– DESCOBRINDO A CULTURA AMERICANA – O VÍDEO EM SALA DE AULA – Tecnologias e mídias educacionais Patrícia dos Santos OGA (G)* Pontifícia Universidade Católica do Paraná RESUMO O giz e o quadro já não são mais suficientes no exercício da docência e o abuso de outras técnicas (retroprojetor, por exemplo), acabam desestimulando os alunos. Segundo Ferres (1996), é preciso aceitar a nova tecnologia com toda a sua capacidade inovadora, evitando que haja um conflito entre as possibilidades de uso e o modo como elas são utilizadas pela escola; o vídeo, em especial, seria assim um instrumento especialmente indicado para realizar trabalhos de pesquisa em todos os níveis. Shrek foi um marco do cinema contemporâneo, não apenas por ser um dos melhores filmes de animação, mas principalmente pelo discurso que desconstrói o universo do conto de fadas. No entanto, algumas das situações do filme passam despercebidas ou são ignoradas por nós, brasileiros. Segundo Santaella (1998), as imagens podem ser observadas na qualidade de signos que representam aspectos do mundo visível. Desse modo, podemos dizer que elas também transmitem uma mensagem. Para Foucault (2002), a formação discursiva de um sujeito é definida pela sua construção histórica, social e biológica; ele pode escolher o papel que desempenhará e, então, aceita e age conforme a escolha que fez. Assim, buscamos identificar aspectos intrínsecos da cultura americana presentes nas imagens de Shrek para que fosse possível apresentar, em sala de aula, essa outra cultura. Esse conhecimento é essencial para ampliar a visão de mundo de nossos alunos, bem como para estimulá-los a reconhecer e a aceitar a pluralidade cultural. Por que não surpreender os alunos oferecendo, além de uma aula diferente, a possibilidade de aprender sobre uma cultura imersa numa formação discursiva diferente, tornando-os também leitores mais críticos? PALAVRAS-CHAVE Vídeo em sala, texto imagético, leituras * Aluna do curso de Letras Português Inglês. patrí[email protected] Assim como a linguagem já foi vista como um sistema fechado de signos e símbolos, cujos significados poderiam ser facilmente identificados por serem um pressuposto da comunicação, as imagens já tiveram, e algumas ainda mantêm, o caráter puramente indicador. A evolução do conhecimento de mundo do homem o levou a questionar alguns paradigmas, entre elas a da concepção de linguagem. Agora com caráter socio-interacionista, seu pressuposto inicial é basear-se e construir-se pelas relações humanas. Essa modificação causou impacto também nas relações comunicativas. Especialmente naquela que se constrói pelas imagens. O avanço tecnológico e a velocidade dos novos meios de comunicação afirmam uma cultura “globalizada”. Mas as diferentes culturas ainda possuem traços característicos e se expressam de maneiras únicas e, algumas vezes, facilmente identificáveis, buscando uma afirmação de sua individualização. Existe uma necessidade de “ler” a imagem para que ela possa ser compreendida. Inúmeros são os elementos presentes numa única imagem e que, se estão presentes, é porque têm uma função, uma mensagem a transmitir. No entanto, muitas vezes não sabemos exatamente como fazer isso. Seria possível realmente “ler” algo que não está escrito? Segundo Chartier, “Lemos uma carta, um poema, um livro: como é ler um desenho, um quadro, um afresco? Pois se o termo leitura é, imediatamente, adequado ao livro, também o é ao quadro? Se, se por extensão de sentido, falamos de leitura a propósito do quadro, coloca-se a questão da validade e da legitimidade dessa extensão. Entretanto, mesmo sendo simples figura de linguagem ou abuso do termo, em todo caso, uma página escrita é, de um lado, leitura, de outro lado, quadro e visão (...).”. Chartier (1996, p. 117) É preciso, no entanto, educar o leitor para que aprenda a compreender o que está presente nas imagens. Taddei explica isso da seguinte forma: “educar para a imagem (...) significa praticamente educar a ‘ler’ a imagem”, assim, a educação com a imagem é o uso metodológico da imagem em função de um conteúdo e a educação para a imagem é criar a atitude consciente e crítica mediante leitura. Para Santaella (1997), a imagem pode ser observada na qualidade de signos que representam aspectos do mundo visível, assim sendo, podemos imaginar que é possível ler as imagens e que, assim como lemos os livros, podemos criar uma situação de “co-autoria”, ao preencher os espaços e ao “dar vida” às diferentes situações e/ou personagens. As imagens procuram indicar, reproduzir, representar algo e produzir efeitos no “leitor”. A análise do aspecto simbólico é muito rica, pois baseia-se nas convenções culturais e a análise do símbolo “nos conduz para um vasto campo de referências que incluem os costumes e valores coletivos e todos os tipos de padrões estéticos, comportamentais, de expectativas sociais etc.” Santaella (2002, p. 37) “… o signo é qualquer coisa de qualquer espécie (uma palavra, um livro, uma biblioteca, um grito, uma pintura, um museu, uma pessoa, uma mancha de tinta, um vídeo etc.) que representa outra coisa, chamada de objeto do signo, e que produz um efeito interpretativo em uma mente real ou potencial (...). Os efeitos interpretativos que o vídeo produz em seus espectadores é o interpretante do signo. (...) os efeitos interpretativos dependem diretamente do modo como o signo representa o seu objeto.” (Ibid, p. 8-9) Acreditamos que existam elementos que determinam as características de cada diferente leitura. Esses elementos constituem a formação discursiva do leitor. Concordamos com os estudos de Foucault e entendemos formação discursiva como o conjunto de todos os fatores que definem o seu próprio objeto, permitindo ou não a realização de um determinado discurso. Esses fatores podem estar presentes em diferentes formações discursivas, mas a reunião específica de um certo conjunto caracteriza uma única formação discursiva. Desse modo, diferentes formações discursivas podem compartilhar alguns elementos, mas o conjunto é sempre característico e único. A história, a constituição do ser social e todos os outros elementos que identificam um sujeito são decisivos. Assim, segundo Foulcault, “A análise do campo discursivo (...) trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de outro discurso: deve se mostrar porque não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como culpa no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar.” Foucault (2002, p.31) “Há, por exemplo, enunciados que se apresentam – e isso a partir de uma data que se pode determinar facilmente – como referentes à economia política, à biologia, ou à psicopatologia; há, também, os que se apresentam como pertencentes a essas continuidades milenárias – quase sem origem – que chamamos gramática ou medicina.” (Ibid, p.35). É preciso saber quem fala, onde está quando fala e qual a sua posição nesse lugar. A formação discursiva é definida pela construção histórica, social e biológica do sujeito, podendo este escolher o papel que desempenhará e, então, aceitar e agir conforme a escolha que fez. Desse modo, cada leitor, de acordo com a sua própria formação discursiva, será capaz de realizar leituras únicas e referenciar a algo que faça parte do seu próprio universo. Como desejamos apresentar a formação discursiva americana propriamente dita no texto imagético de Shrek, é preciso definir quais seriam as características dessa formação discursiva em especial. Baseamos a nossa definição em fatores relacionados a fatos da História americana, à interação social (espaços físicos, esportes, representações de figuras de linguagem) e à cultura propriamente dita (tradições). As relações características que permitiram identificar esse conjunto de fatores fundamentaram-se no aparecimento e na recorrência simultânea e/ou sucessiva desses enunciados, sua forma e seu encadeamento dentro da cultura americana. Como indicado por Foucault, “No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e no caos em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva.” Foucault (2002, p. 43) A formação discursiva é culturalmente constituída e constrói a cultura em que está inserida, definindo a tradição cultural, dando importância a um conjunto de fatos e atribuindo uma origem indefinida, assim as mudanças podem ser creditadas como mérito à decisão dos próprios indivíduos. Taddei explica essa relação de leitura do seguinte modo: “O conteúdo mental é o fruto daquela ação que, com termo tradicional, se chama ‘conhecimento’. Isso significa, pois, que atrás do conteúdo mental, está a ‘coisa’ (objeto, evento, situação) à qual se refere tal conteúdo mental e que pode ser também reflexivamente uma experiência anterior; isso é a coisa conhecida. Esta ‘coisa’ – que podemos também chamar ‘realidade’ como objeto de experiência, de ‘interpretação’ –é aquilo que é cognoscível e somente enquanto é cognoscível. Isso significa que: a) não podemos comunicar o não-cognoscível (porque do não-cognoscível não podemos ter um conteúdo mental); b) (...) só podemos comunicar uma ‘coisa’ na medida em que a conhecemos e, portanto, enquanto ela nos é conehcida.” Taddei (1981, p. 67) A educação é um processo de socialização. A criança, à medida que se desenvolve, participa do grupo em que se acha inserida. É o próprio grupo que lhe ensina as tradições, os valores, as crenças, as normas e os modos de comportamento que lhe caracterizam. O uso de vídeos pode se converter em um poderoso aliado do professor, desde que corretamente utilizado. Esta proposta de apresentar uma outra cultura ao discente exige o preparo do professor e, possivelmente, a elaboração de um projeto, como sugere Ferrés, “O programa didático baseado no vídeo pode ser simplesmente um meio de informação. O é com freqüência. Porém pode se converter também em um excelente instrumento para que o aluno aprenda a formular perguntas, para que aprenda a expressar-se, para que aprenda a aprender. A tecnologia do vídeo pode facilitar a interação entre o aluno e o programa, entre o aluno e os demais colegas de aula.” Ferrés (1996, p. 70) 2. CORPUS E ANÁLISE Shrek é uma produção feita nos Estados Unidos por americanos. Desse modo está gabaritado e recebe permissão para falar de valores, padrões e cultura específicos da formação discursiva americana. Muitas dessas informações são facilmente identificáveis, mas existem alguns elementos que são de difícil interpretação por outros leitores (não americanos). O jogo que existe entre a memória discursiva e o texto imagético por ele apresentado é que cria a intertextualidade e, conseqüentemente, uma reflexão sobre o que é assistido. Muitos momentos necessitam explicitamente da compreensão e do conhecimento dos elementos inerentes à formação discursiva americana. Esse conhecimento pode ser trabalhado num misto de interdisciplinariedade e transdisciplinariedade, pois atinge áreas como a geografia, a literatura, a história e os esportes. Eventualmente, nós, leitores não americanos, perdemos uma riqueza de detalhes e de situações pelo simples fato de desconhecermos a existência desse jogo. Decidimos, então, analisar neste artigo o texto imagético de Shrek e as características discursivas que ele apresenta1. Dentre as centenas de cenas que compõem o filme, selecionamos onze, consideradas por nós como de formação discursiva americana: - os homens armados com tochas saindo da vila; - o cartaz de procurado; - os três ratinhos cegos; - a mulher que mora num sapato; - o menino biscoito; - o espaço físico do reino de Duloc; - a música do quiosque de informações; - a foto tirada no quiosque; - o torneio entre os soldados armados e Shrek; - Shrek escorregando na areia e golpeando um dos soldados com uma lança; - Dragão beijando Shrek. Por nos basearmos em fatores relacionados à história americana, pudemos identificar a cena em que homens armados com ancinhos e foices e carregando tochas saem de uma vila para caçar o ogro Shrek como semelhante e passível de intertextualidade com o famoso episódio de caça às bruxas no início da colonização do território americano. Esse é um fato histórico real e faz parte da história americana. Até hoje em dia estudado nas escolas nas aulas de história, relata a caça às bruxas, o julgamento e a execução de 19 pessoas na cidade de Salem, Massachusetts. De acordo com a Enciclopédia Interativa Compton, “Salem foi fundada em 1626. O famoso julgamento de bruxas aconteceu em 1692. Em Bay Colony, 19 pessoas suspeitas de bruxaria foram enforcadas e muitas outras foram presas. Isso teve início em Maio, quando da acusação de algumas jovens contra mulheres da comunidade. Uma corte especial foi convocada, o julgamento rapidamente levou à histeria em massa que implicou até mesmo a esposa do governador. Em outubro, os líderes da comunidade começaram a duvidar das evidências; a corte foi destituída e os que estavam presos foram 1 Tomamos como base para esta análise nossa própria experiência e convivência com a cultura americana. Patrícia morou nos Estados Unidos por um ano como intercambista, estudando o quarto ano de uma high school (ensino libertados; indenizações foram pagas às famílias dos mortos.”2 Recontado também na literatura, por Nathaniel Hawthorne, em sua famosa obra As bruxas de Salem, é estudado nas aulas de literatura americana durante os anos da high school (ensino médio); pode ser assistido também em fita de vídeo. O cartaz de procurado também caracteriza-se por pertencer e identificar a cultura americana; também tem relação com fatos históricos, mas, desta vez, com o período de expansão territorial que ocorreu no século XIX. Quem nunca assistiu aos filmes de faroeste (far west)? Neles encontramos, geralmente, a figura do xerife (sheriff) e, nas paredes do posto policial, o famoso cartaz de procurado (wanted), via de regra com uma foto e, eventualmente, alguma mensagem sobre uma recompensa (reward). No dicionário American Heritage, encontramos a seguinte explicação para wanted: “4.b. To seek with intent to capture: The fugitive is wanted by the police” (procurar com a intenção de prender: O fugitivo é procurado pela polícia3). Assim, podemos também perceber que o cartaz indica deliberadamente que aquele que é procurado é um criminoso, um fora-da-lei. Além desse caráter histórico, até hoje em dia é divulgada uma listagem de procurados, por exemplo, pela central de inteligência americana (CIA). Essa listagem também pode se apresentar na forma de uma lista dos “10 mais”, veiculada, inclusive, pela televisão. Já os três ratinhos cegos, a mulher que mora no sapato e o menino biscoito fazem parte, mais especificamente, da literatura infantil americana, por assim dizer. Reunidos no chamado “nursery rhymes” – de acordo com o American Heritage, “a short, rhymed poem or tale for children” (um poema rimado ou conto curto para crianças4). Os três ratinhos cegos foi lançado em livro e conta as desventuras de três ratinhos que decidem sair de casa e ir em busca de aventuras. Saem carregando sua bagagem (um pente), mas como não conseguem um quarto no hotel, dormem ao relento. No dia seguinte, estão com muita fome. Vão seguindo um caminho até que chegam numa fazenda, onde conseguem um pouco de queijo. E, para se salvar do gato, os ratinhos pulam pela janela. médio). 2 Tradução nossa. 3 Tradução nossa. 4 Tradução nossa. Caem num arbusto que lhes arranha os olhos, deixando-os cegos. Voltam para a casa e são capturados pela mulher do fazendeiro, que corta os seus rabinhos. No final do conto, conseguem uma poção “Never too late to mend” (Nunca é tarde demais para consertar 5) com um farmacêutico; seus rabos crescem novamente e eles recuperam a visão. Decidem montar um negócio próprio e conseguem boa clientela e sucesso em sua profissão. O poema sobre a mulher que mora no sapato é bem curtinho: “There was an old woman / Havia uma senhora She lived in a shoe, / Que morava num sapato, She had so many children / Ela tinha tantos filhos She didn’t know what to do. / Que não sabia o que fazer. She gave them some broth / Ela lhes deu sopa (caldo) Without any bread, / Sem pão And whipt them all soundly / E bateu neles com força And put them to bed.” / E mandou-os pra cama.6 Para encontrar essa cena, é preciso prestar muita atenção. Aparece apenas num breve momento – quando o pântano é invadido pelos personagens de contos de fada e Shrek vai ver quem é que está invadindo o seu território; a mulher aparece, cercada pelos filhos, pendurando roupas num varal. Já o conto do menino biscoito, o Gingerbread man, é relativamente longo. Ele conta a história de um casal e, um dia, a esposa decide assar um biscoito para comerem. Quando o biscoito já está assado, ele toma vida e foge do forno. Nem a mulher, nem o homem, nem a vaca, nem o cavalo, nem a galinha conseguem pegá-lo. No final, a astuta raposa consegue enganá-lo e o come. A parte ironizada do poema no filme é o fato de o biscoito poder correr mais rápido que todos, dizendo: “Run, run, as fast as you can! / Corra, corra, o mais rápido que puder! You can't catch me! / Você não pode me pegar! I'm the Gingerbread Man!” / Eu sou o menino biscoito!7 pois a imagem mostra que as perninhas do biscoito foram quebradas, durante a tortura sofrida no calabouço do castelo do lorde Farquaad. Ela já não pode mais correr nem se vangloriar disso. 5 Tradução nossa Tradução nossa. 7 Tradução nossa. 6 Novamente podemos observar a dificuldade que nós, por não sermos americanos, temos em reconhecer esses discursos, uma vez que não fazem parte nem possuem nada semelhante nem nenhum referente em nossa formação discursiva. Qualquer criança americana, no entanto, facilmente perceberia os diálogos intertextuais que são realizados nessas cenas. Quando Shrek e Burro chegam e entram no reino de Duloc, para o brasileiro comum, a imagem é de um reino medieval, com os muros externos, a pequena vila no interior e o castelo ao fundo. Dentro da formação discursiva americana, a imagem do reino de Duloc é claramente uma reprodução do parque de diversões da Disney. A entrada com a catraca, as lojinhas de souvenir com seus produtos (brinquedos que reproduzem, neste caso específico, a figura do lorde Farquaad), as casas uma do lado da outra deixando um largo vão central até o castelo, e, principalmente, o canteiro de flores no centro. Cada detalhe foi reproduzido com perfeição, inclusive o piso. O quiosque de informações é algo que pode remeter (para o leitor não americano) a uma caixinha de música. Mas muito mais do que isso, os pequenos bonecos articulados que se mexem e cantam indicam algo ainda mais característico: Small World, nada mais “Disney” que os bonequinhos articulados cantando e representando os diversos países do mundo, todos caracterizados com roupas típicas e em cenários também facilmente identificáveis. Logo após a apresentação, o quiosque de informações tira uma foto de Shrek e do Burro. Quem já esteve na Disney (e também em outros parques temáticos), sabe que muitos brinquedos oferecem a opção da foto tirada enquanto você se divertia no brinquedo. Estes três últimos elementos remetem ao espaço físico do parque temático da Disney. Mesmo que alguns americanos nunca tenham estado em nenhum dos parques, faz parte da sua formação discursiva identificar esses elementos. A facilidade em identificá-los é reforçada pela recorrência e pela reprodução fiel de cada item característico entre Disneyland, DisneyWorld, EuroDisney e TokyoDisney. Mesmo presente em diferentes partes do mundo e, por extensão, em diferentes formações discursivas, sua marca distintiva é a sua origem americana. Seguindo até o castelo do lorde Farquaad, deparamo-nos com a cena do torneio. Apesar de esse caráter medieval não fazer parte da história americana, há algo típico e muito semelhante: o restaurante Medieval Times. Ao entrar no restaurante, que é a réplica de um castelo, somos recebidos por pessoas vestidas com trajes medievais. Dentro, há apenas a arena circundada pela arquibancada. No lugar de honra está o rei e a rainha. O ápice do show é representado pelo torneiro entre os cavaleiros, numa luta. Encontramos na cena do torneio uma semelhança com os elementos desse show. A platéia em arquibancadas, lorde Farquaad em local de destaque e, como prêmio, ter a honra de ir salvar a princesa Fiona. Logo em seguida no filme, Shrek é atacado pelos soldados armados e, quando vai se defender, derrama uma quantidade enorme de bebida no chão que, por ser de areia, fica mole. Deslizando pela areia úmida, ele toma a lança de um dos soldados e o derruba com um golpe certeiro. Acreditamos que isso seja uma clara alusão a um jogo de hóquei. Esse jogo consiste em marcar gols utilizando bastões de madeira (Shrek utilizou uma lança) e um disco de borracha vulcanizada (o soldado que levou o golpe). O hóquei no gelo tem origem no norte do continente americano. O jogo é dividido em três períodos de 20 minutos cada, podendo ter prorrogação em caso de empate. Os times podem ter entre dezoito e vinte jogadores que se revezam durante o jogo. Neste caso, o conhecimento específico sobre o esporte é fundamental para interpretar a imagem como sendo uma representação dessa prática esportiva. Desde a mais tenra idade, as crianças aprendem a praticar esportes e são estimuladas a participar das equipes das escolas que freqüentam. O bom desempenho numa prática esportiva pode garantir scholarships (bolsa) ao jovem que deseja entrar numa boa universidade. Além disso, canais exclusivos sobre esportes e a chance de construir uma carreira sólida, de sucesso e com patrocinadores são incentivos suficientes para prestigiar o esporte dentro dessa formação discursiva. A última imagem por nós analisada é a que representa uma figura de linguagem, facilmente identificada por todo aquele que tem um conhecimento da linguagem popular americana, em especial a de baixo calão. Dificilmente pode ser traduzida ou mesmo interpretada por um não americano, apesar de facilmente reconhecida como xingamento. “Kiss my ass” não possui um equivalente na língua portuguesa. Apenas, talvez, como xingamento a outrem. Este, no entanto, possui equivalente na língua inglesa como “ass kisser”, segundo o dicionário American Heritage, é uma gíria vulgar e significa “To act submissively in order to gain favor” (Agir com submissão ou a fim de obter um favor8). Muitas vezes dito sem o sentido mais pejorativo, mas apenas como desabafo. Há estudos que comprovam que muitos xingamentos perderam o valor semântico e tornaram-se apenas um modo de expressar desagrado, raiva ou indignação. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS É possível perceber que Shrek não apenas desconstrói os contos de fadas, mas os afirma, uma vez que os reconta e os recria. No entanto, muitas particularidades passam desapercebidas ao leitor menos atento. A capacidade de ler as imagens é essencial quando se trata de um texto imagético. Neste caso, por se tratar de uma animação e, por isso mesmo, construída por imagens, a não leitura compromete a compreensão. Muitas pessoas assistiram ao filme e não gostaram, talvez por não poderem participar do jogo intertextual, de realizar outras leituras. O leitor empírico pode perder muito quando hesita em se tornar o leitor modelo. Mas, quando pesquisa, quando procura se inserir ou, pelo menos, conhecer as características intrínsecas da formação discursiva de origem, ele amplia o espaço da sua leitura e pode dialogar não apenas com textos verbais, mas com imagens e com pessoas também. A partir do momento em que todos os professores pudessem ter a oportunidade de trabalhar conteúdos interessantes, estimulando assim a curiosidade e a inteligência de seus alunos (apesar das dificuldades, falta de material, por exemplo), eles estarão prontos para enfrentar essa nova realidade mundial que se transforma a cada dia. 8 Tradução nossa. 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHARTIER, Roger. (org.) Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. Dicionário interativo da língua inglesa The American Heritage. 3ª edição. InsoSoft, Inc., 1994. ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Enciclopédia Interativa Compton. Compton's NewMedia, 1994-1995. FERRÉS, Joan. Vídeo e Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1987. _____. Semiótica Aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002. _____; NÖTH, Winfried. Imagem – cognição, semiótica, mídia.São Paulo: Iluminuras, 1998. Shrek. ADAMSON, Andrew; JENSON, Vicky. EUA: Dreamworks, 2001. VHS (100 min). TADDEI, Nazareno. Educar com a imagem. São Paulo: Loyola, 1981. http://www.childrensbooksonline.org/Three_Blind_Mice/index.htm http://www.famous-quote-famousquotes.com/nursery_rhymes/the_old_woman_who_lived_in_a_shoe.html http://www.storyit.com/Classics/Stories/gingerbreadman.htm