– DESCOBRINDO A CULTURA AMERICANA
– O VÍDEO EM SALA DE AULA –
Tecnologias e mídias educacionais
Patrícia dos Santos OGA (G)*
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
RESUMO
O giz e o quadro já não são mais suficientes no exercício da docência e o
abuso de outras técnicas (retroprojetor, por exemplo), acabam desestimulando
os alunos. Segundo Ferres (1996), é preciso aceitar a nova tecnologia com
toda a sua capacidade inovadora, evitando que haja um conflito entre as
possibilidades de uso e o modo como elas são utilizadas pela escola; o vídeo,
em especial, seria assim um instrumento especialmente indicado para realizar
trabalhos de pesquisa em todos os níveis. Shrek foi um marco do cinema
contemporâneo, não apenas por ser um dos melhores filmes de animação, mas
principalmente pelo discurso que desconstrói o universo do conto de fadas. No
entanto, algumas das situações do filme passam despercebidas ou são
ignoradas por nós, brasileiros. Segundo Santaella (1998), as imagens podem
ser observadas na qualidade de signos que representam aspectos do mundo
visível. Desse modo, podemos dizer que elas também transmitem uma
mensagem. Para Foucault (2002), a formação discursiva de um sujeito é
definida pela sua construção histórica, social e biológica; ele pode escolher o
papel que desempenhará e, então, aceita e age conforme a escolha que fez.
Assim, buscamos identificar aspectos intrínsecos da cultura americana
presentes nas imagens de Shrek para que fosse possível apresentar, em sala
de aula, essa outra cultura. Esse conhecimento é essencial para ampliar a
visão de mundo de nossos alunos, bem como para estimulá-los a reconhecer e
a aceitar a pluralidade cultural. Por que não surpreender os alunos oferecendo,
além de uma aula diferente, a possibilidade de aprender sobre uma cultura
imersa numa formação discursiva diferente, tornando-os também leitores mais
críticos?
PALAVRAS-CHAVE
Vídeo em sala, texto imagético, leituras
*
Aluna do curso de Letras Português Inglês. patrí[email protected]
Assim como a linguagem já foi vista como um sistema fechado de signos
e símbolos, cujos significados poderiam ser facilmente identificados por serem
um pressuposto da comunicação, as imagens já tiveram, e algumas ainda
mantêm, o caráter puramente indicador. A evolução do conhecimento de
mundo do homem o levou a questionar alguns paradigmas, entre elas a da
concepção de linguagem. Agora com caráter socio-interacionista, seu
pressuposto inicial é basear-se e construir-se pelas relações humanas. Essa
modificação
causou
impacto
também
nas
relações
comunicativas.
Especialmente naquela que se constrói pelas imagens. O avanço tecnológico e
a velocidade dos novos meios de comunicação afirmam uma cultura
“globalizada”. Mas as diferentes culturas ainda possuem traços característicos
e se expressam de maneiras únicas e, algumas vezes, facilmente
identificáveis, buscando uma afirmação de sua individualização.
Existe uma necessidade de “ler” a imagem para que ela possa ser
compreendida. Inúmeros são os elementos presentes numa única imagem e
que, se estão presentes, é porque têm uma função, uma mensagem a
transmitir. No entanto, muitas vezes não sabemos exatamente como fazer isso.
Seria possível realmente “ler” algo que não está escrito? Segundo Chartier,
“Lemos uma carta, um poema, um livro: como é ler um desenho, um quadro, um
afresco? Pois se o termo leitura é, imediatamente, adequado ao livro, também o é ao
quadro? Se, se por extensão de sentido, falamos de leitura a propósito do quadro,
coloca-se a questão da validade e da legitimidade dessa extensão. Entretanto, mesmo
sendo simples figura de linguagem ou abuso do termo, em todo caso, uma página
escrita é, de um lado, leitura, de outro lado, quadro e visão (...).”. Chartier (1996, p.
117)
É preciso, no entanto, educar o leitor para que aprenda a compreender o
que está presente nas imagens. Taddei explica isso da seguinte forma: “educar
para a imagem (...) significa praticamente educar a ‘ler’ a imagem”, assim, a
educação com a imagem é o uso metodológico da imagem em função de um
conteúdo e a educação para a imagem é criar a atitude consciente e crítica
mediante leitura.
Para Santaella (1997), a imagem pode ser observada na qualidade de
signos que representam aspectos do mundo visível, assim sendo, podemos
imaginar que é possível ler as imagens e que, assim como lemos os livros,
podemos criar uma situação de “co-autoria”, ao preencher os espaços e ao “dar
vida” às diferentes situações e/ou personagens. As imagens procuram indicar,
reproduzir, representar algo e produzir efeitos no “leitor”.
A análise do aspecto simbólico é muito rica, pois baseia-se nas
convenções culturais e a análise do símbolo “nos conduz para um vasto campo
de referências que incluem os costumes e valores coletivos e todos os tipos de
padrões estéticos, comportamentais, de expectativas sociais etc.” Santaella
(2002, p. 37)
“… o signo é qualquer coisa de qualquer espécie (uma palavra, um livro, uma
biblioteca, um grito, uma pintura, um museu, uma pessoa, uma mancha de tinta, um
vídeo etc.) que representa outra coisa, chamada de objeto do signo, e que produz um
efeito interpretativo em uma mente real ou potencial (...). Os efeitos interpretativos que
o vídeo produz em seus espectadores é o interpretante do signo. (...) os efeitos
interpretativos dependem diretamente do modo como o signo representa o seu objeto.”
(Ibid, p. 8-9)
Acreditamos que existam elementos que determinam as características
de cada diferente leitura. Esses elementos constituem a formação discursiva do
leitor. Concordamos com os estudos de Foucault e entendemos formação
discursiva como o conjunto de todos os fatores que definem o seu próprio
objeto, permitindo ou não a realização de um determinado discurso. Esses
fatores podem estar presentes em diferentes formações discursivas, mas a
reunião específica de um certo conjunto caracteriza uma única formação
discursiva. Desse modo, diferentes formações discursivas podem compartilhar
alguns elementos, mas o conjunto é sempre característico e único. A história, a
constituição do ser social e todos os outros elementos que identificam um
sujeito são decisivos. Assim, segundo Foulcault,
“A análise do campo discursivo (...) trata-se de compreender o enunciado na estreiteza
e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar
seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros
enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação
exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de outro
discurso: deve se mostrar porque não poderia ser outro, como exclui qualquer outro,
como culpa no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro
poderia ocupar.” Foucault (2002, p.31)
“Há, por exemplo, enunciados que se apresentam – e isso a partir de uma data que se
pode determinar facilmente – como referentes à economia política, à biologia, ou à
psicopatologia; há, também, os que se apresentam como pertencentes a essas
continuidades milenárias – quase sem origem – que chamamos gramática ou
medicina.” (Ibid, p.35).
É preciso saber quem fala, onde está quando fala e qual a sua posição
nesse lugar. A formação discursiva é definida pela construção histórica, social
e biológica do sujeito, podendo este escolher o papel que desempenhará e,
então, aceitar e agir conforme a escolha que fez. Desse modo, cada leitor, de
acordo com a sua própria formação discursiva, será capaz de realizar leituras
únicas e referenciar a algo que faça parte do seu próprio universo.
Como
desejamos
apresentar
a
formação
discursiva
americana
propriamente dita no texto imagético de Shrek, é preciso definir quais seriam as
características dessa formação discursiva em especial. Baseamos a nossa
definição em fatores relacionados a fatos da História americana, à interação
social (espaços físicos, esportes, representações de figuras de linguagem) e à
cultura propriamente dita (tradições). As relações características que
permitiram identificar esse conjunto de fatores fundamentaram-se no
aparecimento e na recorrência simultânea e/ou sucessiva desses enunciados,
sua forma e seu encadeamento dentro da cultura americana. Como indicado
por Foucault,
“No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,
semelhante sistema de dispersão e no caos em que entre os objetos, os tipos de
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade
(uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por
convenção, que se trata de uma formação discursiva.” Foucault (2002, p. 43)
A formação discursiva é culturalmente constituída e constrói a cultura em
que está inserida, definindo a tradição cultural, dando importância a um
conjunto de fatos e atribuindo uma origem indefinida, assim as mudanças
podem ser creditadas como mérito à decisão dos próprios indivíduos.
Taddei explica essa relação de leitura do seguinte modo:
“O conteúdo mental é o fruto daquela ação que, com termo tradicional, se chama
‘conhecimento’. Isso significa, pois, que atrás do conteúdo mental, está a ‘coisa’
(objeto, evento, situação) à qual se refere tal conteúdo mental e que pode ser também
reflexivamente uma experiência anterior; isso é a coisa conhecida. Esta ‘coisa’ – que
podemos também chamar ‘realidade’ como objeto de experiência, de ‘interpretação’ –é
aquilo que é cognoscível e somente enquanto é cognoscível. Isso significa que:
a) não podemos comunicar o não-cognoscível (porque do não-cognoscível não
podemos ter um conteúdo mental);
b) (...) só podemos comunicar uma ‘coisa’ na medida em que a conhecemos e,
portanto, enquanto ela nos é conehcida.” Taddei (1981, p. 67)
A educação é um processo de socialização. A criança, à medida que se
desenvolve, participa do grupo em que se acha inserida. É o próprio grupo que
lhe ensina as tradições, os valores, as crenças, as normas e os modos de
comportamento que lhe caracterizam.
O uso de vídeos pode se converter em um poderoso aliado do professor,
desde que corretamente utilizado. Esta proposta de apresentar uma outra
cultura ao discente exige o preparo do professor e, possivelmente, a
elaboração de um projeto, como sugere Ferrés,
“O programa didático baseado no vídeo pode ser simplesmente um meio de
informação. O é com freqüência. Porém pode se converter também em um excelente
instrumento para que o aluno aprenda a formular perguntas, para que aprenda a
expressar-se, para que aprenda a aprender. A tecnologia do vídeo pode facilitar a
interação entre o aluno e o programa, entre o aluno e os demais colegas de aula.”
Ferrés (1996, p. 70)
2. CORPUS E ANÁLISE
Shrek é uma produção feita nos Estados Unidos por americanos. Desse
modo está gabaritado e recebe permissão para falar de valores, padrões e
cultura específicos da formação discursiva americana. Muitas dessas
informações são facilmente identificáveis, mas existem alguns elementos que
são de difícil interpretação por outros leitores (não americanos).
O jogo que existe entre a memória discursiva e o texto imagético por ele
apresentado é que cria a intertextualidade e, conseqüentemente, uma reflexão
sobre o que é assistido. Muitos momentos necessitam explicitamente da
compreensão e do conhecimento dos elementos inerentes à formação
discursiva americana. Esse conhecimento pode ser trabalhado num misto de
interdisciplinariedade e transdisciplinariedade, pois atinge áreas como a
geografia, a literatura, a história e os esportes.
Eventualmente, nós, leitores não americanos, perdemos uma riqueza de
detalhes e de situações pelo simples fato de desconhecermos a existência
desse jogo. Decidimos, então, analisar neste artigo o texto imagético de Shrek
e as características discursivas que ele apresenta1.
Dentre as centenas de cenas que compõem o filme, selecionamos onze,
consideradas por nós como de formação discursiva americana:
-
os homens armados com tochas saindo da vila;
-
o cartaz de procurado;
-
os três ratinhos cegos;
-
a mulher que mora num sapato;
-
o menino biscoito;
-
o espaço físico do reino de Duloc;
-
a música do quiosque de informações;
-
a foto tirada no quiosque;
-
o torneio entre os soldados armados e Shrek;
-
Shrek escorregando na areia e golpeando um dos soldados com uma
lança;
-
Dragão beijando Shrek.
Por nos basearmos em fatores relacionados à história americana,
pudemos identificar a cena em que homens armados com ancinhos e foices e
carregando tochas saem de uma vila para caçar o ogro Shrek como
semelhante e passível de intertextualidade com o famoso episódio de caça às
bruxas no início da colonização do território americano. Esse é um fato
histórico real e faz parte da história americana. Até hoje em dia estudado nas
escolas nas aulas de história, relata a caça às bruxas, o julgamento e a
execução de 19 pessoas na cidade de Salem, Massachusetts.
De acordo com a Enciclopédia Interativa Compton, “Salem foi fundada
em 1626. O famoso julgamento de bruxas aconteceu em 1692. Em Bay Colony,
19 pessoas suspeitas de bruxaria foram enforcadas e muitas outras foram
presas. Isso teve início em Maio, quando da acusação de algumas jovens
contra mulheres da comunidade. Uma corte especial foi convocada, o
julgamento rapidamente levou à histeria em massa que implicou até mesmo a
esposa do governador. Em outubro, os líderes da comunidade começaram a
duvidar das evidências; a corte foi destituída e os que estavam presos foram
1
Tomamos como base para esta análise nossa própria experiência e convivência com a cultura americana. Patrícia
morou nos Estados Unidos por um ano como intercambista, estudando o quarto ano de uma high school (ensino
libertados; indenizações foram pagas às famílias dos mortos.”2 Recontado
também na literatura, por Nathaniel Hawthorne, em sua famosa obra As bruxas
de Salem, é estudado nas aulas de literatura americana durante os anos da
high school (ensino médio); pode ser assistido também em fita de vídeo.
O cartaz de procurado também caracteriza-se por pertencer e identificar
a cultura americana; também tem relação com fatos históricos, mas, desta vez,
com o período de expansão territorial que ocorreu no século XIX. Quem nunca
assistiu aos filmes de faroeste (far west)? Neles encontramos, geralmente, a
figura do xerife (sheriff) e, nas paredes do posto policial, o famoso cartaz de
procurado (wanted), via de regra com uma foto e, eventualmente, alguma
mensagem sobre uma recompensa (reward).
No dicionário American Heritage, encontramos a seguinte explicação
para wanted: “4.b. To seek with intent to capture: The fugitive is wanted by the
police” (procurar com a intenção de prender: O fugitivo é procurado pela
polícia3).
Assim,
podemos
também
perceber
que
o
cartaz
indica
deliberadamente que aquele que é procurado é um criminoso, um fora-da-lei.
Além desse caráter histórico, até hoje em dia é divulgada uma listagem de
procurados, por exemplo, pela central de inteligência americana (CIA). Essa
listagem também pode se apresentar na forma de uma lista dos “10 mais”,
veiculada, inclusive, pela televisão.
Já os três ratinhos cegos, a mulher que mora no sapato e o menino
biscoito fazem parte, mais especificamente, da literatura infantil americana, por
assim dizer. Reunidos no chamado “nursery rhymes” – de acordo com o
American Heritage, “a short, rhymed poem or tale for children” (um poema
rimado ou conto curto para crianças4).
Os três ratinhos cegos foi lançado em livro e conta as desventuras de
três ratinhos que decidem sair de casa e ir em busca de aventuras. Saem
carregando sua bagagem (um pente), mas como não conseguem um quarto no
hotel, dormem ao relento. No dia seguinte, estão com muita fome. Vão
seguindo um caminho até que chegam numa fazenda, onde conseguem um
pouco de queijo. E, para se salvar do gato, os ratinhos pulam pela janela.
médio).
2
Tradução nossa.
3
Tradução nossa.
4
Tradução nossa.
Caem num arbusto que lhes arranha os olhos, deixando-os cegos. Voltam para
a casa e são capturados pela mulher do fazendeiro, que corta os seus
rabinhos. No final do conto, conseguem uma poção “Never too late to mend”
(Nunca é tarde demais para consertar 5) com um farmacêutico; seus rabos
crescem novamente e eles recuperam a visão. Decidem montar um negócio
próprio e conseguem boa clientela e sucesso em sua profissão.
O poema sobre a mulher que mora no sapato é bem curtinho:
“There was an old woman
/
Havia uma senhora
She lived in a shoe,
/
Que morava num sapato,
She had so many children
/
Ela tinha tantos filhos
She didn’t know what to do.
/
Que não sabia o que fazer.
She gave them some broth
/
Ela lhes deu sopa (caldo)
Without any bread,
/
Sem pão
And whipt them all soundly
/
E bateu neles com força
And put them to bed.”
/
E mandou-os pra cama.6
Para encontrar essa cena, é preciso prestar muita atenção. Aparece
apenas num breve momento – quando o pântano é invadido pelos
personagens de contos de fada e Shrek vai ver quem é que está invadindo o
seu território; a mulher aparece, cercada pelos filhos, pendurando roupas num
varal.
Já o conto do menino biscoito, o Gingerbread man, é relativamente
longo. Ele conta a história de um casal e, um dia, a esposa decide assar um
biscoito para comerem. Quando o biscoito já está assado, ele toma vida e foge
do forno. Nem a mulher, nem o homem, nem a vaca, nem o cavalo, nem a
galinha conseguem pegá-lo. No final, a astuta raposa consegue enganá-lo e o
come. A parte ironizada do poema no filme é o fato de o biscoito poder correr
mais rápido que todos, dizendo:
“Run, run, as fast as you can!
/
Corra, corra, o mais rápido que puder!
You can't catch me!
/
Você não pode me pegar!
I'm the Gingerbread Man!”
/
Eu sou o menino biscoito!7
pois a imagem mostra que as perninhas do biscoito foram quebradas, durante
a tortura sofrida no calabouço do castelo do lorde Farquaad. Ela já não pode
mais correr nem se vangloriar disso.
5
Tradução nossa
Tradução nossa.
7
Tradução nossa.
6
Novamente podemos observar a dificuldade que nós, por não sermos
americanos, temos em reconhecer esses discursos, uma vez que não fazem
parte nem possuem nada semelhante nem nenhum referente em nossa
formação discursiva. Qualquer criança americana, no entanto, facilmente
perceberia os diálogos intertextuais que são realizados nessas cenas.
Quando Shrek e Burro chegam e entram no reino de Duloc, para o
brasileiro comum, a imagem é de um reino medieval, com os muros externos, a
pequena vila no interior e o castelo ao fundo.
Dentro da formação discursiva americana, a imagem do reino de Duloc é
claramente uma reprodução do parque de diversões da Disney. A entrada com
a catraca, as lojinhas de souvenir com seus produtos (brinquedos que
reproduzem, neste caso específico, a figura do lorde Farquaad), as casas uma
do lado da outra deixando um largo vão central até o castelo, e, principalmente,
o canteiro de flores no centro. Cada detalhe foi reproduzido com perfeição,
inclusive o piso.
O quiosque de informações é algo que pode remeter (para o leitor não
americano) a uma caixinha de música. Mas muito mais do que isso, os
pequenos bonecos articulados que se mexem e cantam indicam algo ainda
mais característico: Small World, nada mais “Disney” que os bonequinhos
articulados cantando e representando os diversos países do mundo, todos
caracterizados com roupas típicas e em cenários também facilmente
identificáveis.
Logo após a apresentação, o quiosque de informações tira uma foto de
Shrek e do Burro. Quem já esteve na Disney (e também em outros parques
temáticos), sabe que muitos brinquedos oferecem a opção da foto tirada
enquanto você se divertia no brinquedo.
Estes três últimos elementos remetem ao espaço físico do parque
temático da Disney. Mesmo que alguns americanos nunca tenham estado em
nenhum dos parques, faz parte da sua formação discursiva identificar esses
elementos. A facilidade em identificá-los é reforçada pela recorrência e pela
reprodução fiel de cada item característico entre Disneyland, DisneyWorld,
EuroDisney e TokyoDisney. Mesmo presente em diferentes partes do mundo e,
por extensão, em diferentes formações discursivas, sua marca distintiva é a
sua origem americana.
Seguindo até o castelo do lorde Farquaad, deparamo-nos com a cena do
torneio. Apesar de esse caráter medieval não fazer parte da história americana,
há algo típico e muito semelhante: o restaurante Medieval Times. Ao entrar no
restaurante, que é a réplica de um castelo, somos recebidos por pessoas
vestidas com trajes medievais. Dentro, há apenas a arena circundada pela
arquibancada. No lugar de honra está o rei e a rainha. O ápice do show é
representado pelo torneiro entre os cavaleiros, numa luta.
Encontramos na cena do torneio uma semelhança com os elementos
desse show. A platéia em arquibancadas, lorde Farquaad em local de destaque
e, como prêmio, ter a honra de ir salvar a princesa Fiona.
Logo em seguida no filme, Shrek é atacado pelos soldados armados e,
quando vai se defender, derrama uma quantidade enorme de bebida no chão
que, por ser de areia, fica mole. Deslizando pela areia úmida, ele toma a lança
de um dos soldados e o derruba com um golpe certeiro. Acreditamos que isso
seja uma clara alusão a um jogo de hóquei. Esse jogo consiste em marcar gols
utilizando bastões de madeira (Shrek utilizou uma lança) e um disco de
borracha vulcanizada (o soldado que levou o golpe). O hóquei no gelo tem
origem no norte do continente americano. O jogo é dividido em três períodos de
20 minutos cada, podendo ter prorrogação em caso de empate. Os times
podem ter entre dezoito e vinte jogadores que se revezam durante o jogo.
Neste caso, o conhecimento específico sobre o esporte é fundamental
para interpretar a imagem como sendo uma representação dessa prática
esportiva. Desde a mais tenra idade, as crianças aprendem a praticar esportes
e são estimuladas a participar das equipes das escolas que freqüentam. O bom
desempenho numa prática esportiva pode garantir scholarships (bolsa) ao
jovem que deseja entrar numa boa universidade. Além disso, canais exclusivos
sobre esportes e a chance de construir uma carreira sólida, de sucesso e com
patrocinadores são incentivos suficientes para prestigiar o esporte dentro dessa
formação discursiva.
A última imagem por nós analisada é a que representa uma figura de
linguagem, facilmente identificada por todo aquele que tem um conhecimento
da linguagem popular americana, em especial a de baixo calão. Dificilmente
pode ser traduzida ou mesmo interpretada por um não americano, apesar de
facilmente reconhecida como xingamento. “Kiss my ass” não possui um
equivalente na língua portuguesa. Apenas, talvez, como xingamento a outrem.
Este, no entanto, possui equivalente na língua inglesa como “ass kisser”,
segundo o dicionário American Heritage, é uma gíria vulgar e significa “To act
submissively in order to gain favor” (Agir com submissão ou a fim de obter um
favor8). Muitas vezes dito sem o sentido mais pejorativo, mas apenas como
desabafo. Há estudos que comprovam que muitos xingamentos perderam o
valor semântico e tornaram-se apenas um modo de expressar desagrado, raiva
ou indignação.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível perceber que Shrek não apenas desconstrói os contos de
fadas, mas os afirma, uma vez que os reconta e os recria. No entanto, muitas
particularidades passam desapercebidas ao leitor menos atento. A capacidade
de ler as imagens é essencial quando se trata de um texto imagético. Neste
caso, por se tratar de uma animação e, por isso mesmo, construída por
imagens, a não leitura compromete a compreensão. Muitas pessoas assistiram
ao filme e não gostaram, talvez por não poderem participar do jogo intertextual,
de realizar outras leituras.
O leitor empírico pode perder muito quando hesita em se tornar o leitor
modelo. Mas, quando pesquisa, quando procura se inserir ou, pelo menos,
conhecer as características intrínsecas da formação discursiva de origem, ele
amplia o espaço da sua leitura e pode dialogar não apenas com textos verbais,
mas com imagens e com pessoas também.
A partir do momento em que todos os professores pudessem ter a
oportunidade de trabalhar conteúdos interessantes, estimulando assim a
curiosidade e a inteligência de seus alunos (apesar das dificuldades, falta de
material, por exemplo), eles estarão prontos para enfrentar essa nova realidade
mundial que se transforma a cada dia.
8
Tradução nossa.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHARTIER, Roger. (org.) Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
Dicionário interativo da língua inglesa The American Heritage. 3ª edição. InsoSoft, Inc., 1994.
ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
Enciclopédia Interativa Compton. Compton's NewMedia, 1994-1995.
FERRÉS, Joan. Vídeo e Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1987.
_____. Semiótica Aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.
_____; NÖTH, Winfried. Imagem – cognição, semiótica, mídia.São Paulo: Iluminuras, 1998.
Shrek. ADAMSON, Andrew; JENSON, Vicky. EUA: Dreamworks, 2001. VHS (100 min).
TADDEI, Nazareno. Educar com a imagem. São Paulo: Loyola, 1981.
http://www.childrensbooksonline.org/Three_Blind_Mice/index.htm
http://www.famous-quote-famousquotes.com/nursery_rhymes/the_old_woman_who_lived_in_a_shoe.html
http://www.storyit.com/Classics/Stories/gingerbreadman.htm
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