Francisco Manoel rebelo / sênia bastos 441
A TRAJETóRIA MIGRATóRIA DE FRANCISCO MANOEL
REBELO E SEU OLHAR FOTOGRÁFICO
FrancIsco manoeL reBeLo
sênIa Bastos
UM IMIGRANTE PoRTUGUÊS No BRASIL: FRANCISCo MANoEL REBELo
A trajetória migratória da família de Francisco Manoel Rebelo se inicia na antiga colônia portuguesa na Índia. Nascido em Gôa, em 21 de julho de 1890, na cidade de Margão, Conselho de
Salcete, pertencia à família proprietária do jornal O Ultramar. A morte precoce de seu pai e,
posteriormente, do avô materno, resultou no retorno para Portugal, em 1911. As dificuldades
ali enfrentadas motivaram a divisão do núcleo familiar e a emigração dos jovens rapazes
para Angola, Brasil e Moçambique. 1
Esse fluxo migratório se inscreve no contexto do desequilíbrio da economia dos países
periféricos com a introdução do capitalismo – “associadas a problemas internos de longa duração ou a crises ocasionais, agudizaram a necessidade da partida” de muitos portugueses.2
Em épocas diferentes, os irmãos Caetano e Francisco imigraram para o Brasil, por ser
considerado, à época, um destino próspero que oferecia grandes oportunidades aos imigrantes, onde um irmão de sua mãe, Roque Bruto da Costa, já residia.3 Embora ambos
finalizem suas trajetórias em Recife, Caetano encaminhou-se inicialmente para Belém do
Pará, estabelecendo-se com um escritório de representação, e Francisco, com pouco mais
de 20 anos, fixou-se no Rio de Janeiro, registrando-se no Consulado Geral de Portugal no
Brasil no dia 18 de junho de 1912.
1 Revela também a existência do fluxo dos portugueses estabelecidos nas colônias em direção à Portugal,
como se pode identificar na trajetória do fundador do jornal O Ultramar (1859), Bernardo Francisco da
Costa que, em razão de sua eleição às Cortes de Lisboa, transferiu ao irmão, o jornalista Antonio Anastácio
Bruto da Costa, a direção do jornal, função em que se manteve até o seu falecimento, em 1911 de acordo
com BARROS, 2004.
2 MENEZES, 2009: 239.
3 Apesar de trabalhar no O Ultramar a família aponta as dificuldades de colocação profissional em Gôa,
o fator motivador da emigração de Francisco Manoel Rebelo. Destacam-se as trajetórias de José Rebelo
que residiu em Lourenço Marques, atual Maputo, em Moçambique e faleceu em Lisboa em 1979, Antonio Rebelo estudou em Coimbra, morou em Moçambique, trabalhou como Juiz em Salcete, transferiu-se
para Lisboa, onde foi Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal onde faleceu em 1966, Frederico Rebelo
foi médico sanitarista em Luanda, Angola, e faleceu em Lisboa em 1973. Infere-se que a presença em
Lisboa no final da vida resulte das dificuldades de permanência dos portugueses nas antigas possessões
africanas, em virtude do movimento de descolonização da África. No caso da Índia, Gôa foi integrada à
força à União Indiana em 1961, o que também colocou em risco a segurança individual e a permanência
dos portugueses no local.
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Jovem e solteiro, o percurso de Francisco Manoel Rêbelo se assemelha ao de milhares de
portugueses que imigraram para a antiga colônia portuguesa, em busca de oportunidades,
mantendo fluxos constantes de ingresso no Brasil. Em 1912, 43% dos imigrantes que entram
legalmente no país são portugueses 4 e, ao que se refere ao Rio de Janeiro, Menezes5 aponta um movimento ascendente de ingresso: 1907 – 31.156; 1908 – 46.216; 1909 – 42.763; 1910
– 37.393; 1911 – 72.970 e 1912 – 83.053 entradas.
Ao que se refere à imigração portuguesa, ressalte-se o caráter espontâneo
que caracteriza esse fluxo desde os primeiros anos da colonização
brasileira. Até os anos 1950 o Brasil constitui o principal destino dos
portugueses, e a partir da década seguinte, em virtude do crescimento
sustentado dos países do Norte europeu, passam a se dirigir, sobretudo
para a França, Alemanha e Suíça.6
Bastos aponta as dificuldades de estudo dos portugueses, pois, em virtude da existência
de mecanismos próprios de inserção no Brasil, não ingressavam nas hospedarias oficiais.
O domínio do idioma e a presença de redes informais de acolhimento lhes conferia certa
autonomia para se engajar no mercado de trabalho.7 Acompanhar a trajetória de Rebelo,
portanto, fornece pistas sobre a trajetória desses imigrantes no Brasil.
Nessa época a capital carioca concentrava o maior contingente de portugueses do país
e constituía uma referência para a comunidade, atraindo o jovem imigrante, que tinha no
comércio sua fonte de rendimentos.
Transfere-se para a capital pernambucana, onde já viviam alguns membros da família
materna, os Bruto da Costa, e nesse sentido, sua biografia também é emblemática. Para atualizar suas referências de Gôa, recebia os jornais O Ultramar e o Herald.8
Trindade aponta a ligação afetiva e material que une a comunidade portuguesa, quer
com a de destino – materializada pelo envio de remessas, troca de correspondência e
leitura de jornais –, quer na de acolhimento, visto que procuram se fixar na proximidade
4 BASTOS; MATOS, 2009: 271.
5 MENEZES, 2009: 239.
6 BASTOS, 2011: 455.
7 Ao que se refere à São Paulo, as principais fontes dos estudos imigratórios foram produzidas e custodiadas
pela Hospedaria de Imigração. BASTOS, 2011.
8 Publicado em 1900, inicialmente em língua portuguesa, com a denominação O Heraldo, apresentava
tiragem diária. Extinto em 1908 com esse nome, amplia suas dimensões, altera a denominação para Herald e
passa a ser editado em inglês. BARROS, 2004.
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de parentes ou de patrícios oriundos da mesma aldeia.9 A documentação pessoal de
Rebelo evidencia tais ligações.10
Registra-se no Consulado Português em Pernambuco em 01.05.1916, e, transcorridos
dois anos, ao emitir um novo documento, informa residir à Avenida Marquês de Olinda, em
Recife. É nessa cidade que completa sua formação como contador e, nos anos 1920, casa-se
com uma pernambucana de família tradicional.
Adotou a cidade cortada por rios e conhecida como a Veneza brasileira como sua, dedicando-se ao comércio – era proprietário de uma empresa de importação e venda por atacado
de insumos provenientes da Europa, especialmente, da França, da Inglaterra e de Portugal.
Habitualmente, recebia pessoas em sua casa e tinha ótimo relacionamento com a sociedade tradicional pernambucana, assim como com os estrangeiros que ali estavam de passagem ou os que chegavam como imigrantes, oferecendo-lhes o suporte necessário para
melhor instalação em terras brasileiras.
A relação de Rebelo com a cidade do Recife e o orgulho de pertencer a este meio é demonstrado quando se associa, sob o número 174, ao Clube Português, que preserva até os dias
de hoje apenas 200 sócios proprietários. Da mesma forma, destaca-se a sua associação ao
Hospital Português, uma demonstração de gratidão pela hospitalidade recebida no Brasil.
Em 1922 o Consulado Português em Pernambuco emitiu o passaporte n. 985, válido por
um ano, para que Rebelo pudesse regressar ao Brasil. Desconhece-se o motivo da emissão
do passaporte, sequer que ele tenha partido e retornado.
oS REGISTRoS FoToGRáFICoS DE FRANCISCo MANoEL REBELo
Rebelo integrava o circuito social da fotografia do período, e possuía um grupo de amigos
que tinham as câmeras como preferência, tais como Arnaldo de Almeida Alves Brito, Henrique Schoenemberg (alemão dono da Casa Fidanza), Juventino Gomes ( Juju) e Luís Guimarães, todos na sua grande maioria, feitos no mundo fotográfico, segundo a família.
Criado em 1949, o Foto Cine Clube do Recife, organizou diversos salões nacionais de fotografias. Segundo Silva essas exposições são indicativas da existência de um circuito social
da fotografia no Recife, mesmo que esses fotógrafos possuam caráter amador:
... indicam que esses fotógrafos faziam parte de uma mesma experiência,
compartilhada em todo o território nacional, um “movimento nacional das
artes fotográficas”, melhor dizendo, de um circuito social da fotografia que
9 TRINDADE, 1976; BASTOS, 2011.
10 REBELO, 2011.
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não está circunscrito apenas à esfera das grandes cidades, muito embora
ele diga de cada cidade específica onde a fotografia foi praticada e tais
imagens produzidas: o fotógrafo do Recife nessa época possuía um perfil
de profissional autônomo, de funcionário público, de comerciante. 11
Em um Comunicado, publicado no Jornal do Commercio, em 03.10.1941, Rebelo é reconhecido como antigo fotógrafo do Recife pela Diretoria de Estatística, Propaganda e
Turismo, que também pontua o aspecto documental de suas fotografias, a preocupação
com o registro e a qualidade gráfica das imagens, todavia, não lhe confere “sentido interpretativo”, como se segue:
O caráter [sic] do Recife só agora começa a surgir através da fotografia.
Através dos fotógrafos que, ao contrário daqueles de antigamente,
preocupados com a fidelidade do motivo e com o equilíbrio gráfico da
composição, procuram sentir a poesia dos quadros e das paisagens, a
emoção e o romance das cenas vulgares da cidade. Rebelo, Oscar Maia,
Lula Cardoso, Ulisses Freire, Jujú, são alguns desses (sic) fotógrafos camera
conscious que começaram a ver a cidade com o recurso da objetiva de
uma máquina. Benício W. Dias e Alexandre Berzin, o primeiro amador e
outro profissional – /.../ – têm produzido a mais larga documentação da
cidade. Documentação sem a forma rígida da reprodução, mas com um
profundo sentido interpretativo. O céu da cidade, a linha tortuosa dos
arrecifes, as barcaças e lanchas, as massas luxídias das mangueiras do
arrabalde, bem como a vivacidade e a inteligência dos tipos populares,
certo mistério de velhas ruas do bairro de São José tudo isso aparece nas
fotografias desses (sic) artistas com o seu verdadeiro sentido, com um
destaque em certas linhas, em certos preto e branco de modo a revelar
um significado mais real, mais intimo, que é o próprio carater [sic] do
motivo, quer se trate de uma paisagem ou de um tipo. /.../ Dando-nos
céus com tôda [sic] a riqueza das suas nuvens, [?] que são mesmo do
Recife, o céu que a gente conhece, nos arrecifes que são na verdade a
paisagem fotográfica, dos versos inflamados do poeta: “Recife imenso
de pedra, rasga o peito do mar”. 12
11 SILVA, 2007: 2.
12 SILVA, 2007: 3.
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O Comunicado não apreende a totalidade da produção de Rebelo. Como se verá adiante,
o fotógrafo dedicou-se ao registro de paisagens, explorou sua objetiva ao ar livre, quer na
área central, quer nos arrabaldes, eternizou os tipos populares e a arquitetura das velhas
ruas do Recife, importou-se com a cultura cotidiana e com os acontecimentos não cotidianos
da cidade. Todavia, desconhece-se o exato momento em que Rebelo começou a fotografar,
segundo os familiares, “sempre foi um hobby e em nenhum momento teve fins lucrativos”.
Ao longo de sua vida Rebelo reuniu diversos equipamentos e montou um espaço por
ele denominado “quarto escuro” aonde manipulava os produtos químicos, o revelador e
o fixador dos filmes e dos papéis. Todo o material utilizado era por ele manipulado, tendo
buscado informações em livros e com amigos, usando o que havia de mais moderno, segundo os familiares.
Autodidata, atualizava seu conhecimento nas reuniões com amigos fotógrafos, e por
meio de revistas especializadas, principalmente aquelas que recebia de Portugal e da Inglaterra. Em seu acervo encontram-se exemplares de livros sobre fotografias, os periódicos
internacionais Amateur Photographer e Life, bem como nacionais: os jornais Diário de Pernambuco, o Jornal do Comércio, Revista da Cidade, Revista P’ra Vocês e O Cruzeiro.
Parte dos registros fotográficos de Rebelo foi realizada nas décadas de 1920/40, época
em que os periódicos possuíam fotografias ilustrativas das matérias assinadas por autores
consagrados, além de seções de contos, novelas e poesias. A Revista o Cruzeiro exibia ilustrações ou fotos de monumentos arquitetônicos, atrizes, lugares pitorescos etc. e valorizava a fotografia artística.
No que diz respeito às fotografias, registram basicamente acontecimentos
sociais, jogos de futebol, vistas de cidades, recantos desconhecidos do
país, atrizes de cinema e misses. A maioria apresentava uma péssima
qualidade técnica: pouco nítidas, eram registros inexpressivos que
funcionavam como ilustração dos textos ou como testemunho de
eventos sociais quaisquer.13
Rebelo participou dos concursos de fotografia realizados, como, por exemplo, o concurso nacional realizado pela Revista Cruzeiro, em 21 de fevereiro de 1929. O resultado do
concurso, que teve por tema “Fotografias Typicas Nacionaes”, foi revelado na edição de
09/03/1929, com a publicação de duas fotografias finalistas de sua autoria que concorriam:
rapadura e queijo e volta da feira.
13 COSTA, 1991: 275.
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Figura 1 – volta da feira (à esquera)
Figura 2 – rapadura e queijo (à direita)
Fonte: Fotografia de Francisco Manoel Rebelo
O Cruzeiro, 09.03.1929, p. 28.
Ambas (figuras 1 e 2) revelam a predileção de Rebelo por tipos populares e ações corriqueiras do dia a dia. Nesse caso, o próprio fotógrafo conferiu-lhes uma denominação, o
que não se verifica para todas as suas imagens, ao que se infere sua inserção amadora no
universo da fotografia.
Com o pseudônimo Cachico, a fotografia “Rapadura e queijo” totalizou 85 pontos: “40
de interesse technico e esthetico; 30 de interesse jornalístico; 15 de originalidade” e obteve o primeiro lugar.14
Vale ressaltar que a Revista Cruzeiro é historicamente relevante no cenário da comunicação brasileira, por ter sido a primeira revista semanal de circulação nacional:
O Cruzeiro, lançada em novembro de 1928, era uma revista semanal
ilustrada.
Desde o começo tentou se colocar como um periódico
moderno, “a revista dos arranha-céus”. Anunciava ser impressa em
rotogravura e divulgava orgulhosamente o número de exemplares de
14 CRUZEIRO, 09.03.1929, p. 25.
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cada edição. Contava com muitos anunciantes, tendo sido a primeira
revista brasileira de circulação nacional. 15
O prêmio na revista lhe rendeu uma matéria de Monteiro de Mello, no Jornal do Recife,16
intitulada Quadros Nossos:
Francisco Rebelo, um artista pernambucano, da objectiva, vem de
alcançar, de uma revista carioca o primeiro premio n’ um concurso em
que de todo o Paiz foram tiradas vistas dos costumes locaes.
‘Rapadura e queijo’ foi o quadro do premio, sobressaindo outro ‘Volta
da feira’.17
A reportagem acima aponta que a foto premiada tratava de costumes locais e a esse respeito pode-se adiantar que os costumes tradicionais de Pernambuco figuravam entre as
predileções fotográficas de Francisco Rebelo, temática que ocupa parte considerável de seu
acervo, entre outras temáticas como a arquitetura e o trabalho.
Estrangeiro, a arquitetura de Recife despertou sua admiração. Além de contemplá-la,
procurou registrá-la em suas incursões, realizadas principalmente aos domingos, em diferentes regiões da cidade: na área central, nos bairros distantes e nos seus arredores, explorando detalhes, realizando estudos, compondo conjuntos com luz e sombra.
Nesse sentido infere-se que ao acompanhar as matérias veiculadas nos periódicos de
Recife, Rebelo despertava seu olhar para a cultura pernambucana, visto que as temáticas de
suas fotografias apresentam estreita afinidade às questões que pautaram a imprensa nesse
período. Época em que o êxodo rural advindo da alteração do tradicional engenho da cana
de açúcar pela usina, provocara o fluxo de trabalhadores rurais para as cidades pernambucanas, resultando no incremento da oferta de serviços e de comércio de gêneros alimentícios em pontos fixos ou pelas ruas da cidade.18
A intensificação dessa oferta desencadeou uma campanha da imprensa nas décadas de
1930/1940 contra a presença dos vendedores de alimentos nas ruas: crustáceos, moluscos,
tapioca, cuscuz etc.19 A presença desses trabalhadores despertou a atenção de Rebelo e sua
15 COSTA, 1991: 274.
16 Jornal do Recife, Ano LXXII, n. 105, 08.05,1929.
17 MELLO, 1929.
18 SILVA, L., 2009.
19 CORREIA, 2009.
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sensibilidade para o registro desses profissionais rendeu-lhe a premiação da fotografia
“Rapadura e queijo” pela Revista Cruzeiro.
Fotografou também cenas de trabalho na lida com a cana de açúcar nos engenhos e as edificações do complexo, o preparo e o consumo de iguarias nas ruas (tapioca, mugunzá, milho
assado, caldo de cana, cocada, peixe frito etc.), o trabalho informal dos vendedores ambulantes (produtos alimentícios – caju, abacaxi, melão, feijão, berinjela, alho, batata doce, vendedor
de leite que se faz acompanhar pelo animal; animais – peru, caranguejo; flores, gravatas, fumo,
fitas, bonecas de pano e artefatos cerâmicos e de couro), as profissões (carregadores de piano,
rendeiras, lavadeiras, jornaleiros, barbeiro de rua, lavador de tripas, catador de lixo, amolador,
pescador, tirador de coco, fazedor de tijolo etc.) e as paisagens naturais.
O carnaval também constituía pauta da imprensa no período e no quarto volume da
Revista Contraponto, editada por Valdemar de Oliveira, em 1947, é veiculada uma matéria
sobre o carnaval de Pernambuco, ocasião em que Rebelo publica duas fotografias: “Passista”
e “Passo pernambucano I”.
Figura 3 – passista (à esquerda)
Figura 4 – passo pernambucano i (à direita)
Fonte: Francisco Manoel Rebelo
Revista Contraponto, 1947
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Desconhece-se o exato momento em que Rebelo começou a fotografar e a conservar os
seus registros, realizados com equipamentos importados, o que lhe era facilitado pelo trabalho como importador de produtos europeus. O acervo preservado pela família compreende
1.014 imagens de sua autoria, e 21 fotografias em que foi registrado, sozinho ou com amigos.
Durante as últimas décadas as fotos ficaram sob custódia da família, em princípio de sua
esposa, Maria Jose Mariz Rebelo, e, posteriormente, de sua filha, Ligia Rebelo
À caricatura de Francisco Rebelo, criada por Euclides e publicada em Recife20 em 1930,
soma-se um pequeno comentário que destaca sua sensibilidade como fotógrafo, sua predileção pela cidade de Recife e o hábito de publicá-las, de modo que se coloca na legenda:
F. Rebelo não sabe tirar uma photographia com o auxilio exclusivo da sua objectiva.
O papel principal é desempenhado pela sua sensibilidade finíssima. Assim elle faz aquellas
maravilhas que todo o Recife, está habituado a admirar.21
Euclides representa um diminuto equipamento fotográfico e destaca o grande porte de
Rebelo, cuidadosamente trajado, com gravata borboleta e o seu tradicional charuto. Trata-se, segundo os familiares, de “uma maneira do jornalista prestigiá-lo”.
Figura 5
caricatura de rebelo
Fonte: Euclides 1930. Revista Pr’a Vocês
20 A família preservou o recorte do jornal, mas a página da publicação não se conservou.
21 Revista Pr’a Vocês, 1930.
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A influência familiar é notada no registro de ocorrências de caráter jornalístico, nesse sentido fotografou a chegada de Gago Coutinho e de Sacadura Cabral, quando realizaram a primeira
viagem aérea entre o continente europeu e a América do Sul. Nessa ocasião Rebelo ateve-se não
apenas aos personagens principais do evento e seu, até então, inusitado meio de transporte,
mas, também, aos acontecimentos gerados em função deste evento, suas lentes fotografaram
a multidão que os aguardavam, bem como as autoridades presentes para tão especial evento.
A chegada do avião de Gago Coutinho e Sacadura Cabral em Recife foi digna do deslocamento de um sem número de pessoas, para apreciar o acontecimento. Gago Coutinho e Sacadura Cabral, a bordo de um hidroavião, chegaram ao Recife no dia 05 de junho de 1922. O avião, curioso
meio de transporte para epóca, foi registrado em detalhes, assim como suas manobras no ar e
durante a aterrissagem no porto municipal. Confirmando a notoriedade do evento, posteriormente à efeméride, Rebelo fotografou o obelisco construído em homenagem ao acontecimento.
Esse conjunto composto por 22 registros assinados sintetiza o caráter jornalístico que
caracteriza suas imagens. Exibe sua habilidade na composição de conjuntos sequenciais,
numa tentativa de registrar todos os detalhes, e situa cronologicamente a produção de imagens de Rebelo nos primeiros anos de 1920.
Rebelo legou importantes imagens do patrimônio cultural imaterial de Recife, dentre as
quais os ofícios de rua se destacam. Trata-se de uma modalidade de trabalho, que desde os
tempos mais remotos do desenvolvimento da sociedade brasileira se efetiva nas calçadas e
ruas das diversas cidades. Para Correia essas atividades lembram a dos antigos mascates de
porta em porta, ou camelôs: “ofereciam nos seus balaios frutas tropicais, crustáceos, moluscos, camarões, sururu, siri, tapioca, cuscuz... Estes trabalhadores da gula representavam o
atraso e a miséria, portanto deveriam ser expulsos do centro do Recife” que se modernizava
segundo os princípios europeus.22
Exemplos destes ofícios de rua são os amoladores de facas/alicates, barbeiros, jornaleiros, catadores de lixo, varredores de rua, vendedores, cozinheiras de diversos tipos de
comidas, muitas consideradas típicas. Cozinheiras de “muitos sabores”, como por exemplo,
o ofício das baianas de acarajé em Salvador, registrado como patrimônio cultural do Brasil
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 2005.
Ao que se refere ao contexto em que se inscrevem as fotografias de Rebelo, havia uma
campanha veiculada pela imprensa, que permite associar o programa urbanístico de eliminação das áreas de alagados de onde os moradores retiravam o seu sustento, ao projeto de
eliminação dos vendedores de alimentos das ruas do Recife. De acordo com Correia parte
desses alimentos comercializados provinham dos alagados,
22 CORREIA, 2009: 113.
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... eram peixes, mariscos, caranguejos e ostras que eram comercializadas
nas ruas do centro. Estes vendedores perderam em princípio o seu
produto, sua matéria prima, e aos que resistiram no comércio de produtos
alimentícios coube uma covarde campanha do periódico de Magalhães
contra esses vendedores das iguarias tão recifenses.23
A feira representa mais que um espaço para o comércio de alimentos, bebidas e afins,
representa um espaço de sociabilidade onde era hábito, segundo Ligia Mariz Rebelo, filha
do fotógrafo, uma vez por semana, o encontro para conversar, contar histórias, relatar os
acontecimentos da semana, confraternizar, comer algo preparado lá mesmo, a céu aberto:
“A feira era uma festa para os que dela participavam, todos aguardavam por este dia considerado por muitos o “acontecimento” da semana”.
Para Correia a modernização de Recife implicou no fim do comércio de alimentos realizados pelas ruas, objetivava-se “acabar com o footing diário do vendedor de caranguejo, do
mercador de melancia e do peixeiro exibindo a sua cavala e o cesto de cioba”. Além disso,
destaca-se um movimento de desvalorização da cozinha negra, representada como uma cozinha suja, diabólica, cheia de feitiços e de catimbó, ao passo que se valorizava os produtos
importados e a cozinha internacional.24
Gradativamente, esses vendedores de alimentos foram sendo segregados da área central, quer das esquinas, das proximidades das igrejas e das ruas. Rebelo registrou esses vendedores, ao que se atribui um caráter documental de sua objetiva, resultante de sua inserção familiar e da influência que os periódicos locais exerciam sobre ele.
Cotejadas às imagens legadas pela Missão de Pesquisas Folclóricas e aos artigos veiculados na imprensa pela Sociedade de Etnografia e Folclore25 (1936-1939), da Subdivisão de Documentação Social e Estatística, ambos ligados ao Departamento de Cultura e de Recreação
de São Paulo (1935), identificam-se a correspondência dos temas fotografados por Rebelo:
ofícios de rua, arquitetura, festas populares, etc. Nesse sentido, postula-se a existência de um
modelo cultural de registro das ruas, compartilhado pelos fotógrafos do período.
Dreyfus aponta a importância dos estudos etnográficos em seu artigo publicado em
1936, conclamando a realização de estudos no território nacional:
23 Ibid., pp. 112-3.
24 CORREIA, 2009: 114.
25 Dentre os objetivos de sua atuação, destacam-se “o de manter intercâmbio com outras instituições, realizar reuniões, conferências, cursos, excursões de estudos e divulgar os estudos folclóricos”. AZEVEDO, 2000.
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Evidentemente, no Brasil precisa-se, antes de tudo, de um trabalho
perseverante de estudos etnográficos propriamente ditos. Tanto nas
regiões longínquas do interior, como nos bairros das cidades, ou nas
menores aldeias, toda uma série de pesquisas etnográficas pode e deve
ser empreendida: estudo da cerâmica, da tecelagem local, do estilo das
casas e das características de cada um de seus elementos: teto, janelas,
etc.; estudo das profissões, dos ofícios... Seria impossível enumerar todos
os assuntos de monografias que estão à espera de pesquisador. 26
Sob a orientação do Departamento de Cultura várias pesquisas foram realizadas nos
estados do Sudeste, Centro Oeste, Norte e Nordeste brasileiros.
Na Chefia do Departamento de Cultura, Mário de Andrade colocou o
Município como amparo do folclore e da música, artes que para ele
possuíam uma força socializante especial, pois não pensava a cultura
elitizante, mas as manifestações que estavam em vias de extinção e na
disseminação da cultura popular.27
Do acervo legado pela Missão de Pesquisas Folclóricas às viagens realizadas ao Nordeste em julho de 1938, especial interesse para esse estudo são as imagens que foram registradas em Recife. Legaram fotografias do frevo, dos carregadores de piano, do grupo de
Xangô da Guida, dos mocambos (detalhes arquitetônicos), e de objetos da cultura popular: cerâmica, tambores etc.
Os lugares de trabalho selecionados são indicativos da realização de atividades econômicas em espaços públicos, da integração das pessoas. A lavagem de roupas na margem do
rio e o comércio de rua, ao mesmo tempo em que garantem a sobrevivência, oportunizam a
sociabilidade. Ocorre a apropriação do espaço e a convivência com outros trabalhadores ou
mesmo com os clientes, fundadas na reciprocidade e na solidariedade. O carnaval constitui
um ambiente propício para a sociabilidade, visto que as relações sociais são estimuladas,
formam-se e ampliam-se os relacionamentos interpessoais.
Rebelo registrou a sequência do passista do frevo, conjunto revelador das múltiplas possibilidades interpretativas que suas fotografias potencializam. Cada imagem evidencia no
primeiro plano, o dançarino e sua sombra no piso pavimentado da rua e, em segundo plano,
26 Trata-se de Dina Dreyfus Lévi-Strauss, na época casada com Claude Lévi-Strauss. DREYFUS, 1936 apud
VALENTINI, 2011: 586.
27 AZEVEDO, 2000: 11.
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outros apreciadores do carnaval e o casario ao fundo, o que indica tratar-se de uma rua. Enquanto os demais foliões se distanciam, o dançarino se exibe para o fotógrafo, que registra
os principais passos dessa composição artística.
Silva aponta a potencialidade da análise da sombra:
... podemos exercitar nosso olhar, refletindo sobre o que são
as sombras em uma fotografia. É nesta parte, onde há menor
intensidade luminosa, que o visível, o iluminado (aquilo que
normalmente nos interessa numa fotografia, o que o observador,
na maioria das vezes, procura) é tocado pelo invisível. É como se a
sombra nos mostrasse que somos também nossos fantasmas, que
nos contagiam inclusive no passo rasgado, na alegria do frevo, onde
podemos nos recordar de outros carnavais. 28
Previamente organizada, a festa conta com a ação solidária de muitos participantes
para que se realize com eficiência. Brincar o carnaval requer a manutenção dos valores
de urbanidade e de solidariedade, a sua ausência implica, muitas vezes, na desordem e
no conflito, no rompimento dos vínculos sociais. Questão central das representações literárias e dos artigos veiculados na imprensa pernambucana, que procuram valorizar o
carnaval de Recife como o melhor carnaval do Brasil e símbolo da identidade nacional.29
CoNSIDERAçÕES FINAIS
Excelente laboratorista, as fotografias selecionadas evidenciam o caráter documental das
imagens de Rebelo, falecido em 1965. Preocupou-se com a fidelidade do motivo e com o
equilíbrio da composição, acentuou o que pretendia mostrar. Registrou edificações relativas à histórica atividade econômica do estado do Pernambuco desde o início da colonização, evidenciando os seus elementos constitutivos: os saberes reunidos na sua produção,
a organização da paisagem, os trabalhadores e a arquitetura da unidade produtiva. Dedicou-se sistematicamente à composição de vistas panorâmicas, a detalhar a arquitetura e
as pontes de Recife, além de fotografar as manifestações culturais de caráter popular, de
acordo com o imaginário presente nos anos 1920 a 1940.
28 SILVA, F., 2009: 2.
29 SILVA, F. 2009.
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Evidenciou os espaços de convívio e de lazer, potencializou a paisagem, explorou as luzes e as sombras, as verticalidades e a geometria da arquitetura. Explorou a velocidade e
captou o movimento fugidio dos passistas de carnaval, bem como os eventos que não se
repetem, como a chegada de Cabral e Coutinho e do Zepellin.
Apreendeu a beleza da paisagem natural, o trabalho do povo, procurou o incomum e
recortou essas imagens no seu quarto escuro, realçou os detalhes flagrados. Sintetizou em
seus registros pequenas experiências de vida, como a das vendedoras de alimentos, as lavadeiras, o retorno da feira, as pagadoras de promessa. A tais registros confere-se caráter etnográfico no processo de coleta de imagens. Rebelo encontra-se incluído em um sentimento
de universalidade do fazer fotográfico.
Francisco Manoel rebelo / sênia bastos 455
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A TRAJETóRIA MIGRATóRIA DE FRANCISCO