A EXAUSTÃO DE SÍSIFO: GESTÃO PRODUTIVA E O TRABALHADOR CONTEMPORÂNEO Rafael Alves da Silva1 Introdução Ao analisar a atual configuração produtiva, temos um cenário em que as recentes tecnologias da informação associadas a novos métodos organizacionais possibilitam aumentar a produtividade, reduzindo o tempo de produção. Tal situação, longe de diminuir o desgaste no trabalho, permite a redução de postos e resulta na intensificação de trabalho para os que continuam trabalhando, ao mesmo tempo em que precariza sua condição. Contraditoriamente, as ‘ferramentas’ de gestão associadas ao toyotismo e à qualidade total, demandam uma participação e envolvimento do trabalhador diferentes de outros momentos como, por exemplo, no auge do período fordista, aproveitando também os elementos cognitivos do ‘colaborador’, num discurso que fomenta a criatividade, a competição e a busca por melhorias. Se considerarmos que as ‘ferramentas’ de gestão atuais e as técnicas próprias dos departamentos de recursos humanos não podem manipular livremente o trabalhador, que a adesão e participação desses trabalhadores, tão importantes para a gestão atual, não resultam exclusivamente de um engodo, podemos sugerir que tal configuração somente é possível por ter sido formado um tipo específico de trabalhador e de sociedade. Com a articulação entre toyotismo, neoliberalismo e teoria do capital humano, temos uma sociedade organizada sob a forma de empresa, composta de indivíduos que devem agir de forma ‘empreendedora’, investindo em si próprios, buscando atender aos ditames do mercado. Dito de outra forma: é possível verificar que a lógica inerente à organização produtiva atual é reduzir e precarizar postos de trabalho. Outra característica do modelo é a necessidade de adesão e cooperação dos trabalhadores para que tal intento seja bem sucedido. Grande parte da crítica feita às técnicas toyotistas de gestão, busca denunciar esse caráter de intensificação do trabalho e de como o trabalhador é levado, seja pelo 1 Doutorando em Ciências Sociais – IFCH – UNICAMP; E-mail: [email protected] 1 discurso da empresa, seja pelas técnicas psicológicas, a pensar para o capital, a contribuir com sugestões e melhorias ao processo. O que nos interessa nesse texto é, a partir dessas constatações e das críticas que já foram formuladas, considerar que vem sendo formado um trabalhador com uma mentalidade específica, assim como um discurso na sociedade, e não somente dentro da fábrica, que são imprescindíveis para o funcionamento do quadro descrito. Assim como o trabalhador do período fordista teve de aprender a acompanhar o ritmo imposto pelo maquinário e aceitar a disciplina imposta pela administração científica, tendo sido formado todo um modo de vida e uma imagem do operário modelo, o trabalhador atual também tem de apresentar novas características, tais como a polivalência, a criatividade, a flexibilidade, etc., e queremos propor que isso não é exclusivamente imposto dentro da fábrica, mas sim um processo que está associado a discursos presentes na sociedade. Vale frisar que tais apontamentos referem-se à observação de tendências. Evidentemente, não pretendemos ignorar a existência de um número enorme de trabalhadores que atuam ainda dentro dos moldes tayloristas, muitas vezes chegando a aberrações próximas à escravidão. Buscamos apenas explicitar um discurso que, no limite, defende mesmo a indiferença entre trabalho e capital, sendo o trabalhador um capitalista de si próprio, ‘investidor’ em sua educação e sócio da empresa, num cenário em que a concorrência do mercado atesta não haver alternativas a não ser ‘defender a empresa para defender a própria vida’. Outro ponto a destacar desde já é que a afirmação de que a configuração atual está programada para reduzir postos de trabalho não significa dizer que o trabalho perdeu importância analítica ou para o capital. Ao contrário, é esse um ponto de tensão interessantíssimo, na medida em que o capital busca reduzir cada vez mais postos, mas não pode prescindir totalmente do trabalho vivo 2. Objetivos 2 Podemos citar experiências que tentaram reestruturar empresas unicamente pela via tecnológica, como o projeto Saturno da General Motors, completamente frustrado. A chave do modelo toyotista está em articular tecnologia e uma força de trabalho envolvida e participante também com sua dimensão cognitiva do processo. 2 O objetivo principal é discutir aspectos da atual configuração produtiva e da gestão do trabalho, levando em consideração discursos associados ao neoliberalismo e à teoria do capital humano. Reforçando as críticas feitas ao modelo que se convencionou chamar de toyotista no tocante à intensificação da exploração, buscamos questionar como as pessoas toleram o intolerável, tentando tratar a questão não produzindo um discurso de vitimização do trabalhador, mas considerando-o como participante do processo. Longe de oferecer respostas, o texto visa apenas contribuir com o debate. Metodologia Este texto apresenta algumas reflexões que partem de pesquisa realizada como dissertação de mestrado (Silva, 2008). Na pesquisa foi aplicada análise de material de treinamento e ‘literatura empresarial’; entrevistas e conversas informais; participação em eventos e processos de consultoria para reestruturação produtiva; estudo teórico de autores ligados à teoria do capital humano, toyotismo e neoliberalismo. Este texto é uma discussão teórica e reflexão mais livre de alguns pontos presentes na citada dissertação e que estão embasados na pesquisa realizada nessa ocasião. Reflexões acerca da gestão contemporânea Embora não seja possível desenvolver esse argumento aqui, partimos da premissa de que a lógica inerente às doutrinas da qualidade total 3 e os resultados dos mecanismos da gestão contemporânea são a redução de postos de trabalho e a intensificação da expropriação dos que permanecem na ativa (Silva, 2008). O ganho em produtividade que havia sido conquistado pela gerência científica de Taylor e intensificado com Ford, encontra um novo patamar a partir da década de 1970, possibilitado pelo avanço tecnológico e a disseminação de concepções que não 3 Nas empresas e entre os consultores, a Qualidade é tratada como substantivo e não adjetivo, portanto os profissionais trabalham na gestão “da qualidade” e não “de qualidade”. Pode parecer uma bobagem, mas este detalhe pode ser ligado ao caráter de discurso mobilizador que a gestão da qualidade assume, sem estar vinculado a nenhuma preocupação com a qualidade do produto. Uma empresa que apresente um eficiente sistema de gestão da qualidade, não apresenta necessariamente um produto de qualidade. 3 desprezam a capacidade cognitiva do trabalhador, diferentemente do “gorila amestrado” de Taylor. Temos um trabalhador em permanente estado de alerta: atento à qualidade e à necessidade de melhoria contínua durante a execução de seu trabalho; preocupado em dar idéias para os ‘grupos de braimstorm’ e discussões de ‘melhoria’; temeroso por sua colocação no mercado e ciente de sua responsabilidade em se aperfeiçoar. A preocupação com o trabalho – e, já que as idéias são úteis para a empresa, o trabalho em si – não cessa ao ‘bater o ponto’. Por outro lado, as ‘ferramentas’ de gestão da qualidade, os mecanismos organizacionais e os sistemas de padronização da produção dependem de uma participação e envolvimento diferentes dos exigidos em momentos anteriores. A própria tecnologia da informação necessita dessa participação. No momento de implantação de tais sistemas, na adequação de uma empresa à ISO 9001, por exemplo, é necessário o envolvimento de todos os trabalhadores, inclusive os terceirizados, seja para descreverem suas atividades em procedimentos documentados ou para aprenderem novos métodos de organização. Nenhum software é eficientemente implantado ignorando os conhecimentos dos trabalhadores. Além disso, posteriormente, já que um dos diferenciais da configuração atual é justamente o aproveitamento das idéias dos executores das tarefas, permanece a necessidade de envolvimento e participação destes. Taylor já tinha clareza das contrapartidas necessárias para que colaborassem com seu sistema. Considerando que sua tarefa era “fazer com que Schimidt operasse 47 toneladas de ferro por dia e torná-lo feliz com isso” (Taylor apud Braverman, 1981: 96), ele lhe oferece $ 1, 85 diários no lugar dos $ 1,15. Seu método procura estabelecer uma “relação formal de reciprocidade entre dois sujeitos histórica e politicamente desiguais: capital e trabalho” (Heloani, 1994: 18). Já no Fordismo, as contrapartidas vão além dos melhores salários, ligadas também às políticas keynesianas e do Estado de bem estar social, durante uma espécie de “círculo virtuoso (ganhos elevados de produtividade grande produção - aumento dos salários - consumo alto)” (Linhart, 2007: 76). Por outro lado, as contrapartidas do toyotismo, ainda que existam, “são imediatamente abandonadas se elas representam, de alguma forma, uma ameaça às taxas de lucro. Acrescenta-se a isso o fato de que no Brasil essas contrapartidas foram praticamente nulas, se comparadas a de países centrais do capitalismo” (Marcelino, 2004: 114). 4 “Em suma, encontramo-nos em uma situação paradoxal: no momento em que as empresas têm menos contrapartida a propor aos assalariados é que elas procuram estabelecer um consenso. No momento em que as diretorias das empresas não podem mais recuar, (...) é que se voltam para os assalariados, pedindo-lhes para cooperar, participar, integrar-se em uma nova moral da empresa, prometendo-lhes menos, principalmente no plano dos salários” (Linhart, 2007: 76). Sendo paradoxal um sistema que depende de um envolvimento e participação qualitativamente acrescidos, ao mesmo tempo em que precariza as condições daqueles de que necessita a adesão, mais contraditório é o fato dessa ‘colaboração’ ser conseguida. Pois, frente aos resultados da organização toyotista, os constantes aumentos de produtividade com redução de postos de trabalho, e levando em consideração que os mecanismos de gestão que permitem tal situação apenas são eficientes com a participação dos executores da tarefa; temos que o trabalhador trabalha para sua própria exclusão. Quando um operador preenche todos os dados referentes à atividade de seu setor, atendendo às diretrizes da norma ISO 9001 – num processo que será auditado para manter o certificado de qualidade da empresa, necessário para que essa se mantenha no mercado e possibilite seu emprego – ele deu o primeiro passo para que sua atividade seja totalmente compreendida pelo sistema da qualidade, padronizada em procedimentos e facilmente terceirizada, ou simplesmente programada em software e automatizada. No momento em que ele participa de ‘grupos de melhoria’ e apresenta idéias para aperfeiçoar os processos, quando realiza modificações para tornar para si mesmo o trabalho mais fácil, ele contribui para a obsolescência de sua função. Vale lembrar que esta lógica não é exclusividade dos trabalhadores menos qualificados. Há hoje uma tendência de desemprego e precarização também para as funções mais especializadas. Comentamos noutra oportunidade terceirizações de laboratórios dentro de indústrias químicas, processos inteiros de gestão da qualidade organizados por trainees e estagiários e redução de efetivos em diversos setores (Silva, 2008). A busca de ‘melhoria contínua’ 4 se dá em todos os processos da organização, reduzindo o tempo necessário para a execução da tarefa, redistribuindo funções, 4 Segundo a norma NBR ISO 9001:2000, o compromisso com a melhoria contínua deve ser declarado na política da empresa (elemento 5.3) e é especificado no elemento 8 tornando-o auditável, já que também é exigida a definição de metas e os meios para atingí-las e renová-las. 5 implementando tecnologias da informação; ou seja, reduzindo postos, seja o de um operador da produção ou coordenador da área financeira. Diante disso, podemos pensar que os mecanismos de apropriação de saberes dos trabalhadores, as ‘ferramentas’ participativas que buscam fazer o trabalhador pensar para o capital, atuam mascarando suas reais intenções. Se partirmos do princípio de que um operador não contribuiria com sugestões se soubesse que ao fim do processo seu emprego estaria ameaçado, então tal participação só seria possível havendo um engodo por parte do sistema. Assim, o toyotismo não se apresentaria reduzindo postos enquanto intensifica o trabalho e precariza as condições dos que permanecem na ativa, mas respondendo aos modelos anteriores, tão criticados, tornando a produção mais eficiente, portanto, menos desgastante e possibilitando o desenvolvimento do trabalhador na medida em que este participa intelectualmente do processo. “Em lugar do trabalho desqualificado, o operário é levado à polivalência. Em vez da linha individualizada, ele integra uma equipe. No lugar da produção em massa, para desconhecidos, trabalha um elemento para satisfazer a equipe que vem depois da sua na cadeia. Em suma, o ‘toyotismo’ elimina, aparentemente, o trabalho repetitivo, ultra simplificado, desmotivante, embrutecedor” (Gounet, 1999: 33). Porém, até que ponto esse engodo se sustentaria atualmente? A citação acima é uma ironia de Gounet, autor crítico ao toyotismo, resumindo suas principais inovações. E fora os autores que combatem o modelo, os próprios trabalhadores já não estariam cientes de que as contribuições que fazem ao processo visam aumentar a produtividade da empresa? Já não sentiriam na pele os efeitos do desemprego e da precarização? Evidentemente, existem diversos entraves para resistências por parte dos trabalhadores. A própria necessidade de sobrevivência, o exército de reserva existente e a ameaça de desemprego talvez já sejam suficientes para justificar uma posição defensiva. Mas o que queremos destacar aqui (e questionar) é uma participação que vai além, muitas vezes, daquilo que foi pedido. Se considerarmos não ser possível que as ‘ferramentas’ de gestão da qualidade, o conhecimento psicológico da área de recursos humanos (Deming, 1990; Juran, 1993 ) 5, as ‘reuniões do abraço’, os concursos, os prêmios, as gincanas, enfim, que as técnicas de 5 Autores de teorias da administração e expoentes da ‘qualidade total’. 6 gestão e seus mecanismos de cooptação sejam os únicos responsáveis pela adesão dos trabalhadores, é preciso destacar que esse envolvimento só é possível em um tipo específico de trabalhador e de sociedade. Ou seja, diante de um regime de acumulação que precariza a condição daquele de quem necessita maior participação, considerando que esse caráter já está bastante evidente e tendo em conta que, por mais eficientes que sejam, as práticas de gestão não poderiam manipular livremente os trabalhadores; temos de levar em conta a formação da sociedade e do indivíduo que permitem tal situação. Pois, na competição interna em uma empresa, na disputa entre os colegas de trabalho, o que está escondido a não ser somente as estratégias de cada um? Na constatação de que não há vagas para todos e é necessário lutar por elas, o que não está dito? Embora esteja evidente que o capital é o grande beneficiário desse tipo de mobilização dos trabalhadores, a própria definição dos responsáveis por uma possível manipulação é complicada, visto que muitos daqueles que atuam na definição de metas, execução das ‘ferramentas’ da qualidade e implementação de softwares são técnicos, também substituíveis como os demais. Os próprios executivos, muitas vezes, parecem não estar em melhor situação, tendo de direcionar toda sua energia para a manutenção de sua empregabilidade, podendo também ser cortados em qualquer reestruturação, num processo impessoal que estará apenas respondendo aos ditames do mercado, simplesmente executando a lógica para o qual está ‘programado’. Tomando como exemplo o comentário de Danièle Linhart, de que “os gestores estão deliberadamente manipulando a subjetividade operária” 6, cabe perguntar quem são os gestores ou, pelo menos, destacar que eles não estão isentos dos mesmos processos. Ela mesma contou que, num colóquio em Lion onde tratava de temas ligados aos mecanismos de cooptação do trabalhador, lhe perguntaram o que ela fazia ali, não porque sua posição desagradasse aos presentes, gestores de empresas, mas porque eles já sabiam de tudo aquilo, disseram estar numa guerra econômica e todos deviam ser militantes e defensores da empresa. Os discursos da qualidade total aproximam-se mesmo de uma “mobilização total”, no sentido dado por Ernst Jünger ao tratar da mobilização para a guerra em seu ensaio de 1930 (Jünger, 1990). Sem a possibilidade de maior aprofundamento, gostaríamos apenas de destacar: 7 • O modo de produção capitalista tem como objetivo único a maximização do lucro. O sistema de gestão da produção, tal como está configurado hoje, tem como lógica inerente o aumento da produtividade concomitante a uma redução de efetivos, o que é permitido, também, pelo atual patamar tecnológico. • O princípio de competição do mercado, muito além de determinar as regras do jogo (ou a falta delas) para as empresas, também é observado nos trabalhadores. Pois, na medida em que se está em uma ‘guerra econômica’, estando o neoliberalismo vitorioso, declarando a escassez e a falta de alternativas, nada mais resta, a não ser procurar se adaptar, aumentar a empregabilidade, competindo pelas vagas cada vez mais raras. Na passagem da ‘fábrica’ para a ‘empresa’ 7, ao poder prescindir do capataz, mantendo uma vigilância entre os próprios trabalhadores – “o trabalhador torna-se (...) um déspota de si próprio” (Antunes, 2003: 205) –, a “empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo” (Deleuze, 1992: 221) . Configura-se uma situação em que quanto menos o sistema oferece, quanto menor a possibilidade de ascender, mais consegue a dedicação dos indivíduos, mais se delineia a “mobilização total”. E esta lógica faz, por exemplo, com que os diversos alertas de Richard Sennett em A corrosão do caráter, sobre as conseqüências pessoais das mudanças recentes no capitalismo, coloquem o sociólogo como um dos sete principais entrevistados durante os sete anos da Revista Você S/A 8, publicação do segmento de ‘gestão da carreira’. Seus comentários sobre a reestruturação produtiva e seu impacto na vida das pessoas são recebidos como necessidade de se desenvolver mais, seja nos conhecimentos técnicos para tentar garantir o emprego, seja no aprendizado emocional para resistir ao aumento da pressão e do estresse ou em saber se adaptar às mudanças – o que, em última instância, também busca garantir o emprego. A aceitação de que esse processo é inevitável, uma necessidade econômica, e que os indivíduos têm de competir por um lugar no mercado, que declara ter vagas somente para os melhores, ou seja, os mais aptos, possibilita também que o consultor 6 Seminário ‘Qual o sentido social da modernização no trabalho?’ – Fac. de Educação, UNICAMP, 21/08/07. 7 Nesse sentido nos referimos à concepção de Deleuze ao tratar da passagem das ‘sociedades disciplinares’ para as ‘sociedades de controle’ – cf. Deleuze, 1992. 8 Roberto Shinyashiki seja vivamente aplaudido por um auditório de trabalhadores de departamentos de Recursos Humanos, ao mostrar imagens da seleção de ‘pintinhos’ em uma granja, onde os considerados inadequados são triturados, e perguntar: “não é isso que vocês fazem todos os dias?” 9. Imperando a racionalidade de tipo econômica, toda situação passa a ser encarada dentro da lógica da empresa e todo aprendizado aproveitável: “ ‘Eu negociei a vida do meu filho’ – O empresário Alexander Lucinski passou 15 dias negociando com seqüestradores. Dessa experiência, tirou lições para a vida e para o trabalho” 10. Feitos esses apontamentos, passemos a comentar alguns elementos que contribuíram para a formação do quadro atual. Adaptação A necessidade de adaptação às mudanças da racionalização da produção e do trabalho não é uma exclusividade do momento atual. Gramsci, ao analisar no início da década de 1930 as transformações pelas quais passava a produção e a vida social com a implementação dos métodos taylorista/fordistas, aponta para a formação de um novo homem e uma nova sociedade. “A história do industrialismo sempre foi (e hoje o é de forma mais acentuada e rigorosa) uma luta contínua contra o elemento ‘animalidade’ do homem, um processo ininterrupto, muitas vezes doloroso e sangrento, de sujeição dos instintos (naturais, isto é, animalescos e primitivos) a sempre novos, complexos e rígidos hábitos e normas de ordem, exatidão, precisão, que tornem possível as formas sempre mais complexas de vida coletiva, que são a conseqüência necessária do desenvolvimento do industrialismo. Esta luta é imposta do exterior e até agora os resultados obtidos, embora de grande valor prático imediato, são em grande parte puramente mecânicos, não se transformaram numa ‘segunda natureza’. Mas, todo novo modo de vida, no período em que se impõe a luta contra o velho, não foi sempre durante certo tempo o resultado de uma compressão mecânica? Inclusive os instintos que hoje devem ser superados como ainda bastante 8 Revista Você s/a. Ed. Abril, edição 86, agosto de 2005 – pp. 46-47 FÓRUM LÍDER RH 2002 , 23-26 maio 2002, Centro de Convenções Rebouças, São Paulo “Liderança: Como Criar Equipes de Campeões” – Palestrante: Roberto Shinyashiki 9 10 Revista Você s/a. Ed. Abril, edição 88, outubro de 2005. 9 ‘animalescos’, constituíram, na realidade, um progresso notável em relação aos anteriores, ainda mais primitivos: quem poderia enumerar o ‘custo’, em vidas humanas e em dolorosas sujeições dos instintos, da passagem do nomadismo à vida sedentária e agrícola? (...) Até agora, todas as mudanças do modo de ser e viver se verificaram através da coerção brutal, através do domínio de um grupo social sobre todas as forças produtivas da sociedade: a seleção ou ‘educação’ do homem apto para os novos tipos de civilização, para as novas formas de produção e de trabalho, foi realizada com o emprego de brutalidades inauditas, lançando no inferno das subclasses os débeis e os refratários, ou eliminando-os simplesmente” (Gramsci, 1980: 391-393). A longa citação faz-se necessária dada a riqueza do texto. Gramsci contempla as transformações de seu tempo como uma etapa dentro de um processo que deve continuar. Aponta a adaptação dos trabalhadores necessária para atender às mudanças na produção, adaptação que não se limita às questões físicas ou psicológicas, mas também aos costumes e a um modo de vida que deve se expandir por toda a sociedade, eliminando os que não se adaptarem. Importante observar que o autor enxerga uma limitação à coerção externa, uma necessidade de articular repressão e persuasão, já apontando para a possibilidade da coerção mecânica passar a um estágio de “autocoerção” e “autodisciplina”, também comentando que as mudanças tendem a ser mais rápidas que no passado. Para o autor, o fenômeno americano que observa é o maior esforço coletivo realizado para criar com uma consciência do fim jamais vista “um tipo novo de trabalhador e de homem” (Gramsci, 1980: 396). E Gramsci considera estar assistindo uma etapa de um longo processo que começou com o industrialismo e deve continuar, fase que é mais explícita e brutal que as precedentes, mas que também será superada “com a criação de um novo nexo psicofísico de um tipo diferente dos precedentes e, indubitavelmente, superior. Verificar-se-á, inevitavelmente, uma seleção forçada, parte da velha classe trabalhadora será impiedosamente eliminada do mundo do trabalho e talvez do mundo tout court” (Gramsci, 1980: 397). Capital humano e neoliberalismo 10 Como vimos, as transformações na organização da produção forçam o trabalhador a adaptar-se. Atualmente, com a capacidade de aumentar a produtividade reduzindo efetivos, o mercado declara ter lugar apenas para os melhores 11 . Dessa forma, essa adaptação assume um caráter mais intenso, é preciso estar a todo o momento se aperfeiçoando na concorrência com os demais. É preciso, como se diz no meio empresarial, valorizar o “capital humano”. O sociólogo Osvaldo López-Ruiz, num estudo sobre os executivos das transnacionais, busca delinear o ethos que motiva e impulsiona o capitalismo na fase contemporânea. Sua análise volta-se para o conceito de “capital humano” e os economistas da Escola de Chicago. Na reconstituição do percurso de formação de tal conceito, aponta que o período de opulência do desenvolvimento econômico posterior à Segunda Guerra traz um problema para os economistas: “os fatores originários da produção, terra, capital e trabalho mostravam um crescimento individual que, somado, era significativamente inferior ao crescimento total da economia” (López-Ruiz, 2007: 55). O economista Theodore W. Schultz formula sua hipótese de que a explicação deveria ser buscada na acumulação de riqueza humana que era excluída das medidas convencionais de “horashomem trabalhadas” e capital tangível. López-Ruiz explica que para Schultz, o valor do stock ‘capital humano’ não é inferido de uma analogia com o ‘não humano’ ou ‘morto’, mas que são as próprias ‘destrezas e habilidades’ adquiridas pelos trabalhadores. Trata-se de estabelecer quanto valem para o mercado certos atributos que o homem pode desenvolver e que valor econômico eles podem produzir. Além disso, o que antes fora tratado como “custo”, um gasto derivado da utilização de mercadorias e serviços para a satisfação de necessidades humanas, Schultz tratará por “investimento”. As idéias relativas ao capital humano sofreram resistências no início, tanto de cunho ético como críticas relacionadas ao sentido de custo-benefício dado à educação e na definição de suas políticas, ou em justificar os investimentos no homem 11 “[O economista americano] Jeremy Rifkin publicou um artigo no "Guardian" em 2004 dizendo que, entre 1995 e 2002, a China perdeu 15 milhões de trabalhadores industriais crescendo 10%, 12% ao ano. O crescimento não é sinônimo de inclusão no trabalho. Ele é possível com maquinário e trabalho multifuncional (em bom e claro português, significa o trabalhador fazer muitas coisas)”. – Antunes, Folha de S. Paulo, 22/10/06 11 exclusivamente pelo retorno. Gary S. Becker, por exemplo, foi vaiado pelo auditório ao propor, em 1960, considerar as crianças como “bens de consumo duráveis”. No entanto, tais entraves foram gradativamente superados na segunda metade do século XX e autores como Becker e Schultz passaram a ser parte do mainstream da economia. “A ciência econômica, nesse caso, não cria só uma teoria sobre a economia; cria um repertório de interpretação que nos permite pensar e pensar-nos de maneira tal que não nos resulte repulsiva a imagem do humano como riqueza – como o havia sido em tempos de J. S. Mill. A partir de seus postulados ‘cientificamente verificáveis’, o humano passa a ser entendido como uma forma de capital e, portanto, o ‘capital humano’ e tudo o que se faça para incrementá-lo é investido de um valor positivo: cada pessoa deve – porque é economicamente conveniente, mas também porque é ‘moralmente bom’ – aumentar suas habilidades (...) a partir de ‘investimentos’ constantes” (López-Ruiz, 2007: 62). É importante perceber como tal concepção afasta-se da teoria econômica clássica, na qual o trabalho é pensado como um fator originário da produção, e passa a pensá-lo, assim como ao próprio trabalhador, como um meio de produção produzido. Assim, na análise de López-Ruiz, com a sua proposta de um deslocamento conceitual-valorativo do consumo para o investimento, estamos diante da emergência de uma sociedade organizada a partir do modelo de empresa. Ou em outras palavras, uma sociedade na qual cada indivíduo é levado a incorporar a forma empresa como meio de organizar, não apenas a sua atividade profissional, a sua carreira, mas a sua própria vida. Dessa forma, sendo ‘proprietários’ de suas próprias habilidades e competências, são também responsáveis por sua manutenção e incremento, devendo investir constantemente em si para corresponder às exigências de seleção do mercado. O filósofo André Gorz, tratando de mudanças recentes no capitalismo, analisa que “desfeitas as relações salariais convencionais, resolveu-se a questão a respeito do modo como o capital consegue exercer poder sobre os homens e é capaz de mobilizar a todos: os empregados têm de se tornar empresas (...). Na briga com a concorrência, eles serão forçados a internalizar a pressão trazida pela lógica de obtenção do máximo de proveito possível. No lugar daquele que depende do salário, deve estar o empresário da força de trabalho, que providencia sua própria formação, aperfeiçoamento, plano de saúde, etc. ‘A pessoa é uma empresa’. No lugar da exploração entram a auto-exploração e a autocomercialização do ‘Eu S/A’, que rendem lucros às grandes empresas, que são clientes do auto-empresário” (Gorz, 2005: 10). 12 E podemos dizer que, diferentemente da adaptação que Gramsci observou em sua época, agora ela poderá ser ativa e conscientemente buscada já que o “trabalhador não se apresenta mais apenas como o possuidor de sua força de trabalho heteroproduzida (ou seja, de capacidades predeterminadas inculcadas pelo empregador), mas como um produto que continua, ele mesmo, a se produzir” (Yann Moulier-Boutang apud Gorz, 2005: 19). Passemos agora ao tema do neoliberalismo. O filósofo Michel Foucault, refletindo sobre a “arte de governar”, considera que a partir de meados do século XVIII, caracteriza-se o que ele vai chamar de “razão governamental moderna”, instaurando um princípio de limitação intrínseco à arte de governar, objetivando o excesso de governo, no lugar de abuso da soberania. Nessa transformação, ocorre que a regulação não advém do direito, mas da economia política, entendida como todo método de governo suscetível de assegurar a prosperidade de uma nação. A economia política não se pauta em direitos naturais, mas na natureza daquilo que deve ser governado. Uma natureza que se deve observar para se obter êxito, de modo que a legitimidade é substituída pela eficácia. O mercado permite que apareçam os mecanismos naturais e quando se deixa que atuem possibilita a formação de um preço natural e bom. E é justamente para estudar o que chama de “regime de verdade” estabelecido pela economia política, que o autor se volta para o liberalismo. “Valor de troca e veridição espontânea dos processos econômicos, medidas de utilidade e jurisdição interna dos atos do poder público: aí está como a razão governamental articula os princípios fundamentais de sua autolimitação. Troca de um lado utilidade de outro, (...) a categoria geral que vai abranger tanto a troca quanto a utilidade é, naturalmente, o interesse, dado que o interesse é o princípio da troca e o critério da utilidade” (Foucault, 2004: 46). A reflexão de Foucault acerca do liberalismo, ao analisar como os conceitos de utilidade, interesse e eficácia, se sobrepõem às noções de soberania e legitimidade, explicita as transformações ocorridas no século XVIII. Daí, após as diversas facetas da intervenção estatal, como o nazismo, o socialismo e o welfare state, ocorrerão novas transformações na segunda metade do século XX, ligadas ao neoliberalismo. O autor comenta primeiramente o neoliberalismo alemão, os ordoliberais, e a necessidade de refundar o Estado sem acudir a nenhum dos princípios que tinham levado ao Estado nacional-socialista. 13 Para os ordoliberais não era suficiente o que ocorria no século XVIII, que a economia de mercado delimitasse um ponto onde o Estado não poderia mais intervir. Já que o Estado portava defeitos intrínsecos, e nada indicava que a economia de mercado portasse os mesmos defeitos, era coerente que ela fosse o princípio de regulação do Estado, “um Estado sob vigilância do mercado antes de um mercado sob vigilância do Estado” (Foucault, 2004: 120) Tais autores insistirão, dirá Foucault, na formalização da sociedade no modelo de empresa. Na sociedade vislumbrada pelo neoliberalismo alemão, não estamos submissos ao efeito mercadoria, mas sim à dinâmica da concorrência. O princípio regulador de tal sociedade não é o da troca, mas o da concorrência. Não se trata da ‘sociedade de supermercado’ ou do ‘homem consumidor’, mas da ‘sociedade empresa’ e do ‘homem da empresa e da produção’. E, noutro momento, de forma mais concreta na Universidade de Chicago na década de 1960, ocorrerá uma transformação da concepção neoliberal: “A mutação epistemológica essencial das análises neoliberais, é que elas pretendem mudar o que havia constituído de fato o objeto, o domínio dos objetos, o campo de referência geral da análise econômica. Praticamente, a análise econômica de Adam Smith, até o início do século XX, se deu como objeto o estudo dos mecanismos de produção, dos mecanismos de troca e dos fatos de consumo no interior de uma estrutura social dada, com a interferência desses três mecanismos. Ora, para os neoliberais, a análise econômica deve consistir não no estudo desses mecanismos, mas no estudo da natureza e das conseqüências do que eles chamam de escolhas substituíveis, ou seja, o estudo e a análise de como são alocados recursos raros a fins que são concorrentes” (Foucault, 2004: 228). A teoria do capital humano – a qual tratamos com López-Ruiz – será, na opinião de Foucault, a reinterpretação em termos econômicos de domínios até então não considerados dessa forma. A economia torna-se uma ciência preocupada com o comportamento humano, procurando o cálculo, que pode ser errôneo, mas qual foi o cálculo por trás da decisão de um indivíduo alocar recursos raros em determinado fim. Os neoliberais da Escola de Chicago reintroduzem o trabalho na análise econômica, mas de forma a questionar como aquele que trabalha dispõe seus próprios recursos. Para Marx o salário era o preço da venda da força de trabalho (abstrato), já os neoliberais vão considerar o salário como rendimento de um capital. “Decomposto do ponto de vista do 14 trabalhador em termos econômicos, o trabalho comporta um capital, ou seja, uma aptidão, uma competência” (Foucault, 2004: 230) Assim, com o neoliberalismo alemão teríamos a generalização da forma empresa pela sociedade, uma reformulação da relação entre o Estado e o mercado. E, com os neoliberais da Escola de Chicago, temos a aplicação ilimitada da forma do mercado, levando essa lógica como princípio para o entendimento (e condução) dos comportamentos individuais; uma reconfiguração da relação entre indivíduo e mercado. Tendo o mercado, a partir de meados do século XVIII, se convertido no lugar de formação de verdade, em meados do século XX se dará a passagem do homo oeconomicus liberal, homem da troca, para o neoliberal, o homo oeconomicus empresário de si mesmo. Resultados (considerações finais) Apresentamos alguns elementos fundamentais para a formação dos discursos contemporâneos e do “regime de verdade” formado que viabilizam o funcionamento da lógica produtiva que descrevemos, justificando as ações das empresas e pautando um conjunto de valores considerado na condução da vida pelo indivíduo. Pensar as características do trabalhador contemporâneo e acompanhar estes discursos presentes na fábrica e na sociedade organizada como empresa, nos parece importante para fazer a crítica às condições atuais de exploração do trabalho. Pois – lembrando das levas de jovens universitários participantes de fóruns de empreendedorismo, ou do público consumidor de toda literatura para gestão de carreiras – de que adiantaria demonstrar como um trabalhador perdeu tempo livre ao ser mandado para trabalhar em sua residência, quando ele considera que ganhou liberdade? Que força pode ter hoje a simples denúncia de que as formas atuais de gestão intensificam o trabalho, quando ocorrem suicídios de trabalhadores em posição de planejamento de grandes montadoras automotivas e o episódio vale para alimentar as consultorias, já que esses trabalhadores não tiveram ‘inteligência emocional’ para lidar com as metas? Temos de levar em consideração que “muitos jovens pedem estranhamente para serem ‘motivados’, e solicitam novos estágios e formação permanente” (Deleuze, 1992:226). 15 Referências bibliográficas ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: ed. Boitempo, 2003 BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1981 DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: editora 34, 1992 DEMING, W. E. Qualidade: a revolução na administração. Rio de Janeiro: Saraiva, 1990 FOUCAULT, Michel. Naissance de la biopolitique. Coll. 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