crónica Rui Cardoso martins O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades. Almada Negreiros: um poliedro português Se é provável que Almada Negreiros não soubesse sempre o que ia fazer nesse dia, também não sei — duvido de que alguém saiba — por onde começar quando falo dele. 38 Poeta, pintor, escritor de manifestos e provocador de tumultos, caricaturista, romancista, pintor de frescos e murais, ensaísta, bailarino, crítico de arte, ator, cenógrafo, novelista, coreógrafo, vitralista de igrejas, dramaturgo, ilustrador, ‘Narciso do Egipto’, conferencista e por aí adiante. Almada Negreiros (1893- 1970) nasceu em S. Tomé e Príncipe há 120 anos, e como artista — é suficiente dizer Almada — há 100 anos, quando fez a primeira exposição individual. Teve o cuidado de pedir em 1923: «Por amor de Deus, não me obriguem a explicar nada do que eu digo», deixando muito trabalho às gerações seguintes. A frase é lembrada pelo crítico José Augusto-França a abrir o prefácio da obra completa de Almada, que tenho aqui na mesa, uma bela edição em papel bíblia, com ilustrações e capa vermelha, publicada no Rio de Janeiro pela Nova Aguilar, em 1977. Também não o sei explicar nem há espaço para isso. Mas viro para mim em voz alta, por assim dizer, alguns dos lados mais importantes de Almada. Como um sólido geométrico, um poliedro irregular, um mistério de trabalho incansável em várias artes, mas, também, um mestre de respostas imediatas e desconcertantes. Como aquela vez em que alguém, para dizer mal de uma sua exposição, usou o francesismo «...remarca-se em Almada Negreiros...», ao que ele respondeu «Vossa Excelência trompa-se». Ou o escritor que inverteu a linguagem e os advérbios na conclusão «disse ela com um felizmente.» Almada, vanguardista e futurista de temer. O homem que disparou com violência contra o Portugal da literatura e do teatro sentimentalão, antigo, repenicado, o vingador Almada Negreiros que se atirou aos que atacaram (precipitadamente...) a nova linguagem da revista Orpheu (Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Santa-Rita, Amadeo de Souza-Cardoso, o próprio Almada, tratados como farsantes que deviam ser ignorados, ou maluquinhos internados). Foi o caso do célebre — hoje não, por boas razões, por culpa de Almada — médico e escritor Júlio Dantas, que foi transformado numa espécie de bobo português na ponta da língua: «o Dantas cheira mal da boca, se o Dantas é português, eu quero ser espanhol, o Dantas usa ceroulas» etc., culminando num basta: «Basta pum basta! Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi! É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero! Abaixo a geração! Morra o Dantas, morra! Pim!» [... mas tenho aqui na mesa a Ceia dos Cardeaes, cópia fac-similada da primeira edição de Dantas, num marroquim vermelho como o livro de Almada, e acho que o futurista fez muito bem em partir as coisas, mas... mas a peça é muito bem escrita, tem um final comovente, «como é diferente o amor em Portugal» soa perfeito, e todos os que leem Almada deviam ler Dantas, talvez este explique o primeiro...] Com maior intensidade ainda, Almada escreveu, em 1915, A Cena do Ódio, poema com um inacreditável começo para a época (publicado em 1923): «Ergo-me Pederasta apupado d’imbecis, Divinizo-me Meretriz, ex-libris do Pecado e odeio tudo o que Me não é por me rirem o Eu!» E o final do Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século XX (1917): «O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades.» Um texto que mostra também, o edifício de contradições em que entramos ao ler Almada, espelhando lados contrários do artista. O que mais tarde desenhou um selo em louvor de Salazar, antes usou expressões racistas (sendo filho de mestiça) — «e pões-te a rir, como os pretos, sem saber porquê» — e sexistas — «É preciso educar a mulher portuguesa na sua verdadeira missão de fêmea para fazer homens», chega-vos? Depois de fazer na juventude a apologia da guerra — «É a guerra que proclama a pátria como a maior ambição do homem. É a guerra que faz ouvir ao mundo inteiro p'lo aço dos canhões o nosso orgulho de Europeus», acabaria a atacar o papa do futurismo italiano, Marinetti, quando este veio a Portugal transformado em ministro de Mussolini. Para Almada, o poder político não podia dominar o artista. Almada morreu na mesma cama do Hospital de São Luís dos Franceses, no Bairro Alto, onde falecera Fernando Pessoa. Um amigo que celebrizara em pintura, pondo-o a escrever no Martinho da Arcada de pés cruzados como um arlequim. Pouco antes de morrer, em julho de 1969, Almada fez uma extraordinária aparição pública, no programa de televisão Zip-Zip. Não sei se foi trapezista, mas tapeçarista também foi. Com uma vénia a Almada, este esboço acaba aqui.