ESTUDOS E COMENTÁRIOS O CONTROLE JURISDICIONAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FERNANDO FACURY SCAFF Procurador da Fazenda Nacional e doutorando em Direito Económico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo 1. Objetivo do trabalho. 2. As formas de comunicação entre o Estado e a sociedade. 3. A vinculatividade das promessas governamentais. 4. O acórdão da 6." Turma do TFR. 5. Conclusões. 1. Objetivo do trabalho Visa este ensaio a efetuar uma comunicação a este Congresso acerca de um recente julgado da 6 / Turma do TFR, que condenou a Administração Pública a cumprir aquilo que havia publicamente anunciado, o que era diverso do que havia sido firmado contratualmente, com particulares. Parece-nos ser uma decisão ímpar no Brasil, e abre caminho para um controle jurisdicional das promessas efetuadas pelos órgãos administrativos e por eles não cumpridas, ou cumpridas em desconformidade com o alardeado. 2. As formas de eomunicação entre o Estado e a sociedade Que o Estado é uma ficção jurídica ninguém mais discute. Pode-se discutir acerca de seu surgimento, conceito, finalidade etc. . . . , mas quanto a sua consideração como ficção jurídica parece-nos um aspecto pacificado na doutrina. Isto aceito, passemos a conjecturar sobre a forma pela qual o Estado, como ficção jurídica que é, se comunica com a sociedade. Vislumbramos algumas hipóteses. Uma delas diz respeito a emanação normativa, qualquer que seja o modo que o Direito positivo de cada Estado trate do assunto. Assim, p. ex., no Brasil, toda vez que o Estado resolver conceder anistia relativa a crimes políticos somente poderá fazê-lo através de lei, cuja competência pertence com exclusividade ao Presidente da República, a teor do que preceitua o art. 57, VI, da Emenda Constitucional de 1969. Por outras palavras, um dos modos do Estado se comunicar com a sociedade é através da emanação de normas consoante o Direito positivo de cada ordenamento jurídico. Desta forma é que ele transmite à sociedade os atos que faz ou que pretende fazer. Outra forma de comunicação entre o Estado e a sociedade é através das declarações públicas das pessoas que compõem o Estado. Assim, p. ex., o discurso de um dirigente de uma empresa estatal declarando que irá tomar esta ou aquela atitude indica à sociedade a maneira pela qual aquela empresa irá atuar, muito embora não seja efetuada nenhuma emanação normativa para revestir este ato. Ou seja, a despeito deste discurso não se consubstanciar em uma norma, nele está revestida a capacidade de comunicação do Estado com a sociedade. Isto decorre do óbvio fato de que o Estado é uma ficção jurídica, e, como tal, não existe no mundo real, apenas no mundo ideal e em razão das pessoas que o compõem. Uma vez que estas pessoas estão investidas de manus público e falam em nome do Estado, suas promessas muitas vezes induzem os agentes económicos privados a tomar atitudes que não tomariam caso estas promessas não tivessem sido feitas. É sobre esta segunda forma de comunicação do Estado com a sociedade que nos debruçaremos neste ensaio. Iv: ESTUDOS E COMENTÁRIOS RPP-84 5. A vinculafividadc das promessas governamentais A doutrina francesa capitaneada por André de Laubaderc «Direito Público Económico. Coimbra, Liv. Almedina» 198?) c Robcrt Savy (Direito Público Económico, Lisboa» Editorial Noticias, s/d) nos relata o desenvolvimento da jurisprudência francesa que tem aceito as promessas dos governantes como vinculativas à ação estalai a despeito da inexistência de norma ou contrato neste sentido, Rçqucr apenas que a promessa ou o compronússo seja eíetuado com suficiente firmeza para que possa ser considerado como vinculativo. Tais promessas podem levar os agentes económicos privados a assumirem compromissos que não o fariam em caso de sua inexistência. lá a doutrina portuguesa, tendo a frente j , J Gomes Canoiilho (O Problema da Responsabilidade do Estado por Atos Lícitos» Coimbra, Liv. Almedina, 1974) ressalta que iÉ nSo descabidos de interesse são certos atos da administração traduzidos cm simples promessas, garantias ou engagements verbais com o propósito de incitar algumas empresas a realização de certas operações (prometa de um certo contingente de exportação, promessa de compra para o Estado de parte do fabrico etc). Estas promessas podem ser medidas de direção. originadoras de um grau de confiança e boa-fé nos destinatários que os leve, ancorados na proteção administrativa, a arriscarem^ 3 negócios financeiramente ruinosos 1 ' (grifo nosso)* No Brasil, o estudo de tal assunto ainda não despertou na doutrina o interesse que nos parece devido, a despeito de honrosas execções. Entre estas exceçôcs inelui-sc Almiro do Couto c Silva ("Responsabilidade do Estado e problemas jurídicos resultantes do planejamento", RDP 65 í í õ õ jul./set.*82) que ao tratar da responsabilidade do Estado por problemas resultantes do planejamento explicitou que "há situações, contudo, que O Estado incentiva de lOrma tão nítida c positiva os indivíduos a um determinado comportamento, mediante promessas concretos de vantagens c benefícios, que a violação dessas promessas implica infringéneiu ao princípio da boa-fc. cabendo ao Estado indeiiizar os danos decorrentes da confiança". Ressalta este autor que as promessas precisam ser firmes, precisas e concretas para poderem ser passíveis de vinculam idade. Assim, lemos que a& promessas governamentais vinculam a Administração Pública. restando saber se c possível a utilização deste instrumental teórico para viabilizar esta proposta junto ao Poder Judiciário de nosso País. uma vez que. conforme nos indicou a doutrina francesa, naquele país tal fato c corrente, 4 O acórdão da 6.* Turma do T I R No Brasil, a vineulatividade da? promessas governamentais a nível do Poder judiciário foi apenas recentemente vislumbrada, e cm termos muito cautelosos* A b.J Turma dò TFR. na Ap, cível IO7.905-RI. j * em 15.10.86. publicada no D\V cm 2 0 1 1 86, cm que tfram apelantes o Banco Nacional da Habitação — BNU e a Companhia Estadual de Habitação do Rio de janeiro — CEHAB e apelados losé Francisco de Oliveira c outros, obteve a seguinte ementa: Contrato firmado entre entidade da Administração Pública e particulares. Induzimento em equívoco, quanto às condições do pagamento por ação c omissão culposas daquele ente. Condição peculiar dos contratantes de quem não se poderia exigir que. examinando o contrato, verificassem que suas cláusulas nâo correspondiam ao que se apregoara. Prevalência do constante da divulgação feita* Neste caso. duas favelas vizinhas, no Estado do Rio de lanciro. foram objeto de saneamento e de empreendimento habitacional, sendo que, numa delas, denominada Vila do João. as prestações para venda das unidades habitacionais foram fixadas em 10% do salário mínimo. Na outra favela, denominada Canal do Cunha, a despeito de ter sido amplamente divulgado, inclusive pela imprensa, que as condições de pagamento mensal seriam de I0cc dc salário mínimo, tal como na favela vizinha, não foi o disposto no contrato, o qual determinava que o valor das prestações seria consoante as Unidades Padrão dc Capital — I T C o que dava um montante bem superior a 10% do salário mínimo. Foi constatado que nem no contrato, nem em qualquer norma, existia a determinação do percentual dc 10J<? do salário mínimo como prestação mensal. Segundo alegado pelas apelantes, "tal procedimento é. apenas, uma filosofia do PROMORAR" (nome do plano habitacional implantado), A diferença entre es dois empreendimentos se deu porque para a construção no Cana! do Cunha o empréstimo concedido para a CEHAB. pelo B N I I . obedeceu as normas CONTROLE JURISDICIONAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 155 do Sistema Financeiro da Habitação, ao passo que para a construção na Vila do João o empréstimo concedido foi objeto de norma» especiais. Em seu voto, o Min, Eduardo Ribeiro expôs: "Não lenho dúvida em afirmar que a CÈIIAB propiciou se formasse nos ocupantes dos apartamentos a convicção de que os pagamentos a serem feitos sujeitavam-sc ao questionado limite* Resta saber a consequência disso, especificamente; se prevalece sobre o que consta do contrato escrito. No exame da questão, não se pode deixar de ter em conta a situação peculiar das partes envolvidas. De um lado, órgãos públicos que, por isso mesmo, gozam de especial credibilidade: de outro, pessoas modestíssimas, de nível cultural não muito elevado, de que não se pode esperar tivessem condições de, examinando o contrato, concluir que o mesmo não correspondia ao que se apregoara. Vale salientar que o salário mínimo foi indicado como lípoea para o reajuste, o que, de certo modo. facilitava fossem os ocupantes mantidos no equívoco. ( . . . ) Dentro desse contexto, considero que a CEHAB. propositadamente ou não, mas por certo que culposamente, levou a que os contratos fossem firmados, convictos os contratantes de que as condições eram outras. ( . . . ) As condições de pagamento haverão de ser aquelas que se supunham existentes, por culpa da CEHAB/* Após esta longa transcrição, mas que se impõe em razão de ser um leasing ea*e, verificasse a cautela do Tribunal em reconhecer a supremacia daquilo que foi amplamente divulgado sobre o contrato escrito. A despeito da ampla divulgação de promessas diversas daquelas constantes do documento, por pane de empresas do Estado, o direito dos particulares somente foi reconhecido por serem "pessoas modestíssimas, de nível cultural nao muito elevado» de que não se pod<* esperar tivessem condições de, examinando o contrato, concluir que o mesmo não correspondia ao que se apregoara". Por outras palavras: se o mesmo fato tivesse ocorrido com pessoas de um nível cultural mais elevado, o Estado poderia ter prometido c não cumprido, que nenhuma responsabilidade teria, prevalecendo aquilo que tivesse sido firmado contratualmente. 5. Conclusões Após esta exposição, podemos concluir afirmando que no Brasil já c adoiado o entendimento que as promessas governamentais vinculam a Administração Pública. desde que: 1) efetuadas com firmeza, precisão c concretude; 2) pelas pessoas competentes para tanto; c 3) que as pessoas lesadas não tenham real capacidade para discernir que aquilo que se apregoara era diverso do que estava sendo contratado, Destes três requisitos entendemos plenamente cabíveis os dois primeiros, sendo necessário um esforço doutrinário para que o terceiro seja ampliado, a fim de: 1) abranger não apenas os contratos firmados pela Administração Pública, mas, também, qualquer uma sua promessa não cumprida ou cfeiuada cm desconformidade com o apregoado; 2) abranger também todo c qualquer agente económico lesado, independentemente de sua condição de real discernimento da situação. Afinai, o que importa c a resolução do problema e não a capacidade intelectual da pessoa* Demo* um passo importante para o deslinde desta questão. Importa alargar o universo descortinada a nossa frente. Revista •] deDiwitp PÚbliCO ISSN 0034-8015 Fundador: Ataliba Nogueira Diretorcs: Geraldo Ataliba c Celso António Bandeira de Mello Antigos Conselheiros: Ataiiba Nogueira, Cândido Motta Filho, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Pontes de Miranda, Rubens Gomes de Sousa, Ruy Cirne Lima, Victor Nunes Leal. Conselho de Orientação: Almiro do Couto e Silva. Caio Tácito, Carlos Mário da Silva Vçlloso, Dalmo Dallari, Hely Lopes Mcirelles, [oaquim Canuto Mendes de Almeida, Josaphat Marinho, José Francisco Rezek. Lauro Malheiros, Lourival Villanova. M. Seabra Fagundes, Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, Michel Temer, Miguel Rcale, Paulo Neves de Carvalho, Raul Machado Horta, Sérgio Ferraz, Vicente Marotta Rangel. Comissão Editorial: Adilson Dallari, António Carlos Cintra do Amaral, Carlos Ayres Brilto, Carlos Roberto Martins Rodrigues, Carlos Roberto Pellegrino, Celso Seixas Ribeiro Bastos, Eduardo Domingos Botallo, Elizabeth Nazar, Fernando António Albino de Oliveira, Francisco Octávio de Almeida Prado, Homar Cais, José Afonso da Silva, José Manoel de Arruda Alvim Nctto, Lúcia Vallc Figueiredo, Luiz Carlos Bettiol, Maria Helena Diniz. Paulo de Barros Carvalho, Pedro Luciano Marrey Júnior. Pérsio Oliveira Lima, Régis Fernandes de Oliveira, Roberto Rosas, Sérgio Andréa Ferreira, Sérgio Lazzarini, Sônia Corrêa da Silva, Torquato Lorena Jardim, Valmir Pontes Filho. Dirctor Responsável: Álvaro Malheiros Redação e administração; Rua Conde do Pinhal. 78 — TeL (OU) 37-2455 — São Paulo, SP. Tiragem: 5.000 exs> — Área abrangida: todo o território nacional. OS ACÓRDÃOS PUBLICADOS EM TEXTO COMPLETO CORRESPONDEM, NA INTEGRA, ÀS CÓPIAS RECEBIDAS DAS SECRETARIAS DOS RESPECTIVOS TRIBUNAIS. 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