impasses e nuances. In: Revista Latinoamericana de Psicanálise.
Vol. 8/2008. p. 169-84, 2008.
MENDES DE ALMEIDA, M. Do menino do carretel ao menino da ilha: desafios
para o conceito de transferência e desdobramentos a partir da clínica dos
estados primitivos da mente. In: Revista Latinoamericana de Psicanálise.
Vol. 9/2010. p. 182-190, 2010.
MENDES DE ALMEIDA, M., SILVA, M. C. P., MARCONATO, M. M. Redes de
sentido: evidência viva na intervenção precoce com pais e crianças. In:
Revista Brasileira de Psicanálise, Vol. 38 (3): 637-648, 2004.
6
SONZOGNO, M.C & MÉLEGA, M. P. org. O olhar e a escuta para compreender
a primeira infância. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.
Mariângela Mendes de Almeida
Rua Escobar Ortiz, 628
04512-
051 São Paulo
Tel: 3842-8839 Fax: 3842-2699 [email protected]
*Membro Filiado, SBPSP. Psicóloga Clínica com Mestrado pela Tavistock
Clinic e University of East London. Coordenadora do Núcleo de Atendimento
Pais-Bebês, Supervisora e Docente no Setor de Saúde Mental do Depto. de
Pediatria da UNIFESP. Docente do Curso de Intervenção Precoce na Relação
Pais-Bebês no Instituto Sedes Sapientiae. Membro dos Grupos de trabalho,
investigação e clínica dos Transtornos Autísticos da SBPSP.
7
Download

Teoria e Técnica, em 21/5/10