QUAL A DIFERENÇA ENTRE LEITURA E
INTERPRETAÇÃO?
Fernando Silva e Silva*
It was something, I guessed, in the primal plan, something like a complex figure
in a Persian carpet. He highly approved of this image
when I used it, and he used another himself.
“It’s the very string,” he said, “that my pearls are strung on!”
Henry James, The Persian carpet
RESUMO: Em outra ocasião tratei da teoria de leitura apresentada por Daniel Link, teórico argentino, em seu
ensaio Como se lê. Para ele, o ato de leitura divide-se em três momentos: (1) o momento do encontro com o texto
que desperta um desejo de sentido, (2) a criação “paranoica” de séries de relações a partir do estímulo inicial e (3)
o encontro do sentido ao longo da série associativa criada. Na época, conclui que enquanto diagnóstico de uma
prática corrente nas ciências humanas o programa de leitura descrito por Link estava correto, entretanto apontei
que tal esquema parecia excluir uma propriedade importante do texto literário, a sua dimensão estética. Meu
objetivo é dar continuidade a este primeiro trabalho buscando descrever o que existe além (ou aquém) do efeito
de sentido de um texto e como isto deixa-se mostrar na leitura. Para tal, foi muito importante a obra Produção de
presença, de Hans Ulrich Gumbrecht. Nela o autor argumenta que o efeito estético não é constituido apenas de
um efeito de sentido, mas sim de uma oscilação entre este e um efeito de presença, de origem completamente
diferente. Exploro esta idéia e como ela pode ser identificada no ato de leitura.
PALAVRAS-CHAVE: leitura, interpretação, produção de presença.
ABSTRACT: On another occasion I have spoken of Daniel Link’s theory of literature, presented in his essay
Como se lê. To him the act of reading is composed of three moments: (1) the meeting with the text that awakens a
craving for sense, (2) the “paranoid” creation of relational series from the first stimulus and (3) the finding of
sense in the created series of associations. At the time I concluded that as a diagnosis of a current practice in
human sciences Link’s reading program was correct, however I pointed out that such a scheme seemed to exclude
an important attribute of the literary text, its aesthetic dimension. My goal is to continue this first work. I aim to
describe what exists beyond or before the meaning effect of a text and how this appears in reading. To do so,
Hans Ulrich Gumbrecht’s work Production of Presence was very important. In it the author argues that the
aesthetic effect is not composed exclusively of a meaning effect, it actually comprises an oscillation between a
meaning and a presence effects, each of a completely different origin. I explore this idea and how it can be
identified in the act of reading.
KEYWORDS: reading, interpretation, production of presence.
*
Graduando em letras da UFRGS. [email protected]. INTRODUÇÃO
Há alguns anos tratei da teoria de leitura proposta por Daniel Link em seu ensaio Como
se lê (no texto Como se lê / limites da leitura), no qual a ideia de leitura confunde-se de
maneira quase inseparável com a de interpretação. Resumidamente, sua proposta é
apresentada na seguinte passagem: “primeiro vem o ‘momento delirante inicial’, o rapto, a
paranóia, o desejo de sentido; [...] a paranóia produz acaso objetivo, logo, armam-se as séries
(coativas) de significantes. O sentido, claro, desloca-se ao longo desta série” (LINK, 2002,
p.29). Na conclusão do meu trabalho, apontei que era uma atitude reducionista em relação à
obra de arte afirmar que a única reação incitada por ela é a de um desejo de sentido, pois esta
primazia da dimensão do entendimento ignora todo o alcance do efeito estético não baseado
no sentido, isto é, fundado na interpretação.
Meu objetivo neste trabalho é explorar esta dimensão estética não baseada no sentido e
considerar qual o seu lugar numa teoria da leitura. Para tal, este trabalho está divido em 3
partes. Primeiramente, recapitularei alguns aspectos de meu ensaio anterior, para situar a
discussão. Na seção seguinte, pretendo incorporar alguns elementos desenvolvidos por Hans
Ulrich Gumbrecht em sua obra Produção de presença a esta teoria, buscando reconhecer a
verdadeira complexidade da dimensão estética do texto e o seu papel na construção tanto de
seu efeito estético de maneira geral quanto de seu efeito de sentido. Na última seção gostaria
de retomar a pergunta que serve de título a este trabalho e indicar algumas implicações do que
é desenvolvido aqui.
1 Como se lê
Em meu ensaio anterior, explorei em detalhes a teoria de leitura de Daniel Link, a qual
buscava ser uma resposta ao questionamento e provocação de Jorge Luis Borges em seu texto
Nota sobre (hacia) Bernard Shaw (de 1952), no qual ele diz que
una literatura difiere de otra, ulterior o anterior, menos por el texto que por
la manera de ser leída: si me fuera otorgado leer cualquier página actual –
ésta, por ejemplo– como la leerán en el año 2000, yo sabría cómo será la
literatura del año 2000 (2005, p. 16).
Assim, a resposta que Link procura em seu ensaio é, na verdade, dupla, como se lê nos
anos 2000 e o que isso nos releva sobre a literatura contemporânea. A resposta a qual ele
chega para a primeira pergunta, apresentada na introdução deste trabalho, é baseada no
trabalho de diferentes autores, principalmente C. S. Peirce, André Breton e Jacques Lacan.
Daquele, Peirce, ele toma emprestadas as noções semióticas de primeiridade, segundidade e
terceiridade, as quais designam, respectivamente, (1) o objeto-texto, ou a suposição do sujeito
que o objeto existe de forma autônoma antes do contato entre eles, (2) o sujeito, consciente de
sua imposição sobre texto, e (3) o enlace objeto-sujeito. De Breton o autor incorpora a rejeição
simultânea da ideia de que existe um sentido inerente ao objeto e de que o sujeito deva
“tiranizar” o texto, atribuindo-lhe sentido. Finalmente, o método psicanalítico de Lacan
serviria para finalizar a “máquina de leitura”, como a chama Link, acreditando então que o
sentido apareceria na série de relações associativas paranoicas criadas pelo sujeito no contato
com o objeto, inscrevendo-se então na terceiridade, naquilo que ele chama de limites da
leitura. Dessa forma, afirma o teórico que, finalmente, “toda carta chega sempre ao destino,
que é como dizer que todos os textos podem ser lidos, ou que encontrarão uma série em
relação ao qual seu sentido apareça” (LINK, 2002, p.29).
O cerne do meu trabalho consistiu em desenvolver duas questões provocadas pela tese
de Link: (1) Como se lê é um texto descritivo ou prescritivo? Se o primeiro caso fosse
afirmativo, o diagnóstico estaria correto? Se ele fosse de fato prescritivo, seria essa a melhor
estratégia de leitura a defender? (2) pode, realmente, todo texto ser lido?
Brevemente, respondendo à primeira pergunta, apontei que o texto poderia ser lido das
duas maneiras, visto que nada nele rejeita tais leituras. Se descrever uma situação presente é o
objetivo do texto, ele não me pareceu de todo correto, uma vez que ignora o (já não tão)
recente movimento da crítica literária em direção a uma “nova totalidade,” apesar de não
deixar de expor com claridade uma prática crítica mais fragmentária e relativista, relacionada à
tradição de certo pensamento francês. Enquanto prescrição, pareceu-me também que o modelo
oferecido pelo texto deixaria a desejar, pois, como apontado anteriormente, dá excessiva
importância à produção de significado, minimizando o poder estético do texto e reduzindo ele
a objeto potencial de uma interpretação. Visão sobre o texto, a propósito, muito presente em
nossos meios acadêmicos que valorizam grandemente um texto que “oferece muitas
intepretações,” sendo este o tipo de texto que mereceria ser estudado e divulgado.
A ilegibilidade foi o último tópico que tratei em meu ensaio, negando a afirmação de
Link de que “todo texto pode ser lido” nos termos propostos por ele. Concedo que é possível
criar uma série de associações “paranoicas” que construiriam uma determinada interpretação,
mas isso não quer dizer que o texto foi lido, apenas que ele foi interpretado. Em qualquer um
dos casos, porém, não deixa de fazer-se sentir um certo traço inerente a qualquer texto: a
resistência. Como diz Jacques Derrida
Yo situaría la palabra «resistencia» en relación con lo que en otra parte -en
Glas en particular- yo llamo la permanencia [restance]: la estructura de la
marca, que no es un signo, que no es algo que se deja borrar, transgredir,
verter hacia el sentido; la estructura de la marca que es algo que permanece,
pero es una permanencia que no es la subsistencia del cuerpo escrito -no es
la permanencia de lo escrito mientras que las palabras pasan-. La estructura
de la permanencia que me interesa es aquella que no es la subsistencia, que
no es un ser, un existente, un objeto, una substancia. Esta permanencia de la
marca hace que todo texto resista, no se deje apropiar (DERRIDA, 1986, p.
163)
O que é instigante na proposição de Derrida é a ideia de uma dimensão textual que
nunca se entrega, apenas se insinua. Assim, as mais diferentes leituras sempre deixariam de
incorporar algo e este algo sempre restaria como marca e chamaria atenção, como um desafio,
à petulância de sua permanência.
Esta permanência poderia ser vista como resultado de uma falta de disponibilidade do
texto, como apresenta este conceito Wolfgang Iser. Para ele, “large-scale texts such as novels
or epics cannot be continually ‘present’ to the reader with an identical degree of intensity”
(1994, p.16), esta impossibilidade decorre da condição do leitor. Comparando-o a um viajante
numa diligência, Iser diz que
“he [o leitor] combines all that he sees within his memory and establishes a
pattern of consistency, the nature and reliability of which will depend partly
on the degree of attention he has paid during each phase of the journey. At
no time, however, can he have a total view of that journey.” (idem)
Esta restrição física imposta pelo texto que impede o leitor de o abarcar integralmente
é uma forma de permanência que muitas vezes é ignorada. Assim, sempre há um indício não
observado, um caminho não percorrido. A antípoda oferece uma restrição similar. O texto
muito curto ou o poema se apresenta de forma condensada. Tal condensação e, principalmente
no caso da poesia, a reiteração de certas estruturas fônicas e semânticas sugerem uma dezena
de trilhas até mesmo contraditórias. Esta característica não indica que com tempo suficiente
um texto literário pudesse ser esgotado ou totalmente “compreendido”, ela é, com efeito,
apenas um traço essencial deste tipo de texto.
2 Leitura e produção de presença
Nesta seção explora-se outro fator da resistência do texto literário. Em vez de realizar
uma metainterpretação, isto é, uma interpretação do ato interpretativo, penso que seria mais
interessante procurar algo paralelo a ela, anterior ou simultâneo. Um dos principais elementos
da resistência do texto literário é o efeito estético, o qual, por ser sensível, não pode ser
reduzido a uma explicação ou paráfrase. Iser, tratando desta peculiariedade do estético diz que
the aesthetic effect is robbed of this unique quality the moment one tries to
define what is meant in terms of other meanings that one knows. For if it
means nothing but what comes through it into the world, it cannot possibly
be identical to anything already existing in the world. At the same time, of
course, it is easy to see why specific definitions are attributed to this
indefinable reality, for one automatically seeks to relate it to contexts that
are familiar. The moment one does so, however, the effect is extinguished,
because the effect is in the nature of an experience and not an exercise in
explanation. Thus, the meaning of a literary text is not a definably entity but,
if anything, a dynamic happening. (1994, p. 22)
Este singular efeito do literário, de produzir uma experiência que acaba em si mesma e
que traz ao mundo algo que não existia previamente nele é bem descrito por Gumbrecht nos
termos da produção de presença, a qual “aponta para todos os tipos de eventos e processos nos
quais se inicia ou se intensifica o impacto dos objetos ‘presentes’ sobre corpos humanos”
(2010, p. 12). Assim, nesta perspectiva, o texto literário é antes de tudo uma coisa que tem o
potencial de agir sobre corpos humanos, por estar presente. O ato interpretativo é justamente
aquilo que torna possível o apagamento do corpo do texto em favor dos sentidos aos quais ele
pode apontar.
Como bem coloca Iser, o texto literário, se o efeito estético acontece, traz à tona algo
inteiramente novo. Esta é mesmo uma das condições da produção de presença, Gumbrecht
pensa que “aquilo que chamamos ‘experiência estética’ nos dá sempre certas sensações de
intensidade que não encontramos nos mundos histórica e culturalmente específicos do
cotidiano em que vivemos” (p. 128). Gumbrecht propõe uma nova forma de encarar o que
chamamos de efeito estético, dando-lhe um sentido diferente do usual. Para ele a experiência
estética é vivenciada em duas dimensões diferentes, a da presença e a do sentido, “a presença e
o sentido, porém, sempre aparecem juntos e sempre estão em tensão. É impossível
compatibilizá-los ou reuni-los numa estrutura fenomênica ‘bem equilibrada’” (p. 134). Desta
forma, o que diz respeito à presença é a materialidade da palavra, um retorno ao significante, o
qual seria considerado primeiramente em sua presença física e sua capacidade de agir sobre
nós para só então, numa instância posterior, ser interpretado. É possível então que
“concebamos a experiência estética como uma oscilação (às vezes, uma interferência) entre
‘efeitos de presença’ e ‘efeitos de sentido’” (p. 22).
O autor pensa que uma valorização desta dimensão geraria um suplemento à
interpretação, a qual, através deste desenvolvimento conceitual, pode ser vista de forma mais
complexa e completa. Esta proposição de Gumbrecht mostra uma outra possibilidade do
paradigma sujeito-objeto. No programa de leitura sugerido por Link, a interpretação estaria
inscrita nos limites da relação sujeito-objeto, ensaiando já, assim, uma fuga do simples modelo
no qual o sujeito observador analisaria, dissecaria, o objeto passivo. Para Gumbrecht, é lícito
ao objeto agir sobre o sujeito. Assim, o paradigma é desfeito e os dois passam a ser coisas,
corpos no mundo.
É importante sublinhar, concluindo esta parte, que o repertório de conceitos produzidos
por Gumbrecht ao redor do fenômeno da presença não é diretamente aplicável a experiências
sensoriais individuais. Pelo contrário, ele pode apenas se ocupar da descrição da possibilidade
do fenômeno e seus possíveis efeitos, dessa forma esta conceitualização não serve para gerar
uma terminologia de análise de obras específicas, mas apenas para incitar uma certa
disposição perante a literatura e, possivelmente, a pedagogia desta.
3 Qual a diferença entre leitura e interpretação?
A primeira teoria que apresentei tratava a leitura como um sinônimo de interpretação,
fazendo desta um tipo de psicanálise lacaniana textual (similar à psicanálise freudiana textual
que a precedeu) que parte de uma série de símbolos co-criados entre texto e leitor para gerar
uma série de relações mais ou menos arbitrárias, na qual se encontra um caminho para atribuir
sentido ao texto. Nela, a característica predominante do texto é a de produzir um desejo de
sentido no sujeito que o encontra. Assim, o literário não é considerado além ou aquém do seu
poder de gerar sentido.
O efeito de presença, descrito por Gumbrecht, que oscila ao lado do efeito de sentido,
seria o aparecimento do som, da forma, da imagem enquanto tais, pré-interpretação, como um
Ser propriamente. O seu caráter de coisa ainda não traduzida em discurso é o que permite que
esse Ser aja sobre o nosso corpo e não seja domado pelo sentido. O poder dessa proposta é o
de ir além da dicotomia cartesiana da relação sujeito>objeto. Deixando que os objetos ajam
sobre nós, algo que pode ocorrer aleatoriamente mas também pode ser buscado, sem garantias,
através de uma atitude de serenidade [gelassenheit], é possível amplificar a intensidade da
experiência estética e de nossa vivência no mundo. Finalmente, a interpretação só ocorre após
uma leitura, mas nem sempre a leitura provoca, e nem necessita, da interpretação.
As consequências de tal posição para uma teoria da literatura seria a necessidade de
reconhecer as dimensões extra-sentido que compõem um texto, tomando o risco de aceitar um
traço indeterminável como determinante no ato de leitura. Extra-sentido seriam todos os
elementos que não são, sem algum falseamento, traduzíveis em discurso, parafraseáveis. O
reconhecimento destes elementos gera um deslocamento do ato de leitura como ele é
entendido, uma vez que reforça não só o não esgotamento da produção de sentido, assunto já
antigo das teorias da interpretação, mas a definitiva intraduzibilidade de certos aspectos
textuais.
REFERÊNCIAS
BORGES, Jorge Luis. Nota sobre (hacia) Bernard Shaw. In: Otras Inquisiciones, p. 191-196.
Buenos Aires: Emecé Editores, 2005.
DERRIDA, Jacques. Jacques Derrida: leer el ilegible. Entrevista com Carmen GonzálezMarín. IN: Revista de Occidente, n. 62-63, 1986, pg. 160-182.
LINK, Daniel. Como se lê e outras intervenções críticas. Tradução: Jorge Wolff. Chapecó:
Argos, 2002.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença. Tradução: Ana Isabel Soares. Rio de
Janeiro: Contraponto/Editora Puc Rio, 2010.
ISER, Wolfgang. The act of reading: a theory of aesthetic response. Londres: John Hopkins
university press, 1994.
SILVA E SILVA, Fernando. Como se lê / limites da leitura. IN: Letras: Cultura e Diferença.
Porto Alegre : EDIPUCRS, 2009. p. 264-274.
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