Tão ogro quanto príncipe, uma análise do Percurso Gerativo acerca do filme
Shrek, seu ethos e ironias. ¹
Alexia SÖRENSEN ²
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo estudar o percurso gerativo de sentido, em seus
quatro níveis: fundamental, narrativo, discursivo e de manifestação de acordo com José
Luis Fiorin (2005), aplicando-o no filme Shrek (2001) da Dream Works Pictures, que
apresenta o personagem principal como características de anti-heroi, algo não muito
comum em filmes infantis, mas que pode indicar uma humanização de personagens e
uma possível crítica aos filmes tradicionais de contos de fadas. E, por fim, verificar
como o nível discursivo, principalmente, influencia para que este personagem encaixese no papel de heroi.
PALAVRAS-CHAVE: percurso gerativo; filme; análise de discurso.
Introdução
O sentido de um texto está intimamente ligado a sua produção e seu discurso, por
isso, estudiosos, ao longo dos anos, vêm formulando diversas teorias do discurso para
que assim possamos “com mais eficácia, interpretar e redigir textos” (FIORIN, 2005, p.
10). Segundo Fiorin (2005), um texto deve ser visto a partir de duas áreas
complementares, sendo elas: “os mecanismos sintáticos e semânticos responsáveis pela
produção do sentido” (2005, p.10) e a compreensão do “discurso como objeto cultural,
produzido a partir de certas condicionantes históricas, em relação dialógica com outros
textos” (2005, p.10).
A par disso, este artigo propõe analisar o Percurso Gerativo de Sentido como forma de
melhor interpretar aquilo que pensamos ser subjetivo, abstrato, e, assim mostrar “como
se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais
¹ Trabalho realizado na disciplina de Semiótica do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda,
ministrada pela professora Juliana Petermann e Magnus Casagrande
² Estudante de Graduação 4º semestre do Curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da UFSM, email:
[email protected]
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complexo” (FIORIN, 2005, p. 20) aplicando-o no filme Shrek, da Dream Works
Pictures, produzido em 2001, que mostra um ogro como personagem principal. Cheio
de defeitos, características de anti-heroi, Shrek apresenta-se como a antítese do
“príncipe encantado”, mas, durante toda a narrativa do filme acaba por encaixar-se no
papel de mocinho. O objetivo que esse trabalho põe em pauta é analisar como o
discurso influencia e, de certa forma, manipula os personagens e uma breve visão de
como esses personagens podem estar sendo retratados atualmente indicando, talvez,
uma humanização dos mesmos e levantar reflexões acerca da crítica silenciosa que o
filme faz sobre os contos de fadas tradicionais.
Partindo do percurso gerativo como metodologia, o presente artigo analisará, então,
os quatro patamares do discurso, chamados de níveis, sendo eles: Fundamental,
Narrativo, Discursivo e de Manifestação, onde os três primeiros apresentam um
mecanismo sintático e outro semântico e o último nível, uma “união de um plano de
conteúdo com um plano de expressão” (FIORIN, 2005, p.45).
Nível Fundamental
Para Fiorin (2005), “a semântica e a sintaxe do nível fundamental representam a
instância inicial do percurso gerativo e procuram explicar os níveis mais abstratos da
produção, do funcionamento e da interpretação do discurso” (2005, p. 24).
Logo, nesse primeiro nível da análise de um discurso, a semântica do nível
fundamental “abriga categorias que estão na base da construção de um texto” (FIORIN,
2005, p. 21) e baseia-se na oposição de dois valores, x versus y. Fiorin (2005) ressalta
que para que esses valores ou termos possam ser opostos é preciso que tenham algo em
comum, que estejam sobre um mesmo domínio e, dentro desse domínio que se
estabelece a diferença. Além disso, cada valor recebe uma qualificação semântica que o
próprio texto impõe, e não o leitor, sendo ela /euforia/ versus /disforia/, onde a primeira
apresenta uma conotação positiva e a segunda, negativa.
Durante o filme, identificam-se como valores fundamentais opostos o estar
/solidão/ e o /companhia/, estes pertencentes ao domínio de família/amigos, ou seja, têlos ou não. O /solidão/ possui, no texto, uma conotação negativa, qualificando-se como
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/disforia/, já o /companhia/ recebe a qualificação de /euforia/ com uma conotação
positiva. Isso fica explicito durante o percurso do filme, quando analisado, em que no
início Shrek vivia sozinho em seu pântano, com placas de “fique longe”, era grosseiro e
acreditava que viver assim era melhor, como na passagem “eu gosto de ficar sozinho”
(SHREK, 2001, 10m25s) ou “só tem eu e meu pântano” (SHREK, 2001, 46m40s), já no
final do filme ele demonstra desgosto longe de seu melhor amigo – Burro – e seu amor
– Princesa Fiona – em uma sequencia de cenas e cortes de câmera e, quando esta com
eles novamente, mostra quem realmente é, está verdadeiramente feliz e encontra o
“felizes para sempre”.
Já a sintaxe do nível fundamental, firma-se em duas relações que ocorrem ao longo
do texto, baseadas nos valores da semântica – x versus y –, sendo elas:
a) Afirmação de x, negação de x, afirmação de y;
b) Afirmação de y, negação de y, afirmação de x;
Quanto à sintaxe no filme, com x igual à /solidão/ e y igual à /companhia/, vê-se
afirmação de x, negação de x e afirmação de y. Durante uma longa parte do filme e présupomos, longa parte da vida, Shrek acreditava que viver em /solidão/ era melhor,
exaltava isso, mas há a negação dessa /solidão/ quando ele percebe que estava melhor
quando tinha seu amor e seu melhor amigo ao seu lado, e, por fim, há a afirmação,
exaltação de estar em /companhia/, com seu casamento no pântano, repleto de
personagens dos contos de fada.
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Nível Narrativo
Configura-se, fundamentalmente, de uma mudança de conteúdo, como explicita
Fiorin (2005), “a narratividade é uma transformação situada entre dois estados
sucessivos e diferentes” (2005, p.27). Ou seja, há a existência de um estado inicial, uma
transformação e um consequente estado final em toda e qualquer narrativa.
Na sintaxe narrativa há três abordagens que devem ser analisadas, 1º dois tipos de
enunciados elementares; 2º duas espécies de narrativas mínimas e 3º seqüência canônica
com quatro fases. Nos dois tipos de enunciado elementares se têm os enunciados de
estado, que estabelecem relação disjunção ou conjunção entre um sujeito e um objeto,
onde tanto um quanto o outro são papeis da narrativa, e os enunciados de fazer que
demonstram as transformações propriamente ditas. No filme, percebe-se como
enunciado de estado a disjunção em Shrek está sem uma família e como enunciado de
fazer, Shrek ficou com sua família.
Como há dois tipos de enunciado de estado há também duas espécies de narrativas
mínimas, como retrata Fiorin (2005), a de privação com um estado inicial conjunto e
estado final disjunto e a de liquidação de uma privação com um estado inicial disjunto e
um estado final conjunto. Shrek apresenta uma narrativa mínima de liquidação de
privação, já que estava em disjunção com sua família e entrou em conjunção com ela.
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Para analisar a terceira abordagem da sintaxe narrativa, tem-se que ter em mente que
“os textos não são narrativas mínimas. Ao contrário, são narrativas complexas”
(FIORIN, 2005, p. 29), de cunho escrito, oral, audiovisual, entre outros. Logo, uma
narrativa possui uma sequência canônica com quatro fases, que podem ou não dar
preferência a uma das fases e ocultar outras, aparecer em uma sequencia ilógica, ou
ainda possuir mais de uma sequencia, sendo elas:
a) Manipulação: um sujeito age sobre outro para levá-lo a querer e/ou dever fazer
alguma coisa.
b) Competência: o sujeito que vai realizar a transformação central da narrativa é
dotado de um saber e/ou poder fazer.
c) Performance: fase em que se dá a transformação, a mudança de estado e de
conteúdo, é o ponto central da narrativa.
d) Sanção: é a constatação de que a performance se realizou e gera o
reconhecimento do sujeito que operou a transformação e a distribuição de
prêmios e castigos.
A complexidade de uma narrativa se dá pela quebra da sequencia, o que não ocorre
em Shrek, já de inicio temos a fase de manipulação, o personagem do Lorde diz “vá
nessa busca por mim e eu lhe devolvo o seu pântano” (SHREK, 2001, 25m58s),
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caracterizando uma tentação, “quando o manipulador propõe ao manipulado uma
recompensa, ou seja, um objeto de valor positivo, com a finalidade de levá-lo a fazer
alguma coisa” (FIORIN, 2005, p. 30). Na fase de competência, Burro faz Shrek
perceber que está infeliz sozinho, que são amigos e que devem ir atrás da princesa
(SHREK, 2001, 1h12m30s). Quanto à fase da performance temos Shrek se declarando
para Fiona e na sanção, o seu casamento, o Burro encontrando seu amor e os demais
personagens da trama em liberdade e felizes. A narrativa é comum, previsível, talvez se
fosse de outra forma, poderia causar desgosto em quem a visse, já que em contos de
fadas todos esperam um final feliz e se contentam com isso. A trama de Shrek apenas
apresenta algumas outras sequencias canônicas, como a da princesa, o do Burro e dos
personagens que estão sem um lar, entretanto inova apresentando um ogro no lugar de
mocinho.
A antítese perfeita do príncipe encantado, com má educação, um pouco egoísta e
muito solitário, Shrek tinha tudo para ser o vilão da história, mas como personagem é
manipulado pela narrativa, que trata de mostrar seu lado bom, como na comparação “há
mais do que se imagina nos ogros [...], ogros são como cebolas [...] as cebolas têm
camadas, os ogros têm camadas” (SHREK, 2001, 27m) ou ainda “eles me julgam antes
de me conhecerem” (SHEREK, 2001, 48m07s), que mostram que Shrek possui, na
verdade, sentimentos.
Já a semântica no nível narrativo corresponde aos valores inscritos nos objetos,
sendo eles objetos modais – são os elementos cuja aquisição é necessária para realizar a
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performance – e objetos de valor – são os objetos que se entra em conjunção ou
disjunção no estado final da narrativa. “O objeto modal é aquele necessário para obter
outro objeto. O objeto valor é aquele cuja obtenção é o fim último de um sujeito”
(FIORIN, 2005, p. 37). Em Shrek, temos como objeto modal o Burro, a Dragão e a
força bruta de Shrek que o ajudam a impedir o casamento da princesa e dão a chance de
Shrek se declarar, e como objeto de valor a princesa e o Burro, que representam e
significam família para Shrek, ou como valor fundamental eufórico, /companhia/. Vale
lembrar que o pântano onde Shrek vive sozinho sustenta o valor disfórico de /solidão/,
assim como seu conjunto de cadeira desocupada.
Nível Discursivo
Esse elemento do percurso discursivo reveste de termos concretos as formas
abstratas do nível narrativo, como explica Fiorin (2005). É também neste nível que há a
produção de “variações de conteúdos narrativos invariantes.” (FIORIN, 2005, p. 41),
como por exemplo, no nível narrativo do filme Shrek há uma liquidação de privação de
conjunção com /companhia/, no nível do discurso essa liquidação dá-se entre um ogro e
uma princesa e não o tradicional príncipe encantado e princesa. “Mudam os
personagens, os espaços, os tempos, as circunstâncias” (FIORIN, 2005, p. 43), mas
pode não se alterar o nível narrativo quando comparamos dois filmes, por exemplo.
É nesse aspecto que a Dream Works inova em seu repertório, a escolha de revestir o
sujeito que entra em conjunção com /companhia/ de ogro e é nesse ogro que focamos a
sintaxe discursiva, que aborda aspectos estruturais do discurso, como pessoalização,
temporalização, espacialização relação enunciador/enunciatário e, trazemos para uma
melhor análise as considerações de Dominique Maingueneau (1989) acerca do Ethos.
Como pessoalização percebemos a identificação do enunciador, ou seja, Shrek, e do
enunciatário, qualquer um que assistir a história já que se trata de um discurso do
gênero filme, há toda uma narrativa que será transmitida a uma plateia, as escolhas dos
personagens e de seus respectivos ethos podem ter diversas razões, a principal delas é
causar identificação com o público-alvo. No filme, temporalização dá-se a partir de
certo momento da vida de Shrek até o seu casamento, não vemos como ele cresceu nem
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como viveu após sua união – pelo menos nesse filme, o artigo desconsidera a sequencia
da saga – e espacialização tem-se o pântano de Shrek, o castelo em que a princesa está
presa e o palácio do Lorde, todos esses localizados na terra dos contos de fadas, a
espacialização está em concordância com os personagens e suas histórias.
A relação entre enunciador e enunciatário é muito clara, por tratar-se de um filme
infantil, o enunciador Shrek conta sua história, baseada em acontecimentos de sua vida
pessoal e o enunciatário, ou seja, a quem se dirige a mensagem e faz o papel de
interlocutor ocupa o lugar de um observador onisciente, ele sabe de tudo, não só dos
fatos que ocorrem com o enunciador, mas com os demais personagens também, o
enunciatário é a plateia que assiste ao filme e que, neste caso não pode interferir na
trama.
Para Maingueneau (1989), “a linguagem é considerada como uma forma de ação:
cada ato de fala [...] é inseparável de uma instituição” (1989, p. 29), a própria linguagem
é a construção e representação do mundo em que estamos inseridos, e a análise
discursiva, observa e põe em primeiro plano “o caráter interativo da atividade de
linguagem, recompondo o conjunto da situação de enunciação”. Para o autor, a
enunciação é a realidade e deve ser levada em consideração no momento do estudo, há
um tempo, um lugar e um sujeito que influenciam na narrativa e que devem ser
analisados, entretanto “não basta falar de “lugares” ou de “dêixis”, a descrição dos
aparelhos não deve atrapalhar aquilo que poderíamos designar [...] de uma “voz””
(MAINGUENEAU, 1989, p. 45), tanto o que é dito como a voz qual a qual se enuncia
são igualmente importantes e inseparáveis.
Como ethos consideramos essa voz, que chamaremos de tom – marcado por gestos,
postura, entonação da voz, caracterização – que o papel social obriga o sujeito a se
revestir, e também um caráter e uma corporalidade. O ethos, então, é uma representação
e um corpo que se revela pelo modo de como se expressa, “não é o que diziam a
propósito deles mesmos, mas o que revelavam pelo próprio modo de se expressarem”
(MAINGUENEAU, 1989, p. 45). Além disso, devemos ser sensíveis para perceber que
o receptor também participa da construção do ethos do enunciador com o caráter.
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Com o ethos podemos analisar melhor o personagem Shrek e sua colaboração no
segmento cinematográfico. A corporalidade indica claramente um ogro, feio para os
padrões humanos, tal quais seus hábitos, asquerosos, de tomar banho de lama, comer
insetos e ratos, além de morar em um pântano. O caráter também é demonstrado ao
longo do filme, algumas pessoas com medo e tentando expulsá-lo ou matá-lo
contribuem para sua vida solitária, como o próprio personagem retrata, “é o mundo que
parece ter um problema comigo, as pessoas olham pra mim e ah! Socorro! Corram! Um
ogro enorme e horrível! É por isso que estou melhor sozinho” (SHREK, 2001, 47m51s),
se a análise acabasse aqui, como já foi dito, Shrek seria o oposto de um príncipe e seu
ethos, exclusivamente de ogro. Mas percebemos que seu tom é mais profundo, como a
narrativa trata de mostrar, há a aparição de gestos gentis, como entregar uma flor à
princesa, procurar por um abrigo e cozinhar para ela, humildes, como pedir perdão ao
Burro e atitudes valentes como lutar pelo seu amor. O ethos no inicio do filme era
superficial e incompleto, não mostravam o real ethos de Shrek, sendo assim, antítese de
um príncipe encantado não seria o termo correto, mas um bom “ogro” com atitudes e
qualidades de príncipe somados alguns defeitos é uma melhor explicação. É justamente
esse ethos composto de diferentes segmentos, uma mistura, que fazem o personagem ser
cativante e criam identificação com o público, um tom de príncipe imperfeito em uma
corporalidade de ogro acabam por humanizar Shrek, para além de um personagem,
vemos características de pessoas que conhecemos se não da própria plateia.
Já sua contribuição para o ramo cinematográfico levanta algumas questões
pertinentes. Temos um ethos diversificado em uma narrativa pobre e conhecida que
poderia indicar tanto uma simples ideia de por um ogro no lugar do príncipe quanto uma
crítica silenciosa aos filmes de contos de fada com um amor “Hollywoodiano”. Em uma
análise semiótica, Shrek nada mais é do que o típico “os feios também amam”, tão
comum quanto a narrativa em que está inserida, mas talvez por tudo ser tão obvio,
explícito e batido é onde a ironia está inserida. Ironia essa contra a perfeição e
idealização de histórias, é certo que Shrek possui um final feliz, mas ressalta que ainda
permanecem os defeitos, querendo traduzir que para entrar em conjunção com uma
família e a euforia de /companhia/ não é necessário ser “lindo e maravilhoso”, na
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verdade pode ser normal. Shrek comprova que os feios, mais do que um conto de fadas,
podem ter uma história real, infelizmente isso está representado em um discurso um
tanto trivial e comum, como já foi retratado, por tratar-se de um filme de gênero infantil
e para esse público a narrativa realmente tem que ser bastante explícita. Não cabe a este
artigo discutir se Shrek é ou não um bom filme, mas observar e questionar se ele se
apresenta como algo mais do que uma comédia-romântica.
Se a Dream Works inovou e até criou certa graça com um ogro e uma humanização
bastante complexa, devido tanto pela aparência física, quanto pela personalidade forte,
ela não pôde ir muito longe, pois se trata de um filme infantil e os valores socialmente
aceitos ainda devem ser louvados. Shrek é sim, um filme que quebra certos paradigmas,
ironiza e critica os contos de fadas comuns, o personagem é mais humano, com defeitos
e que cresce psicologicamente ao longo do discurso, a princesa não é linda e o alazão é
um burro, mas mesmo que haja o final feliz, ele vem de forma uma forma bastante
provocativa: “e eles viveram feios para sempre. Fim.” (SHREK, 2001, 1h22m44s).
Partindo, então para a semântica discursiva que termina por dar concretude ao nível
narrativo através de dois processos, o de tematização e o de figurativização onde o
primeiro remete a elementos não observáveis no mundo natural, são os valores abstratos
ali encontrados e organizados em percursos enquanto que o segundo remete a elementos
do mundo natural especifica e particulariza o discurso, interessa os procedimentos para
figurativizar o percurso realizado pelo sujeito. Para Fiorin (1993) entender um discurso
figurativo é preciso, antes de tudo, apreende o discurso temático que subjaz a ele.
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Os processos de figurativização e de tematização estão intrinsecamente ligados, não
há um sem o outro, em Shrek vemos que os autores escolheram como temas e figuras:

Tema: solidão – Figura: Pântano;

Tema: amizade – Figura: Burro;

Tema: alma gêmea – Figura: Fiona;

Tema: companhia – Figura: Pântano repleto de amigos com a presença dos
considerados mais especiais;
Nível da Manifestação
O nível da manifestação trata da união do plano de conteúdo – percurso gerativo – a
um plano de expressão. “Não há conteúdo linguístico sem expressão linguística, pois
um plano de conteúdo precisa ser veiculado por um plano de expressão” (FIORIN,
2005, p. 44) é da conjunção de ambos os planos que resulta um texto. Observa-se que
um mesmo conteúdo pode se manifestar em diferentes tipos de expressões, cada uma
com deus “efeitos estilísticos da expressão e as coerções do material” (FIORIN, 2005,
P. 45), mas o nosso objeto consiste em apenas um plano de expressão, o filme.
Seus efeitos estilísticos são claros, consiste em uma trama expressa através de som
e imagem em movimento – animada ou filmada, “problematizando temáticas variadas
que passam pela posição do espectador em relação à ação narrada” (MORAIS; DIAS,
2011, p. 5), há ainda a presença de personagens e um tempo pré-determinado, sabe-se
que um filme vai acabar e diferente de uma novela – também audiovisual – ele não se
estende por longos períodos. Filme por si só é um plano de expressão culturalmente
difundido e uma mídia muito procurada. Shrek cumpre todos esses efeitos e ainda trata
de ser um filme bastante diferente, como já foi mencionado pela escolha pouco comum
dos personagens e trama “batida”. Este filme ainda faz referência a outro plano de
expressão, o verbal no formato de um livro tradicional de conto de fadas, querendo
induzir o espectador que o enredo do filme ocorre no livro.
Como coerções do material utilizado consideramos o filme como um plano de
expressão pictórico que “tem como característica básica a simultaneidade dos
elementos”, como som e imagem. Nos filmes, a sequencia temporal pode ser alterada,
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mas isso não ocorre em Shrek, não há “fleshsback”, o filme procede em plano linear,
uma cena após outra, sem quebras. O material filme ainda trabalha com cor e
sonoridade, que no filme são retratados da seguinte maneira: a cor, necessária para a
semiótica, já que é responsável por criar um ambiente mais aconchegante ou alegre, é
essencial e muito bem diversificada, vemos tons quentes muito utilizados em produções
infantis nas cenas da floresta e castelo do Duque, tons mais terrosos quando os
personagens se encontram no pântano e tons mais escuros e azulados no castelo em que
a princesa está aprisionada com o dragão, mas, mesmo onde o filme requer mais
seriedade, as cores permanecem brilhantes, mais uma vez devido ao público ao qual se
refere. Com relação aos personagens vê-se que Shrek é verde, caracterizando uma parte
de seu ethos, a princesa, quando ogro também é verde e quando está em forma humana
possui cabelos vermelhos – bem chamativo – e pele clara – tradicional; o Burro aparece
em suas cores normais de tons de cinza que causa um contraste com o fundo mais
quente e com o dragão de tons mais rosados, chamando atenção para si.
Enquanto isso, na abordagem de sonoridade existe outros dois elementos, a voz e a
trilha sonora, esta ultima muito bem explorada e sempre condizente com o cenário e a
cena, se é uma cena mais tensa, a música entra em concordância. Já a voz, a fala, dos
personagens temos que considerar, como Fiorin (2005), que “dois planos de expressão,
tais como duas línguas naturais diferentes, operem com o mesmo material [...], não são
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idênticos, [...] uma língua natural não usa exatamente os mesmo sons que a outra”
(2005, p. 49).
O filme, para esse artigo, foi analisado em sua versão traduzida para o português, e
sabe-se que “a coerção do material, de um lado, leva-nos a verificar que certos sentidos
são mais bem veiculados por um plano de expressão que por outro; de outro, explica a
dificuldade de tradução” (FIORIN, 2005, p. 49), para níveis de análise, não se encontrou
passagem em que a tradução não fosse bem compreendida e os tradutores realmente
conseguem ser condizentes com o momento em que o personagem vive, no caso,
quando Shrek briga com o Burro, suas vozes retratam raiva e mágoa, fazendo o sentido
ser completo e uniforme.
Considerações Gerais
Seguindo a análise do percurso gerativo de sentido, pode-se constatar que o filme
Shrek se utiliza de todos os níveis para fazer uma comédia-romântica com uma
narrativa bastante simples e previsível podendo ser uma forma de ironizar, justamente,
esses contos de fadas onde o mundo é perfeito e tudo termina bem, infelizmente o filme
não pode ser extremamente critico por dirigir-se a um publico infantil.
É evidente a contribuição da análise do discurso neste e em qualquer outro texto,
pois é responsável por desvendar mecanismos implícitos, partindo dos valores no nível
fundamental e recebendo concretude dos demais níveis que são utilizados pelo
enunciador do texto para produzir o sentido desejado no leitor-ouvinte. Dentre os níveis
e suas especificações, semânticas e sintáticas, vale ressaltar o ethos empregado em
Shrek, ponto primordial para a estruturação do filme, pois é ele o responsável pelo
carisma do personagem, com hábitos de ogro e coração de príncipe, Shrek é
humanizado com defeitos e qualidades, que possui seu final feliz e critica a perfeição
alheia. Se os feios também amam, Shrek prova que estes, mais do que um conto de
fadas, podem ter uma história real, mesmo em uma narrativa um tanto trivial e comum.
O discurso do filme estrutura-se de forma coerente, desde o nível fundamental, com
os valores /solidão/ versus /companhia/, com a euforia no último, no nível discursivo,
com a caracterização dos personagens e concretude do abstrato, até o nível da
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manifestação onde as imagens, sonoridade e trilha sonora mantêm o filme no tom leve
de comédia romântica, ou seja, mantêm um mesmo posicionamento do início ao fim. O
discurso encarrega-se de manipular e induzir os personagens e com seus cortes e cenas
dos níveis da manifestação e discursivo, induzindo a plateia a ver o lado bom de Shrek e
sua historia, e chegar ao sentido pretendido pelo enunciador.
Referências Bibliográficas
FIORIN, José. Percurso gerativo de sentido. Elementos da análise do discurso. São Paulo:
Contexto, 2005.
MAINGUENEAU, Dominique. A cena enunciativa. Novas tendências em análise do discurso.
Campinas: Pontes/EDUSC, 1989.
MORAIS, Julierme; DIAS, Rodrigo Francisco. Teoria contemporânea do cinema:
Documentário e narratividade ficcional, a estilística cinematografia em evidência. Fênix –
Revista de história e estudos culturais. Vol.8, nº 2, ano 8, p 1-7, mai/jun/jul/ago. 2011.
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Tão ogro quanto príncipe, uma análise do Percurso