MULHERES ALÉM DO SEU TEMPO: REPERCUSSÕES DA BÍBLIA EM SHAKESPEARE Ana Claudia de Souza de Oliveira (Uniandrade): Autor Profª Drª Anna Stegh Camati (Uniandrade): Orientador Mulheres e tragédias correspondem ao Trivium na Idade Média, na Grécia; à Epopeia, na Bíblia, aos Sinópticos; mas em Shakespeare, mulheres e tragédias é a tônica, a Poética. Parafraseando Aristóteles, em seu livro Poética (1999): "[As mulheres], na tragédia, não agem para imitar os caracteres, mas adquirem os caracteres para realizar as ações” (p.32). Sim, mulheres e tragédias são intertextuais, assim como o cânone sagrado e o profano podem ser. Este presente artigo objetiva-se em estabelecer paralelos, pontos de contato, referências, alusões, entre mulheres da Bíblia e algumas personagens femininas shakespearianas. Tal posição faz com que a intertextualidade, como destacada por Kristeva, "todo texto se constrói como um mosaico de citações" (citado por NITRINI, 2010, p.161), seja um pressuposto básico a se buscar nos materiais escritos que circulam atualmente. Um certo conjunto de textos cujo significante cultural tem provocado considerável interesse investigativo é o de Shakespeare. E tal como um cientista se apropria de células vivas para seus experimentos e futuras grandes realizações, assim Shakespeare se apropriou da mitologia grega, de autores clássicos, continentais, tais como Ésquilo, Plutarco, Holinshed, Ovídio, Bandello, Boccacio, Ariosto, desfazendo o mito de que ele fosse um escritor “original”. Ainda que suas "adaptações" sejam obras complexas e os “textos-fonte” assim como os termos “originais” são diversificados, nunca chegaram a ser uma ameaça a supremacia inspirada dos trabalhos. Fernando Pessoa dizia que "o poeta é um fingidor". Aristóteles, expressando a representação poética, dizia que nela não havia veracidade e sim a verossimilhança. Talvez por acreditar que tais ideias não consistem em uma característica unicamente da poesia, mas sim que pertencem "à discursividade e à história" (NITRINI, 2010, p. 147). Outros autores usaram dessa apropriação, gerando obras similares ou até mais reconhecidas do que suas influências primárias. Basta lembrarmos de Medeia de Eurípides, substancialmente apropriada por Racine, em Ifigênia ou perceber a total familiaridade da obra Édipo Rei, de Sófocles, com o imprescindível Complexo de Édipo, pilar da psicanálise clássica, fundamentado por Sigmund Freud. Mesmo o Ecce Homo, de Nietzsche presente em Quincas Borba, de Machado de Assis. Dentro dessa teoria da intertextualidade, contornando brevemente os solos sagrados de teóricos como Bakthin, Kristeva e Genette, pisamos mais firmemente usando o método de analogia estrutural, onde analogia quer dizer constatar correspondências, vindo corroborar diferenças. Compagnon (2007), seguindo os passos de Bakthin e seu dialogismo, afirma em seu livro O trabalho da citação, que a passagem da escrita medieval à escrita clássica, do controle exercido pela tradição ao controle exercido pelo sujeito (o cogito legislando a cena da escrita), da citação como índice à citação como ícone, pode ser descrita em duas etapas: Em primeiro momento, o corpus, que compreendia até então apenas a Bíblia e sua sucessão teológica, texto primeiro a partir do qual todo uso da palavra adotava a forma do comentário, e que se estendeu aos autores pagãos, gregos e latinos, mas sem permitir que se apagasse a noção de texto primeiro; e em um segundo momento, agindo sobre o sistema de controle, num processo contra os abusos dos discursos análogos, exigindo não só a contenção da moda da citação, quanto a exatidão que deveria ser feita sempre que um texto primeiro fosse citado. (p. 96-98) Já Karl Joseph Kuschel (1999), um dos mais criativos teólogos da contemporaneidade, em seu livro Os escritores e as Escrituras, discute sobre o "diálogo teológico com a literatura", refletindo sobre esse método, relata que " (...) torna-se possível considerar seriamente também a experiência e a interpretação literária em suas correspondências com a interpretação da realidade, mesmo quando a literatura não tem caráter cristão ou eclesiástico. E buscar correspondências não significa 'cooptar' o objeto analisado, apropriar-se dele. Pensar em termos de analogias estruturais significa justamente evitar que a interpretação literária da realidade seja cooptada como cristã, semicristã ou anonimamente cristã. Quem pensa estruturalanalogicamente é capaz de encontrar correspondências entre o que lhe é próprio e o que lhe é estranho." (KUSCHEL, 1999, p.222) Desde que as Escrituras Sagradas foram trazidas à luz, os atores da arte e os autores da literatura têm sido diretamente inspirados por ela. Essa verdade também pode ser atribuída à Shakespeare e suas obras, que já foram referidas como a Bíblia laica de Shakespeare. Como uma boa parte das obras desses últimos séculos, a Bíblia laica apresenta muitas correspondências, dentro e fora, com as da Bíblia Sagrada. Ambas são “best-sellers”. Ambas possuem uma coleção de Livros, as Sagradas Escrituras tendo 66 e Shakespeare, 37. Ambas têm textos apócrifos. Ambas têm sofrido interpretações diferentes e suscitaram inumeráveis comentários. Livrarias especiais têm-se dedicado ao seu estudo. Em dicionários de citações, a Bíblia e Shakespeare lideram todas as outras obras. Citações destas obras primas dotaram os autores com incontáveis textos. O livro com o maior número de referências é o livro de Salmos, e, geralmente, Shakespeare se refere a este livro (...) Outros livros bíblicos que são ricos em números de referências são Genesis, Mateus e Jó. A história da Bíblia que aparece na maioria das vezes mais de 25 vezes - é a história de Caim e Abel. Há tantas referências aos capítulos (...) do Gênesis em peças de Shakespeare que os estudiosos fazem comentários no sentido de que Shakespeare deve ter tido estes capítulos quase memorizados. Alusões de Shakespeare são, por vezes generalizadas, como por exemplo, para personagens da Bíblia, mas muitas vezes os paralelos são linguísticos e específicos, que exige o conhecimento de um especialista. (RYKEN, 2009) Uma coisa é indiscutível: imagens bíblicas são tecidas em cada peça de Sir William. Crê-se que nenhum outro autor tem integrado as figuras, os compósitos e os temas encontrados na Bíblia em sua própria obra do que ele. O próprio Shakespeare teria sido mais familiarizado com uma versão anterior da Bíblia, possivelmente, a Bíblia de Genebra, Bíblia do Bispo, ou a Grande Bíblia, porque a primeira edição da Bíblia King James (Versão Autorizada) não apareceu até 1611. E onde achar tragédias maiores do que, no caso da era moderna, na Bíblia e no caso do mundo antigo, na mitologia greco-romana? William Shakespeare soube muito bem como apropriar-se literal e literariamente falando, desses dois patrimônios. Com maestria, "(...) decompõe a imagem (...), para recompô-la (...), ajustá-la, (...) numa representação ou num simulacro; ela se acomoda em um detalhe da cena, limita esse detalhe e depois o apreende(...)"(COMPAGNON, 2007, p.29). Certamente, não se conseguiria, no momento, aprofundarmos na questão do gênero enquanto performance constatando a sua essencialidade na análise de personagens. Porém o que aqui se intenciona é criar paralelos entre ambas literaturas canônicas, de modo a tentar oferecer um panorama de como a personagem shakespeariana se (re)construiu no imaginário do dramaturgo, já conhecido como um grande adaptador, podendo ter tido como base, outras vivências, atributos, posições, de mulheres de outras terras, de outros tempos. Como levaria incontáveis volumes para examinar exaustivamente o uso de referenciais bíblicos por Shakespeare, apenas algumas personagens femininas das obras do dramaturgo foram selecionadas. Importante ressaltar que as citações bíblicas usadas neste trabalho são tomadas a partir da Versão Autorizada do Rei Tiago tanto da Bíblia impressa da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil quanto do site bibliaonline.com.br, ambas provenientes da tradução de João Ferreira de Almeida. Ainda que as personagens femininas do dramaturgo fossem mulheres além do seu tempo, a sociedade inglesa onde Shakespeare se inseria tratava a mulher como um ser sem vontade, sem pretensões, sujeita às regras do patriarcado. Ironicamente, a Grã-Bretanha era governada por mulheres naquele período: Mary I e Elizabeth I. Anna Camati (2008) aponta que Shakespeare foi influenciado por leituras e pela sua visão da época, notando em como a cultura influenciava o comportamento social e que tanto o homem como a mulher eram produtos do meio em que foram socializados. Seus personagens, inclusive as femininas, sustentavam-se a partir de uma postura relativista, que vinha destacá-los não somente como o fruto de fatores biológicos e psicológicos, como também de determinações culturais e históricas. No caso da Bíblia, apesar das mulheres israelitas em vários aspectos serem tratadas de modo mais equânime pela lei bíblica do que as mulheres dos povos circundantes, vistas pela ótica atual e ocidental, elas são sinônimo de subordinação completa ao homem, seja pai, marido ou filho, capazes de trabalhar, de cuidar de sua família, mas não de comandar, pregar ou gerir seu próprio negócio. Camati afirma: Havia toda uma série de preconceitos com relação à mulher, como revela a criação das estruturas de pensamento binárias, cultivadas pelo poder patriarcal, sempre ávido em assegurar a hegemonia masculina. A mulher era considerada fraca, passiva, submissa, dependente, falsa e volúvel, deixando-se guiar demasiadamente pela emoção; em contrapartida, o homem era visto como o exato oposto: forte, ativo, dominador, independente, sincero e verdadeiro, orientado pela razão. (CAMATI, 2008, p. 5) No entanto, o texto bíblico descreve mulheres desempenhando papeis proeminentes como os das matriarcas, como Miriã, a profetisa ou Hulda, a juíza e comandante Débora, Noemi, Ruth, as rainhas Jezabel, Vasti, e mesmo as discípulas e seguidoras de Cristo, Maria de Magdala, Marta e Maria, Salomé, Joana, mesmo as da Igreja nos tempos dos apóstolos Paulo e Pedro, Dorcas, Lídia, Eunice, Lóide entre outras. Segundo John Baldock, em seu livro, Mulheres na Bíblia (2009), que com exceção de umas poucas mulheres como Eva, Maria (mãe de Jesus), as mulheres no Velho e no Novo Testamentos, foram ofuscadas por seus parceiros masculinos. Porém, um estudo mais detalhado da Bíblia revela que outrora as mulheres foram consideradas como estando à altura dos homens antes que se sujeitassem a eles. Que até houve mulheres, em mais de uma ocasião, como Ester, que salvaram o povo judeu da extinção quando estava sob o jugo dos inimigos. É sabido inclusive, que a mulher na Grécia tinha um status muito mais inferior em sua cultura do que a mulher judia na Antigüidade tardia. No entanto, como esclarece Marlene Soares dos Santos, a atitude de Shakespeare em relação às mulheres é complexa e requer atenção crítica: A ambivalência de Shakespeare em relação à questão da mulher deve ser contextualizada: sendo ele um homem ‘de seu tempo’, o que lhe era facultado fazer – e o que ele fez – foi apontar alguns caminhos que as mulheres encontraram para impor seus desejos e vontades dentro das limitações ideológicas da doutrina patriarcal [...]. No início da modernidade, existiam na Inglaterra diversas culturas competindo pela hegemonia e, por isso, cheias de contradições, sendo que a ideologia oficial era constantemente desafiada pelas práticas sociais atuais. Consciente acerca dos comportamentos dissidentes e das vozes em discórdia no discurso dominante, Shakespeare conseguiu incorporá-las na criação de suas personagens femininas, principalmente aquelas das comédias, apesar de que, é preciso dizer, no final elas são absorvidas pelas demandas da hegemonia social. Também é preciso lembrar que ele escreveu para o teatro comercial e, se os seus biógrafos estão certos, ele tinha muito talento para ganhar e investir dinheiro, o que significa que ele também deve ter se empenhado em agradar a parte feminina de sua plateia. (SANTOS, 2007, p. 129) Esses encontros e diálogos hipertextuais entre personagens de Shakespere e figuras bíblicas, que nada tem a ver com a desconstrução pós-estruturalista de Derrida ou com a desvalorização da originalidade artística busca construir pontes entre o profano e o sagrado feminino, nesse território que Bakthin chama de "inter-individual". A noção que Bakhtin (citado por STAM, 2006, p. 22) dispõe sobre autor e personagem coloca-os como multidiscursivos e resistentes à unificação, similarmente, problematiza tanto autor quanto personagem enquanto entidades estáveis e unitárias. E isso definitivamente, simboliza sem reservas essas mulheres. Lady Macbeth, da obra Macbeth e Jezabel: seres incomuns, influentes, donas de uma ambição desmedida, com uma vontade de ser o macho dominante para poder imperarem absolutas em seus reinos. Capazes até mesmo de matar outro ser humano, só para alcançar seu torpe objetivo. Tanto na trama do assassinato do Rei Duncan quanto da morte de Nabote, dono de uma vinha, sem a participação ativa de Lady Macbeth ou a de Jezabel, ambas não teriam ocorrido. Casadas com homens que se tornaram reis, tanto a personagem shakespeariana quanto a rainha bíblica demonstraram sentimentos como inveja e ambição desmedida e características como frieza, crueldade e falta de escrúpulos, impensáveis para mulheres da sua época. Ambas aspiraram poder e não mediram esforços para isso. Arguciosa e sedenta de poder, Lady Macbeth usou o próprio medo do marido contra ele, acusando-o de covarde. Ela o provocava e incitava sua gana por poder ao dizer: “Desde já me ponho a duvidar de teu amor. Tens medo de ser na ação e no valor o mesmo que és no desejo? Queres ter aquilo que estivas como ornato da existência, e te mostras em tua mesma estima Um covarde, dizendo 'Não me atrevo'" (Ato 1. Cena 7. p. 45). Lady Macbeth, que pode ser indicada como uma Jezabel renascentista, também voltada para as forças do oculto, para assegurar-lhe mais poder: "Vinde, espíritos sinistros que servis aos desígnios assassinos! (...) Vinde ó, vós, ministros do Mal, seja onde for que, em invisíveis substâncias, instigais o que é contrário Aos sentimentos naturais humanos!" (Ato 1. Cena 5. p.37-38). Eram as esposas dominantes. Lady Macbeth desejava possuir a força de um homem. Jezabel, enquanto rainha e sacerdotisa em Israel, introduziu a divindade Baal. Dentro de ambas as épocas, as mulheres possuíam pequenos direitos e liberdades. Sua forte postura religiosa, embora visto como zelosa, não foi favorável no reino, cujo Ser Supremo era o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, o que demonstra o quão voluntariosa e tirana essa mulher era, chegando a mandar matar os profetas em Israel. Lady Macbeth governou sobre Macbeth usando de métodos que questionavam sua masculinidade "Homem fraco! Dá-me os punhais" (Ato 2. Cena 2. p. 57). Outrossim, Jezabel reinava da mesma forma sobre o rei Acabe, sendo esse conhecido como o mais dócil (ou o mais fraco) da relação. Ela era comumente vista como a conspiradora, trabalhando até mesmo pelas costas de seu marido. "Porém ninguém fora como Acabe, que se vendera para fazer o que era mau aos olhos do Senhor; porque Jezabel, sua mulher, o incitava" (Reis 21:25). Assim como Lady Macbeth promovia assassinato como um método de obter graça às vistas do rei e assim afirmar ainda mais seu domínio sobre ele: "Mas não te alteres: Não diga o teu semblante o que não queres. Deixa o resto comigo" (Ato 1. Cena 5. p. 38). Jezabel fizera o mesmo, sem escrúpulos. Quando seu marido, o rei Acabe desejara a vinha de Nabote, próxima ao palácio de Jezrael, mas este recusouse a vendê-la, pois era contra a tradição estabelecida por Israel, Jezabel envolveu-se na questão. "Então Jezabel, sua mulher lhe disse: Governas tu agora no reino de Israel? Levanta-te, come pão, e alegre-se o teu coração; eu te darei a vinha de Nabote, o jizreelita" (1 Reis 21:7). Ela enviou cartas em nome de Acabe aos chefes de Jezrael. O conteúdo das cartas ordenava a detenção de Nabote, sob denúncia de duas falsas testemunhas, por blasfémia contra Deus e contra o rei e por isso deveria ser ele executado por apedrejamento. Segundo a lei da época, a propriedade de alguém que tivesse cometido tais atos passaria para o rei. Nabote foi apedrejado e Jezabel então presenteou o marido com a vinha (1 Reis 21: 1-27). Interessante como ambas viriam a ter o mesmo fim trágico, como que tendo atraído afinal a ira dos deuses. “Supostamente” se atiraram de uma janela para a morte. Isso é o que Genette propõe ao referir-se a "transtextualidade", ou seja, a "tudo aquilo que coloca um texto em relação com outros textos, seja essa relação manifesta ou secreta". Robert Stam (2006) estabelece que frequentemente o intertexto não está explícito, mas é, mais precisamente, as referências a conhecimentos anteriores que são assumidamente conhecidos. Isso é verdade especialmente para textos geradores de cultura como as bíblias judia e cristã. (p.29) Na tragédia de Hamlet temos outra mulher que ousou em "desacatar" os costumes da época: Gertrudes. Mãe de Hamlet, viúva do rei Hamlet, casa-se segundo seu filho, numa "pressa infame", logo após a morte do marido com Claudio, o irmão e consequentemente, seu cunhado, ainda que correndo o risco de ser vista em um relacionamento incestuoso e luxuriante, condenado não somente pelos seus súditos, mas especialmente pelo seu próprio filho, que chega a definir a própria mãe com a célebre frase: "(...) Fragilidade, teu nome é mulher!" (Ato 1. Cena 2. p.24). Já na Bíblia encontram-se dois exemplos sobre o casamento da esposa com o irmão do falecido, seu cunhado, ambos representados por mulheres polêmicas. Uma delas foi Herodias, casada com Herodes, seu cunhado, no Novo Testamento. Sendo esse um pecado grave da época, Herodias é acusada abertamente por João Batista, a quem passa a perseguir até conseguir decapitá-lo. Hamlet quase usa as palavras de João Batista para Herodes: "Não é lícito possuí-la" (Mateus 14: 4). "Hamlet: É mas viver. No suor azedo de lençóis ensebados. Ensopados na corrupção, arrulhando e fazendo amor. Numa sentina imunda" (Ato 3. Cena 4. p.88). Há ainda a história de Tamar em Gênesis 38. Mulher casada com o primogênito de Judá, que morre. Então para dar continuidade ao nome do marido, obedecendo ao costume do levirato, onde reza que “Se alguns irmãos habitarem juntos, e um deles morrer sem deixar filhos, a mulher do defunto não se casará fora com um estranho: seu cunhado a desposará e se aproximará dela, observando o costume do levirato” (Deuteronômio 25:5). Então seguindo a tradição Tamar casou-se com o irmão que também morre sem deixar herdeiros, o que a faz ter que esperar pelo próximo. Porém, isso acaba não acontecendo, por negligência de seu sogro Judá. Assim, Tamar ocultou sua identidade e se disfarçou de prostituta para conseguir que o próprio sogro tivesse relações sexuais com ela, astutamente ficando com o anel de chancela, o cordão e o cajado dele como garantia. Quando Judá soube que Tamar estava grávida, primeiro ordenou que ela fosse apedrejada e, depois, queimada. Porém, ao saber que, por meio das manobras dela para conseguir um herdeiro, ele se tornara o pai da criança, Judá exclamou: “Ela é mais justa do que eu.” No difícil parto que se seguiu, Tamar teve gêmeos: Perez e Zerá. Tamar foi uma mulher que não abriu mãos de seus direitos e foi até as últimas consequências por isso. Contudo, uma relação mais conflitante e alusiva a de Gertrudes e Claudio é a do Rei Davi e sua paixão por Bate-seba, a mulher de um de seus soldados, Urias. Ainda que contrário à lei de Moises e de Deus, Davi se deita com Bate-seba, em seu palácio. Quando é avisado que ela está grávida, manda chamar o marido dela do campo de batalha com a intenção de acobertar seu adultério. Sem sucesso, Davi manda o esposo de volta, levando uma carta (como acontece com Hamlet e o rei da Inglaterra) onde ordena ao comandante de seu exército que o pusesse na frente dos campos de batalha onde ele morre. Assim ele toma Bate-seba e eles se casam rapidamente. Tal como Gertrudes, Bate-seba seria, destarte, julgada impiedosamente pelo príncipe Hamlet: "Olha o ar fagueiro da senhora minha mãe. E meu pai morreu não tem nem duas horas" (Ato 3 Cena II p. 75). Agora voltemo-nos à personagem de Hérmia, da peça Sonho de uma noite de verão, uma mulher que desafia a todos, especialmente a seu pai, para ficar com o homem que ama. Há várias alusões a trechos bíblicos que se encontram nessa obra de Shakespeare. Entretanto, encontramos aqui um episódio que dialoga com ambos os textos. Depois do feitiço de Oberon, o amor de Lisandro por Hérmia vira aversão. Podemos encontrar essa mesma apropriação na relação incestuosa entre Amnon e outra Tamar, filhos do rei Davi. Em 2 Samuel 13, temos a história de dois meio-irmão: Amnon e Tamar. Tamar era irmã de Absalão e filha de Maaca. Amnon, seu meio irmão, de Davi com Ainoã, estava enlouquecido por ela e fingindo estar doente, pediu a Tamar que lhe levasse um bolo. Assim atraiu-a para seu quarto, seduziu-a e forçou a deitar-se com ele. Tamar ainda pediu que ele se casasse com ela, a fim de reparar o erro, porém a dureza de coração de Amnom foi tamanha a ponto dele passar a rejeitá-la totalmente. Podemos ver algo semelhante na passagem em Sonho de uma noite de verão no Ato 3. Cena 2. p. 71-72. "HÉRMIA - Como! É possível maior mal do que isso de me odiardes assim? Ódio votardes-me? Por quê? Por quê? Oh Deus! Amor, que houve? Hérmia não sou e vós não sois Lisandro? Sou tão formosa agora quanto era antes. Amáveis-me esta noite, e nesta mesma noite me rejeitais. Serei forçada, pois, a pensar - oh! Deus tal não permita! - que de caso pensado me deixastes. Dizei: é isso? LISANDRO - Sim, por minha vida, e não te quero ver nunca jamais. Perde, pois, a esperança; não te iludas, não me faças perguntas sem sentido. Não é pilhéria, podes estar certa; nada há mais verdadeiro; tenho-te ódio e apaixonadamente a Helena adoro". Já no Ato 4. Cena 1. p. 92 temos mais uma referência, só que dessa vez com Demétrio, agora também apaixonado por Helena e rejeitando seu antigo objeto de paixão, Hérmia: DEMÉTRIO - Minha virtude é Helena, simplesmente. Nós, milorde, já éramos noivos antes de eu ver Hérmia; mas, tal como a um doente, repugnava-me esse alimento. Agora, tendo o gosto natural recobrado com a saúde, desejo-a, adoro-a, só por ela anseio, e ser prometo eternamente fido. Podemos comparar tais momentos nessa comédia de Shakespeare com 2 Samuel 13: 6-17: "Deitou-se, pois, Amnom, e fingiu-se doente; e, vindo o rei visitá-lo, disse Amnom, ao rei: Peço-te que minha irmã Tamar venha, e prepare dois bolos diante dos meus olhos, para que eu coma de sua mão. (...) E foi Tamar à casa de Amnom, seu irmão (ele porém estava deitado), e tomou massa, e a amassou, e fez bolos diante dos seus olhos, e cozeu os bolos. E tomou a frigideira, e os tirou diante dele; porém ele recusou comer. E disse Amnom: Fazei retirar a todos da minha presença. E todos se retiraram dele. Então disse Amnom a Tamar: Traze a comida ao quarto, e comerei da tua mão. E tomou Tamar os bolos que fizera, e levou-os a Amnom, seu irmão, no quarto. E chegando-lhos, para que comesse, pegou dela, e disse-lhe: Vem, deita-te comigo, minha irmã. Porém ela lhe disse: Não, meu irmão, não me forces, porque não se faz assim em Israel; não faças tal loucura. Porém ele não quis dar ouvidos à sua voz; (...) a forçou, e se deitou com ela. Depois Amnom sentiu grande aversão por ela, pois maior era o ódio que sentiu por ela do que o amor com que a amara. E disse-lhe Amnom: Levanta-te, e vai-te. Então ela lhe disse: Não há razão de me despedires assim; maior seria este mal do que o outro que já me tens feito. (...) E chamou a seu moço que o servia, e disse: Ponha fora a esta, e fecha a porta após ela." Podemos identificar nessas passagens o fenômeno da paráfrase, que Gene denominou como parafrasagem, que é visto, em geral, como um recurso semântico em que uma unidade é transformada em outra com um sentido equivalente. A parafrasagem aparece em AD como uma tentativa para controlar em pontos nevrálgicos a polissemia aberta pela língua e pelo interdiscurso. Fingindo dizer diferentemente “a mesma coisa” para restituir uma equivalência preexistente, a paráfrase abre, na realidade, o bem-estar que pretende absorver, ela define uma rede de desvios cuja figura desenha a identidade de uma formação discursiva. (MAINGUENEAU, 1997, p. 96) Sim, tanto Shakespeare quanto a Bíblia têm, cada um a seu modo, tirado as mulheres da obscuridade, de serem meros satélites dos homens, suas servas, suas sombras, caracterizando-as como uma força inteligente, fiel e poderosa, capaz de mover o mundo e modificá-lo por meio de suas palavras e atos. À medida em que o dramaturgo busca que a ideia da representação do “feminino” em suas obras, ao dar corpo e voz às mulheres protagonistas desse universo "paralelo" artístico-teatral, Shakespeare lançou mão de um universo não apenas real, mas que pudesse ser conhecido e mais facilmente assimilado pelo seu público, composto principalmente por pessoas cristãs e muitas conhecedoras das Sagradas Escrituras. A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; deve ser composta num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas. A Bíblia assim como várias obras de Shakespeare estão recheadas desse estilo. Aqui, abre-se um paralelo: esse tecido novo que se constituiu com várias citações bíblicas contribuindo para a concretude de uma das maiores obras literárias do mundo. Se tais "transcrições" houvessem sido concebidas antes do advento da publicização da Bíblia, até poderia ser. O que definitivamente não ocorre aqui. É como se víssemos em Macbeth, em Hamlet e em Sonho de uma Noite de Verão, o acolhimento das sagradas Escrituras pela literatura, ou seja, as referências vistas em tais produções, são não somente localizáveis quanto conscientes. [...] todo texto pode ser citado e, portanto, tornar-se citação, mas a citação é uma prática literária definida, que transcende evidentemente cada uma de suas performances e que tem suas características gerais; todo enunciado pode ser investido de uma função paratextual, mas o prefácio é um gênero; a crítica (metatexto) é evidentemente um gênero; somente o arquitexto, certamente, não é uma categoria, pois ele é, se ouso dizer, a própria classificação (literária)[...] E a Hipertextualidade? Ela também é um aspecto universal da literalidade: é próprio da obra literária que, em algum grau e segundo as leituras, evoque alguma outra e, nesse sentido, todas as obras são hipertextuais. (GENETTE, 2006, p.17-18) Referências A BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. Edição Corrigida e Revisada Fiel ao Texto Original, São Paulo: Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, 2007. Bíblia Traduzida e Corrigida Almeida Fiel. 2008. Disponível em https://www.bibliaonline.com.br. 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