Diário de Notícias Segunda-feira 1 de Agosto de 1927 Através do Alentejo, A Casa da Lavoura Alentejana Uma visita ao “monte” do Barrocal, propriedade do rico lavrador Sr. Dr. Jaime Fernandes Leal De Reguengos a Monsaraz – Um encontro inesperado. – O tipo das grandes herdades e casas de lavoura. – A falta de água. – O ano agrícola. Um “monte” da casa de Bragança São típicas, interessantes as casas de lavoura alentejanas – diferentes das das províncias do norte. Também o lavrador do Alentejo difere dos lavradores das Beiras, do Minho, de Trás-os-Montes – de todo o lavrador de outras regiões portuguesas. Vive – o que se dedica exclusivamente à lavoura – mais junto da terra, mais perto das herdades, acompanhando dia-a-dia, hora a hora a vida agrícola. Pode residir nas sedes do concelho, em palácios antigos, alguns históricos, cheios de tradições, confortáveis – mas não deixa de ir, amiúde, a cavalo, em automóvel ou em carro de muares, dar uma vista de olhos pelo “monte”, inquirir do maioral e do feitor dos trabalhos do campo: - Se o poço já tem água, se aquela cabeça de gado já está melhor da maleita, se os trabalhadores alqueivaram o pousio, se a horta foi regada, se o pão está cozido, se a debulha está feita... “Quem quer vai” - diz o ditado – e o lavrador alentejano segue o conselho, sempre sábio, do popular rifão... A primeira casa de lavoura alentejana, que vimos, foi no concelho de Reguengos, perto de Monsaraz – no Barrocal, que dista do Guadiana uns 6 km. Visita inesperada, convite feito de surpresa, em plena estrada, quando o “chauffeur” do carro em que seguíamos, na amável companhia do pároco de Reguengos, rev. Padre João Manuel Queimado, e do Sr. Manuel Maria Queimado, reparava uma ligeira panne. Junto de nós passa, num carro tirado por fogosas muares , o Sr. Dr. Jaime Constantino Fernandes Leal, característico tipo de lavrador alentejano: chapéu de abas largas, camisa mole, casaco curto e calça de cotim justo à perna. No rosto, emoldurado por farta cabeleira e por longa barba, branqueadas, a cor trigueira, dum mate agareno. Simples em seu trajar e em seus gestos, o Sr. Dr. Jaime Leal convida-nos a ver a sua casa de lavoura: - Se nunca viu um “Monte” alentejano vai ter ensejo de o conhecer de perto. Fica próximo de Monsaraz. Á volta passe por lá. Esperá-lo-ei... De regresso de Monsaraz – histórica povoação de que nos ocuparemos brevemente – entrámos no Barrocal. Era ao cair da tarde, ao pôr do sol – e o sol, lá longe, no horizonte distante, barrado pelos montados de azinho dum verde escuro, agonizava entre púrpura e oiro, num galeão de nuvens roxas... A residência do lavrador é uma casa espaçosa, de dois andares, muito caiada, situada à esquerda da “rua do Monte” – uma rua larga onde se alinham, de um lado e outro, as casas do feitor, com suas dependências e despensas, do maioral, dos mestres de oficinas, as oficinas, os celeiros, as cocheiras, etc., etc.. Á entrada, do lado direito, a característica arramada, com seu telhado coberto de telha para guardar os carros. Regressam do campo os trabalhadores – chapéus bragueses, safões de couro e de pele de carneiro. Recolhem ao aprisco, guiados pelos zagais, os rebanhos. Chiam ao longo dos caminhos os carros de bois. E se as noras, pertinho, vão entoando suas doloridas canções... - Aqui tem o tipo das casas de lavoura alentejana. – diz-nos o Sr. Dr. Jaime Leal. São todas assim “mutatis mutandis” – as de alguma importância, as grandes casas de lavoura. Começámos a visita pela residência do feitor – por fora de paredes cor de ocre, interiormente de paredes caiadas e pavimentos de tijolo – com sua casa de jantar, seus quartos de dormir, sua lareira. Dum lado e outro do corredor, abobadado, várias dependências, em cujas portas se lêem números gravados em azulejo. São as dependências do “monte” – a padaria, onde provámos um delicioso pão acabado de sair do forno e que o “pateiro” (encarregado das amassadorias) nos ofereceu; a casa dos queijos com suas arcas carregadas de sal; as despensas onde se guardam a carne da matança do gado suíno, os enchidos, os belos paios, e se arrecadam, na melhor ordem, alfaias agrícolas, louças de cobre e do barro, as talhas de azeite para o consumo da casa... No andar inferior, na cave, estão, em divisórias, os cerais da colheita, os trigos, a cevada, a aveia e o centeio para os gastos anuais da herdade, e os depósitos da farinha, e o forno da cozedura, e as arrecadações onde a fruta se conserva e as lojas, várias lojas, frescas, para guardar ao abrigo do calor, vários produtos agrícolas. Depois os pátios com suas casas para fabrico dos queijos, com suas oficinas de terrador, com suas arrecadações de cabrestos e arreios de gado... E voltámos à “rua do Monte”, a ver o casão das máquinas, os celeiros abarrotados da colheita, as cavalariças com ser gado cavalar e muar, e onde, em tarimbas, dormem o “rabadão” (o encarregado de vigiar os gados) e os criados, as oficinas de construção e reparação de carros e arados, e cujo mestre tem, nesta região do centro do Alentejo, o nome de Abegão, da serralharia, carpintaria, a oficina de albardeiro e as casas da ferramenta... Junto da residência do feitor, as residências do mestre dos carpinteiros e do abegão. Na mesma fila, a casa do comer dos trabalhadores - com mesas de laje preta, polida – a “casa da malta”... Passámos à abegoaria, á casa térrea onde dormem os trabalhadores, aos currais para apartação do gado, às cabanas dos bois, ao tendal onde se tosquiam as ovelhas, e o curral, em forma circular, guarnecido de trincheira e teia, onde se realizam as “ferras”, ao canil da matilha – um canil propositadamente construído, segundo os processos modernos, mas que já não tem cães, por causa da doença a sarna que em tempos acometeu naqueles animais. E no canil, que conserva ainda as dependências para os cães, uma ovelha magra, triste, de pêlo sujo, ferida no corpo, sangrando, convalesce isolada, da doença que, há meses, adquirira ninguém sabe como nem onde.... Maleita que dá ao gado.... Uma pequena entrevista com o Sr. Dr. Jaime Leal: - Qual a principal produção desta herdade? Cereais: trigo, cevada, aveia, centeio... legumes, lenhas... azeite também... Em abundância? O trigo em pequena quantidade... Quatro, cinco, seis sementes, o que não chega para as sementeiras. E o azeite? A novidade parece ser boa. As oliveiras estão carregadas de fruto. Algumas soçobram ao peso da azeitona. Mas.. nem toda vinga. Começam já a manifestar-se quebras. Em todo o caso, o ano de produção de azeite deve ser bom. Uma pergunta destacada - Diz-se que o Alentejo luta com falta de água... Eu tenho-a tido, em pouca quantidade é certo, mas alguma é. Mandei abrir, há pouco tempo, quatro poços. E o certo é que os vedores de água não se enganaram. Não lhes falhou o processo da varinha.... Todos têm água, embora pouca. Mas a falta faz-se sentir. Ali tenho eu, vê?... – indicou-nos uma construção em alvenaria que lembra um torreão – aquele “objecto” de luxo.... era destinado a um depósito de água, mas como não há água que chegue, de nada serve... O melhor é que, daqui a cem ou duzentos anos, os que por aqui passarem hão-de dar voltas à cabeça para saberem o que isto é... São capazes de julgar que se trata de algum templo mourisco.... E... porque anoiteceu, tivemos que dar por terminada a visita. - Tenho pena, gostaria que visse uma parte da herdade, a eira, a horta e o pomar.... – observa o Sr. Dr. Jaime Leal. - Fica para outra vez... E o enviado especial do “Diário de Notícias” despediu-se do abastado lavrador alentejano, reiterando-lhe em seu nome pessoal e no do seu diário os melhores agradecimentos. Este é o tipo da grande casa de lavoura alentejana – pertencente aos lavradores ricos, senhores e donos de muitos hectares de terreno, possuidores de avultadas fortunas, que orçam por 1000, 2000 mil e mais contos anuais de rendimento. As pequenas casas de lavoura – os pequenos montes – conservam o mesmo tipo de casas e dependências, embora, por vezes, elementares. Vêem-se engastadas nos campos, muito caiadas, com seu renque de eucaliptos, eiras pejadas de trigo, cevada e aveia, em medas, seu poço de água e seu moinho de motor. Entre estas casas de lavoura destacamos o “Monte do Duque”, no caminho de Reguengos a Monsaraz, pertencente á casa de Bragança – um monte pequeno, em cujos campos pasciga o gado bovino, negro como manada de touros... E... aqui termina, por hoje, esta crónica de reportagem através das herdades alentejanas.