Boaventura de Sousa Santos
23 de Junho 2015
O Contra-senso Comum
Em 1926, o poeta irlandês W.B. Yeats lamentava: "Falta convicção
aos melhores enquanto os piores estão cheios de apaixonada intensidade".
Esta afirmação é mais verdadeira hoje que então. Admitamos por hipótese
que os melhores no plano pessoal, moral, social e político são a maioria da
população e que os piores são uma minoria. Como vivemos em
democracia, não nos devia preocupar o facto de os piores estarem cheios de
convicções que, precisamente por serem adotadas pelos piores, tenderão a
ser perigosas ou prejudiciais para o bem-estar da sociedade. Afinal, em
democracia são as maiorias quem governa. A verdade é que hoje se vai
generalizando a ideia de que as convicções que dominam na sociedade são
as apaixonadamente subscritas pelos piores, e que isso é a causa ou a
consequência de serem os piores quem governa. A conclusão de que a
democracia está sequestrada por minorias poderosas parece inescapável.
Mas se aos melhores falta convicção, provavelmente também eles não estão
convictos de que esta conclusão seja verdadeira, e por isso ser-lhes-á difícil
mobilizarem-se contra tal sequestro da democracia. Torna-se, pois, urgente
averiguar donde vem no nosso tempo a falta de convicção dos melhores.
A falta de convicção é a manifestação superficial de um mal-estar
difuso e profundo. Decorre da suspeita de que o que se difunde como
verdadeiro, evidente, e sem alternativa, de facto, não o é. Dada a
intensidade da difusão, torna-se quase impossível ao cidadão comum
confirmar a suspeita e, na ausência de confirmação, os melhores ficam
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paralisados na dúvida honesta. A força desta dúvida manifesta-se como
aparente falta de convicção. Para confirmar a suspeita teria o cidadão
comum de recorrer a conhecimentos a que não tem acesso e que não vê
divulgados na opinião publicada, porque também esta está ao serviço dos
piores. Vejamos algumas das convicções que se vão tornando senso comum
e que, por serem ilusórias e absurdas, constituem o novo contra-senso
comum:
A desigualdade social é o outro lado da autonomia individual. Pelo
contrário, para além de certos limites a desigualdade social permite aos que
estão nos escalões mais altos alterar as regras de jogo de modo a controlar
as opções de vida dos que estão nos escalões mais baixos. Só é autónomo
quem tem condições para o ser. Para o desempregado sem subsídio de
desemprego, o pensionista empobrecido, o trabalhador precário, o jovem
obrigado a emigrar, a autonomia é um insulto cruel.
O Estado é por natureza mau administrador. Muitos Estados
(europeus, por exemplo) dos últimos cinquenta anos provam o contrário. Se
o Estado fosse por natureza mau administrador não seria tantas vezes
chamado a resolver as crises económicas e financeiras provocadas pela má
gestão privada da economia e da sociedade. O Estado é considerado mau
administrador sempre que pretende administrar sectores da vida social onde
o capital vê oportunidades de lucro. O Estado só é verdadeiramente mau
administrador quando os que o controlam conseguem impunemente pô-lo
ao serviço dos seus interesses particulares por via do fanatismo ideológico,
da corrupção e do abuso de poder.
As privatizações permitem eficiência que se traduz em vantagens
para os consumidores. As privatizações podem ou não gerar eficiência,
sendo sempre de questionar o que se entende por eficiência, que relação
deve ter com outros valores e a quem serve. As privatizações dos serviços
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públicos quase sempre se traduzem em aumentos de tarifas, seja dos
transportes, da água ou da eletricidade. As privatizações de serviços
essenciais (saúde, educação, previdência social) traduzem-se na exclusão
social dos cidadãos que não podem pagar os serviços. Se o privado fosse
mais eficiente, as parcerias público-privadas ter-se-iam traduzido em
ganhos para o interesse público, o contrário do que tem acontecido. O
ludíbrio da proclamada excelência do sector privado em comparação com o
sector público atinge o paroxismo quando uma empresa do sector público
de um dado Estado é vendida a uma entidade pública de um outro Estado,
como aconteceu recentemente em Portugal no sector da eletricidade,
vendido a uma empresa pública chinesa, ou quando a aquisição de um bem
público estratégico por um investidor de um país estrangeiro pode ser
financiada por um banco estatal desse país, como acontece no caso da
venda em curso da companhia aérea, TAP, com o possível financiamento
da compra do investidor brasileiro por parte do banco estatal brasileiro
BNDES.
A liberalização do comércio permite criar riqueza, aumentar o
emprego e beneficiar os consumidores. Tal como tem vindo a ser
negociada, a liberalização do comércio concentra a riqueza que cria
(quando cria) numa pequeníssima minoria enquanto os trabalhadores
perdem emprego, sobretudo o emprego decentemente remunerado e com
direitos sociais. Nas grandes empresas norte-americanas que promovem a
liberalização os diretores executivos, CEOs, ganham 300 vezes o salário
medio dos trabalhadores da empresa. Por outro lado, as leis nacionais que
protegem consumidores, saúde pública e meio ambiente serão consideradas
obstáculos ao comércio e, nessa base, postas em causa e provavelmente
eliminadas. Estão em curso três grandes tratados de livre comércio: a
Parceria Trans-Pacífico (TPP, na sigla em inglês), Acordo de Comércio de
Serviços (TiSA), Pareceria Trans-Atlântica de Comércio e Investimento
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(TTIP). Pelas razões acima, cresce nos EUA (e na Europa, no caso do
TTIP) a oposição a estes tratados.
A distinção entre esquerda e direita já não faz sentido porque os
imperativos globais da governação são incontornáveis e porque a
alternativa a eles é o caos social. Enquanto houver desigualdade injusta e
discriminação social (e uma e outra têm vindo a aumentar nas últimas
décadas), a distinção faz todo o sentido. Quando se diz que a distinção não
faz sentido só a existência da esquerda é posta em causa, nunca a da direita.
Sectores importantes da esquerda (partidos socialistas) caíram na armadilha
deste contra-senso comum, e é urgente que se libertem dela. Os
"imperativos globais" só não permitem alternativas até serem obrigados a
isso pela resistência organizada dos cidadãos.
A política de austeridade visa sanear a economia, diminuir a
dívida e pôr o país a crescer. Nos últimos trinta anos, nenhum país sujeito
ao ajustamento estrutural conseguiu tais objetivos. Os resgates têm sido
feitos no exclusivo interesse dos credores, muitos deles especuladores sem
escrúpulos. É por isso que os ministros que aplicam "com êxito" as
políticas de austeridade são frequentemente contratados pelos grandes
agentes financeiros e pelas instituições ao seu serviço (FMI e Banco
Mundial) quando abandonam as funções de governo.
Portugal é um caso de sucesso; não é a Grécia. Este é o maior
insulto aos melhores (a grande maioria dos portugueses). Basta ler os
relatórios do FMI para saber o que está reservado a Portugal depois de a
Grécia ser saqueada. Mais cortes nas pensões, mais redução de salários e
mais precarização do emprego serão exigidos e nunca serão suficientes. Os
"cofres cheios" apregoados pelo atual governo conservador português são
para esvaziar ao primeiro espirro especulativo.
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Portugal é um país desenvolvido. Não é verdade. Portugal é um país
de desenvolvimento intermédio no sistema mundial, uma condição que
dura há séculos. Foi essa condição que fez com que Portugal fosse
simultaneamente o centro de um vasto império e uma colónia informal da
Inglaterra. Devido à mesma condição, as colónias e ex-colónias têm por
vezes desempenhado um papel decisivo no resgate da metrópole. Tal como
o Brasil resgatou a independência portuguesa no tempo das invasões
napoleónicas, o investimento de uma ex-colónia (Angola) vai hoje tomando
conta de sectores estratégicos da economia da ex-metrópole. Nos últimos
trinta anos, a integração na UE criou a ilusão de que Portugal (e a Espanha
e a Grécia) podia ultrapassar essa condição semi-periférica. O modo como
a atual crise financeira e económica está a ser “resolvida” mostra que a
ilusão se desfez. Portugal está ser tratado como um país que se deve
resignar à sua condição subalterna. Os portugueses devem contribuir para o
bem-estar dos turistas do Norte, mas devem contentar-se com o mal-estar
do trabalho sem direitos, da crescente desigualdade social, das pensões
públicas desvalorizadas e sujeitas a constante incerteza, e da educação e
saúde públicas reduzidas à condição de programas pobres para pobres. O
objetivo principal da intervenção da troika foi o de baixar o patamar de
proteção social para criar as condições para um novo ciclo de acumulação
de capital mais rentável, ou seja, um ciclo em que os trabalhadores
ganharão menos que antes e os grandes empresários (não os pequenos)
ganharão mais que antes.
A democracia é o governo das maiorias. Esse é o ideal mas na
prática quase nunca foi assim. Primeiro, impediu-se que a maioria tivesse
direito de voto (restrições ao sufrágio). Depois, procurou-se por vários
mecanismos que a maioria não votasse (restrições fácticas ao exercício do
voto: voto em dia de trabalho, intimidação para não votar, custos dos
transportes para exercer direito de voto, etc.) ou votasse contra os seus
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interesses (propaganda enganosa, manipulação mediática, indução de medo
face às consequências do voto, sondagens enviesadas, compra de votos,
interferência externa). Nos últimos trinta anos, o poder do dinheiro passou
a condicionar decisivamente o processo democrático, nomeadamente
através do financiamento dos partidos e da corrupção endémica. Nalguns
países a democracia tem vindo a ser sequestrada por plutocratas e
cleptocratas. O caso paradigmático são os EUA. E alguém pode afirmar de
boa fé que o atual congresso brasileiro representa os interesses da maioria
dos brasileiros?
A Europa é o continente da paz, da democracia e da
solidariedade. Nos últimos cento e cinquenta anos, a Europa foi o
continente mais violento e aquele em que os conflitos causaram mais
mortes: duas guerras mundiais, ambas causadas pela prepotência alemã, o
holocausto, e os genocídios e massacres cometidos nas colónias de África e
da Ásia. O preconceito colonial com que a Europa continua a olhar o
mundo não europeu (incluindo as outras Europas dentro da Europa) torna
impossíveis os diálogos verdadeiramente interculturais, esses sim,
geradores de paz, democracia e solidariedade. Os valores europeus do
cristianismo, da democracia e da solidariedade são em teoria generosos
(mesmo se etnocêntricos), mas têm sido frequentemente usados para
justificar agressões imperialistas, xenofobia, racismo e islamofobia. O
modo como a crise financeira da Europa do Sul tem sido "resolvida", o
vasto cemitério líquido em que se transformou o Mediterrâneo, o
crescimento da extrema-direita em vários países da Europa são o
desmentido dos valores europeus. Na Europa, como no mundo em geral, a
paz, a democracia e a solidariedade, quando são apenas um discurso de
valores, visam ocultar as realidades que os contradizem. Para serem
vivências e formas de sociabilidade e de política concretas têm de ser
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conquistadas por via de lutas sociais contra os inimigos da paz, da
democracia e da solidariedade.
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