Inhumas, ano 3, n. 14, jul. 2015
ISSN 2316-8102
MAÍRA VAZ VALENTE: ARTE COMO REDAÇÃO
IMAGÉTICA DE UM INTERSTÍCIO SOCIAL
Tales Frey
Principiemos este encontro, esta relação entre autor, leitoras(es), artista
e demais envolvidas(os) pela opção da palavra “interstício” associada ao
trabalho de Maíra Vaz Valente. Tratando-se de uma artista que propõe
vivências/experiências partilhadas através de ações, por meio de performances
relacionais e de todas as estratégias conceituais que visam a reunir pessoas,
coligar realidades, incorporar indivíduas(os), o termo “interstício”, utilizado
como um intercâmbio que se esquiva de um modelo econômico capitalista – tal
qual Karl Marx bem aplicou em suas escritas e Nicolas Bourriaud retomou em
sua obra Estética Relacional 1 –, é indissociável dos encontros promovidos por
essa artista paulistana. Maíra desobedece uma lei amparada pela ganância; as
relações humanas distintas das vigentes no sistema é que são evocadas nas
suas propostas artísticas, as quais não abdicam da relação direta com o público
e, sendo assim, sua arte é espaço de uma intensa sociabilidade, é um completo
lugar dos encontros.
Maíra Vaz Valente, Exercício para Atravessar o Deserto. Performance realizada no Rio de
Janeiro, Brasil. Junho de 2015. Fotografias de Raphael Couto & Tahian Behring
Exercício para Atravessar o Deserto (2015) é só mais um exemplo
concreto das certificações declaradas logo no arranque desse conjunto de
1
Consultar: BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009, p. 16.
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palavras unidas para esmiuçar o que a artista Maíra propõe. Através da escrita,
ela não apenas vincula pessoas (ela e quem quiser participar), mas também
reflete diretamente sobre o elo estabelecido entre dois seres que constituem,
entre si, uma relação de amizade. A regra estabelecida é que um(a) participante
por vez possa se sentar à sua frente para executar a ação que só ocorre quando
há o intercâmbio. Entre os(as) dois(duas) há uma mesa e uma folha de papel
sobre a mesma e, então, com um único lápis, ambos(as) escrevem com as mãos
unidas e de uma só vez a palavra amizade. Há também, nessa ação, um diálogo
sobre a acepção deste vocábulo escolhido para ser timbrado sobre o papel;
portanto, para além do deslizar do grafite sobre uma folha branca, o vazio
daquele objeto é preenchido de sentido e faz analogia direta com a conversa
estabelecida que aciona um sentimento de afeto entre a artista e quem está à
sua frente. Cria-se, assim, uma conexão mais viva entre dois seres que antes
poderiam se relacionar apenas com certa indiferença ou, ainda, poderiam nem
ter sequer um vínculo traçado e, nesse sentido, o título da obra sugere
justamente o caminho repleto de vida que é projetado sobre um possível deserto
que antes separava as duas subjetividades.
A artista, em uma frase escrita na presença da audiência e antes do início
da ação-encontro, que só existe quando há a participação de alguém (um para
um), explica de forma concisa a lógica da sua performance em uma escrita
produzida com o grafite aplicado diretamente sobre a parede:
Hoje, decidi realizar um exercício para atravessar o deserto. Para
tanto, algumas questões são importantes antes desta partida. Faz-se
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necessário compreender, entender, apreender o que é amizade.
A partir de cada uma das relações partilhadas, Maíra formula anotações
acerca de todos os encontros, e isso tudo, junto com as outras composições
elaboradas com lápis e papel, resultam num espaço expositivo em que podemos
observar o acúmulo progressivo de pensamentos e de conversas oriundas dos
encontros.
2
VAZ VALENTE, Maíra. Frase que dá início à performance "Exercício para atravessar o deserto" (2015). O texto conceito
encontra-se disponível em: <http://mairavazvalente.com>. Acessado em: 26 jun. 2015.
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Maíra Vaz Valente, Testamento. Performance realizada em São Paulo, Brasil. Novembro de
2012. Fotografia de Bruno Makia
Maíra Vaz Valente, Testamento. Performance realizada em São Paulo, Brasil. Novembro de
2012. Fotografia de Bruno Makia
Na performance Testamento (2012), a artista divide com o públicoparticipante o seu ponto de vista a respeito de um determinado lugar e expõe,
através de gestos e do olhar, algumas ponderações com relação ao local onde
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todos(as) convivem numa determinada circunstância. Como explica a própria
artista, nessa performance “o público é testemunho, cúmplice e, por fim,
herdeiro”3 da ação, a qual é iniciada com a palavra “testamento” escrita em giz
sobre o chão e finalizada com a data do dia em que a performance acontece.
Maíra Vaz Valente, Relações de Poder. Performance realizada em Curitiba, Brasil. Maio de
2013. Fotografias de Lauro Borges
Nos títulos das criações de Maíra, observamos que a palavra é de suma
importância e é através da combinação de signos da escrita que muitas vezes a
artista ajusta o conceito de cada um dos seus trabalhos. Vemos essa repetição
3
VAZ VALENTE, Maíra. Texto-conceito da obra "Testamento" (2012). O texto encontra-se disponível em:
<http://mairavazvalente.com>. Acessado em: 30 jun. 2015.
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em muitos deles, como, por exemplo, em Relações de Poder (2008-2013), ação
que ocorre segundo instruções advindas da organização de palavras e de
perguntas direcionadas à audiência, sem a qual a performance não acontece. O
desencadeamento desse trabalho é oferecido ao público, o qual pode dar o
direcionamento da ação e, nela, promover a intervenção que lhe for conveniente
a partir da proposta materializada no espaço pela artista. Maíra instrui uma
determinada pessoa a amarrar suas mãos com fios e a ação só chega ao fim
quando o público for capaz de incluir em suas ações a total libertação das mãos
de Maíra Vaz Valente.
Experimentações
para
um
contorno
(2008-2013),
trabalho
de
performance, instrução e fotografia, indica que, através de um programa escrito
ladeado de uma reminiscente imagem, o(a) participante conviva intimamente
com alguém amarrado(a) por uma corda ao seu corpo pelo tempo de vinte e
quatro horas. Embora observemos influências de obras de instrução como as de
Cildo Meireles e de Yoko Ono, Maíra sugere uma ação que sublinha a coesão
existente em suas concepções, tanto pelos elementos apontados, como aqueles
que unem corpos, quanto pelo dispositivo apresentado como obra, que traz a
palavra como essência e, sobretudo, a preocupação com as relações humanas na
arte.
Maíra Vaz Valente, Experimentações para um contorno, 2008-2013
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Observando integralmente a sua trajetória de forma mais analítica,
percebemos, para além da palavra e das possíveis escritas (figurais ou
logocêntricas, expressões estáticas e/ou que sugerem ações), uma aguda
disposição pela utilização do indumento normalmente como alternativa para
coligar pessoas e, com isso, possibilitar o convívio, engendrar alguma
experiência legitimamente partilhada. Dentro dessa premissa, vale destacar
trabalhos como Homólogos (2010), Entre as Formas Dissolvidas do Desejo
(2009-2010), 2:8:1 (versão rosa), 1:1 (versão amarelo), respectivamente de 2010 e
2010-2011, e Tecido Social (2014), nos quais percebemos inclusive referencias
tais com Milcah Bassel, Lygia Clark, Lygia Pape, Franz Erhard Walther e Rebecca
Horn.
Maíra Vaz Valente, Homólogos. Performance realizada em São Paulo, Brasil. Agosto de 2010.
Fotografia de Fabíola Salles Mariano
Maíra Vaz Valente, 1:1 (versão Amarelo). Performance realizada em Porto Alegre, Brasil.
Junho de 2010. Fotografia de SEU/Divulgação
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Maíra Vaz Valente, Entre as Formas Dissolvidas do Desejo. Performance realizada
em São Paulo, Brasil. Março de 2012. Fotografia de Bruno Makia
A performance Tecido Social, diferentemente das que foram citadas
dentro deste grupo substancialmente enquadrado na vestimenta como força
motriz da ação, é uma obra que não necessariamente aborda a veste como
elemento central, pois a performance ocorre com auxílio de duas máquinas de
costura dispostas num determinado espaço e, em uma delas, está a artista a
executar alguns pontos de costura e, em outra, o(a) participante da ação, o(a)
qual apresenta seus conhecimentos para a performer, enquanto pode este(esta)
participante também aprender outras práticas de costura que a artista exercita
ao longo de sua performance. Mas, nomeadamente, é a troca de experiências
que ultrapassa os desempenhos ali executados pelas duas pessoas, o mote
essencial do trabalho e Maíra, que inicialmente nem costurar sabia, acaba por
aprender alguns passos durante a própria ação e torna mestres cada um(a)
dos(as) participantes. O resultado do objeto elaborado é indiferente; pode ser
adorno para o corpo como pode ser utensílio doméstico, pode ser um mero tipo
de ponto de costura como pode também ser uma sofisticada composição de
design sobre um tecido.
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Com o título, habilmente Maíra Vaz Valente faz alusão às divisões de
camadas sociais. Porém, de forma oposta a uma separação rígida, ela contribui,
dentro dessa concepção, para que haja a possibilidade de costurar, em um único
tecido, diferentes contextos, integrando realidades diversificadas, alinhavando,
numa única trama, as diferenças que segregam variados grupos sociais. Essa
ação funciona ainda como uma “construção coletiva dos saberes e das relações
intergeracionais”4.
Maíra Vaz Valente, Tecido social. Performance em São Paulo, Brasil. Abril de 2014. Fotografia
de Tales Frey
Em muitos dos seus trabalhos, notamos ainda a água como um
elemento fundamental para criar uma experiência e fazer com que aconteça
uma determinada ação a ser dividida por um grupo variado de pessoas num
específico âmbito social. Em Escape (I) e Escape (II), ambos realizados em 2014,
assim como Transferência de Valores (2013), voluntários ajudam a artista a
transportar água de um lugar para o outro com auxílio de baldes, de uma fonte
até a outra, de um ponto a um outro estipulado como local de finalização da
tarefa. Em Escape (I), ela recompõe o andamento das águas de um trecho a
4
VAZ VALENTE, Maíra. Texto-conceito da obra "Tecido Social" (2014). Texto gentilmente fornecido pela artista.
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outro de um rio que foi invisibilizado nos processos de escolha de urbanização,
como é o caso da cidade de São Carlos, onde a ação foi realizada.
Nessas criações de Maíra Vaz Valente destacadas acima, há o uso da
água em sua forma fluida, fidedigna e sem desperdícios, além da abordagem
geral que seu trabalho envolve em torno de um estrito sentido social; a água é
também uma moeda de troca, um elemento vital que mobiliza todas(os) por ser
um elemento que é um bem comum para a nossa sobrevivência.
Em outros trabalhos, que também têm a água como elemento de
discussão, a situação é representativa e não real, como no caso da performance
Inundação (2015), onde, em um enorme tecido – o qual pode ser vestido por até
cinco pessoas, além de incorporar outras nas suas bordas –, a artista permite
que a tarefa de bordar a textura seja feita por incontáveis mãos. Nessa
experiência, conversações emergem com leveza em um tempo em que pensar
nas sociedades de forma mais coletiva e menos individualista passa a ser uma
urgência e não mais um estilo de vida decorrente do comportamento que o meio
urbano pontua.
Maíra Vaz Valente, Inundação. Performance realizada em São Paulo e Campinas, Brasil. Março e
Junho de 2015. Fotografias de Bruno Makia
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Sobre Inundação, a artista explica:
Em busca de uma situação de construção coletiva de um texto, uma
poesia em forma de fluxo, proponho criar uma imagem de um rio em
que possa convidar o público a bordar palavras, versos e poemas sobre
uma grande superfície de tecido. No encontro inusitado entre artista e
público, inunda-se o objeto e o espaço de palavras, enquanto tecem
uma reflexão poética acerca dos encontros e dos rios, ambos que já se
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tornaram invisíveis nos grandes centros urbanos.
A conduta ditada como norma a ser seguida nas grandes cidades adestra
a(o) cidadã(o) a adotar um comportamento egocêntrico, hedonista e, assim, faz
com que ela(ele) contraia um horror com relação ao tempo investido em
momentos não tidos como produtivos num sentido financeiro. Logo, os
encontros mais afetuosos são postos à margem numa coletividade que exige
um ritmo frenético e robótico em sua fiel conduta, a qual faz analogia à figura
do(a) operário(a) inserido(a) num sistema fabril. Maíra, de modo perspicaz,
produz uma fissura nessa “ordem” quando leva Movimentos para Atravessar a
Multidão (2006-2009) à avenida Paulista para provocar, sob diferentes formas e
com distintas estratégias, mas sempre desmoronando, com ternura, toda uma
resolução de comportamento edificada como ideal para ocorrer em espaço
público. Movimentos para Atravessar a Multidão é uma série de quatro ações e,
em cada uma, há uma provocação específica em que a artista denuncia o
movimento maquinal da cidade grande. Em Paulistanos, uma das quatro
variações de Movimentos para Atravessar a Multidão, abraços coletivos ocorrem
na travessia de uma faixa de pedestre, respeitando o breve intervalo de tempo
que temos para atravessar essa zona. Em outra ocorrência, designada como
Guarda, em um dia de chuva, com colaboração/participação de outras(os)
artistas, ela expõe um grupo que permanece parado no meio da faixa de
pedestre sem pressa alguma, singelamente concentrados na única ação que têm
a executar com seus guarda-chuvas em tom vermelho padronizado (e não
5
VAZ VALENTE, Maíra. Texto-conceito da obra "Inundação" (2015). O texto encontra-se disponível em:
<http://mairavazvalente.com>. Acessado em: 30 jun. 2015.
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poderia também ser esta uma comprovação metafórica de uma sociedade
homogeneizada além do ato proposto de olhar a cidade?).
Há ainda, com Baile, em que a artista convida uma banda para tocar na
avenida Paulista, uma especial ruptura na seriedade de quem percorre aquele
espaço quando todos dançam na faixa assim que o sinal de pedestre fica verde,
apontando a ausência da ludicidade em uma massa estandardizada e quase
desprovida de leveza em suas árduas rotinas. Outra ação, Espaços de
Contemplação, em que os(as) performers fazem uso de cadeiras dispostas sobre
uma faixa de pedestre, cada um(a) executa as simples ações de sentar e de
observar os fluxos da cidade justamente quando a agitação de carros é
interrompida para os pedestres atravessarem a frenética avenida da maior
cidade do hemisfério sul do planeta.
Movimentos para Atravessar a Multidão não apenas atravessa a massa;
essa ação invade o espaço público. E o termo “público” aqui tem o mesmo
significado que tem para Hannah Arendt; ou seja, ele “significa o próprio mundo,
na medida em que é comum a todos nós e que é completamente diferente do
lugar que nos cabe dentro dele”6.
Assim como outras(os) artistas que investem na arte relacional como
proposta estética, tendo (ou não) como base a teoria elaborada pelo crítico e
curador francês Nicolas Bourriaud, Maíra Vaz Valente tem consciência de que as
relações humanas na arte passam a ser a função-chave da sua obra e, assim,
sua preocupação conceitual não se fixa unicamente em dinamizar a relação
entre o público participante e a obra num espaço direcionado à arte; muitas
vezes é o(a) transeunte desavisado(a) da rua que é acessado(a) nos seus
trabalhos e, nesse sentido, a artista propõe, para além de uma estética
relacional, uma zona de convivência que reajusta, de forma mais humana e
menos segregacionista, toda a forma como percebemos a nossa sociedade em
seu funcionamento demasiadamente entregue à ordem capitalista doentia.
Maíra é uma artista utópica no melhor sentido que isso pode ter e investe
6
ARENDT, Hannah. “A Esfera Pública: o Comum”. In: A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2007, p. 77.
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delicadamente na construção de novas formas de existência sem ignorar a
realidade que nos cerca.
***
TALES FREY: Os seus trabalhos todos possuem títulos extremamente
significativos. A palavra ocupa um lugar privilegiado nas suas criações e a
“escrita final” da ação, seja através de letras efetivamente, de objetos ou de
algum tipo de indumento, ela é sempre feita de forma coletiva e, apesar de
haver um conceito previamente elaborado por você, a composição que define
isto que eu opto por chamar de “escrita final” do seu trabalho é sempre um
arranjo coletivo; há sempre um(a) participante que intervém de forma viva no
que você propõe. Quando você cria um trabalho, naturalmente você elabora uma
estratégia firme sem ser intransigente, mas o cuidado para que a “caligrafia”
não escape da margem parece existir. Como você observa o seu próprio trabalho
nesse sentido?
MAÍRA VAZ VALENTE: A pergunta que me faz contém uma série de
camadas sobre o meu processo que se revela em diversos trabalhos. Às vezes
parece difícil explicar tudo que me ocorre em pensamento e descoberta sobre o
mundo, daí proponho minhas ações.
Mas, no horizonte desta pergunta, inicio com um comentário que pode
ajudar a gente a entender o que está inscrito nesta jornada. Fica cada vez mais
clara minha necessidade e busca pelo outro, porque tenho para mim algumas
questões do mundo que me inquietam:
O que é possível acontecer nas relações de proximidade?
O que pode acontecer quando um indivíduo está ao lado do outro?
Daí outras perguntas surgem:
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O que dispara/mobiliza o engajamento nas pessoas para a realização de
uma ação?
Como é possível então engajar o outro nalguma coisa que me move,
numa experiência que acredito ser importante?
Como é possível construir o comum, é possível?
Então, as palavras me perseguem e eu as persigo numa tentativa de
depurar cada vez mais seus sentidos. Talvez porque tenho o desejo ou a
necessidade de compreender ou desvelar conceitos que determinam ou
configuram as conformações sociais e contemporâneas da cultura, na qual estou
inserida. Não sou cientista social, e nem opero dessa forma no meu trabalho de
arte como anunciaria Hall Foster, quando uma série de artistas trabalharam e
ainda trabalham na chave da etnografia. Minha proposta é experimentar num
sentido sem definições, na chave do convite e do encontro, ou por provocações
como na ação performática. As palavras e conceitos que me são mais caros são
Amizade, Comum e Bem Comum, Público e Espaço Público e Política. Vejo que
cada uma dessas palavras, em diversos arranjos, nem sempre todas juntas,
estão contidas em alguma medida nas minhas proposições. Mas asseguro que
há desvios necessários e que acabam por tocar tais questão que me inquietam
de outra maneira. Por exemplo, os recentes trabalhos realizados na proposta de
autorresidência na NUVEM, em Visconde de Mauá – Conversas de Rio (2014) e
Histórias de Rio (2015) –, ou ainda em trabalhos antigos em fotografia –
TimeLife e The Most Beautiful Love Shape, ambos de 2011 –, o sujeito está em
relação à paisagem geográfica ou íntima. Mas é no olhar para a condição
humana que resgato as palavras que me acompanham.
Portanto a palavra, como bem aponta, é uma estratégia de sublinhar
aquilo que é importante no desenho dos meus questionamentos. Talvez por
uma facilidade na comunicação oral, a palavra tomou espaço importante nessa
relação. A palavra no processo de trabalho tem se revelado como um agente de
prenúncio ou de registro. Poderia então afirmar que a palavra se tornou, ao
longo desses anos, um elemento operativo. E daí é quase sempre no título que
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encontro um espaço potente e apropriado para enunciar a questão abordada na
proposta, e funcionam para além do que faz um nome.
Agora, se a palavra ocupa um lugar privilegiado, não sei; talvez participe
da mesma hierarquia de todos os outros elementos da ação. Penso que se fosse
assim, poderia ser um impeditivo do espectador, participador ou testemunho
para acessar a proposição. Ou seja, o título se tornaria uma bula em um dos
casos. E a construção da palavra, em outros, seria o objetivo final da ação. O que
é fundamental é o encontro, ainda que seja num olhar silencioso, numa
interação não esperada.
Voltemos à importância do título, por exemplo, quando uma
performance está inscrita dentro de um programa de uma mostra. A palavra ali
pode já disparar um processo de leitura e imaginação. Ou quando acessamos um
registro após a ação, o título pode ser uma frase dentro do texto que cria
paralelismos, conjugando realização e proposição.
Mas não nego que em algumas ações a palavra organiza o sentido da
ação, e quando isso é necessário acontecer, escrever como uma convocação e
ação contida da performance, faço. Em Testamento (2012), por exemplo, a
palavra tem uma função evocativa. Em outras ações, sua força ou importância
no decorrer da ação às vezes desaparece. E daí, o que acontece na proposta de
Inundação (2015)? Pra que eu peço palavras? Não, eu não peço apenas palavras,
peço também poesia, versos e também desenhos. A palavra se torna meio de
alcançar uma conversa, ou um silêncio, ou uma investida no fazer que se dá no
bordado.
A ação e a relação é a tônica de todo acontecimento que proponho. A
palavra se torna ponto de contato, pele ou dobra de uma proposta. Essa pele se
transmuta, esse estar próximo pode ser, como nos processos do Fluxus, uma
instrução para estar junto. Muitas das roupas que construí têm essa tônica: uma
provocação de como estamos um implicado com o outro. Mas, de que forma? É
somente na fisicalidade, na ocupação dos espaços que estamos implicados? Ou
a vivência conjunta tem suas implicações também na distância física? E aqui
amplio para as problemáticas da convivência entre povos e nas implicações
ambientais.
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Da “caligrafia” que você me aponta, vejo que, ao longo desse tempo de
produção (desde 2004), à cada proposta as estratégias de convocação para o
encontro transformam minhas perguntas, traz outras respostas, pontos de
vistas, e até mesmo novas perguntas. Parece que nesses encontros há uma real
possibilidade de reinauguração de espaço-situação da antiga Ágora. Ou seja, o
reencontro com o diálogo entre sujeitos, que os faz agentes e políticos no
mundo. Ora, se é a Ágora o desenho das minhas propostas, não posso fechá-la.
É preciso sempre que eu corra o risco de ser engolida, comida pelos leões,
transmutada em personagens, que ocorra uma troca de máscaras, porque é
nesse espaço do diálogo que os rumos da vida e as decisões de como estar no
mundo se configuram. Mas faço isso na Ágora da Arte, se é que podemos assim
separar.
A relação direta com espectadores avisados ou não, no caso de uma
intervenção em espaços abertos e/ou público, a convocação, é um pedido por
posicionamento. Ou mesmo num olhar mais distanciado, quando, por exemplo,
na instrução “Experimentação para um contorno” (2008-2013), vejo um
acontecimento para o COLETIVO, que, entretanto, ainda que lide com questões
do COMUM, é organizada na chave do COLABORATIVO para descobrirmos as
saídas.
E, por fim, penso que quando apresento a um público as minhas
inquietações, às vezes inacabadas, fora de uma lógica esperada, em que este (o
outro) pode estar, compartilhar, colaborar e construir junto, o desejo acontece,
mas o inesperado também. E se esse outro se engaja na proposição, vejo como
consequência da necessidade de se realizar tal ação no momento da proposta. E
se tenho assim uma “escritura final” de um programa de ação a seguir e uma
questão para o mundo, quando novamente o outro corresponde, não é pela
relação de condescendência que a performance/intervenção poética acontece,
mas talvez seja por uma resistência, uma pulsão de vida compartilhada daquele
instante.
Mas talvez tudo isso seja suposição e aposta. Quem sabe daqui a pouco
esse processo performático de construir uma posição no mundo pode mudar de
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direção completamente. O diálogo, o encontro e a amizade são fundamentais
para tanto.
PARA CITAR ESTE TEXTO
FREY, Tales. “Maíra Vaz Valente: Arte como Redação Imagética de um
Interstício Social”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 14, jul. 2015.
ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2015 eRevista Performatus e o autor
performatus.net
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