POLÍTICA E PROVIDÊNCIA NO INFERNO DE DANTE: UMA
PERSPECTIVA SEMIOLÓGICA.
Roberto Silva de OLIVEIRA
[email protected]
Prof. Auxiliar do Departamento de História da UESB
A representação de uma realidade está condicionada as estruturas de mundo
daquele que a produziu. Por conseqüência, ela é também produto de uma leitura,[1] de
uma necessidade individual de conhecimento, de reconstrução de sentido e de
comunicação do universo reconstituído.[2] Isto impõem duas questões fundamentais:
primeiro, saber o que fundamenta a construção simbólica da realidade; segundo, buscar
compreender o que se interpõe entre o universo da representação e o mundo concreto do
sujeito,[3] onde toda “verdade”, todo discurso pressupõe uma correlação de forças
articuladas em função da edificação de fronteiras de poder.[4] A compreensão desse
universo representado impõe o reconhecimento histórico das estruturas do mundo de
seu produtor.
O trabalho que doravante apresentamos tem por objetivo compreender o sentido
histórico das lutas políticas e sociais da Itália no final do século XIII e início do XIV.
Tal estudo tem como objeto o Inferno, primeiro livro da Divina Comédia, obra do poeta
florentino Dante Alighieri. As imagens aí postas formam um caleidoscópio de horrores
cuja força descritiva torna-se chave para a compreensão das lutas na dimensão particular
de seu autor.
Historicamente, as lutas verificadas na Itália entre os séculos XIII e XIV, citadas
na Obra do poeta florentino Dante Alighieri, têm suas origens nas transformações
políticas, econômicas e sociais do fim da Idade Média; é decorrência da incansável
querela entre o poder político e o religioso, entre reis e papas.[5] Tais rivalidades
produziram o enfraquecimento tanto do poder real quanto do pontifical e, por sua vez,
contribuiu para o fortalecimento das pequenas unidades políticas denominadas cidadesestados.
No vácuo deixado pela ausência de uma força centralizadora, a Itália se
transformou em palco de intensas lutas pela posse e controle do poder político. O
desenvolvimento e a intensificação das práticas comerciais deram origem à classe
média, a gente nuova ou popolo,[6] e, como conseqüência, o recrudescimento das lutas
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diversidade na Antiguidade e no Medievo.
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internas.
No curso dessas transformações surgiu a obra de Dante Alighieri, misto de poeta,
pensador, político e, para outros, teólogo.[7] Dante foi um homem de dois mundos: um
que se fechava sob os véus diáfanos da Idade Média e um outro que alvorecia sob o
signo da modernidade.[8] Sua obra se inscreve no quadro das lutas florentinas e, por sua
vez, da cultura ocidental, como uma síntese dos aspectos morais, políticos e sociais da
Itália na fronteira entre a Idade Média e a Moderna. Por meio do primeiro livro da
Divina Comédia – o Inferno –, buscamos compreender as mudanças sociais e políticas
da Itália entre os séculos XIII e XIV. Observamos que através dele o poeta buscou
conferir sentido a um mundo que se encontrava em desacordo com suas perspectivas.
A Divina Comédia foi escrita entre 1306 e 1321 e é composta de três partes: o
Inferno, o Purgatório e o Paraíso. O primeiro deles é composto de 34 cantos, enquanto
que os outros dois contém 33 cantos cada um. Nela o Poeta narra sua passagem por
esses três locais descrevendo as situações vividas, as penas e as pessoas que neles se
encontram. O itinerário construído vai das trevas a luz; começa no Inferno, passa pelo
Purgatório e vai até o Paraíso, a morada do Altíssimo.
O Inferno, composto por nove círculos concêntricos, é o objeto de nossa
pesquisa; o local onde são sentenciados os indivíduos que, segundo Dante, se arrolaram
nas torpezas do mundanismo. A narrativa começa com o Poeta descrevendo as
condições que o lançaram àquele orbe. Dante, que havia se envolvido nos
acontecimentos políticos de sua comuna sentia-se perdido,[9]* ou, segundo suas
próprias palavras, havia sido “[…] tolhido de sono e abandonado a verdadeira via”.[10]
Ele tenta retornar, mas, ameaçado pelas feras que dominam aquele ambiente, é levado a
trilhar o caminho que a Providência lhe preparou. Florença e sua política,
historicamente constituída nas disputas entre Negros e Brancos,[11] são representadas
na figura da “[…]“selva selvagem, rude e forte, que em pensar renova o medo” (Inferno
I, 5-6).[12] A origem dessas lutas, conforme o Poeta, estava no aumento da riqueza e na
degradação dos hábitos morais de sua gente. O mundo representado nesse começo de
obra confirma a anarquia política e social que colocou, em campos opostos, nobreza e
burguesia. O tour de force social, teve, conforme Dante,[13] suas origens na:
[…] rivalidade semi-histórica e semilendária das famílias Buondelmonte e Uberti […].
Enquanto [essas] duas famílias se exterminavam mutuamente, as guildas, ganhando
lentamente força, obtiveram o auto-governo para a cidade; em 1247 passou a existir
uma constituição republicana e a introdução em 1252 de uma moeda unitária, o florim,
simbolizou a vitória da classe média sobre a nobreza (HELLER, A. 1992, p. 41).[14]
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Nessa outra Florença apresentada por Dante em sua obra, os princípios de
fraternidade que regiam a sociedade antiga, obliteravam-se ante o processo de
desintegração da ordem comunal. A cidade na qual viveu o Poeta pouco se assemelhava
àquela de outrora – a Antica Fiesole.[15] Alienado da condição nobremente construída
em razão de sua procedência, dos predicativos de vir litteratus[16] e de sua posição
política,[17] Dante Alighieri buscou encontrar um novo caminho que o permitisse a
compreensão e o contorno àquela situação.
A viagem de Dante no Inferno começa pelo despertar do sono que o tolhia. O
Poeta adentra uma selva escura (Inferno, I, 2), metáfora de uma realidade confusa,
conturbada, imersa no caos e na anarquia. Nesse mundo de sombras selvagens, símbolo
da desordem política que se abateu sobre Florença, as ameaças reais se lhe afiguram
enigmáticas e se configuram em obstáculos que precisam ser vencido. São três os
perigos que ameaçam a integridade do Poeta no início de sua jornada: uma onça, um
leão e uma loba. As ações aferidas aos animais são reforçadas pelos predicativos que
lhes acompanham. A onça aparece “[…] ligeira e desenvolta de pêlo maculado
recoberta […]” (Inferno I, 32 e 33); o leão “[…] com a fronte erguida e com fome
raivosa […]” (Inferno I, 47); a “[…] loba, de cobiça ansiosa, em sua torpe magreza,
carregada […]” (Inferno I, 49 e 50). Essa bestia,[18] cujos “[…] impulsos perversos e
aberrantes fazem que nada poderia saciá-la […]” (Inferno I, 97 e 98), é o mais perigoso
das três feras. “Com animais diversos se acasala […]” (Inferno I, 97 – 100). Este é o
caráter da ganância e da avareza simbolizado na fome do leão e da loba. Para Dante
estes males eram frutos da sedução que os bens materiais exerciam sobre os homens de
sua época. Segundo Dante, à medida que os homens faziam da riqueza o objeto de suas
vidas, seu caminho para felicidade, sua natureza original era transformada abrindo
espaço para a loucura e a perdição.[19] Os ímpetos que animavam essas feras
encontradas nesse início de viagem caracterizam o contexto das lutas entre Brancos e
Negros pela posse de Florença. Seus impulsos estão presentes em toda a Obra como
símbolo de malícia, lascívia, fraude, calúnia, intriga, soberba, arrogância, prepotência,
cupidez, aviltamento, ganância e avareza. Entretanto, o caráter transitório do mal é
confirmado na esperança do Veltro[20] que chegaria para pôr fim às ações desses
animais e principalmente as da loba. A respeito da natureza do Veltro, Dante definiu da
seguinte forma: “Esse não buscará terra ou troféu, mas só sabedoria, amor e virtude”
(Inferno I, 103 e 104).[21] Mais à frente, continua o poeta descrevendo as ações desse
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animal: “Dará a infeliz Itália a plenitude” (Inferno I, 106).[22] E, por fim, indica o lugar
natural do Veltro: “[…] Será entre o Feltro e Feltro o berço seu” (Inferno, I, 105).[23]
Todavia, o Poeta deu a esse animal predicativos só factíveis à natureza humana. E, não
obstante, indica o lugar de seu nascimento.
Este mesmo discurso reaparece, agora no Paraíso em confirmação a mesma
condição descrita no Inferno. Por meio de Cacciaguida, seu trisavô, Dante comenta seu
exílio, seu primeiro abrigo. Nele o Poeta faz novas observações acerca do Veltro e
reafirma o local de seu nascimento e domínio: “Teu primeiro asilo e tua prima pousada
terás de cortesia o grão Lombardo” (Paraíso XVII, 70 e 71). Cacciaguida confirma a
condição do Veltro, agora sob forma humana, com as seguintes palavras:
Verás com ele que impressa ao nascer
lhe foi a marca dessa forte estrela,
para notáveis obras proceder (Paraíso XVII, 76–78).
E, logo em seguida enuncia: “[…] veremos [antes] que a sua fama ecluda, por
não cuidar de pratas nem de afanos” (Paraíso XVII, 83 e 84). Essas características são
as mesmas aferidas ao Veltro no início da jornada. Com efeito, consideramos que Dante
afirma suas esperanças numa força humana movida pela Providência para impor limites
à anarquia social. Destarte, por mais que seja controversa a condição de existência desse
herói ou Veltro, tudo indica, segundo a ordem de apresentação e a confirmação
histórica, que tenha sido o jovem CanGrande Scalla,[24] o depositário das esperanças
do Poeta. É certo que essas esperanças também recaíram sobre Uguccione della
Fagiolla,[25] capitão da cidade de Lucca e Henrique VII de Luxemburgo por ocasião de
sua invasão à Itália em 1310. Este tentava impor seu controle sobre o Regnum Italicum
quando veio a óbito em 24 de agosto de 1313.[26]
O segundo ponto a ser vencido para que a viagem fosse iniciada era a
confirmação da autoridade do Poeta à reprovação aos erros ali representados. Ao
mesmo tempo em que condena os penitentes Dante constrói a excelência de sua
conduta.[27] A construção dessa alteridade foi configurada por meio da comparação
com a saga Enéias.[28] Os marcos característicos de sua identidade são construídos pela
homologia entre suas ações no inferno e as do herói enquanto ser predestinado à
grandeza;[29] pela aproximação com Virgílio[30] e por meio da moralidade da fé cristã
que nasceu naquele “grande Império” conforme aos desígnios da Providência.[31]
Segundo Dante, Roma foi “[…] o vaso de eleição para confortamento àquela fé[32]
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que era o princípio na via de salvação” (Inferno II, 10–12 e 28–30). O discurso de autoafirmação da conduta do Poeta é reforçado pelo questionamento que ele faz a respeito
de sua dignidade para o cumprimento daquela tarefa, ou seja, dar seguimento à viagem
que o levaria do Inferno ao Paraíso. Virgílio condena-lhe a hesitação e o convida a
trilhar o caminho que a Providência lhe facultou por honra e mérito de suas virtudes.
Ademais, Virgílio o faz sabedor da natureza de sua missão, afirmando que a mesma
radicava na realização dos desígnios celestes sob orientação de Beatriz.
Beatriz é apresentada na Divina Comédia como símbolo de beleza e retidão,
isenta da corrupção e, num sentido oposto, dado os predicativos que lhe confere
santidade, um símbolo de oposição aos aspectos morais que ora Dante observa na
sociedade florentina. Nesse mundo corrompido, segundo o Poeta, nem mesmo os
espaços sagrados da Fé encontravam-se incólume às tentações do lucro.
Seguindo o modelo Bíblico escrito no Apocalipse de João, o Poeta qualifica as
ações da Igreja como a de “[…] – uma puta solta, malevolente, insinuante[33]
(Purgatório XXXII, 149) – que, com “[…] olhos cúpido e vagante" (Purgatório
XXXII, 154) caça e fulmina suas vítimas. À imagem dessa Igreja corrompida, Dante
impõe a de Beatriz “[…] bela e beata […]” (Inferno II, 53). A ela fora dedicado o livro
Vita Nuova no qual exalta sua beleza e virtude, assim como os quinze capítulos do
Segundo Tratado do livro O Convívio. Na Divina Comédia, o poeta a descreve como
uma “[…] mulher de virtude que em muito superou a espécie humana […]”, “a glória
de Deus” (Inferno II, 76–77; 103), “a piedosa” (Ibid. 133). No quarto círculo, local de
condenação a riqueza, Dante assevera a presença da Igreja por meio de seu corpo
religioso da seguinte forma:
[…] clérigos foram esses de coroa
pelada e também papas e cardeais,
que os que mais são que a avareza acorçoa (Inferno VII, 46 – 48).
Em termos históricos, o discurso de condenação às práticas da Igreja no Inferno
de Dante começa pela consideração dos efeitos danosos da abdicação de Celestino
V[34] ao trono papal. No Inferno, este é acusado de permitir, dado sua covardia e
grande recusa (Inferno III, 60),[35] a entrada da corrupção nos auspícios da Santa Fé.
Por esta razão, Celestino V cumpre pena no átrio infernal, rejeitado por Deus e pelos
demônios e sendo picado por uma “nuvem de vespas renitentes” (Inferno III, 66).
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A corrupção que o poeta assevera nessa passagem de sua obra está personificada
na figura de Bonifácio VIII. Sua presença como ordenador da fé contrasta com “[…] su
fiebre de poder obsesiva”. [36] Esta, por sua vez, evidencia a crise moral pela qual
passava a Igreja Católica e por conseqüência, a sociedade italiana. Em resposta a Bula –
Unam Sancta, escrita em 1302 –, Dante escreveu A Monarquia. Nessa obra, o Poeta
rechaçou os arrogos da Igreja às prerrogativas do poder secular.
O combate a Bonifácio VIII está representado em quase toda parte da Divina
Comédia, entretanto, é no Inferno que melhor se define a natureza de seus erros. Ele é
apresentado como o “[…] pastor sem lei” (Inferno XIX, 83), “[…] o príncipe dos novos
fariseus” (Inferno, XXVII 85). Na terceira vala do oitavo giro – o círculo dos
simoníacos – seu antecessor, Nicolau III que, segundo o Poeta, havia se arrolado no
crime de simonia e nepotismo, aguardava com ansiedade pela chegada do papa para
render-lhe no desespero de sua pena.[37] Ao sentir a aproximação, Nicolau confunde
Dante com Bonifácio VIII e exclama:
“Já está aí plantado?” foi seu grito,
“Bonifácio, já está aí plantado?
de vários anos enganou-me o escrito!
“Das riquezas estás já tão saciado,
pra que ultrajaste a formosa mulher
após tê-la com dolo conquistado?”
“[…] com mais obra ruim,
do ocidente virá um pastor sem lei
que ao fim vai recobrir a ele e a mim “. (Inferno XIX, 52 – 57 e 82 – 84).
Com estas palavras o Poeta assevera o dolo e o local da pena do referido papa,
reprova suas ações e a informa como este chegou ao trono papal.[38]
Todavia, somente a condenação por simonia não daria conta de exprobrar todos
os erros da política de Bonifácio VIII. Desta sorte, no canto XXVII, na vala dos
conselheiros fraudulentos, Guido de Montefeltro, podestà das cidades de Pisa e de
Urbinos, faz severas acusações às imposturas do clérigo. Acusa-o pela sua perdição,
pela sua desgraça espiritual e por sua condenação àquele orbe de trevas (Inferno XXVII,
67–129). O envolvimento de Bonifácio VIII com Guido de Montefeltro se deu em
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virtude da tentativa de reintegração da Romanha ao Patrimônio de Pedro. Esta região
era dominada pelos Colonnas, antiga família pertencente à nobreza toscana, que
impunham resistência a política de Bonifácio VIII. Este buscou no velho podestà, apoio
para livrar-se dos seus inimigos. Após a conquista da região pelo Sumo-pontífice, os
Colonnas exilaram-se na França e se tornaram obstinados inimigos desse papa aliandose a Felipe IV, o Belo, no episódio da prisão do mesmo em sua residência em Agnani.
Essa história foi posta, por Dante, à boca de Nicolau III (Inferno XIX, 82 – 87) e de
Hugo Capeto (Purgatório XX, 82 – 93). Entrementes, não obstante as ações imputadas
aos inimigos do papa, a figura eleita a Judas, sobre a qual o Poeta faz descer o malho da
Justiça Divina, não foi Felipe IV, o Belo, a quem acusou apenas pela avareza e
crueldade para com o “vigário de Cristo” (Purgatório XX, 87), mas, ao próprio
Bonifácio VIII.
Em oposição a política papal desenvolvida por Bonifácio VIII Dante condena a
Doação de Constantino, acusando-a de ter dado origem aos desvios da Santa Fé.
De quanto mal foi mãe, ó Constantino
não a tua conversão, mas tua oferenda
que tornou rico o trono papalino! (Inferno XIX, 115 – 117).
Assim, execrando os vícios que infectaram a Igreja Romana por meio de seus
representantes, Dante exalta, no canto XXXII do Purgatório, a grandeza do cristianismo
primitivo representado nas figuras de Pedro, Tiago e João (cf. Purgatório XXXII, 76) e
põe, em contraponto, as ações de Nicolau III, Bonifácio VIII e Clemente V.
Todavia, os erros ali condenados têm suas origens nas transformações sócioeconômicas pelas quais passavam as cidades italianas mais prósperas. A concentração
de riquezas promoveu o surgimento de uma classe média, cujas ambições puseram em
desagregação a ordem social tradicional. Para Dante o acúmulo de riqueza era um erro,
uma ilusão,[39] pois feria a natureza da paz social e, por conseqüência, os desígnios da
Providência.[40] Erigida em deus, afirma o Poeta, a riqueza tornara-se a fonte de todas
as maldades do mundo.[41] No oitavo círculo, o maior do Inferno, denominado
Malebouge,[42] Dante reprova as formas de obtenção da riqueza.
Nas dez valas do Malebouge são punidos os rufiões, os sedutores, os aduladores,
os simoníacos, os advinhos, os traficantes, os hipócritas, os ladrões, os falsários e os
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maus conselheiros – todos símbolos daquela nova realidade econômica, política e
social. As personagens apresentadas nesse trato infernal, muitas, inclusive,
contemporâneas
do
Poeta,
representam
os
pecados
supracitados.
Venedico
Caccianemico, por exemplo, segundo os tradutores de Dante, foi líder de uma facção
guelfa em Bolonha. Na primeira vala do Malebouge, cumpre pena como rufião.[43] O
pecado correspondente a sua sentença foi ter entregado a irmã Ghisola, por dinheiro e
vantagens políticas, ao marquês de Obizzo pertencente da família Este de Ferrara. Do
fundo de sua vala Caccianemico afirma não ser o único bolonhês ali presente e, por
conseqüência, evidencia o alcance social de tal prática. Alessio Interminei, da cidade de
Luca, cumpre pena por adulação;[44] Miguel Scoto,[45] Guido Bonati, da cidade de
Forti,[46] e Asdente,[47] sapateiro e astrólogo da cidade de Parma – todos cumprem
pena por adivinhação. Mais a frente, na quinta vala, estão Anziane, chefe dos
magistrados de Luca e Bonturo Dati, traficante da mesma cidade. A peculiaridade dos
vícios apontados por Dante no Malebouge faz transparecer uma condição moral que
evidencia os primeiros traços de uma economia monetária, de um pré-capitalismo
ascendente.[48]
Todavia, é para Florença que o Poeta volta o seu olhar. A cidade com suas lutas,
seus vícios, sua ganância, sua cupidez aparece representada no lamaçal, criado pela
“eterna chuva, gélida e pesada” (Inferno VI, 8). Nesse trato do Inferno, Ciacco domina
como interlocutor do Poeta. Esse lendário florentino, de identidade incerta, ficou
famoso pelo seu transitar folgadamente pelos festins da cidade de Florença. Seus
hábitos de folgazão, segundo o Poeta, fizeram-no profundo conhecedor dos bastidores
da política florentina. Por meio dele, Dante reconstrói as linhas de forças que resultaram
no banimento dos Brancos e, em particular, no seu próprio exílio em 1300.[49] Ao ser
inquirido pelo Poeta acerca de sua identidade, Ciacco responde qualificando, em
primeira ordem, a cidade de onde veio como o lugar no qual reina a inveja, a usura e a
ganância de seus cidadãos. A respeito de Florença afirma o penitente:
[…] a cidade tua que é plena
De inveja, até transbordar-lhe o saco
Teve-me ao tempo da vida serena (Inferno VI, 49–51).
Segundo Ciacco, somente “[…] a soberba, a inveja e a avareza os fogos que
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mantêm o ânimo aceso” (Inferno VI, 74 – 75),[50] são os moventes da ação política em
Florença. Mais à frente, quando perguntado, diretamente, sobre os cidadãos e a razão de
tanta discórdia acometida, [51] responde Ciacco:
[…] Após longa dissensão
Irão ao sangue, e a selvagem laia
A outra expulsará sem compaixão (Ibid. 64–66).
Amiúde, Florença e seus cidadãos são reprovados no Inferno. Na oitava vala do
Molebouge, o poeta exclama:
Alegra-te Florença, que é tão grande
Que as asas bate por terra e por mar,
E pelo inferno o teu nome se expande (Inferno XXVI, 1–3).
O contraponto dessa cidade dominada pela invidia e avarizia de uma gente
nuova,[52] é estabelecido por meio da reconstrução simbólica de uma cidade ideal,
calma, pacata e justa,[53] oculta no passado de seu trisavô – Cacciaguida[54] –, Dante
canta a imagem dessa Florença de “sãos princípios” da seguinte forma:
Florença, dentro de sua cerca antiga,
aonde sua terça e nona ainda soa,
estava em paz, da temperança amiga.
Não havia correntinha nem coroa,
nem saia ornada ou cintura ciginda
que mais alçasse olhares que a pessoa (Paraíso XV, 97 – 102).
Desta maneira, Dante Alighieri pintou a cidade dos tempos de seu trisavô e, a um
só tempo, essa outra que, segundo o Poeta, tantas vezes mudou […] lei, moeda, usança e
estado (Purgatório, VI, 146) em benefício da tirania. [55] Essa Florença, segundo
Dante, ao lembrar-se de seu digno passado, deveria quedar-se, a exemplo do doente que
rola na cama a procura do alívio, do afastamento da dor. [56] Ademais, um novo padrão
social era gestado e fundamentado em meio àquilo que sobrou do passado da velha
Comuna. [57] Um mundo no qual o lucro não imperava sobre as virtudes das pessoas e
nem era a medida das relações (Paraíso XV, 104 – 105). A Antica Fiesole reconstruída
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por Dante constitui-se num símbolo de paz, de nostalgia; uma personificação da
beatitude de Beatriz, cuja beleza e perfeição dos encantos enalteciam o sentido da paz
derradeira. [58]
Para o Poeta, o inferno era o reflexo correspondente do mal que se alastrara
sobre a comunidade dos homens. Nesse mundo mergulhado na perfídia, regido pela
fraude, a cupidez e a soberba, fora consumada sua perdição. Por todo o Inferno Dante
destila sua dor em face da injustiça sofrida e, de verso em verso, apontando a trave no
olho do seu “próximo”, ergue os marcos determinantes de sua distinção, limpando-se da
infâmia incutida por seus detratores e afirmando um ideal de nobreza que não se
estabelecia por via da genealogia, da linhagem, mas, pela retidão dos princípios
universais edificados à base da ética e da moral cristã.
Com efeito, o Inferno foi o instrumento de contestação usado pelo Poeta para
submeter à reprovação a ordem vigente na sociedade florentina do início do séc. XIV.
Nele encontramos as evidências das transformações econômicas, políticas e sociais que
marcaram o advento do Mundo Moderno. O caráter providencial da Obra de Dante está
evidenciado na certeza de uma Razão Divina que ordena e governa o universo
preparando-o para o cumprimento de seu fim último, na paz e na justiça Divina. Por
essa via, Dante construiu sua identidade cultural e reivindicou a manutenção de sua
posição social.[59]
NOTAS:
[1] Cf. CHARTIER, R. Práticas de leitura. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001,
p. 23 – 24.
[2] Cf. BOURDIEU, P. O poder simbólico. 4ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
[3] Cf. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 12ª ed. São Paulo: Edições Loyaola,
2005, p. 28 – 29.
[4] Cf. PUTIGNAT, P. & STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade: seguido de
grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1998, p. 124 – 125.
[5] Ver SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. Rio de Janeiro:
Companhia das Letras, 1996, p. 35.
[6] Ibid. 1996, p. 45.
[7] Cf. BUCKHARDT, J. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991, 116.
[8] Ibid. p. 151.
[9] Ver. ALIGHIERI, D. A divina comedi: inferno.. São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 25.
Neste trabalho utilizaremos a versão bilíngüe com tradução e notas de Ítalo Eugenio
Mauro Apud
[10] Ver Inferno I, 10 – 12.
[11] O surgimento desses dois partidos, ou facções foi o resultado das lutas políticas
entre os imperadores alemães, o papado e o desenvolvimento das classes ligadas ao
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diversidade na Antiguidade e no Medievo.
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comércio na Itália. Historicamente, o fim da política imperial nas pessoas de Manfredo
e Conradino, ambos filhos de Frederico II, permitiu o desenvolvimento desses partidos.
Os Brancos eram apoiados pelos popolani ou gente nuova, classe oriunda do
desenvolvimento do comércio nas cidades-estados italianas. Os Negros representavam a
antiga nobreza que buscavam a manutenção de seus direitos senhoriais impondo limites
as ações políticas dos popolani. Ver. SKINNER, Q. Op. cit. p. 35 – 37; 45).
[12] “[…] selva selvaggia e aspra e forte que nel pensier rinova la paura.”.
[13] Ver. Paraíso XVI, 136 – 154.
[14] HELLER, A. O homem do renascimento. Trad. Conceição Jardim e Eduardo
Nogueira. Lisboa: Editorial Presença, 1982.
[15] Ver Paraíso XV, 97 – 102.
[16] Designação dada ao homem erudito na Idade Média, conforme Jacques Verger no
livro Homens de saber na Idade Média, 1999, p. 16.
[17] Dante fora Prior, cargo máximo na cidade de Florença em 15 de junho de 1300
pelo Conselho dos Cem.
[18] Ver Inferno I, 88.
[19] Ver Inferno VII, 61 – 93.
[20] Não há uma definição precisa para o significado do Veltro. Por ordem do
enunciado parece tratar de um inimigo natural do lobo – cão. O tradutor Ítalo Eugenio
Mauro o traduziu com o nome de Lebréu cujo significado é o de um cão amestrado para
caçar lebres. Em nota, o explicou como uma obscura profecia acerca de um herói
humano e não de intervenção divina (ALIGHIERI, D. Op. cit, p. 136).
[21] Questi non ciberà terra né peltro,/ ma sapïenza, amore e virtude.
[22] Di quella umile Itália fia salute.
[23] […]sua nazion sara tra feltro e feltro.
[24] Ver BURCKHARDT, J. A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio. Trad. de
Sérgio Tallaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 25.
[25] Uguiccione della Faggiola, depois de uma rápida carreira de sucessos militares que
lhe rendera o controle de quase toda a Toscana, Arezzo, Pisa e Lucca, viu-se
surpreendetemente destituído do poder, tendo de se retirar às pressas para não ser
aprisionado. N. T. Cristiano Martins, p. 89.
[26] Ver SKINNER, Q. Op. cit. p. 29; 40.
[27] Segundo Marc Augé é sempre a reflexão acerca da alteridade que precede e
permite toda definição alteritária. AUGÉ, M. ap. JODELET, D. Representando a
alteridade. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1998, p. 49.
[28] Herói troiano do livro A Eneida do poeta Virgílio.
[29] Enéias fugindo ao cerco e a destruição de sua cidade de Tróia pelos gregos, tornouse pai dos primeiros fundadores de Roma. Essa cidade, segundo Dante, deveria ser a
sede de um novo Império Universal. Cf. ALIGHIERI, D. A monarquia. São Paulo:
Nova Abril Cultural, 1973, p. 208; 214 e 234 (Col. Os pensadores).
[30] Dante afirma ser Virgílio seu mestre e seu autor. Ver Inferno I, 82 – 85.
[31] Segundo Dante o povo romano foi destinado ao comando pela natureza. Ademais,
a Providência legitimou os romanos quando fez do Império o berço e o túmulo de
Cristo. ALHIGIERI, D. Op. cit., 1949, p. 42; 53 – 57.
[32] Trata-se do cristianismo.
[33] […] una puttana sciolta
[34] Giovanni Boccaccio, um dos primeiros comentadores da Obra de Dante faz
referência a esta história. Segundo ele, Celestino V, cujo nome era Pietro Morone, era
um religioso beneditino fundador da Ordem dos Celestinos. Este foi levado ao sólio
pontificial por volta de 1294 abdicando, alguns meses depois em nome do Cardeal
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 06 – Poder, cultura e
diversidade na Antiguidade e no Medievo.
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Benedeto Gaetano – mais tarde Bonifácio VIII. Quando voltava Pietro à vida monástica
foi preso por Bonifácio VIII na torre do Castelo Fumone onde morreu dois anos depois.
Nota do Tradutor. José Pedro X. Pinheiro, 1949.
[35] […] fece per viltade il gran rifiuto.
[36] ROMERO, J. L. ¿Quién es el burgues? Y otris estudios de historia medieval.
Bueno Aires Bibliotecas Universitárias Centro Editor de América Latina, 1984.
[37] Segundo Nicolau III, o tempo daquela pena (ficar plantado de cabeça para baixo
tendo os pés em chama) terminaria com a chegada de Bonifácio que tomaria seu lugar
fazendo com que ele caísse no fundo do poço (Inferno XI, 76 – 78 e 82 – 84).
[38] Ver nota nº 19.
[39] Ver Inferno VII, 85.
[40] ALIGHIERI, D. Op. cit., 1973, p. 195.
[41] Ver Inferno VII, 86 – 87.
[42] Bolsas más, conforme tradução de Ítalo Eugenio Mauro.
[43] Ver Inferno XVIII, 66.
[44] Ver Inferno XVIII, 122 – 125.
[45] Astrólogo de Frederico II.
[46] Astrólogo de Guido da Montefeltro, podestà das cidades de Pisa e de Urbino na
segunda metade do século XIII.
[47] ALIGHIERI, D. Convívio. Lisboa, PT: Guimarães Editores, 1991, p. 191.
[48] Ver LE GOFF, J. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média. São Paulo:
Brasiliense, 1998, p. 10.
[49] Ver Inferno VI, 64 – 66.
[50]. […]superbia, invidia e avarizia sono le ter faville c’hanno icuori accesi.
[51] “[…] per che l’ha tanta discórdia assalita” (Inferno VI, 63).
[52] Ver Inferno XVI, 73 – 75.
[53] Ver Paraíso XV, 130 – 132.
[54] Cacciaguida foi célebre em sua época por ter combatido na segunda Cruzada ao
lado do imperador Conrado III. Morreu combatendo os sarracenos em 1147 nos campos
da Síria.
[55] Ver
Purgatório VI, 124-125.
[56] Cf.
Purgatório VI, 148 – 151.
[57] Ver. HELLER, A. Op. cit. p. 43.
[58] Ver.
[59] Cf.
ALIGHIERI, D. Op. cit. 1991, Segundo Tratado, cap. II, VIII, p. 63; 78.
POUTIGNAT, P. & STREIFF-FENART, J. Op. cit. p. 137 – 138.
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diversidade na Antiguidade e no Medievo.
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Roberto Silva de Oliveira