SENSO COMUM Dirigido aos habitantes da América Man knows no Master save creating HEAVEN, Or those whom Choice and common Good ordain.* THOMSON** 14 de fevereiro de 1776 INTRODUÇÃO TALVEZ OS SENTIMENTOS contidos nas páginas seguintes ainda não estejam suficientemente em voga para obter aprovação geral; um hábito antigo de não conceber algo como errado lhe confere uma aparência de certo, e de início faz surgir um formidável brado em defesa do costume. Mas o tumulto logo passa. O tempo produz mais conversões que a razão. Como um longo e violento abuso de poder é geralmente o meio de pôr o direito de tal poder em dúvida (e também em questões que poderiam jamais ser consideradas, se os pacientes não tivessem sido envolvidos na polêmica), e tendo o rei da Inglaterra se comprometido, por seu próprio Direito, a apoiar o Parlamento no que chama de direito Dele, e tendo o bom povo deste país sido gravemente oprimido por tal agrupamento, tem este o privilégio indubitável de questionar a pretensão de ambos e de igualmente rejeitar a usurpação de cada um. Nas próximas páginas, o autor evitou cuidadosamente qualquer coisa que seja pessoal entre nós. Delas não fazem * [O Homem não reconhece outro Senhor salvo a criação do PARAÍSO, / Ou aqueles a quem a Escolha e o Bem comum dão ordens.] (N.T.) ** James Thomson, Liberty: A Poem (1736), parte IV, linhas 636-37. (Nota do editor americano, The Library of America.) 9 parte elogios nem censuras a indivíduos. Os sábios e os dignos não necessitam do triunfo de um panfleto, e aqueles cujos sentimentos são insensatos ou hostis não se deterão a menos que demasiados esforços sejam destinados à sua conversão. A causa da América é, em grande medida, a causa de toda a humanidade. Surgiram, e ainda surgirão, muitas circunstâncias que não são locais, mas universais, através das quais são afetados os princípios de todos os defensores da humanidade, e em cujas ocorrências suas afeições são implicadas. Que se desole um país com Fogo e Espada, declarando guerra aos direitos naturais de toda a Humanidade, extirpando seus defensores da face da Terra, é objeto de atenção de todo Homem a quem a Natureza deu o poder da sensibilidade; a esta classe, apesar da censura partidária, pertence o AUTOR P.S.: A publicação desta nova edição foi adiada para levar em conta (se fosse necessário) qualquer tentativa de refutação da doutrina da independência. Nenhuma resposta apareceu até agora, e suponho que nenhuma aparecerá, pois já se esgotou o tempo necessário para que tal ato viesse a público. Para o público, é totalmente desnecessário saber quem é o autor desta obra, pois seu objeto de estudo é a Doutrina, e não o Homem. Contudo, talvez não seja desnecessário dizer que ele não está ligado a qualquer partido ou sob qualquer influência pública ou privada, mas apenas sob a influência da razão e dos princípios. Filadélfia, 14 de fevereiro de 1776. 10 DA ORIGEM E PROPÓSITO DO GOVERNO EM GERAL, COM OBSERVAÇÕES CONCISAS SOBRE A CONSTITUIÇÃO INGLESA ALGUNS ESCRITORES CONFUNDIRAM de tal forma a sociedade com o governo que fizeram, entre os dois, pouca ou nenhuma distinção; eles não são, entretanto, apenas diferentes, mas também possuem origens diferentes. A sociedade é produzida por nossas necessidades; o governo, por nossa maldade; a primeira promove a nossa felicidade positivamente, unindo nossas afeições; o último o faz negativamente, limitando nossos maus hábitos. Uma encoraja a inter-relação, o outro cria distinções. A primeira é uma patrona; o segundo, um punidor. A sociedade é, em qualquer estado, uma benção, mas o governo, mesmo em seu melhor estado, é apenas um mal necessário. No seu pior estado, é um mal intolerável, pois quando sofremos ou ficamos expostos, por causa de um governo, às mesmas desgraças que poderíamos esperar em um país sem governo, nossa calamidade pesa ainda mais ao considerarmos que somos nós que fornecemos os meios pelos quais sofremos. O governo, como uma vestimenta, é o emblema da inocência perdida; os palácios dos reis são construídos sobre as ruínas das moradas do paraíso. Se os impulsos da consciência fossem obedecidos de forma clara, uniforme e irresistível, ninguém necessitaria de outro legislador. Como não é esse o caso, os homens consideram necessário ceder uma parte de sua propriedade a fim de fornecer meios para a proteção do restante. A isso são levados pela mesma prudência que os aconselha, em qualquer outro caso, a escolher, dentre dois males, o menor. Conseqüentemente, sendo a segurança o verdadeiro propósito e finalidade do governo, segue-se irrefutavelmente que qualquer que seja a forma de governo que, com maior probabilidade, nos garantirá a segurança, com os menores custos e os maiores benefícios, ela será preferível a todas as demais. Para termos uma idéia clara e justa do propósito e da finalidade do governo, imaginemos um pequeno grupo de pessoas estabelecidas em uma parte isolada qualquer da Terra 11 – sem ligação com o restante dos homens – que representará o primeiro povoamento de um país ou do mundo. Nesse estado de liberdade natural, a sociedade será sua primeira preocupação. Mil razões estimulam o grupo a considerá-la como tal: a força de um homem é tão desproporcional às suas necessidades, e sua mente é tão pouco preparada para o isolamento, que ele rapidamente se verá obrigado a buscar ajuda e auxílio de outros, os quais, por sua vez, buscarão o mesmo. Quatro ou cinco, unidos, seriam capazes de construir uma morada aceitável em meio a uma paisagem agreste, enquanto um homem poderia trabalhar toda uma vida normal sem conseguir realizar nada; derrubada a árvore, poderia não conseguir remover a madeira ou erguê-la depois de removida; enquanto isso, a fome o afastaria de seu trabalho, assim como cada uma de suas diferentes necessidades o moveria em diferentes direções. A doença e até mesmo o infortúnio significariam a morte, pois, embora nenhum seja mortal, o incapacitariam para a vida e o reduziriam ao estado de definhamento. Assim, a necessidade, como uma força gravitacional, em breve agruparia os imigrantes recém-chegados em uma sociedade cujos benefícios recíprocos a substituiriam e tornariam as obrigações da lei e do governo desnecessárias enquanto eles se mantivessem perfeitamente justos uns com os outros. Contudo, como nada além do Céu é impenetrável ao vício, à medida que vencessem as primeiras dificuldades da imigração, que os uniu por uma causa comum, eles inevitavelmente começariam a relaxar os deveres e ligações de cada um com os demais. Tal desleixo indicaria a necessidade de estabelecer alguma forma de governo para remediar a deficiência de virtude moral. Uma árvore apropriada lhes proveria a sede do Parlamento, sob cujos ramos toda a colônia poderia reunir-se em assembléia para deliberar sobre questões públicas. É muito provável que as suas primeiras leis fossem intituladas apenas REGULAMENTOS, aos quais somente a pena do desprezo público os forçaria a obedecer. Nesse primeiro Parlamento, todos os homens, por direito natural, teriam assento. 12 Contudo, à medida que a colônia fosse crescendo, cresceriam igualmente os problemas públicos, e a distância que pudesse separar os membros tornaria bastante inconveniente que se reunissem todos em todas as ocasiões tal como no início, quando eram em pequeno número, suas casas eram próximas e os problemas públicos eram poucos e insignificantes. Isso indicaria a conveniência de consentirem em deixar que a parte legislativa fosse dirigida por um grupo seleto escolhido dentre todos os membros, grupo cujos interesses em jogo supostamente seriam os mesmos daqueles que o nomearam e que agiria da mesma maneira que agiriam todos os membros, caso estivessem todos presentes. Se a colônia continuasse a crescer, seria necessário aumentar o número dos representantes; chegando-se à conclusão de que, para que se pudesse atender o interesse de todas as partes da colônia, seria melhor dividir o todo em partes convenientes, com cada parte enviando o seu número apropriado de representantes. E para que os eleitos nunca pudessem moldar para si mesmos algum interesse independente dos eleitores, a prudência mostraria a adequação de eleições freqüentes, pois, podendo os eleitos, por tal meio, retornar e misturar-se, em poucos meses, ao corpo geral dos eleitores, a sua fidelidade à vontade pública ficaria assegurada pela prudente consideração de não prejudicarem a si próprios. E como essa alternância constante estabeleceria um interesse comum a todas as partes da comunidade, os membros se apoiariam mútua e naturalmente. Disso depende (e não do inexpressivo nome de rei) a força do governo e a felicidade dos governados. Eis, então, a origem e o princípio do governo: um meio que se faz necessário devido à incapacidade da virtude moral para governar o mundo. Eis também o propósito e a finalidade do governo: a liberdade e a segurança. E, embora nossos olhos possam deslumbrar-se com algum espetáculo, e nossos ouvidos iludir-se com algum som, e por mais que o preconceito possa deformar a nossa vontade ou o interesse obscurecer a nossa compreensão, a simples voz da natureza e da razão dirá que isso é correto. 13 Infiro a minha idéia da forma de governo de um princípio natural que nenhum ardil pode aniquilar, a saber, quanto mais simples algo é, tanto menos sujeito à desordem, e, quando desordenado, tanto mais fácil será repará-lo. Com essa máxima em vista, ofereço algumas considerações sobre a tão alardeada Constituição da Inglaterra. Admitamos que ela tenha sido nobre para os tempos sombrios e de escravidão em que foi erigida. Quando o mundo estava assolado pela tirania, o menor distanciamento de tal tirania já significava uma gloriosa salvação. Mas se demonstra facilmente que a Constituição é imperfeita, está sujeita a convulsões e é incapaz de produzir o que parece prometer. Os governos absolutos (embora sejam a vergonha da natureza humana) possuem a vantagem de serem simples: se o povo sofre, sabe de onde vem o seu sofrimento, sabe também qual o remédio e não se desnorteia com a diversidade de causas e curas. Mas a Constituição da Inglaterra é tão excessivamente complexa que a nação pode sofrer durante anos sem conseguir descobrir em que parte reside o defeito; alguns o identificarão em uma; outros, em alguma outra, e cada médico político recomendará um remédio diferente. Sei que é difícil superar os preconceitos locais ou antigos mas, se nos dermos ao trabalho de examinar as partes da Constituição inglesa, veremos que elas são sobras abjetas de duas antigas tiranias, acrescidas de algumas novas substâncias republicanas. Primeira: As sobras da tirania monárquica, na pessoa do rei. Segunda: As sobras da tirania aristocrática, nas pessoas dos nobres. Terceira: As novas substâncias republicanas, nas pessoas dos Comuns, de cuja virtude depende a liberdade da Inglaterra. As duas primeiras, sendo hereditárias, são independentes do povo; assim, em um sentido constitucional, em nada contribuem para a liberdade do Estado. É ridículo dizer que a Constituição da Inglaterra é uma união de três poderes que se controlam reciprocamente: ou 14 essas palavras não têm significado, ou não passam de meras contradições. Dizer que os Comuns constituem um controle sobre o rei pressupõe duas coisas: Primeira: Que o rei não é confiável sem ser vigiado, ou, em outras palavras, que a sede pelo poder absoluto é a doença natural da monarquia. Segunda: Que os Comuns, por terem sido nomeados para aquele propósito, ou são mais sábios ou são mais dignos de confiança do que a Coroa. Porém, como a mesma Constituição que dá aos Comuns o poder de controlar o rei, negando-lhe os suprimentos, dá posteriormente ao rei o poder de controlar os Comuns, permitindo-lhe rejeitar seus outros projetos de lei, ela novamente supõe ser o rei mais sábio do que os que já supôs serem mais sábios do que ele. Puro absurdo! Há algo de muito ridículo na composição da monarquia; primeiro ela exclui um homem dos meios de informação, mas lhe permite agir em casos que requerem capacidade superior de julgamento. A posição de um rei o aparta do mundo; no entanto, a atividade de um rei exige que ele conheça perfeitamente o mundo. Com isso, as diferentes partes, opondo-se de forma antinatural e destruindo uma à outra, provam que essa figura é absurda e inútil. Alguns escritores têm explicado a Constituição inglesa desta forma: o rei, dizem, é uma coisa; o povo, outra; os nobres formam uma Casa em representação do rei; os Comuns, em representação do povo; mas isso tem todas as qualidades distintivas de uma Casa dividida contra si própria. E, ainda que as expressões sejam agradavelmente ordenadas, ao serem examinadas mostram-se inúteis e ambíguas. Sempre ocorrerá que a mais precisa construção de que são capazes as palavras, quando aplicada à descrição de alguma coisa que não possa existir ou ser demasiadamente incompreensível para caber na extensão da descrição, conterá apenas sons. Aquelas palavras, embora possam entreter o ouvido, não conseguem instruir a mente, pois aquela explicação implica uma questão anterior: como o rei obteve um poder no qual o povo receia confiar e que sempre se vê obrigado a con15 trolar? Tal poder não pode ser a dádiva de um povo sábio, e nenhum poder que necessite ser controlado pode vir de Deus; no entanto, a disposição estabelecida na Constituição supõe que tal poder exista. Contudo, a disposição é desproporcional à tarefa; os meios não podem realizar ou não realizarão o fim, e a questão toda é um suicídio, pois, tal como o peso maior sempre fará subir o menor, e todas as rodas de uma máquina são postas em movimento por apenas uma, resta apenas saber qual poder na Constituição tem o maior peso, porque este irá governar. Embora os outros poderes, ou parte deles, possam frear ou, como se costuma dizer, controlar a rapidez do seu movimento, enquanto não conseguirem pará-lo, suas tentativas serão ineficazes. A primeira força motriz por fim conseguirá o que quer, e o tempo lhe suprirá a velocidade desejada. Não é necessário mencionar que a Coroa é a parte dominante da Constituição inglesa, e é auto-evidente que ela deriva toda a sua importância apenas do fato de ser a doadora de cargos e pensões, razão pela qual, ainda que tenhamos sido suficientemente sensatos para fechar e trancar a porta à monarquia absoluta, ao mesmo tempo fomos suficientemente tolos para deixarmos a chave em poder da Coroa. O preconceito dos ingleses a favor do seu próprio governo de Rei, Lordes e Comuns nasce mais do orgulho nacional do que da razão. Indubitavelmente, os indivíduos têm mais segurança na Grã-Bretanha do que em alguns outros países, mas a vontade do rei é, na Inglaterra, tal como na França, a lei da terra, com a diferença de que, em vez de proceder diretamente da boca do rei, é passada ao povo sob a forma mais terrível de uma lei do Parlamento. O destino de Carlos I tornou os reis apenas mais sutis, não mais justos. Assim, deixando de lado todo o orgulho e preconceito nacionais a favor de hábitos e padrões, a verdade evidente é que o fato de a Coroa da Inglaterra não ser tão opressora como a da Turquia se deve inteiramente à Constituição do povo, e não à Constituição do governo. Faz-se altamente necessária uma investigação dos erros constitucionais na forma inglesa de governo porque, assim como nunca estaremos em boas condições para fazer 16 justiça a outros se continuarmos sob a influência de alguma destacada parcialidade, tampouco poderemos fazê-la a nós mesmos se permanecermos acorrentados por algum preconceito persistente. E assim como um homem apegado a uma prostituta não reunirá condições para escolher ou julgar uma esposa, qualquer predisposição a favor de uma constituição corrompida nos incapacitará a reconhecer uma que seja boa. DA MONARQUIA E DA SUCESSÃO HEREDITÁRIA SENDO OS HOMENS originariamente iguais na ordem da criação, a igualdade só pôde ser destruída por alguma circunstância posterior. As distinções entre ricos e pobres podem, em grande medida, ser assim explicadas, sem termos de recorrer aos nomes ásperos e malsonantes de opressão e avareza. Com freqüência, a opressão é a conseqüência, mas, raramente ou nunca, o meio da riqueza. E a avareza, ainda que possa proteger um homem da pobreza indigente, geralmente o torna medroso demais para conseguir ser rico. Há, porém, outra distinção ainda maior, à qual não se pode atribuir nenhuma razão verdadeiramente natural ou religiosa: entre REIS e SÚDITOS. Macho e fêmea são as distinções da natureza; bom e mau, as distinções do Céu. Contudo, vale a pena indagar como uma linhagem de homens veio ao mundo em uma posição tão acima dos outros, distinta como uma nova espécie, e se significa, para a humanidade, um meio para a felicidade ou para a desgraça. Nos primórdios do mundo, de acordo com a cronologia das Escrituras, não existiam reis. Como conseqüência, não havia guerras. Foi o orgulho dos reis que lançou a humanidade à confusão. A Holanda, sem um rei, gozou de mais paz neste último século do que qualquer um dos governos monárquicos da Europa. A Antigüidade permite fazer a mesma observação, pois a vida tranqüila e rural dos primeiros patriarcas tinha algo de feliz, que desaparece ao chegarmos à história da realeza judaica. 17