Monumento íntimo1 Leila Danziger Pirâmides, arcos de triunfo e obeliscos são pilares de gelo que derrete. W.G.Sebald Distanciava-se da aléia principal, apressava o passo, e se lançava numa corrida desabalada, desaparecendo na primeira encruzilhada do Jardim. Fugir era a brincadeira preferida, transgressão regulamentada naqueles passeios de domingo. Corria sem olhar para trás, aproveitando a suposta distração dos pais, que costumavam ler o jornal, sentados num banco de madeira não muito distante do chafariz central. A menina conhecia de cor aquela pequena porção do Jardim Botânico, onde troncos, folhagens e tabuletas de nomes formavam constelações que orientavam seu caminho. Ao se sentir longe do grupo familiar, estancava a corrida e saboreava a autonomia conquistada. Ao cruzar com pessoas estranhas, inflava-se de orgulho e exibia, desafiadora, sua solidão. Media o tempo transcorrido apenas pela excitação crescente e quando seu relógio interior lhe fazia sinal, dirigia-se ao lugar combinado, onde seu irmão a aguardava. Ao chegar, encontrava o menino absorto no ritual de atirar pedras que riscavam no ar um arco majestoso e, às vezes, transpassavam o vazio denso do Portal. Seu desafio era acertar os vãos das arcadas superiores, onde há mais de um século erguiam-se as janelas da Academia Imperial de Belas Artes. O portal era uma construção feita de cheios e vazios, passado espesso e esquecimento. A menina o cruzava como quem chega à própria casa, com reconhecimento, intimidade, alívio. Leve e infensa à densidade das ausências que ali habitavam, atravessava o que fora um dia a entrada principal do edifício neoclássico, dirigindo-se ao avesso da história que desconhecia. Vista pelos fundos, aquela fachada solene, que no século XIX fizera parte da paisagem carioca nos arredores da Praça Tiradentes, lembrava suas bonecas de papel, nas quais prendia roupas também de papel. Não entendia o que aquela construção fazia ali, plantada no Jardim Botânico. O que era aquilo afinal? Uma passagem que não conduzia a lugar algum, uma quase-casa fincada inutilmente entre palmeiras e bambuzais. Preferia observar a fachada pelos fundos, repleto de inscrições menos crípticas que as informações da placa cravada próxima ao monumento. A cada visita, ela lia e relia as mesmas informações oficiais e sucintas da placa informativa, que eram imediatamente esquecidas. Ou quase. Deixavam vestígios tênues, como frases apagadas num caderno. De modo quase imperceptível, o lastro da história depositava-se em suas brincadeiras, tornando-a antiga, desde cedo tão antiga. Lentamente, o passado adquiriu forma em sua vida: nada mais que um sonho, confuso e indecifrável, mas recorrente. Na parede do pórtico, esquecido entre história e natureza, a menina deixaria também suas marcas. Munida de uma pedra pontuda, desenharia casas, flores e astros, com traços tênues e enrijecidos pela dificuldade imposta pelo material. Gostava do atrito da pedra na parede, excitava-se com o esforço vigoroso que o gesto exigia de todo o seu corpo. Desenhava pelo puro prazer de traçar, riscar, mover-se naquela parede entre o céu, o Jardim e o tempo. 2 3 Certas vezes, enquanto o irmão distraído riscava no solo arenoso complicados diagramas, a menina escorregava os dedos por baixo da roupa, por dentro da calcinha de algodão. Demorava-se apenas o suficiente para sentir sua própria maciez e umidade. Mas essa pequena transgressão era apenas um sinal, quase uma senha, de uma outra ainda mais saborosa: a de entregar-se ao devaneio de imaginar a própria vida, toda a sua vida, muitas vidas. Sentada no chão, com as costas apoiadas na parede fria daquele belo e monumental destroço de nossa história imperial, ela mexia nos dedos dos pés e se entregava ao mais vigoroso devaneio. Imaginava-se veterinária ou dançarina, flautista ou deputada, ora casada ora solteira, teria filhos gêmeos e unhas longas, viveria paixões (ah, tantas paixões), seria ardente e misteriosa, justa e frágil, destemida e voraz... Sob o pórtico, tudo lhe parecia vasto e possível: o jardim, a vida e a própria carne se misturavam em sonhos de amplidão e intensidade. Mas em seu devaneio infiltrava-se também um sopro leve de cinzas, uma matéria volátil, uma versão infantil daquilo que através dos séculos chamam melancolia, um sentimento difuso e precoce de perda, como se desde cedo ela antevisse a dissolução de tantos sonhos. Era como se o segredo de sua vida e de seus numerosos destinos se conectasse estranhamente ao Portal, ainda hoje carregado de promessas e expectativas de um futuro nacional esplêndido, majestoso, e sempre, sempre adiado. É possível que, para a menina, aquela ruína tenha se convertido numa espécie de monumento íntimo às possibilidades infindáveis de sua vida, pois ali retornaria, às vezes apenas na imaginação, sempre que sentisse saudades de si mesma. Com contido desespero, retornaria ao Jardim Botânico, ao pórtico desterrado, a cada vez que a vida lhe decepcionasse, a cada vez que lhe parecesse necessário e urgente reativar a potência delicada de seus sonhos e salvar do esquecimento seus pequenos impérios de menina. 1 Publicado em Musas, Revista Brasileira de Museus e Museologia, nº 3, 2007, Rio de Janeiro, Instituto de Patrimônio Artístico e Cultural, pp. 173 - 174. 4