MR 06 – MESA REDONDA – HISTÓRIA AGRÁRIA E REGIÃO Coordenador: Erivado Fagundes Neves HISTÓRIA AGRÁRIA DA CAPITANIA DE ILHÉUS: NOTAS PRELIMINARES DE UM PROGRAMA DE ESTUDOS1 Marcelo Henrique Dias* Angelo Alves Carrara** A Capitania de Ilhéus é muito pouco conhecida, apesar de ter permanecido como donataria até 1761, quando foi finalmente incorporada pela Coroa. Na historiografia produzida até o momento, resumida a poucos títulos, há uma versão absolutamente aceita de que durante os três séculos que se seguiram do seu rápido apogeu inicial até a segunda metade do século XIX, nada de significativo ocorreu na vida econômica desta parte do Brasil. Não obstante o principal historiador da Ilhéus colonial, João da Silva Campos (1981), considerar a Capitania "triste e malacafenta", os números da população e da produção que ele mesmo apresenta ao longo de suas Crônicas revelam um cenário um pouco menos sombrio. Basta dizer que em meados do século XVIII (1774) ao passo que a Capitania de Ilhéus possuía 13.501 habitantes, Porto Seguro contava com 2.210 (p. 159). O desenvolvimento econômico da Capitania foi, sim, territorialmente desigual. Somente no século XVIII a Vila de São Jorge (sede da Capitania) começou a fazer frente à Cairu, sendo que ao longo de todo o período colonial, Camamu ocupou o primeiro posto, graças a suas lavouras de mandioca e outros alimentos. Os estudos que fugiram à regra de se estudar a economia colonial sob a perspectiva das relações externas e que privilegiaram o interior das estruturas, a exemplo dos que fizeram Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, apontaram a Capitania como tendo um papel importante na consolidação e na reprodução do sistema colonial como zona periférica, produtora de alimentos e madeiras, produtos sem o qual a monocultura não teria sobrevivido no Recôncavo baiano2. No entanto, ainda não se estudou a fundo este aspecto da Capitania, um campo fértil para a História Agrária. 1 Estas notas dizem respeito ao projeto de pesquisa "Estruturas sociais e econômicas da Capitania de Ilhéus, 1700-1850", coordenado pelos autores e desenvolvido no CEDOC/UESC. Contamos com o auxílio das acadêmicas Fernanda Amorim e Neila Oliveira da Silva do curso de Licenciatura em História da UESC, bolsistas de iniciação científica do PROIIC/UESC. * Mestre em História. Professor do DFCH/UESC. [email protected] ** Doutor em História. Professor do Dep. História/UFOP. [email protected] 2 LINHARES, Maria Yedda L. A pecuária e a produção de alimentos na colônia. In: SZMRECSÁNYI, Tamás. História econômica do período colonial. São Paulo, Hucitec/FAPESP, 1996, p.109-121. LINHARES, Maria Yedda Leite & TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. História da agricultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, s.d. TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Morfologia da escassez; crises de fome e política econômica no Brasil Colonial. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 1991 (tese de doutoramento em História). A viabilidade de se fazer a História Agrária da capitania de Ilhéus se respaldou na existência, no Arquivo Público do Estado da Bahia em Salvador (APEB), de fontes de natureza serial, tais como os livros do cartório da vila de São Jorge, inventários e testamentos, atas do Senado da Câmara de Ilhéus, Camamu e Cairu e registros eclesiásticos de terras, dentre outros. Num programa de estudo ideal, em se tratando de História Agrária, definidos os pressupostos teóricos, o recorte espacial e temporal, assim como a metodologia, um primeiro objeto de estudo deveria ser a paisagem natural da Capitania, pois é em relação a ela que serão buscadas as soluções para a superação de eventuais obstáculos opostos à produção das existências humanas que por razões várias escolheram ou foram impelidas a viver nessa região. O primeiro item de uma História Agrária propriamente dita refere-se à ocupação do território. É nesta sessão que são estudados o acesso a posse e à propriedade da terra, em particular as formas de acesso e a legislação pertinente, os mecanismos de demarcação territorial, os conflitos pela posse e propriedade e os ritmos de ocupação do solo. Numa expressão: a estrutura fundiária. Em seguida, a paisagem rural cultivada, isto é, os gêneros agrícolas, os rendimentos agrícolas, o artesanato rural. Os sistemas agrários, ou seja, as técnicas agrícolas e pecuárias devem vir em seguida. Por fim, a seção correspondente às estruturas agrárias da produção buscará conhecer, principalmente, os níveis de concentração da apropriação da renda gerada pela atividade agrícola e/ou pecuária, além de identificar quem são os produtores diretos. Se se optar por uma visão abrangente do destino da produção agrária, será interessante investigar os espaços econômicos, isto é, os circuitos mercantis vigentes em determinados períodos no interior da Capitania, e que a articulavam com outras regiões, e, se as fontes o permitirem, o estudo do movimento dos preços dos principais gêneros produzidos na Capitania talvez ajude a explicar esses movimentos da produção agrária. A adoção de uma perspectiva comparada pode ser uma ferramenta extremamente útil não apenas para o estabelecimento do recorte espacial e cronológico, mas também especialmente para se alcançar definições mais claras de conceitos teóricos (MÖRNER,1992,p.101-5).3 Contudo, para atender aos objetivos propostos pela pesquisa, as unidades de comparação devem ser representativas do universo sobre o qual se farão as generalizações, o que requer uma prévia identificação das suas características, e a metodologia da investigação deve incluir uma sólida definição dos conceitos4 e a homogeneização dos dados. Nesse sentido, a perspectiva comparada sugere o questionamento do próprio recorte espacial proposto no título deste artigo: não seria mais conveniente proceder a um estudo que abrangesse também as 3 Mörner alinha os seguintes objetivos: verificação ou aplicação de uma teoria, ou o exame de hipóteses de trabalho; comparação descritiva (natureza puramente empírica); num terceiro, a teoria guiaria a observação empírica, fornecendo o marco interpretativo necessário: el propósito [es] que las hipótesis están siendo verificadas para permitir una mayor construcción teórica (o que Robert Merton denominava “teoría de alcance médio” (MERTON, Robert. Social theory and social structure. 2.ed., Glencoe: The Free Press, 1957. p. 9). 4 Nas palavras de Mörner: se debe primero luchar con los términos encontrados en las mismas fuentes. áreas das antigas capitanias de Porto Seguro e do Espírito Santo, dadas suas características demográficas e econômicas comuns? Ou ainda, expandir o recorte para perceber a dimensão das relações comerciais da Capitania com a sua continuidade no norte, as vilas de Jaguaripe e Nazaré das Farinhas, o Recôncavo e Salvador? De início, deve-se reconhecer que o território que a antiga Capitania de Ilhéus recobria, parece possuir duas personalidades históricas distintas, cuja inter-relação é necessário conhecer melhor: uma, colonial, com forte presença indígena e um horizonte agrário constituído por lavouras de cana, mandioca, arroz e pela extração de madeira; e outra, construída sobre a monocultura do cacau. Antes de proceder à sistematização das fontes de natureza serial, deve ser conhecido o conjunto de memórias e relações sobre a Capitania, escritas até os primeiros anos do século XIX, e que fornecem os elementos para uma primeira aproximação do nosso objeto. Em razão disso, passamos a desenvolver a pesquisa em duas frentes: 1) bibliografia e fontes publicadas e, 2) fontes seriais pertencentes ao APEB. Recortamos o período entre 1700 e 1850, pois desta época restaram os livros do notariado da Vila de São Jorge, em estado de deterioração bem avançado, porém constituindo uma série considerável do ponto de vista metodológico. Sobre o potencial das fontes cartorárias, Francisco Carlos Teixeira da Silva argumenta que ...a documentação cartorária no Brasil surgiu no início do processo de colonização, sendo o único corpo documental homogêneo e ininterrupto que dá conta do amplo espectro da vida econômica e social do país (TEIXEIRA da SILVA,1987,p.05). Uma série razoavelmente bem constituída permite a seriação ano após ano, produzindo séries contínuas sobre o mesmo assunto, a exemplo do que temos nos livros de Ilhéus: registros de escritura de compra e venda de imóveis e outras transações financeiras, lavras de cartas de alforrias, procurações e até registros de perdão formal de ofensas e agressões. Propomos então a montagem de um banco de dados constituído a partir da coleta sistematizada das informações contidas especialmente (mas não exclusivamente) nos registros do cartório. Tal banco deverá permitir o estudo da ocupação e uso do solo e da estrutura da propriedade fundiária de parte da Capitania, ou seja, a forma como foram sendo ocupadas as terras, as atividades econômicas dominantes em cada fazenda, as culturas e a paisagem rural cultivada, além de outros elementos que se engendram aos primeiros, como o conjunto da população escrava no período, os ritmos e as variáveis relacionadas à concessão de alforrias, os fluxos financeiros, as redes de comércio e de negócios externos das suas vilas. No aspecto metodológico, a idéia é estabelecer um padrão na constituição das séries, permitindo futuros estudos comparativos entre a Capitania de Ilhéus e outras para as quais haja o desenvolvimento de pesquisas afins. Da obra de Silva Campos, buscamos reunir as informações correspondentes ao período de 1700 a 1850 em séries como: autoridades citadas, dados da produção, dados da população, vias de transporte, paradas de comércio, repartições administrativas clericais e seculares e propriedades, sendo que para cada série elaboramos uma ficha padrão, compondo assim um banco de dados complementar. A leitura atenta das Crônicas nos permitiu, também, identificar os testemunhos de época que davam mais informações sobre os temas de nosso interesse. Quase que a totalidade das fontes analisadas pelo autor foram publicadas em livros ou nos anais da Biblioteca Nacional, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) e do APEB. Desde o início, víamos na realização do projeto o embrião de uma linha de pesquisa que, pela amplitude das problemáticas que envolvia e pela dimensão da documentação existente, possibilitaria o envolvimento de outros pesquisadores, professores e alunos do curso de história e até de outras áreas, como geografia, ecologia, direito agrário etc, contribuindo, desta forma, para a incipiente pesquisa acadêmica sobre a história da região. As fontes não-seriais: relações, memórias, relatos de viajantes As fontes não-seriais, de maneira geral, e os relatos de viajantes de modo particular, constituem uma fonte indispensável nas situações em que a documentação massiva inexiste. A primeira – e breve – descrição da Capitania data de 1612, tão somente enfatizava sua fertilidade: ... se encontra na primeira classe das melhores do Brasil pelo sítio, bondade e terras que tem, águas, madeiras, notáveis canaviais de sessenta anos, e cópia grande de frutas do mato, caças e pescarias, assim no mar como nos rios, e tem muitas frutas de espinho e de Portugal, tem uvas, romãs marmelos e figos, e todas as hortaliças, finalmente, é tão fértil que no tempo da guerra [contra os aimorés] recolhidos na povoação, entre as casas plantavam mantimentos (MORENO,1955,p.131).5 Nessa época, haveria em toda a capitania apenas cinco engenhos, e, conseqüentemente, pequena produção de açúcar, cuja causa seria a falta de escravos ou índios. Os moradores, entendidos como portugueses, não ultrapassavam o total de duzentos e cinqüenta, que também vivem de suas criações e lavouras, abastados da sua farinha, milho, arroz, algodão, gengibre e outros legumes que se aproveitam por não serem de fábricas. As descrições mais importantes, todavia, datadas da segunda metade do século XVIII lançam alguma luz sobre o quadro demográfico (quadro 1), e são fundamentais para a compreensão da ocupação territorial da 5 Mais adiante, o autor informava que o rio Patipe ... é mui abastado de caças e nele se fazem grandes pescarias, em especial de peixes-bois ...; tem terras, ilhas e águas e grandes madeiras para fazendas, e o melhor pau-brasil de toda a costa, mais fácil de cortar e de carregar, as quais matas, a quatro e cinco léguas pelo sertão vem correndo até o monte Tanjerepe [atual serra de Gongoji] que fica a quatro léguas da dita vila de São Jorge, e passando adiante para o norte, mais ao sertão, vão as ditas matas até ao rio das Contas. Capitania dois séculos após sua instalação.6 Quanto à ocupação territorial, além da forte presença indígena, é surpreendente o fato de que, dois séculos após a instalação da Capitania, seus limites para o interior permanecessem desconhecidos até cerca de cinco léguas da costa. A descrição da freguesia de Ilhéus vale para todas: não há quem saiba do seu [do rio da Cachoeira] princípio, por vir muito de dentro do Sertão. Em 1758, a freguesia de Ilhéus possuía só uma povoação, a da vila de São Jorge, com várias ruas: a do Porto, a rua Nova da Matriz, a de São Sebastião, a da Cadeia, a do Colégio, a de São Bento, a da Praça, a travessa da Matriz, a de João de Souza e a de Inácio Jorge.7 A freguesia do Poxim era mais extensa e, por isto mesmo, a que maior contato mantinha com os índios da região – tudo ... infestado e possuído das suas nações de Pataxós e Anaxós ... Menhãs. A povoação de Poxim desfrutaria da segurança das penas das frechas do tapuia, das quais não escapam nem ainda os que de caminho passam da Comandatuba para Una, se não é debaixo das armas e com cautela.8 A uma légua da foz do Patipe havia três lugarejos com capelas: São João Batista da Embuca (i. e., “enseada”) Grande, Embuquinha e Patipe.9 A participação dos índios na população era muito elevada, especialmente na metade 6 Estas relações foram escritas em cumprimento das ordens régias expedidas pela Secretaria de Estado do Ultramar em 1755, compõem o conjunto de relações de diversas freguesias do Arcebispado da Bahia. A localização e descrição de alguns povoados fornece os elementos iniciais a interessados em arqueologia histórica. 7 Segundo a Relação das povoações, lugares, rios e distância que há entre eles, na freguesia da invenção de Santa Cruz da Vila dos Ilhéus, pelo Vigário Luís Soares de Araújo [1758]. ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL, vol. 31. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1913. [documento n. 2676, pp. 184-5]: da vila navegando pelo rio acima da parte do poente há vários lugares em que habitam moradores, a saber: Cupipe, Maria Jape, São João, Tanguape, Tabuná, Pasto Matendipe, Camurupi, Banco do Furtado, Pirataquicé. Outros lugares eram mencionados ainda: lugares ribeirinhos pelo rio de Santana acima [que tem o seu princípio lá muito dentro do sertão], aonde os Reverendos padres da Companhia de Santo Antão têm uma fazenda de engenho: Mamhape, Aitinga, Saguipe, Tibiripe, Rocha; lugares do rio do Fundão, com barra no da Cachoeira: Jaguaripe, Jacaraípe, São Francisco; outros lugares ao sul: Cururupe, Ariope, Barra do Cururupe, que é um rio pequeno que nem canoas podem navegar por ele; aldeia dos Socós e Aldeia de nossa Senhora da Escada dos Reverendos Padres da Companhia. O rio Una [cujo princípio também era desconhecido] servia então de divisa da freguesia dos Ilhéus com a de São Boaventura do Poxim. Desta aldeia da Escada até o Una não havia morador, por ser uma parte deserta e costumar andar também por ela o gentio chamado Pataxós e do dito rio da Cachoeira da vila para o rio de Una gastam-se no caminho dois dias...Ao norte havia no rio Itaípe [atual Almada] os lugares: Barra de Itaípe, Iguapé, Rosário, São João, Santa Cruz, Barreiro, Santiago, Água Branca, Cabarunema, Pico, Trumbaúba, Urutuca (transcrito Drutuca no doc. 2676), Caju, Catinga; em seu afluente, o rio Cachoeira da Lagoa, que também não se lhe tem dado com o seu princípio por vir muito de dentro de seus sertões, e nele não há lugares que tenham nome por ser tudo mato, e só nessa cachoeira chamada da Lagoa assiste o Coronel Pascoal de Figueiredo e Francisca de Cerqueira, viúva; este rio de Itaípe dizem que nasce de uma grandiosa lagoa; os lugares que nela há são prainhas, Lagoa de Brunhaém. O rio de Tijuípe (transcrito Tüuipe no doc. 2676) serve de divisão desta freguesia com a do rio das Contas. Especificamente para o Engenho de Santana, há o relato de Pedro Teixeira ao Colégio de Santo Antão, de 11 de novembro de 1731 (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Cartório dos Jesuítas, maço 15, documento 26; outras informações também nos maços 8 (documentos 105/108/125) e 15 (documento 9); cf. também FRANÇA, Gonçalo Soares da. Dissertação da história eclesiástica do Brasil. Sociedade de Geografia de Lisboa, Res. 43-C-147, fls. 87-123 (Bahia). 8 “Descrição da freguesia de São Boaventura de Poxim”, 20 de janeiro de 1756. in: ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL, vol. 31. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1913. [documento n. 2677, pp. 184-5]. 9 Por ambas estas barras e por todo o rio até o Porto do Mato navega qualquer barco ou sumaca. Porém, que hão de vir buscar barcos ou sumacas, onde não se vê senão as fazendas despovoadas e desertas por uma e outra parte do rio [Poxim]? com tal extinção que à fazenda das Coroanhas, logo abaixo do Porto do Mato, sul da freguesia. Ainda segundo a relação, o rio Una – em ambas as margens povoado mais de duzentas almas – foi navegado de muitos barcos e sumacas por espaço de três léguas desde a barra até a sua cachoeira. A freguesia da Barra do Rio de Contas possuía, além da vila, a Capela Anexa de Nossa Senhora dos Remédios da Aldeia do Gentio G[ue]rém, no rio da Cachoeira, distante da barra três léguas. O rio de Contas era navegável e povoado quatro léguas acima da barra.10 A freguesia de Camamu era a mais populosa.11 Na ilha de Camamu moravam sete pessoas. Às margens dos rios que dela faziam parte, até três léguas para dentro, os moradores se distribuíam: nos rios Acaraí, Cunduru (vários e bastantes moradores nas margens), Matapen (margens com poucos moradores), Aldeia Velha (quatro moradores), Mayraú, Tiriri (cinco), Pinaré (bastantes moradores em seus braços), no rio da cachoeira do Tabarauê (bastantes moradores). A maior parte dos moradores da freguesia de Maraú vivia nas margens dos braços do rio homônimo.12 A população da freguesia de Cairu distribuía-se pela Capela de Nossa Senhora do Amparo e também pelo rio Una, cujos fins se não tem ainda descoberto. A relação menciona ainda outra povoação, a Aldeia de Fidélis.13 Também o território desta freguesia não ultrapassava o limite da costa para o sertão uma légua ou légua e meia, posto que daí para cima são matos grossos, e sesmarias e terras inabitadas.14 Outras povoações eram Capela de Nossa Senhora do Desterro de Maricoaba, rio da Galé, Camarogi, Taparoá e a vila. A maior parte da população da freguesia era formada cativos. Nesta freguesia, ocupavam-se os moradores em lavouras de mandioca e arroz, e muitos em madeiras e tabuados e de presente em madeiras para a nau que se está fazendo na Ribeira da Cidade da Bahia. Na freguesia de Boipeba, a população distribuía-se pelo rio Taenga, com três ou quatro habitantes, e pelas capelas anexas de Nossa Senhora da Luz do Presídio de São Paulo do Morro, de São Francisco Xavier que só ela tinha mais de cem almas, lhe não valeu servir-lhe o rio de fosso, para que não passasse o gentio a nado sem se sentir senão quando frechava ou matava. Hoje só existem no Pontal do Sul da ... barra do Poxim 76 pessoas de comunhão, os quais por virem nas suas datas de sesmaria se sujeitam a estar como sitiados plantando em áreas safas e cheias de formigas, e o pior é que para haverem de comer o peixe, que é o sustento ordinário o vão pescar daí a uma légua, na barra do Patipe, pelo não haver, e ser muito vasqueiro no rio do Poxim. 10 “Relação do lugar e povoação da freguesia de São Miguel da Vila de São José da Barra do Rio de Contas”. 1757 [doc. 2678]. 11 “Notícia sobre os lugares e povoação que compõem a freguesia de Nossa Senhora da Assunção, na vila de Camamu”, 1757 [doc. 2679]. 12 “Relação das Povoações e sítios que contém o rio do Maraú, distrito da freguesia de São Sebastião e moradores dela” [doc. 2680]. 13 “Relação da freguesia de Nossa Senhora do Rosário da Vila de Cairu” [doc. 2682]. 14 ... a largura da freguesia é somente o fundo das terras que possuem os moradores, desde a beira do rio para o sertão caminho do oeste uma légua ou légua e meia conforme as escrituras ou títulos de cada um que as mais terras ou matos pelo sertão dentro são sesmarias; e só as feras onças e gentios as habitam de presente. Mais adiante: tem algumas estradas, que vão por estes matos dentro até três ou quatro léguas a tirar alguns paus para as naus de Sua Majestade ... que se fazem na Ribeira da Cidade da Bahia, além de muitas que se tiraram os anos passados para a Ribeira das naus da Cidade de Lisboa, que vinham charruas por esta Barra de Morro dentro carregá-las. no Galeão, de Nossa Senhora da Boa Morte no Jordão, de Santo Antônio em Motupiranga, e pelo oratório particular no rio Taenga e um outro no Jequié. No total, 2.417 almas de comunhão.15 Quanto à estrutura fundiária e à economia da Capitania nos fins do século XVIII, a memória do Juiz Conservador das Matas da Comarca dos Ilhéus, Baltasar da Silva Lisboa, escrita em 1802, é mais esclarecedora. O juiz historiava a enorme propriedade que o primeiro donatário, Jorge de Figueiredo, havia concedido a Mem de Sá: uma sesmaria de doze léguas em quadra do norte do rio de Contas até Camamu que a favor dos jesuítas este último cedera em testamento. Segundo os autos de medição e títulos na Casa da Fazenda da Bahia, os jesuítas, em virtude das Escrituras com Autoridade real aprovadas, tomaram posse em 3 de dezembro de 1563: obtiveram que a medição começasse da boca do rio de Contas, para o norte e ordenaram aos medidores que somente medissem dez léguas [mas] conseguiram estender as dez léguas até Boipeba. Assim, os jesuítas teriam obtido não dez, mas dezoito [léguas] e acrescentaram mais quatro ao sul do rio de Contas ... pois que a demarcação foi 50 braças além do Tacaré ... no boqueirão de um riacho que sai à praia chamado Ouricuritiba. O juiz lembrava a sentença da Relação da Bahia, de 16 de agosto de 1644, segundo a qual os jesuítas se tornaram senhores das seguintes porções de terra16: 1. desde Jequié a Boipeba, Camamu, Maraú e Rio de Contas até o Tacaré e cinqüenta braças adiante – o que restava para os Ilhéus eram as suas matas vizinhas a uma costa procelosa, até a Mamuã; 2. na vila de Ilhéus, quatro braças com 12 palmos de frente da Casa de sua Residência e um pedaço mais junto às mesmas casas; outro pegado à Igreja; uma sorte mais que teria de cerca e quintal à casa de residência, em cuja extrema tinha quatro moradas de casas, que lhe pagava renda; 3. um pedaço de terra no Outeiro da Vila Velha; 4. o Engenho de Santana, com quatro léguas de terra de norte a sul, 5. continuando além dessas quatro pelo rio de Santana abaixo da parte do sul até a pequena ilha dos Coqueiros, e pelo do norte até o rio Sauípe, 6. uma terra contestando com o rio onde chamam Coroa Grande; 7. no rio Fundão, conhecido com o nome de Esperança, duas léguas de terra, contestando com o rio, uma parte pela do leste, e outra, que principia no Pimenta ou Jacaraíbe pela de oeste. 8. No rio Itaípe (Taípe), onde chamam a Geitmana três sortes de terras contestando com o rio, uma parte de oeste, e as duas de leste; 9. de Ilhéus para o sul uma sorte de terras no rio de Messó, e outra no rio de Bambepe, e 10. as terras da Aldeia de Olivença, cujos índios regiam e governavam, 15 “Descrição da freguesia do Espírito Santo de Boipeba” [doc. 2683]. LISBOA, Baltasar da Silva. Memória sobre a comarca dos Ilhéus, 20.02.1802. ABN, vol. 37 (1915), documento 2002, anexa ao n. 24.002 [Ofício do Juiz Conservador das Matas da Comarca dos Ilhéus, Baltasar da Silva Lisboa, para o Visconde de Anadia, no qual se refere aos seus serviços e à remessa da seguinte memória para a comarca dos Ilhéus] pp. 1-22. A sentença do Tribunal da Relação da Bahia determinava, ainda, que fosse a vila [de Andrada, antiga Aldeia de Nossa Senhora da Assunção de Macamamu] reduzida ao antigo estado de aldeia. 16 Uma observação importante refere-se ao modo de apropriação dessas terras: todas havidas dos generosos habitantes, que por muitas e diversas maneiras principalmente nas ocasiões de testar, lhas conferiam. Não restavam mais terras e matas que as do confim da Capitania para o sul, povoada naqueles tempos de tupiniquins e patachós, e as da parte do norte, cobertas dos Aimorés, que por muitos e dilatados anos infestaram aos moradores e povoadores da vila do Cairu.17 Os lugares de Canavieiras, Jacaré, Patipe, Juliana, Porto do Mato, Poxim, Una formariam uma povoação de 500 pessoas, das quais apenas 80 eram brancos e o restante mulatos, pretos e caribocas, que se situaram pela bondade do clima, facilidade do sustento naquelas costas [com meios tão fáceis de manter a indolência dos habitantes], e por isso tombei para a Real Coroa sem oposição de uma só pessoa todas as matas que iam desde o rio Aqui até a margem do norte do rio de Belmonte por não haver nelas proprietários; e não ser conveniente aos interesses recíprocos da Soberania com o bem dos Povos o dá-las de sesmaria, pois que aqueles mesmos moradores pela falta de braço, e por se contentarem com o marisco e o peixe de que os rios abundam, não entram nem podem penetrar as matas virgens e se contentam com as capoeiras grossas para as suas lavouras. O juiz assinalava que as matas à beira do rio por espaço de cinco a dez léguas não mais existem em razão de as terem assolado os moradores para a cultura da mandioca, gênero principal nas suas aplicações. O rendimento da área plantada variava entre dez até vinte círios por mil covas, plantando os mais acreditados lavradores de cinqüenta a 80 mil covas de mandioca.18 Mas tão (ou mais) importantes do que conhecer a pauta e o volume de exportações de algumas vilas em um ou outro ano, é investigar um conjunto de elementos, entre os quais a estrutura da produção dos gêneros agrícolas, a distribuição geográfica das lavouras, os sistemas de trabalho, as técnicas rurais. 17 Baltasar Lisboa propunha uma estrada seguindo as margens do rio Pardo, pois em poucos dias se avistariam as caatingas e se chagaria às fazendas que ficam às cabeceiras do rio de Contas, estrada única que por terra era conveniente dos sertões à marinha. 18 Segundo Lisboa, em 1799 foram os seguintes os números da exportação por lanchas para Salvador: de Ilhéus, 30.000 alqueires de farinha, 150 alqueires de arroz e 50 de goma que corresponde a quase 16 contos de moeda pelos preços da terra correntes; de Maraú, 500-600 alqueires de farinha, 100 de arroz, 1.500 a 1.600 canadas de aguardente, mil remos de voga, 6.000 dúzias de contas de coco (equivalente a Rs 2:335$500); de Camamu, café (cujo o dízimo recebia 2.000 @), 40.000 alqueires de farinha de mandioca, 1000 de arroz, 40.000 canadas de aguardente, 32 a 40 alqueires de goma, 70 a 100 dúzias de tabuado e frutas (correspondente a 16 a 18 contos). Uma década e meia depois, visitaram Ilhéus Maximiliano de Neuwied e Spix. Suas descrições confirmam os elementos das relações anteriores, como a elevada participação de índios na população, e fornecem outros dados que seria interessante assinalar. Entre os itens da pauta de exportações, Spix anotou melancias de Maraú (assim como suas condições propícias ao cultivo do cacaueiro, mas que no momento da sua visita só alguns subsistiam); a casca do mangue, por conter tanino, de Camamu; rosários de cocos de piaçava, cordas, escovas, esteiras e chapéus de palha, de Olivença.19 Segundo Neuwied, a confecção desses rosários, bem como escudos com a carapaça da tartaruga seria a ocupação da maioria dos índios em Olivença, uma cidade de índios que conservaram os seus traços característicos em toda a sua pureza.20 O relato de Neuwied informa também o horizonte agrário e a persistente rarefação do quadro demográfico de determinados lugares.21 Em Ilhéus a mandioca era cultivada apenas para o consumo dos habitantes, mas exportava-se um pouco de arroz e certa quantidade de madeiras, sobretudo jacanrandá e vinhático. Havia poucos engenhos de açúcar; mais comuns eram as engenhocas para melado e aguardente. A fazenda mais importante era a Santa Maria, que pertencera anteriormente aos Jesuítas, com 20 léguas de extensão de terras, 270 escravos, máquinas para beneficiar arroz e algodão movidas a água, além do engenho de açúcar. A descrição dos moradores das margens do Taípe chamou a atenção de Neuwied: ao longo do Taípe ornam-lhe as margens muitas fazendas de lindo aspecto, todas ornadas de coqueiros e algumas delas completamente cercadas de coqueirais. Quase todos os moradores possuem nas margens do rio os seus currais ou gamboas um engenho de açúcar e várias engenhocas, onde se fabrica aguardente. Nas fazendas do Taípe cultiva-se mandioca, arroz, cana-de-açúcar ... e pouco café. Contudo, não se produzia mandioca em quantidade bastante para abastecer a vila de Ilhéus. 2. As fontes seriais: o notariado de Ilhéus As informações contidas nas crônicas e relações escritas entre os séculos XVII e XIX pouco esclarecem a respeito dos mecanismos de apropriação e uso do solo, as relações de produção – em especial a dimensão das relações escravistas, os circuitos comerciais e as operações de crédito, entre outras questões que 19 SPIX, Johann Baptist von. Viagem pelo Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia-Edusp, 1981 [1817]. v. 2, pp. 175-96. Sobre as matas de Almada, cf. nota 2 ao capítulo 4, livro V. 20 NEUWIED, Maximiliano, Príncipe de Wied. Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817. Belo Horizonte: Itatiaia-São Paulo: Edusp, 1989. pp. 328 e segs. 21 Em Canavieiras, mandioca e arroz; em Comandatuba, algumas palhoças de famílias de índios, e, em Una, poucos habitantes. vêm sendo objeto de estudos no campo da História Agrária para o período colonial e a metade do século XIX que antecede a Lei de Terras (1850). Os livros de notas22, apesar de descontínuos e fragmentários, não impedem que se construa um banco de dados seriais dos mais relevantes. Quando iniciamos o projeto, não tínhamos qualquer referência sobre o período em que foi implantado o cartório da Vila de Ilhéus, informação esta vital para a reconstituição da série dos livros. Estes apresentavam numeração contínua, mas estava claro, para nós, que o trabalho de numerar foi feito muito posteriormente à produção dos livros, pois entre um número e o seqüente, havia, em muitos casos, uma lacuna que revelava a falta de outro, ou outros. Através das informações contidas nas Crônicas, concluímos que a implementação do cartório se deu em 1710 e que a série existente no APEBA contava com o primeiro livro. Começamos a coleta de dados, porém, pelo segundo da série, pois as condições de leitura eram melhores neste livro do que no primeiro. Concluída a leitura e o processamento dos dados deste livro, foi possível reconstituirmos a série, com base na média de registros por livro. Ao longo de nove meses (agosto de 2001 a abril de 2002), disponibilizando de duas estagiárias, foram coletados e sistematizados em fichas padronizadas os dados referentes a três livros da série, os correspondentes aos períodos de maio de 1728 a junho de 1730, de novembro de 1733 a outubro de 1735 e, por fim, o primeiro, de maio de 1710 a agosto de 1713, ainda incompleto, totalizando 119 registros divididos em: - 21 cartas de alforria - 50 procurações - 44 escrituras (compra e venda de imóveis, empréstimos e quitação de dívidas, doações, dote de casamento, perdão etc.)23 Ainda não foi concluído o processo de informatização dos dados até aqui coletados e os resultados que apresentaremos adiante são frutos de uma análise inicial das fichas já preenchidas, ou seja, não passam de sinais obtidos de uma primeira organização das fichas nas três séries básicas: escrituras, procurações e cartas de alforria. Devemos ter em conta também que os registros abrangem somente a Vila de São Jorge dos Ilhéus, à época menos desenvolvida economicamente do que Camamu e Cairu, fato que certamente coloca a primeira em relativa desvantagem nos valores obtidos por bens como terra e escravos. A começar pelas escrituras de compra e venda de imóveis, em uma primeira impressão sobre as formas de transferência é possível afirmar que a venda em dinheiro era uma prática constante, e os valores negociados, apesar de não atingirem grandes cifras, revelam um nível de monetarização que não confirma as afirmações até aqui aceitas da inexpressiva circulação de moedas que teria vigorado até o século XIX. Das 18 transações de compra e vendas de imóveis lavradas entre 1728 e 1730 e entre 1733 a 1735 (livros 2 e 3 da série), 15 foram pagas em dinheiro corrente. Em 30/07/1728, por exemplo, Ignácio Fernandes Varzim e sua esposa vendiam cinqüenta e sete palmos de terra situados na Vila a Manoel Ferreira de Souza a um valor de 22 Seção Judiciário do APEBA. O trabalho de leitura paleográfica, que exigiu treinamento prévio da equipe, tem sido lento em razão do alto grau de deterioração dos livros originais e também pelo fato de disponibilizarmos de apenas uma leitora de microfilme básica. 23 72.950 réis, à vista em dinheiro corrente. O mais comum, no entanto, eram as transações como a do Capitão Domingos Serqueira Lima, que e 20/06/1728, vendia a Antonio Santana casas de telha nesta vila com quarenta palmos de chão na Rua do Porto da travessa de Manoel de Azevedo da Silva em direção a São Sebastião por 80 mil réis, sendo que o último pagou a primeira parcela de 40 mil réis à vista e deu um crédito de dívida pela outra metade. Poucos proprietários possuíam casas na Vila e as transações de imóveis urbanos envolviam sempre mais de uma casa, o que demonstra ser a alocação de imóveis uma das fontes de renda da elite local, inclusive dos jesuítas. Como já mencionamos, o Colégio de Santo Antão detinha várias propriedades na Vila, como àquelas quatro moradas de casas, que lhes pagava renda. Os registros notariais corroboram o testemunho de Baltazar da Silva Lisboa sobre a forma mais comum de aquisição de bens pelos inacianos. Na escritura de doação lavrada em 11/09/1728, Dona Maria de Siqueira fez a doação dos seus bens aos reverendos padres da Companhia de Jesus da Casa desta Vila, com a condição dos padres a visitarem e fazerem seu enterro e uma sepultura na sua Igreja e lhes satisfazerem suas dívidas sendo que por uma ela penhora o crioulo Thomé e a outra dívida é do valor de 20 mil réis a Domingos Gonçalves Vilarinho. Os bens em questão correspondiam a uma casa na vila e outra sorte de terras chamada Tambepe e a fazenda que nela esta, esta contendo dois tachos de cobre, uma roda de mandioca e tudo mais que se tiver nessa fazenda. No primeiro plano da descrição dos bens, figuravam os de maior valor, os escravos Joseph (pardo), Miguel (crioulo), Vericimo, Thome, Domingos, Maria, Philipa e Gregorio, os últimos seis sem indicação da raça. Seriam índios?24 Os valores dos imóveis urbanos variavam em uma média de 45 a 100 mil réis, quando, além dos chãos, possuíssem casas de telhas. Terrenos sem casas podiam ser adquiridos a partir de 12 mil réis. Áreas rurais com benfeitorias, porém, atingiam cifras mais altas, como aquelas compradas pelo Alferes Manoel Alves Moreira a Antonio Ferreira Magalhães em 29/11/1728, a qual sorte de terras partem com terras do Conselho desta vila que constam de quatrocentas braças e vinte braças craveiras de doze palmos cada braça e do marco do Conselho correndo caminho do sul... nestas terras tem uma engenhoca, um alambique de cobre, uma água e tudo que pertence à engenhoca, pés de coqueiro. O valor total foi de 260 mil réis, sendo 40 mil das terras e 220 mil das benfeitorias, 60 mil pago à vista em dinheiro e 200 mil em carta de dívida. Constituída, ainda, como Capitania Donataria, situação que se prorrogou até 1761, quando foi arrematada do último donatário pela Coroa após pagamento de indenização, seus negócios imobiliários envolviam uma porcentagem do valor transacionado para o legítimo proprietário do senhorio, o laudêmio, pago sempre pelo comprador. Dos 100 mil réis que constituía em 03/01/1729 o valor da sorte de terras chamadas Jatimanasû no rio Itahy por termo desta vila, o comprador Manoel de Sirqueira Lima apresentou logo quitação do Coronel Paschoal de Figueiredo, procurador da Donataria, de como tinha recebido o laudêmio que foi de 2.500 réis. Em outro negócio, envolvendo uma morada de casas na rua do porto com chãos próprios, comprada à vista pelo abastado Ignácio Fernandes Varzim em 01/09/1729, este pagou logo o laudêmio de mim tabelião para o que digo que fica em meu poder para o entregar a ordem da Donataria que 24 Em outra escritura de doação (14/09/1728), a mesma Maria da Siqueira doava um escravo de nome Manoel para o Colégio de Jesus da Vila. importa mil e cento e vinte cinco reis. Esta exigência não aparece na totalidade dos registros, e o valor da taxa equivalia a 21/2 por cento do valor do imóvel. Nem mesmo o Colégio da Bahia, detentor da enorme sesmaria no norte da Capitania, ficava isento de obrigações com a donatária, Dona Anna Maria de Atahyde e Castro. Em 08/05/1734, o próprio reitor comparecia ao cartório de Ilhéus para efetuar o pagamento de 2.400 réis referente a obrigações estabelecidas na carta de doação das terras do Camamu... de pagar o primeiro senhorio e é costume pagar certa águas, pagar cada um um tostão por ano. Transações financeiras envolvendo empréstimos a juros e hipotecas também movimentavam a vida econômica da Vila. Foram 8 registradas no mesmo período, como a que envolveu Roque de Araújo Soares, credor, e a Viúva Maria Pereira, que se viu obrigada a mandar a leilão duas casas para pagar dívidas do falecido marido, Domingos Jorge. Este devia 50 mil réis a Roque de Arauhjo, tomado a juros que começaram a correr desde 30 de junho de 1725. Dentre os credores particulares que aparecem nas 08 escrituras deste tipo encontradas nos dois livros em questão, a Igreja secular aparecia como um poderoso agente. Na escritura de obrigação (dívida) lavrada no dia 13/03/1734, ficava obrigado João de Gois e Araujo a pagar a quantia de 209.632 réis ao padre Antonio Brandão, procurador de Nossa Senhora da Vitória e do glorioso Sam Caethano. Devia o outorgado 40.160 réis à capela de Nossa Senhora da Vitória, 111.020 réis ao São Caetano e 58.452 réis de juros vencidos até o dia 22/12/1733. Quanto à forma de pagamento, não tinha dinheiro no presente para pagar a quantia do Santo e seus juros, mas se obrigou a pagar a quantia da Santa... Nas 46 procurações registradas nos livros 2 e 3 da série é possível identificar os homens de posses da 25 Vila . A análise panorâmica revela pessoas de considerável cabedal, como a viúva Margarida Correa, que nomeava em 07/05/1728 sete procuradores (4 em Ilhéus e 3 em Salvador) para administrar todos os bens do outorgante, tirar dinheiro de cofres, tomar contas a todos os devedores e tudo quanto cobrarem, confessarem haver recebido, dar quitações públicas... Os bens correspondiam a escravos, encomendas, dinheiro, contas correntes, créditos, verbas de testamento, codesilhos e tudo que seus forem. As redes comerciais também se deixam perceber pelas procurações. Quase todos os outorgantes eram moradores em Ilhéus e passaram procurações para administrarem seus negócios em Camamu e na cidade da Bahia. O predomínio de vestígios da vida econômica e social da elite da Vila de Ilhéus parece reforçar a advertência de Teixeira da Silva de que o uso sistemático e inadvertido das fontes cartorárias pode levar o historiador a desvios perigosos na análise de grupos sociais pobres ou relacionados com uma lógica diversa da norma legal, de cunho ocidental e burguês (1987,p.14). De fato, a prática cartorial não foi generalizada, sobretudo entre a população pobre, que se apossava de um pedaço de terra e lá reproduzia sua subsistência e também entre os índios, cuja relação com a terra obedecia à tradição do coletivismo. Entretanto, conhecer os principais proprietários e suas posses já lança muita luz sobre o passado de um território e sua população. Ademais, a terceira série de registros que constitui nosso banco, as cartas de alforria, é uma das poucas fontes que permite uma aproximação mais efetiva com o universo dos escravos da Capitania.26 25 Este mapeamento se constitui no tema da monografia de conclusão de curso da bolsista Neila Oliveira da Silva. 26 A dimensão da participação dos escravos na sociedade da Vila e os condicionantes das manumissões estão sendo investigados pela bolsista Fernanda Amorim em sua monografia de conclusão de curso. Do que foi possível analisar até aqui, 21 cartas de alforria em um espaço de quatro anos (livros 2 e 3), 15 envolveram o pagamento de indenização no valor médio do preço do escravo no mercado. Não temos, todavia, informações sobre as origens do dinheiro destinado a indenizar os proprietários, mas tal fato não deixa de acenar para a hipótese da presença de relações de produção que fundamentam o conceito de brecha camponesa. Outrossim, somente a ampliação da base de dados possibilitará avanços tanto neste tema, como nos outros que constituem o repertório de problemáticas que vimos apontando até aqui. Quadro 1 População das freguesias da Capitania de Ilhéus (1758/1818) Freguesias 1758 1818 Ilhéus Freguesia 1.130 2.400 Poxim Embuca Grande 62 Embuquinha 78 Patipe 140 Margens do rio Una 200 Barra do Rio de Contas Freguesia 1.060 Camamu Ilha 7 Freguesia 3.2001 Maraú Freguesia 1.1302 1.600 Cairu Freguesia 2.2103 Vila 5604 N. Sra. do Amparo, circuito 450 N. Sra. do Amparo, povoado 50 Maricoaba, povoado 46 Maricoaba, circuito 360 Galé, povoado 6 Galé, circuito 50 Camarogi, povoado 10 Camarogi, circuito 160 Taparoá, povoado 54 Taparoá, circuito 560 Boipeba Freguesia 2.417 Barcelos Vila 150 Olivença Termo 10005 6 Total da Capitania 11.147 – 1. distribuídos por 500 fogos; 2. distribuídos por 26 fogos; 3. distribuídos por 309 fogos; 4. ou 135 moradores; 5. distribuídos por 180 fogos; 6. exclusive Poxim. Fontes: para 1758: Relações; para 1818, Spix e Neuwied. Bibliografia: ANAIS da BIBLIOTECA NACIONAL do RIO de JANEIRO, volumes 31 (1913) e 37 (1915). CAMPOS, João da Silva. Crônicas da Capitania de São Jorge dos Ilhéus. Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1981. MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil (1612). Recife: Arquivo Público Estadual, 1955. MÖRNER, Magnus. Ensayos sobre historia latinoamericana; enfoques, conceptos y métodos. Quito: Corporación Editora Nacional/Universidad Andina Simón Bolívar, 1992. NEUWIED, Maximiliano, Príncipe de Wied. Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817. Belo Horizonte: Itatiaia-São Paulo: Edusp, 1989. SPIX, Johann Baptist von. Viagem pelo Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia-Edusp, 1981 [1817]. v. 2 TEIXEIRA da SILVA, Francisco C. Os arquivos cartorários e o trabalho do historiador. in: Revista Acervo, Rio de Janeiro, v.2, n.1, jan-jun.1987, p.5-16. HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL NEVES, Erivaldo Fagundes* A produção historiográfica sofre permanente mutação porque a análise histórica se faz com instrumental teórico e metodológico do presente, projetado sobre o passado. A escrita da história é provisória e incompleta, porque resulta de objetivos, formas e instrumentos de pesquisa variáveis, conforme o recorte temporal, a definição espacial, as circunstâncias sócio-culturais, político-econômicas e a qualificação técnica e especialização do historiador. A narrativa de fatos e circunstâncias com novos métodos e embasamento especulativos emerge por outras perspectivas e dimensões, influenciando-se também pelo ideário da época em que se escreve. Como reelaboração da filosofia da história, a historiografia, além da concepção inicial de arte da escrita da história, constitui conhecimento histórico, alcançando o conjunto das ciências históricas. Hegel caracterizou a filosofia da história como universal, um atributo da filosofia, não admitindo a possibilidade de uma teoria da história. Entretanto, há que se ressaltar o caráter pluralista da historiografia, como hoje se concebe, reconhecendo a diversidade de formas do conhecimento histórico e sua dependência da documentação disponível e dos princípios orientadores. Carbonell1 apresentou a historiografia como história do discurso que os homens elaboram sobre seu passado, reflexão sobre a produção dos historiadores. Para Agnes Heller,2 contrastando com a crônica que periodizaria mecanicamente, a historiografia faz datação orgânica, lidando sempre com o passado, nunca incorporando o futuro. Heller propôs reconstruir as idades passadas-presentes numa dimensão espaço-temporal, sem perder a perspectiva de que o presente contém o passado em forma da mensagem e sinais. Rogério Forastieri da Silva3 vislumbrou a historiografia como um estudo da história dos escritos históricos, métodos, interpretações e respectivas controvérsias. Para ele a preocupação historiográfica seria tão antiga quanto a própria história, porque o esforço dos historiadores por inovações em relação à narrativa e apresentação de visões de mundo diferentes exigiriam que eles assinalassem suas diferenças, produzindo, assim, discussões historiográficas. Uma historiadora norte-americana4 propôs ao historiador iniciar a escrita da história descobrindo o que aconteceu, deixando os porquês para depois de reunir os fatos e sequencia-los em frases, parágrafos, capítulos. Essa estratégia forçaria a emergência dos porquês na própria narrativa. Ela recomendou evitar o risco de se colocar em primeiro lugar o sistema de idéias com o qual se pretende fundamentar a abordagem, porque dificilmente se escaparia da preferência pelos fatos que melhor se ajustassem a ele. Outro aspecto apresentado como relevante para a produção da história-narrativa, o detalhe corroborativo – ilustração com fato, foto, mapa – confirmaria e corrigiria o historiador, que se satisfaz com o produto das fontes, diferentemente do romancista, que pode inventar esses detalhes corroborativos. Reescreve-se sempre a história, como ressalta José Carlos Reis,5 pela especificidade e imutabilidade do seu objeto de estudo. Novas fontes, técnicas e teorias levam à reavaliação do passado e das suas interpretações estabelecidas, repensando-o e ressignificando-o, em permanente renovação. Formulam-se novas questões ou reformulamse antigas, influenciando a representação que a sociedade em que vivem tem dela própria e do seu passado. Contudo, afirma Reis, a renovação teórico-metodológica não eliminaria o condicionamento da produção histórica em um presente e lugar social. Não criaria um efeito de neutralidade, imparcialidade, que aboliria a condição temporal do objeto e da pesquisa com o seu sujeito. A necessidade de se reescrever a história não seria uma condenação do conhecimento histórico ao subjetivismo, relativismo, ceticismo. Revelaria especificidades, singularidades, o caráter particular da objetividade que pode produzir. O historiador deve apoiar-se em problemas, conceitos e documentos. E sua interpretação histórica não eliminaria as anteriores nem evitaria futuras. O conhecimento histórico exigiria exame crítico da historiografia anterior, porque se constituiria, também, história da historiografia. Como conhecimento sistematizado que tem como objeto de estudo as práticas sociais, pode-se escrever a história com diversos métodos, dependendo das fontes que se utiliza. Nessa pluralidade metodológica a história regional e local consiste numa proposta de estudo de práticas de determinado grupo social historicamente constituído, conectado numa base territorial com vínculos de afinidades, como manifestações culturais, organização comunitária, atividades econômicas, identificando-se suas interações internas e articulações exteriores e mantendo-se a perspectiva da totalidade histórica. Pode-se aplicá-la numa região do Brasil: Nordeste, Sudeste; uma capitania, província ou estado, conforme o tempo escolhido: Bahia, Pernambuco; parcela de uma dessas unidades da federação, integrada num sistema de regionalização governamental como Chapada Diamantina, Vale do Paraíba; ou espaço isolado, reconhecido ao longo da sua formação histórica, como o Alto Sertão da Bahia; e até a um município ou parcela dele, desde que se ajuste às condições essenciais da sua proposição teórica.6 Na dimensão em que se exercite a história regional, como em qualquer método da pesquisa histórica, deve-se iniciar pela identificação das fontes, seguindo-se com a definição dos recursos metodológicos mais adequados a elas, para não se emaranhar em labirintos teóricos, que levem ao distanciamento do objeto de estudo. A interdisciplinaridade pode enriquecer a produção historiográfica quando teorias e métodos utilizados instrumentalizam a construção do conhecimento de um grupo social específico, de uma nacionalidade, ou outras dimensões da humanidade. A aplicação dos recursos investigativos da história regional e local, como de qualquer outra proposta metodológica, pressupõe sua articulação coerente com os fundamentos da teoria da história e da historiografia, para se verificar a validade dos seus métodos de narrativa e interpretação na representação do passado. Na formulação que atualmente se propõe, considera-se que a história regional e local tem origens na nova história, com as monografias de Emmanuel Le Roy e Pierre Goubert, na segunda geração dos Annales, que estabelecera um modelo alternativo para a história regional geral – abordagem das regiões econômicas mundiais – estudando as regiões da França. Nesses estudos, predominava a história social e econômica. Não se deve confundir o sujeito da história regional e local – o homem na sua prática social – com o do paradigma original – o espaço. Entretanto, o modelo explicativo da história regional geral de Emmanuel Le Roy e Pierre Goubert, conforme Lynn Hunt,7 assemelhava-se ao de Braudel: a geografia, as estruturas econômicas e mentais, a biologia e a demografia dominavam a longa duração, enquanto as relações sociais, mais nitidamente sujeitas às flutuações conjunturais, constituiriam uma segunda ordem de realidade histórica; e a vida política, a cultural e a intelectual configuravam um terceiro nível, dependente da experiência histórica. Priorizava a interação do primeiro – geografia, economia, mentalidades, biologia, demografia – com o segundo nível – vida política, cultural e intelectual. Desse modo, Braudel priorizou como objeto da sua história, não o homem, do Mediterrâneo, mas o próprio mediterrâneo. Apoiando-se em Pierre Goubert, Ciro Cardoso8 indicou os principais fatores de expansão dos estudos histórico-regionais: - íntimo e prolongado contato dos historiadores com a geografia humana; - a região constituir unidade de análise apropriada, na medida em que, até o século XVIII, a vida cotidiana estava mais marcada pela região do que pela nação ou categorias mais amplas; - o estudo do regional permite que um só historiador, artesanalmente, utilize a totalidade da documentação disponível; - possibilidade de seguir, na longa duração, a evolução de uma comunidade regional nos níveis demográfico, econômico, social, ideológico e outros, acompanhamento difícil no âmbito de um país. A partir da década de 1970, a pesquisa histórica estendeu-se para diversidade temática, antes desconhecida. Experiências heterogêneas e reflexões críticas ampliaram as variáveis, tornando-as mais complexas e menos rígidas, influenciadas pela interdisciplinaridade, associando, principalmente, história e antropologia, vinculando história e região, embora o estudo dessa dimensão espacial não recebesse o mesmo tratamento teórico e metodológico. Michel Foucault,9 desconstuindo a geografia, argumentou que a região geográfica e a militar, seria a mesma, ambas originadas de regere, comandar; do mesmo modo que província, território vencido, advém de vincere. Na mesma linha teórica, Durval Muniz de Albuquerque Júnior,10 considera que região, antes de remeter à geografia, encaminharia para uma noção fiscal, administrativa, militar. Antecedendo a qualquer aproximação de divisão natural do espaço ou recorte econômico, a idéia de região ligar-se-ia, prioritariamente, às relações de poder e sua espacialização, a uma visão estratégica do espaço, seu recorte e sua análise, que produz saber, uma noção que indicaria espaço sob domínio, comandado, surgida no espaço dos litigiantes; aproveitamentos estratégicos diferenciados do espaço. Poder-se-ia, portanto, pensar historicamente região como emergência de diferenças internas de qualquer nação, no que concerne ao exercício do poder, como recortes espaciais que surgem do enfrentamento de diferentes grupos sociais. A regionalização das relações de poder desdobrar-se-ia em zoneamentos da produção, relações de trabalho, práticas culturais, sem que estas determinassem sua emergência. Entretanto, como observou O’Brien,11 a contribuição de Foucault para a escrita da história, não seria a sua teoria social, mas uma metodologia, desenvolvida através do seu estudo de poder/saber/cultura. Seu método tentara não tomar nada por garantido. Questionou a periodização tradicional e a necessidade de histórias nacionais. Sua própria facilidade como historiador teria origem num país, a França e num período, do século XVII ao XIX. Seu método genealógico seria muito aleatório e pouco consistente e invertera os pressupostos, enredando o discurso na sociedade, nas instituições e na economia, em vez de uni-lo a si próprio, mas o que incluir ou excluir continuara perturbando seus críticos. Ainda conforme Albuquerque, ao criticar o regionalismo e assumir a região como conscrição, a história regional estaria presa à dizibilidade regionalista, vinculada à rede de poderes que sustenta a idéia de região como referencial válido para instituir um saber, um discurso histórico. O questionamento de região, como idéia fixa, passaria pela crítica da história, que participou desta cristalização identitária, pela retirada das fronteiras do espaço historiográfico, porque o nacional e o regional não seriam critérios de validação de uma produção historiográfica, nem referenciais pertinentes para fundar uma epistemologia. A história regional contribuíra para colocar a idéia de região em outro patamar, legitimá-la, atribuir-lhe veracidade, dando a ela uma história e tentando lhe dar uma base material. Substituindo a categoria espaço pela noção de poder na idéia de história, Foucault prescindiu da geografia, produzindo conhecimento que transcendeu os limites definidos, até então, para a história. Do mesmo modo agiu Albuquerque Júnior, abstraindo a configuração física e destacando a instância cultural, distanciando-se do conceito de espaço, tanto no âmbito nacional, quanto regional e local. O Nordeste seria onde reina o baião. Desse modo, o conhecimento histórico produzido sobre o Nordeste Brasileiro, paira sobre práticas culturais de determinado tempo – século XX – ignorando recortes geográficos, não constituindo saber histórico nos moldes formais modernos, mas conhecimento novo, de fronteira, transdisciplinar. Considera-se, entretanto, que o conceito de região, pela imprecisão dos limites espaciais possibilita utilizações inadequadas. Nesse sentido, Ilmar de Mattos12 destacou que a região não se restringe aos limites administrativos como os das capitanias, províncias e estados no Brasil, conforme o recorte temporal preferido, nem se referencia no fato de um grupo de indivíduos coabitar o mesmo território, porque essas práticas não estabelecem, necessariamente, redes de relações sociais, nem desenvolvem consciência de pertencimento a universo comum, embora uma região se firme sobre uma base territorial. Para Mattos, se a região localiza-se num espaço – o Alto Sertão da Bahia, por exemplo – este se distinguiria mais por ser socialmente construído, que por suas características naturais; da mesma forma, se a região situa-se no tempo, este se destacaria mais como um determinado tempo histórico – o tempo da relação colonial, que por sua localização meramente cronológica. Nessas circunstâncias, a delimitação espaço-temporal existiria enquanto materialização de limites, a partir das relações sociais. No Brasil, com longa tradição corográfica – recurso de escrita da história associada à geografia – focalizando recortes espaciais internos, retomou-se o interesse pelo regional a partir de meados da década de 1950, com o Grupo de Trabalho para Desenvolvimento do Nordeste – GTDN, coordenado por Celso Furtado, na implementação do Plano de Metas de Juscelino Kubitscheck. A partir de então, muito se escreveu sobre região, tanto no setor governamental, quanto no meio universitário. Sob influência externa e sem vinculação direta com o velho modelo corográfico, nas últimas décadas do século XX, a história regional e local desenvolveu-se, dedicando-se à análise do cotidiano de uma ou mais comunidades, articuladas por estreitos vínculos geográficos, históricos, sociológicos, culturais e econômicos, proporcionando a alternativa de se estudar a totalidade histórica a partir de um recorte espacial. A dimensão do território brasileiro, multi-regionalizado, oportunizou elaboração de monografias histórico-descritivas municipais e estaduais, nos moldes corográficos e essa tradição reforçou a tendência para a pesquisa histórica regional e local, com aporte teórico-metodológico novo. No âmbito acadêmico, produziuse mais sobre o regional nos campos da geografia e economia, embora não alcançasse avanços conceituais significativos. A concepção de história regional e local passa, pois, pela imprecisa idéia de região, variável conforme o universo escolhido, podendo abranger vasta área: Nordeste do Brasil; alguns municípios: Recôncavo; ou circunscrever-se a uma parte de determinado município. Delimita pelo relevo: Chapada Diamantina, Serra Geral; hidrografia: Médio São Francisco; solo, vegetação, clima: gerais, caatinga, cerrado, vereda, tabuleiro, baixios; ou atividades econômicas: Lavras Diamantinas, Costa do Dendê, Zona Cacaueira. Caracteriza-se, pois, região como determinado recorte espacial com algumas particularidades – físicas, sociais, econômicas, políticas, étnicas, culturais – historicamente articuladas numa espacialidade mais ampla, até o alcance da totalidade. Ciro Flamarion Cardoso,13 pioneiro no estudo da história regional associada ã história agrária, abordou regionalização operacionalmente, considerando variáveis e hipóteses, admitindo outras alternativas de recortes espaciais e blocos regionais, sem pretender que a opção adotada seja a única verdadeira, porque: - qualquer delimitação territorial, seria uma abstração, simplificação de uma realidade mais complexa para finalidades de pesquisa ou de ação prática; - as relações entre homem e espaço, básicas na definição do regional, modificar-seiam no tempo, conforme as variáveis de organização e exploração do meio ambiente pelo grupo humano que, por sua vez, dependeria do nível de desenvolvimento das forças produtivas. A caracterização do espaço escolhido para estudo, recomendou José Mattoso,14 não deve se limitar apenas à sua descrição, o que se conseguiria, sobretudo, através da cartografia e da fotografia. Seria fundamental analisá-lo para compreender sua função histórica, devendo-se acentuar os significados de: - relevo, altitudes, natureza e constituição dos solos, hidrografia, proximidade do litoral, oscilações climáticas, meteorológicas, movimento dos ventos, intensidade pluviométrica, todos fatores intervenientes da cobertura vegetal; - processo de ocupação econômica do território – pecuária, agricultura – efeitos da ação do homem sobre a natureza, condições da vida humana, capacidade produtiva do solo, possibilidades de comunicação, migrações, circuitos comerciais, contatos com o exterior, limites e compartimentação geográfica da área, todos elementos mediadores da história. Resumindo seus argumentos, as reflexões teórico-metodológicas da história regional e local propõem estudar, a inserção do homem no meio físico, articulações sociais, natureza e dimensão das atividades produtivas, circuitos comerciais, geografia dos poderes, manifestações culturais. Dever-se, como argumentou de Marisa Lajolo,15 extrapolar o contexto material para o plano das atividades intelectuais, alcançando, a literatura regional, que se ocupa, com a linguagem como código de que se tece a literatura e a própria concepção da literatura como linguagem. A investigação articulada desses fatores, em níveis regional e local, sem perder a perspectiva da totalidade histórica, possibilita alargar as fronteiras temporais e aprofundar a análise do conjunto multifacetado nacional. Como anotaram as autoras de três ensaios que integram República em Migalhas: história regional e local,16 ao focalizar o peculiar, o estudo do regional redimensiona o nacional, que ressalta as identidades e semelhanças, enquanto o conhecimento do regional e do local destaca as diferenças e diversidades, com enfoque no indivíduo integrado no seu meio sócio-cultural, político-econômico e geo-ambiental, na interação com os grupos sociais em todas as extensões, alcançando vencidos e vencedores, dominantes e dominados, conectando o individual com o social. Contrariamente à idéia de fragmentação do objeto de estudo e parcialidade dos resultados finais da pesquisa, a história regional e local, sem perder a dimensão de totalidade, restringe o universo espacial de estudo, permitindo ampliação do temporal, com interdisciplinaridade. Na pesquisa histórica, a importância do documento varia conforme o objetivo e o método empregado na pesquisa. Os historiadores, críticos por formação, em relação aos documentos, devem considerar que transcrevem ações simbólicas do passado sem inocência nem transparência, elaborando com diferentes intenções, recorrendo a estratégias diversas. Por conseguinte, sua leitura exige também recursos específicos. No atual estágio de desenvolvimento, a pesquisa histórica no Brasil prioriza a documentação municipal, eclesiástica, cartorial, o que estimula o interesse pelo estudo do regional e local, como os inventários post-mortem, o testamento, escrituras de terras e de escravos, cartas de liberdade de cativos, contratos comerciais. As correspondências de autoridades – delegados, juizes, vigários, presidentes de câmaras, intendentes, comandantes de milícias coloniais, da Guarda Nacional – aos presidentes de províncias e entre si, nas diferentes hierarquias, relatam fatos de naturezas diversas do cotidiano de cada universo social, oferecendo, às vezes, versões alternativas do mesmo episódio. Os registros paroquiais de terras, determinados pela Lei das Terras – Lei Imperial n° 601, de 18 de setembro de 1850, regulamentada pelo Decreto n° 1.318, de 30 de janeiro de 1854 – constituem o primeiro cadastramento fundiário de âmbito nacional no Brasil, realizado por freguesias, que correspondiam às jurisdições distritais. Outra fonte, os autos de devassas, processos cíveis e crimes, ocorrências policiais – conflitos interpessoais, e interfamiliares, assassinatos, roubos, furtos, contravenções, questões de terra – em conjunto, oferecem uma radiografia do cotidiano comunitário, dos viveres e saberes de um grupo social de determinada época ou algum recorte temporal mais amplo. A leitura das articulações políticas faz-se através de registros eleitorais: atas, processos de impugnação de eleições, termos de posse. As posturas municipais e as leis orgânicas dos municípios indicam os parâmetros das relações sociais. Para estudos demográficos, deve-se procurar os registros eclesiásticos: batismo, casamentos, óbitos, produzidos por paróquias e crismas, por dioceses. Os registros financeiros e contábeis das câmaras e prefeituras são também úteis para a pesquisa histórica. Podem até constituir no único registro sobre monumentos, obra pública, edificações particulares. Receitas e despesas municipais revelam mais que dados estatísticos: traduzem a gestão dos interesses comunitários, indicam os parâmetros da economia municipal e suas vinculações com outras instâncias do poder e suas articulações mercantis, indicando origens e destino das mercadorias comercializadas. A documentos de empresas privadas pode permitir estudo de emprego e renda e outras informações úteis. Deve- se também recorrer aos arquivos particulares de líderes políticos que conservam correspondências e documentos interessantes sobre o universo em que atuam. Nesses arquivos familiares, sobressai a icnografia dos álbuns de família, que perpetua imagens de pessoas, monumentos, paisagens, registrando instantâneos de usos e costumes, expondo facetas da realidade cultural. Como fonte primária impressa, os periódicos – jornais, boletins, revistas – são expressões do cotidiano que se propõem representar ou influenciar. Entretanto, a utilização do jornal como fonte histórica exige cuidado, porque se pode publicar uma notícia num dia e modificá-la ou negá-la noutro. Recomenda-se somente extrair informações de um jornal depois de conhecer a cronologia dos fatos e certificar-se da sua veracidade. A oralidade produzida com entrevistas de pessoas de longa vivência ou fortes vínculos culturais na comunidade estudada, de notório saber sobre ela ou que, com ela, estabeleceram relações prolongadas, pode contribuir para a escrita da história. Nesse processo, o historiador deve observar as normas da entrevista e produção de documento oral, avaliando a relevância e precisão dos fatos narrados pelo entrevistado. Deve-se, ainda, recorrer a fontes secundárias, também do interesse de arquivos, museus e bibliotecas. A literatura – romances regionais, memórias, crônicas, biografias, genealogias, poesia, cordel – traduz os valores de grupo social, do mesmo modo que as corografias ou memórias histórico-descritivas municipais que tanto se produziu no século XIX e primeira metade do XX. E assim, num exercício de heurística, encontram-se fontes para a pesquisa histórica, até nas paisagens rurais e urbanas, onde aparecem vestígios da ação humana – estradas, pontes, canais, jazidas, instalações fabris, alojamentos militares ou de viajantes, moradias, depósitos, em ruína ou conservadas – ainda que de datação difícil têm aproveitamento histórico, igualmente a toponímia urbana ou denominação de logradouros, instituições e estabelecimentos públicos, povoações, distritos; e na rural, nomes de fazendas, localidades, acidentes geográficos. Quanto aos procedimentos na pesquisa histórica, deve-se distinguir método, o que o historiador pratica, de metodologia, o que ele teoriza ou recomenda. Daniel de Souza17 adverte que não se pode orientar qualquer pesquisa histórica, nem simples registros de fatos e recomendar método ou técnica de coleta e seleção de dados sem considerar as circunstâncias político-econômicas e sócio-culturais da época de cada evento estudado e identificar, desde formas de organização social a modos de ver e sentir de cada geração envolvida no objeto de estudo. O método histórico, na definição de Astor Antônio Deihl,18 seria uma constelação de regras sobre como se deve pensar o passado e normas da pesquisa, que refletem sobre referências pontuais, na perspectiva de orientação no espaço cultural do presente. A tradição iluminista recomenda iniciar a pesquisa histórica com a heurística, identificando e catalogando fontes, seguindo-se com a coleta, catalogação e qualificação das informações relevantes para o objetivo do estudo, quantificando dados, se optar por esse recurso metodológico da sociologia. Após a sistematização de dados e informações passa-se à crítica, examinando-se a plausibilidade dos resultados, perguntando-se o que, quando, como e porquê o evento estudado ocorrera. A interdisciplinaridade, pode, nesse estágio, auxiliar na verificação da veracidade do produto dos mananciais da pesquisa. Conclui-se a seqüência com a interpretação, analisando-se o resultado final na perspectiva das fontes, unindo intersubjetividade testável, componente dos fatos passados, com a dimensão de tempo. Deve-se explicar todas as etapas examinadas, considerando-se fundamentação teórica, condicionamentos e conseqüentes. * Professor titular da UEFS – e-mail: [email protected] 1 CARBONELL, Charlews-Oliver. Historiografia. Lisboa: Teorema, 1992, p. 6; ARRUDA, Jobson; TENGARRINHA, José Manuel. Historiografia luso-brasileira contemporânea. Bauru: EDUSC. 1999, p. 11. 2 HELLER. Agnes. Uma teoria da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p. 101, 102, 185, 186, 197. 3 SILVA. Rogério Forastieri da. História da historiografia: capítulos para uma história das histórias da historiografia. Bauru: EDUSC, 2001, p. 26- 27. 4 TUCHMAN, Bárbara Wertheim. A prática da história. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 13, 14, 15. 21, 27. 5 REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1999, p. 7-12 6 Para uma discussão mais ampla sobre a matéria, ver: NEVES, Erivaldo Fagundes. História regional e local: fragmentação e recomposição da história na crise da modernidade. Feira de Santana: UEFS; Salvador: Arcadia, 2002. 7 HUNT, Lynn. História cultura e texto. In: ____. (Org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 97, 130, 112. 8 CARDOSO, Ciro Flamarion S. História da agricultura e história regional: perspectivas metodológicas e linhas de pesquisa. In: ____. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 13-93. 9 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 14. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999, p. 158. 10 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN e Massagana; São Paulo: Cortez, 1999, p. 25. 11 O’BRIEN, Patrícia. A história da cultura de Michel Foucault. In: HUNT, Lynn. (Org.). Op. cit., p. 33-62. 12 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: HUCITEC; Brasília: INL, 1987, p., p. 24. 13 CARDOSO, Ciro Flamarion S. Op. cit., p. 13-93. 14 MATTOSO, José. A escrita da história: teoria e métodos. Lisboa: estampa, 1988, p. 171. 15 LAJOLO, Marisa. Regionalismo e história da literatura: quem é o vilão da história?. In: FREITAS, Marcos Cezar de. (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto; Bragança Paulista: Universidade de São Francisco, 1998, p. 297-327. 16 SILVA, Marcos A. da. (Org.). República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero; Brasília: CNPq, 1990, p. 7-49. 17 SOUZA, Daniel de. Teoria da história e conhecimento histórico. Lisboa: Horizonte, 1982, p. 206-208. 18 DIEHL, Astor Antônio. Do método histórico. Passo Fundo: EDIUPF, 1997; SALMON, Pierre. História e crítica. Coimbra: Almedina, 1979.