ALETHEIA
Revista de Psicologia
Nº 33 - Set./Dez. 2010
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ALETHEIA
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(jan./jun. 1995). – C anoas : Ed. ULBR A, 1995v. ; 27 cm.
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2010 - ISSN 1413-0394
1. Psicologia – periódic os. I. U niversidade Luterana do Brasil.
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do Brasil, publica artigos originais, relacionados à Psicologia, pertencentes às seguintes
categorias: artigos de pesquisa, artigos de atualização, resenhas e comunicações. Os artigos
são de responsabilidade exclusiva dos autores e as opiniões e julgamentos neles contidos não expressam
necessariamente o pensamento dos Editores ou Conselho Editorial.
Sumário
4
Editorial
Artigos de pesquisa
6
Estilos parentais e práticas educativas de pais de crianças com TDAH: um estudo piloto
Parenting styles and childrearing practices of parents of children with ADHD: A pilot
study
Silvana Soriano Frassetto; Daniela Di Giorgio Schneider Bakos
18
Experiências de vida e os processos de visibilidade social de mulheres que amam
mulheres
Experiences of life and the process of social visibility of women who loves women
Yáskara Arrial Palma; Aline da Silva Piason; Ana Cláudia Menini Bezerra; Marlene Neves
Strey
30
Escala de Altruísmo Autoinformado: evidências de validade de construto
Self-report Altruism Scale: Evidences of construct validity
Valdiney V. Gouveia; Rebecca Alves Aguiar Athayde; Rildésia S. V. Gouveia; Ana Isabel
Araújo Silva de Brito Gomes; Roosevelt Vilar Lobo de Souza
45
A Bela e a Fera: uma análise psicológica da personagem Bela
The Beauty and the Beast: A psychological analysis of Belle’s character
Luísa Puricelli Pires; Tatiana Helena José Facchin
56
Práticas educativas e estratégias de coping em crianças abrigadas
Educational practices and coping strategies for sheltered children
Giorgina Leni Batista; Patricia Santos da Silva; Caroline Tozzi Reppold
69
Avaliação de indicadores de problemas de comportamento infantil relatados por pais e
professores
Evaluation of child behavior problems indicators reported by parents and teachers
Juliana Rigon Pedrini; Giana Bitencourt Frizzo
84
Escrever uma vida: biografia e acontecimento
To write a life: Happening (événement) and biographeme
Sara Hartmann; Tania Mara Galli Fonseca
2
Aletheia 33, set./dez. 2010
95
Priming semântico em crianças: efeitos da força de associação semântica e frequência do alvo
Semantic priming in children: Effects of prime-target association strength and target
frequency
Candice Steffen Holderbaum; Jerusa Fumagalli de Salles
109
Comunicação silenciosa mãe-bebê na visão winnicottiana: reflexões teórico-clínicas
Mother-Baby Silent Communication under Winnicott’s View: Theoretical-clinical
reflections
Josiane Cristina Coradi Prado Telles; Maíra Bonafé Sei; Sérgio Luiz Saboya Arruda
Artigos de atualização
123 O abuso sexual no contexto psicanalítico: das fantasias edípicas do incesto ao
traumatismo
Sexual abuse in the psychoanalytical context: From oedipical phantasies to incest and
trauma
Bibiana Godoi Malgarim; Silvia Pereira da Cruz Benetti
138
Transtorno obsessivo-compulsivo nas diferentes faixas etárias
Obsessive-compulsive disorder in the different age groups
Cema Cardona Gomes; Thiago Osório Comis; Rosa Maria Martins de Almeida
151
Revisão da literatura brasileira sobre a problemática do desenvolvimento de crianças assistidas
por clínicas-escola
Literature review about children’s development problems in school clinics in Brazil
Cristine Boaz; Maria Lúcia Tiellet Nunes
Relato de experiência
166 Vivências de um serviço de psicologia junto a um núcleo de assistência judiciária
Experiences of a Department of Psychology at a Legal Aid Practice
Sabrina Daiana Cúnico; Caroline de Oliveira Mozzaquatro; Dorian Mônica Arpini;
Milena Leite Silva
Resenha
177 O caminho da avaliação neuropsicológica
Ana Lúcia Fedalto; Amer Cavalheiro Hamdan
Artigo internacional
179 Promover la convivencia escolar: una propuesta de intervención comunitaria
Promover a convivência na escola: uma proposta de intervenção comunitária
Protecting coexistence in the school: A proposal of community intervention
María Clara Rodríguez; Patricia Vaca
190 Instruções aos autores
196 Instructions to authors
202 Instrucciones a los autores
Aletheia 33, set./dez. 2010
3
Editorial
Em meio a mudanças institucionais e editoriais, o desafio de publicar um periódico
científico como a revista Aletheia tornou-se ainda maior. Em tempos de transformações,
contamos com a colaboração e compreensão dos membros do Conselho Editorial,
professores, comunidade científica e, principalmente, dos autores para continuarmos nosso
projeto. Seguindo a linha editorial consolidada pelo periódico, neste número contamos
com artigos de pesquisa, estudos de atualização, relato de experiência, resenha e um
artigo internacional.
Dentre os artigos de pesquisa, publicamos o estudo de Frasetto e Bakos, que
investigou estilos parentais e práticas educativas de pais de crianças com Transtorno de
Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). As autoras contribuem para intervenções
preventivas e psicoterápicas a partir dos achados do estudo piloto apresentado. Através
de um estudo qualitativo, Palma, Piason, Bezerra e Strey discorrem sobre as experiências
de vida e os processos de visibilidade social de mulheres homossexuais. O artigo de
Gouveia e cols. apresentou evidências de validade de construto de uma escala de altruísmo
autoinformado, através de dois estudos quantitativos. Pires e Facchin analisaram o
desenvolvimento psicológico da personagem Bela, baseando-se em cenas do filme de
Walt Disney a Bela e a Fera. Já as práticas educativas de pais e educadores sociais e
estratégias de coping adotadas por crianças abrigadas foram investigadas por Batista,
Silva e Reppold. As autoras refletem sobre aspectos que subsidiam a elaboração de
programas de treinamento para os pais e educadores sociais, a fim de contribuir com
o processo de socialização das crianças abrigadas. O artigo de Pedrini e Frizzo avaliou
indicadores de problemas de comportamento de internalização e externalização relatados
por pais e professores de crianças de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental de uma escola
pública de Porto Alegre. Hartmann e Fonseca percorreram registros de um hospital
psiquiátrico para ilustrar a escrita de vida. Holderbaum e Salles investigaram os efeitos
de priming semântico em crianças conforme a característica dos estímulos ligados à força
de associação e frequência na língua. Por fim, a partir de uma perspectiva winnicottiana,
Telles, Sei e Arruda apresentaram reflexões teórico-clínicas sobre a comunicação
silenciosa mãe-bebê.
Quanto aos artigos de atualização, Malgarim e Benetti destacaram as contribuições
da teoria psicanalítica na compreensão das repercussões do abuso sexual e seu impacto
no psiquismo, percorrendo as fantasias edípicas do incesto ao traumatismo. Já a revisão
teórica de Gomes, Comis e Almeida apontou a repercussão e formas de tratamento
do transtorno obsessivo compulsivo em diferentes faixas etárias. Publicamos ainda a
revisão da literatura nacional realizada por Boaz e Tiellet Nunes acerca da problemática
de desenvolvimento de crianças assistidas por clínicas-escola, de 1980 a 2008, a fim de
avaliar se houve mudanças nos problemas de desenvolvimento em relação ao sexo da
criança.
O relato de experiência de Cúnico, Mozzaquatro e Arpini retratou as vivências
de um serviço de assistência judiciária. Já a resenha de Fedalto e Hamdan sintetizou
o livro intitulado “Avaliação neuropsicológica”, de Malloy-Diniz e cols. Por fim,
as pesquisadoras colombianas Rodrigues e Vaca dissertaram sobre uma proposta de
4
Aletheia 33, set./dez. 2010
intervenção comunitária, desenvolvida com o intuito de promover a convivência escolar,
a partir de diferentes formas de interação na escola
A Aletheia continua receptiva e pronta para continuar crescendo e contribuindo para
a divulgação científica de estudos ligados à Psicologia no meio acadêmico.
Profa. Dra. Aline Groff Vivian
Editora
Profa. Dra. Gláucia Grohs
Editora Associada
Aletheia 33, set./dez. 2010
5
Aletheia 33, p.6-17, set./dez. 2010
Estilos parentais e práticas educativas de pais de crianças
com TDAH: um estudo piloto
Silvana Soriano Frassetto
Daniela Di Giorgio Schneider Bakos
Resumo: Estilos parentais e práticas educativas têm sido considerados preditores para o
desenvolvimento infantil. Esta pesquisa teve como objetivo realizar um estudo piloto ao
investigar e comparar os estilos parentais e as práticas educativas de pais de crianças com TDAH
do tipo combinado e desatento. Participaram desta pesquisa 10 pais e seus filhos de 9 a 12 anos
com diagnóstico de TDAH, que responderam ao Inventário de Estilos Parentais. Os resultados
demonstram que não há diferença significativa nos estilos parentais quando se comparam os dois
tipos de TDAH; porém, a punição inconsistente é significativamente maior na percepção dos pais
no manejo dos filhos com TDAH combinado, quando comparado aos filhos com TDAH desatento.
Além disso, dentro do grupo de TDAH do tipo combinado, a monitoria positiva, na percepção dos
pais, é significativamente maior quando comparado ao que os filhos respondem em relação ao pai.
Este estudo contribui para intervenções preventivas e psicoterápicas.
Palavras-chave: Estilos parentais; Práticas educativas; TDAH.
Parenting styles and childrearing practices of parents of children
with ADHD: A pilot study
Abstract: Parenting styles and childrearing practices have been considered predictors of child
development. This research aimed to conduct a pilot study to investigate and compare the parenting
styles and childrearing practices of parents of children with ADHD combined type and inattentive.
The participants were 10 parents and their children aged 9 to 12 years diagnosed with ADHD, who
responded to Parenting Styles Inventory. The results show that there is no significant difference
in parenting styles when comparing the two types of ADHD, but the inconsistent punishment is
significantly greater in the perception of parents in managing children with ADHD combined type,
compared to children with ADHD inattentive. Furthermore, within the group of ADHD combined
type, the positive monitoring in the perception of parents is significantly higher when compared to
what the children respond in relation to the father. This study contributes to preventive interventions
and psychotherapy.
Keywords: Parenting styles, Childrearing practices, ADHD.
Introdução
As relações entre pais e filhos constituem uma área de pesquisa dentro da Psicologia
que tem despertado grande interesse nas últimas décadas, especialmente quando
enfoca práticas educativas, ou seja, as estratégias utilizadas pelos pais para orientar o
comportamento dos filhos (Cia, Pamplin & Williams, 2008; Gomide, Salvo, Pinheiro &
Sabbag, 2005; Weber, Prado, Viezzer & Brandenburg, 2004). Ao conjunto de práticas
educativas utilizadas pelos pais na interação com os filhos dá-se o nome de Estilo Parental
(Gomide, 2006).
O estilo refere-se a um padrão de comportamento parental expresso dentro de um
clima emocional criado pelo conjunto das atitudes dos pais, o qual inclui as práticas
parentais e também engloba outros aspectos da interação pais-filhos, tais como tom de
voz, linguagem corporal, descuido, mudança de humor, etc. (Darling & Steinberg, 1993;
Weber & cols., 2004). Já as práticas parentais correspondem a comportamentos com
conteúdos específicos e com objetivos de socialização. As práticas são apenas estratégias
com o fim de suprimir comportamentos considerados inadequados ou de incentivar a
ocorrência de comportamentos adequados (Alvarenga, citado por Weber, Selig, Bernardi
& Salvador, 2006). Uma das explicações relevantes sobre estilos e práticas parentais é a
de que, ao se tornarem pais, os indivíduos tendem a repetir o modelo aprendido em seu
contexto familiar (Weber & cols., 2006).
A relação entre a criança e os pais é influenciada por esquemas relativamente
duradouros que os pais trazem para a família e pelos esquemas de cada criança que se
desenvolvem com base nas interações familiares correntes. Os esquemas constituem as
crenças estáveis e duradouras que as pessoas mantêm sobre os outros e suas relações.
Os esquemas familiares dos pais costumam ser disseminados e aplicados na educação
de seus filhos. Neste caso, a integração com as percepções da prole e as inferências
sobre o ambiente familiar e outras experiências de vida contribuem para o posterior
desenvolvimento do esquema familiar (Dattilio, 2006).
Há estudos realizados com pais de crianças com Transtorno de Déficit de Atenção
e Hiperatividade (TDAH) demonstrando alterações nas relações pais-filho, como estilos
disciplinares altamente diretivos e hostis ou excessivamente permissivos que reforçam
os sintomas de hiperatividade, impulsividade e desatenção (Johnston & Mash, 2001).
Algumas teorias sugerem que problemas familiares, especialmente envolvendo o estilo
parental muito permissivo, estão entre um dos causadores do TDAH. Estudos recentes,
em contrapartida, indicam que o estilo parental pode ser consequência e não causa do
transtorno (Rohde & Benczik, 1999; Trenas, Cabrera & Osuna, 2008).
Um estudo conduzido com crianças com idades entre 7 e 10 anos, diagnosticadas
com TDAH do tipo combinado, investigou a percepção dos pais sobre aspectos da vida
social, das dificuldades em lidar com o filho e do relacionamento marital. Os achados
indicaram que o tipo combinado do TDAH estaria mais fortemente associado a um
funcionamento familiar negativo (Presentacion, Garcia, Miranda, Siegenthaler & Jara,
2006). Em similar direção, o estudo realizado por Counts, Nigg, Stawicki, Rappley e Von
Eye (2005) também sugeriu que famílias de crianças com o tipo combinado de TDAH
apresentavam mais fatores de risco associados com adversidade familiar, como conflito
marital, pais com histórico de transtornos psiquiátricos e eventos de vida estressantes,
quando comparadas a famílias de crianças com o tipo predominantemente desatento e
grupo-controle.
Finzi-Dottan, Manor e Tyano (2006) demonstraram que estilos parentais de
promoção ou ausência de autonomia estão relacionados a formas de apego ansioso e
evitativo, respectivamente, em crianças com TDAH. Estudos que avaliam as relações
familiares de crianças e adolescentes portadores de TDAH com comorbidades com
transtornos disruptivos sugerem a existência de dificuldades maiores neste contexto.
As crianças com comportamento disruptivo (com transtornos de conduta ou desafiador
Aletheia 33, set./dez. 2010
7
opositor) apresentam mais sintomas de déficit de atenção e hiperatividade. Os pais destas
crianças também relatam maior estresse, agressividade e conflitos na relação com os filhos
(Barkley & cols., 2002; Edwards, Barkley, Laneli, Fletcher & Metevia, 2001).
As pesquisas acima apresentadas, que abarcam as relações pais-filho e os
comportamentos dos filhos, demonstram como o estudo dos estilos parentais pode ser útil para
o melhor desenvolvimento das crianças. No contexto de transtornos psiquiátricos, inclusive,
conhecer os estilos parentais mais presentes no manejo de determinados comportamentos
pode contribuir para um melhor resultado em termos de redução de sintomas.
O TDAH é um transtorno do desenvolvimento, de forte influência neurobiológica,
cujas implicações variam desde dificuldades no desempenho escolar (onde necessidades
de função executiva, como planejamento, organização e persistência de foco atencional
tornam-se ainda mais imprescindíveis para a realização das tarefas escolares) até
problemas psicológicos e sociais (Mattos & cols., 2006; Rohde, Filho, Benetti, Gallois &
Kieling, 2004). A prevalência média em crianças e adolescentes gira em torno de 5%, e o
transtorno tende a persistir na vida adulta em cerca de 60% dos casos. No caso de crianças,
o diagnóstico do TDAH se baseia nos sintomas atuais que devem se manifestar em, no
mínimo, dois ambientes (casa e escola, por exemplo) (Rohde & Halpern, 2004).
Os sintomas primários e persistentes do TDAH (desatenção, hiperatividade
e impulsividade) são em geral facilmente reconhecíveis, sendo que o tratamento é
multimodal, envolvendo intervenções psicossociais e psicofarmacológicas (Gomes,
Palmini, Barbirato, Rohde & Mattos, 2007). Embora fatores familiares não sejam
apontados como causa do transtorno, diversas pesquisas indicam a importância do contexto
familiar no TDAH. A disfunção familiar pode constituir um fator de risco que, ao interagir
com a predisposição neurobiológica da criança, exacerba a expressão dos sintomas e
modifica o curso do transtorno (Guilherme, Mattos, Serra-Pinheiro & Regalla, 2007).
Este trabalho teve como objetivo realizar um estudo piloto ao investigar e comparar
os estilos parentais e as práticas educativas de pais de crianças com TDAH dos tipos
combinado e predominantemente desatento. Justifica-se pelo entendimento de que
diversos problemas do comportamento infantil requerem consideração nos trabalhos
de pesquisa, não apenas sobre fatores individuais (sejam eles neurobiológicos ou
psicológicos), mas também a compreensão do ambiente em que a criança se desenvolve
e como este pode contribuir para a manutenção ou agravamento dos quadros clínicos,
incluindo aí o estudo de aspectos familiares e parentais. O esclarecimento de questões
acerca dos estilos e práticas parentais que acompanham o ambiente de uma criança com
TDAH é necessário, uma vez que fornece embasamento teórico para estudos posteriores,
tratamentos psicoterápicos e treinamento de pais.
Método
Participantes
Participaram desta pesquisa 10 pais e seus respectivos filhos, 10 crianças de ambos os
sexos de 9 a 12 anos, sendo que 5 tinham diagnóstico de TDAH do tipo combinado e 5 do
tipo predominantemente desatento. Foram selecionados aqueles pais que procuraram pelo
8
Aletheia 33, set./dez. 2010
Serviço de Avaliação Neuropsicológica da Clínica-Escola de Psicologia da Universidade
Luterana do Brasil (ULBRA) em Canoas, RS, Brasil. Foram incluídas na pesquisa
somente crianças que foram diagnosticadas como portadoras de TDAH, as quais foram
investigadas através de entrevista diagnóstica e testagem psicológica. Foram excluídos os
casos com presença de comorbidades de Eixo I e Retardo Mental. Todos os participantes
eram estudantes do ensino fundamental da 3ª à 7ª série, sendo que 4 apresentavam uma
repetência em seu histórico escolar.
Instrumentos
Instrumentos de triagem
Para a investigação diagnóstica do TDAH, foram utilizados os subtestes Dígitos e
Aritmética da Escala de Inteligência Wechsler (WISC-III). O subteste Dígitos no WISC-III
está incluído entre os subtestes suplementares e, juntamente com o subteste Aritmética,
auxilia na medida do Índice de Resistência à Distração (Figueiredo & Nascimento, 2007).
Além disso, foi utilizado o instrumento MTA-SNAP-IV para avaliação de sintomas de
TDAH (Mattos, Serra-Pinheiro, Rohde & Pinto, 2006).
Instrumento para avaliar os estilos parentais e as práticas educativas
Os participantes responderam ao Inventário de Estilos Parentais (IEP) (Gomide,
2006) que é composto por três escalas: 1) IEP denominado Práticas educativas maternas e
paternas (autoaplicação), no qual os pais respondem sobre as práticas educativas adotadas
em relação ao filho; 2) IEP denominado Práticas parentais paternas, onde o filho responde
sobre as práticas educativas paternas; e 3) IEP denominado Práticas parentais maternas,
onde o filho responde sobre as práticas educativas maternas. As questões são basicamente
as mesmas e adaptadas de acordo com o tipo de respondente.
Este instrumento deriva de um modelo teórico composto por sete práticas educativas,
sendo duas consideradas positivas (monitoria positiva e comportamento moral) e cinco
negativas (abuso físico, disciplina relaxada, monitoria negativa, negligência e punição
inconsistente). As práticas que constituem o IEP são avaliadas através de seis questões
cada, totalizando 42 questões. As respostas são dadas em uma escala likert de 3 pontos,
representados em sempre, às vezes e nunca, respectivamente. O IEP fornece um escore, o
Índice de Estilo Parental (iep), que é o resultado da subtração da soma das práticas negativas,
da soma das positivas. Este índice é um escore bruto que é consultado nas tabelas normativas,
nas quais são apresentados os percentis correspondentes aos valores encontrados.
Encontrando-se o valor percentual, observa-se a qualidade do estilo parental
predominante. Essa referência é dada por uma tabela em que os percentis são agrupados
nas seguintes categorias: estilo parental ótimo (80 a 99), regular acima da média (55 a
75), regular abaixo da média (30 a 50), e de risco (1 a 25). Neste trabalho, analisou-se
o escore final geral e cada prática de forma particular.
Diversas pesquisas foram conduzidas visando a elaboração do IEP. A validação
psicométrica da versão final foi efetuada a partir da aplicação em 769 jovens pertencentes
Aletheia 33, set./dez. 2010
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a dois grupos: 136 em situação de risco e 633 estudantes de escolas públicas e particulares.
Para a validação externa, o IEP foi correlacionado com os seguintes inventários: Inventário
de Habilidades Sociais (IHS), Inventário de Depressão de Beck (CDI) e Inventário de
Stress de Lipp (ISL) (Gomide, 2006; Sampaio, 2007).
Procedimentos
O convite para participação na pesquisa foi feito por contato telefônico. Após
a anuência dos pais e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foi
realizada a triagem no intuito de compor a amostra. Após a avaliação diagnóstica, os
participantes que preencheram os critérios de inclusão da amostra foram divididos em
dois grupos compostos por 5 crianças cada, o grupo com TDAH do tipo combinado
(com sintomas de desatenção e hiperatividade – impulsividade) e o grupo do tipo
predominantemente desatento (APA, 2002). Posteriormente, o Inventário foi aplicado
de forma individual, com os pais e com as crianças. O preenchimento do IEP demorou,
em média, 15 minutos. O trabalho teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa em
Seres Humanos e Animais da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) sob protocolo
nº 2009-283H, seguindo os preceitos do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde
e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP.
Análise dos dados
Para a análise dos dados, considerou-se as práticas educativas e os percentis
relacionados ao iep nos diferentes contextos: 1) respostas dos filhos em relação à mãe; 2)
respostas dos filhos em relação ao pai; e 3) autoaplicação, em que os pais respondem sobre
a sua forma de educar os filhos. Realizou-se uma análise entre grupos utilizando-se o teste
Mann-Whitney, na qual os grupos de TDAH combinado e predominantemente desatento
foram comparados com relação ao seu escore obtido no iep e nas práticas educativas nos
diferentes contextos acima. Além disso, avaliou-se intragrupo, em cada grupo de TDAH,
os diferentes contextos acima quanto aos seus escores no iep e nas práticas educativas,
utilizando-se o teste de Friedman. Valores de p < 0,05 indicam diferença significativa
entre os grupos analisados.
Resultados
O presente estudo piloto analisou os estilos parentais e sete práticas educativas
percebidas pelos pais e pelas crianças com TDAH do tipo combinado e predominantemente
desatento. A Tabela 1 demonstra a comparação dos ieps e das práticas educativas entre
os grupos de TDAH. Não houve diferença significativa nos ieps quando se compara o
grupo de TDAH do tipo combinado com o grupo predominantemente desatento, onde os
filhos respondem em relação à mãe, em relação ao pai, e quando os pais respondem sobre
sua forma de educar os filhos. Apesar disso, os percentis demonstram estilos parentais
que se caracterizam como sendo regular abaixo da média quando os filhos respondem
em relação ao pai e quando os pais respondem sobre sua forma de educar os filhos, e de
risco quando os filhos respondem em relação à mãe. Em relação às práticas educativas,
houve diferença significativa em relação à punição inconsistente quando se comparam
10
Aletheia 33, set./dez. 2010
os grupos de TDAH do tipo combinado com o grupo predominantemente desatento,
onde os pais respondem sobre sua forma de educar os filhos. A punição inconsistente é
significativamente maior (p = 0.016), na percepção dos pais, no manejo dos filhos com
TDAH combinado quando comparado aos filhos com TDAH desatento. Além disso, de
acordo com os dados normativos para esta prática educativa (Gomide, 2006), o valor
demonstrado para o tipo combinado equivale ao estilo parental regular abaixo da média
e, para o tipo desatento, equivale ao estilo parental ótimo.
Tabela 1 – Comparação entre os grupos de crianças com TDAH para o iep e práticas educativas.
TDAH
iep / PE
Combinado
(1)
Iep
(2)
23,20 ± 33,75 ± 27,80
27,54
Desatento
p
(3)
(1)
(2)
(3)
33,00 ±
13,96
23,20 ±
17,57
37,50 ±
10,41
51,00 ±
26,79
0,841 (1)
0,999 (2)
0,310 (3)
MP
8,60 ±
2,30
5,00 ±
2,16
10,40 ±
1,14
9,60 ±
8,50 ± 3,00
2,61
10,40 ±
1,52
0,548 (1)
0,114 (2)
0,841 (3)
CM
9,00 ±
8,00 ±
11,20 ±
7,20 ±
8,25 ±
10,80 ±
0,310 (1)
3,54
2,83
0,84
3,42
1,50
0,84
0,886 (2)
0,548 (3)
PI
6,00 ±
2,75 ±
4,00 ±
3,60 ±
3,00 ±
1,20 ±
0,095 (1)
2,35
1,71
1,22 *
1,82
1,41
1,30
0,886 (2)
0,016 (3)
Neg.
4,00 ±
5,25 ±
4,00 ±
4,20 ±
3,00 ±
3,00 ±
0,988 (1)
2,65
3,77
1,73
1,92
2,00
1,41
0,343 (2)
0,222 (3)
DR
3,60 ±
1,75 ±
2,80 ±
4,40 ±
2,25 ±
3,40 ±
0,548 (1)
2,88
2,22
1,92
1,34
1,71
2,41
0,686 (2)
0,690 (3)
MN
7,40 ±
3,75 ±
7,60 ±
6,40 ±
5,75 ±
6,40 ±
0,690 (1)
2,30
2,22
1,52
3,65
1,71
0,89
0,200 (2)
0,222 (3)
AF
3,40 ±
2,75 ±
3,20 ±
2,40 ±
2,25 ±
3,40 ±
0,548 (1)
1,52
3,59
1,10
2,07
2,06
2,70
0,886 (2)
0,841 (3)
Nota: (1) os filhos respondem em relação à mãe; (2) os filhos respondem em relação ao pai; e (3) autoaplicação,
em que os pais respondem sobre sua forma de educar os filhos. Práticas educativas (PE): MP (Monitoria positiva);
CM (Comportamento moral); PI (Punição inconsistente); Neg. (Negligência); DR (Disciplina relaxada); MN
(Monitoria negativa); AF (Abuso físico). Os dados são expressos como média ± desvio padrão (DP). * p < 0,05
quando comparado ao grupo TDAH do tipo desatento pelo teste Mann-Whitney.
Aletheia 33, set./dez. 2010
11
Nas Tabelas 2 e 3, são demonstradas as comparações intragrupo, dentro de
cada grupo de TDAH combinado e predominantemente desatento, respectivamente,
entre os 3 grupos onde os filhos respondem em relação à mãe, em relação ao pai,
e quando os pais respondem sobre sua forma de educar os filhos. Não houve
diferença significativa nos ieps quando se comparam os 3 grupos em ambos os
tipos de TDAH combinado e predominantemente desatento. Em relação às práticas
educativas, houve diferença significativa em relação à monitoria positiva quando
se comparam os 3 grupos acima dentro do grupo de TDAH do tipo combinado. A
monitoria positiva é significativamente maior (p = 0.018), na percepção dos pais,
no manejo dos filhos quando comparado ao que os filhos respondem em relação
ao pai. De acordo com os dados normativos (Gomide, 2006) para esta prática
educativa, o valor demonstrado para o que é percebido pelos pais equivale ao estilo
parental regular e, para o que os filhos respondem em relação ao pai, equivale ao
estilo parental de risco.
Tabela 2 – Comparação intragrupo, para o iep e práticas educativas.
Combinado
Média
DP
p
Combinado
Média
DP
p
iep (1)
23,2
27,54
0,779
Neg (1)
4
2,65
0,165
iep (2)
33,8
27,80
Neg (2)
5,25
3,77
iep (3)
33,0
13,96
Neg (3)
4
1,73
MP (1)
8,6
2,30
DR (1)
3,6
2,88
MP (2)
5,0
2,16
DR (2)
1,75
2,22
MP (3)
10,4 *
1,14
DR (3)
2,8
1,92
CM (1)
9
3,54
MN (1)
7,4
2,30
CM (2)
8
2,83
MN (2)
3,75
2,22
CM (3)
11,2
0,84
MN (3)
7,6
1,52
PI (1)
6
2,35
AF (1)
3,4
1,52
PI (2)
2,75
1,71
AF (2)
2,75
3,59
PI (3)
4
1,22
AF (3)
3,2
1,10
0,018
0,174
0,109
0,472
0,074
0,807
Nota: (1) os filhos respondem em relação à mãe, (2) os filhos respondem relação ao pai, e (3) autoaplicação,
em que os pais respondem sobre sua forma de educar os filhos, no grupo de TDAH do tipo combinado.
Práticas educativas (PE): MP (Monitoria positiva); CM (Comportamento moral); PI (Punição inconsistente);
Neg. (Negligência); DR (Disciplina relaxada); MN (Monitoria negativa); AF (Abuso físico). * p < 0,05
quando comparado ao grupo MP (2) pelo teste de Friedman.
12
Aletheia 33, set./dez. 2010
Tabela 3 – Comparação intragrupo, para o iep e práticas educativas.
Desatento
Média
DP
p
Desatento
Média
DP
iep (1)
23,2
17,57
0,189
Neg (1)
4,2
1,92
iep (2)
37,5
10,41
Neg (2)
3
2,00
iep (3)
51
26,79
Neg (3)
3
1,41
MP (1)
9,6
2,61
DR (1)
4,4
1,34
MP (2)
8,5
3,00
DR (2)
2,25
1,71
MP (3)
10,4
1,52
DR (3)
3,4
2,41
CM (1)
7,2
3,42
MN (1)
6,4
3,65
CM (2)
8,25
1,50
MN (2)
5,75
1,71
CM (3)
10,8
0,84
MN (3)
6,4
0,89
PI (1)
3,6
1,82
AF (1)
2,4
2,07
PI (2)
3
1,41
AF (2)
2,25
2,06
PI (3)
1,2
1,30
AF (3)
3,4
2,70
0,282
0,085
0,223
p
1
0,292
0,526
0,670
Nota: (1) os filhos respondem em relação à mãe, (2) os filhos respondem relação ao pai, e (3) autoaplicação,
em que os pais respondem sobre sua forma de educar os filhos, no grupo de TDAH do tipo predominantemente
desatento. Práticas educativas (PE): MP (Monitoria positiva); CM (Comportamento moral); PI (Punição
inconsistente); Neg. (Negligência); DR (Disciplina relaxada); MN (Monitoria negativa); AF (Abuso físico).
Discussão
Neste estudo piloto, foram investigados os estilos parentais e as práticas
educativas de pais de crianças com TDAH dos tipos combinado e predominantemente
desatento. Os dados resultantes do Inventário de Estilos Parentais (Gomide, 2006)
demonstraram, segundo o teste Mann-Whitney, que o TDAH do tipo combinado em
crianças quando comparado ao predominantemente desatento está associado a diferenças
na prática educativa denominada punição inconsistente, que, na percepção dos pais, é
significativamente maior, no manejo dos filhos com TDAH combinado quando comparado
aos filhos com TDAH desatento.
Em relação à punição inconsistente, sabe-se que a falha em se usar eficazmente a
punição é a principal característica dessa prática educativa. Então, este resultado pode ser
justificado pelo fato de que o comportamento hiperativo dessas crianças pode estimular
punições pouco eficazes, com a presença de um estilo parental regular abaixo da média
quando comparado ao estilo parental ótimo para o grupo desatento.
A punição inconsistente caracteriza-se pela punição dependente do humor dos pais e
não em contiguidade ao comportamento da criança. Desta maneira, havendo inconstância
nas consequências do comportamento do filho, este não sabe como agir e aprende
mais a discriminar o humor dos pais do que a agir de forma correta. A permanência do
Aletheia 33, set./dez. 2010
13
comportamento indesejado também é uma consequência da punição inconsistente, já que
ora é punido, ora não (Gomide, 2003).
No que concerne à prática denominada monitoria positiva, também foi verificada
uma diferença quanto à percepção dos pais em relação ao modo como educam os seus
filhos quando comparada à percepção dos filhos em relação ao pai, no grupo com TDAH
do tipo combinado. A monitoria positiva, definida como o conjunto de práticas parentais
envolvendo atenção e conhecimento dos pais acerca do local onde o filho se encontra
e das atividades que são desenvolvidas pelo mesmo, apresentou-se, na percepção dos
pais, significativamente maior no manejo dos filhos quando comparado ao que os filhos
respondem em relação ao pai (Dishion & McMahon, 1998; Gomide, 2003; Stattin &
Kerr, 2000).
A falha na monitoria positiva é uma das variáveis responsáveis pelo desenvolvimento
do comportamento agressivo na criança, e sua presença é um dos fatores facilitadores
para o desenvolvimento da sociabilidade (Salvo, Silvares & Toni, 2005). Grych, Seid e
Fincham (1992) sugeriram que a presença de conflitos hostis e agressivos estaria mais
relacionada a problemas externalizantes, como o TDAH. Uma revisão atual discute como
os prejuízos sociais e emocionais envolvidos no TDAH afetam a qualidade de vida de
crianças e adolescentes e suas famílias (Wehmeier, Schacht & Barkley, 2010).
Segundo Gomide (2003), pais que exercem adequadamente a monitoria positiva
tendem a ter elevado repertório de habilidades sociais. Por outro lado, a falta de monitoria
positiva paterna leva a déficits na sociabilidade da criança. Para Del Prette e Del Prette
(1999), as habilidades sociais estão ligadas ao desenvolvimento saudável de crianças, já
que em um ambiente familiar onde se faça uso dessas, provavelmente se desenvolvem
crianças com adequado repertório de habilidades sociais, que são imprescindíveis para
uma boa sociabilidade.
Conforme os resultados do presente estudo, as crianças com TDAH do tipo
combinado têm a percepção de que a monitoria positiva paterna é menos eficiente,
seguindo um perfil de estilo parental de risco, quando comparado ao estilo parental regular
acima da média segundo a percepção dos próprios pais. Estes achados apontam para a
tendência de os pais perceberem a si mesmos como mais responsivos do que os filhos os
percebem. Tendo por base esta discrepância entre a percepção dos pais e das crianças em
relação à educação, ressalta-se a importância de saber não apenas o que fazer para educar
bem, mas também de que forma o que está sendo feito é interpretado pela criança.
Quando o estilo parental é de risco ou regular abaixo da média, ou percebido desta
forma, é aconselhada a participação em grupos de treinamento de pais ou em programas
de intervenção terapêutica para pais com dificuldades em práticas educativas nas quais
possam ser enfocadas as consequências do uso de práticas negativas em detrimento das
positivas (Gomide, 2006). Além disso, é importante avaliar o que é da percepção dos filhos
e o que é verdadeiro. Pode-se trabalhar a percepção da criança e o papel dos pais nesta
percepção. Desta maneira, o surgimento de problemas comportamentais e emocionais em
crianças tem motivado o desenvolvimento de intervenções dirigidas aos pais, tais como
o treinamento de pais (Coelho & Murta, 2007).
O treinamento de pais está fundamentado na premissa de que a falta de
habilidades parentais é, pelo menos parcialmente, responsável pelo desenvolvimento
14
Aletheia 33, set./dez. 2010
ou manutenção de padrões de interação familiar perturbadores e, consequentemente,
de problemas de comportamento nos filhos (Marinho, 2005). Por essas razões, os
pais são, usualmente, o principal agente de mudança no processo terapêutico de seus
filhos, atuando como mediadores entre a orientação profissional e a implementação
de contingências favoráveis à mudança da criança em seu ambiente natural (Caminha
& Pelisoli, 2007).
Em termos gerais, este estudo objetivou compreender melhor os estilos parentais e
as práticas educativas de pais de crianças com TDAH. Foram levantadas questões acerca
de práticas educativas e estilos parentais em crianças com TDAH do tipo combinado e
predominantemente desatento, demonstrando algumas diferenças entre os subtipos e
entre a percepção dos pais e das próprias crianças. Por outro lado, o estudo apresentou
limitações como o amplo intervalo de idade das crianças (9-12 anos) e a presença de
ambos os gêneros na pesquisa, uma vez que diferentes fases de desenvolvimento e gêneros
requerem diferentes manejos parentais.
Com este estudo, pretendeu-se contribuir para o entendimento da interrelação entre
pais e filhos neste contexto, além de fornecer embasamento teórico para intervenções
preventivas e de tratamento, como é o caso do treinamento de pais. Pode-se pensar que
para o adequado desenvolvimento de crianças com TDAH, muito ainda pode ser feito
no sentido de melhorar o relacionamento entre pais e filhos.
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_____________________________
Recebido em 25/03/2010
Aceito em 30/09/2010
Silvana Soriano Frassetto: Graduada em Psicologia (Universidade Luterana do Brasil). Doutora em Bioquímica
– Ênfase em Neurociência (UFRGS).
Daniela Di Giorgio Schneider Bakos: Doutora em Psicologia (UFRGS). Professora de Graduação do Curso
de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 33, set./dez. 2010
17
Aletheia 33, p.18-29, set./dez. 2010
Experiências de vida e os processos de visibilidade social
de mulheres que amam mulheres
Yáskara Arrial Palma
Aline da Silva Piason
Ana Cláudia Menini Bezerra
Marlene Neves Strey
Resumo: O presente estudo apresenta reflexões acerca de duas pesquisas, que tiveram como
objetivo conhecer as experiências de vida de mulheres que amam mulheres, e mais especificamente
de conhecer a percepção das mesmas quanto à sua orientação sexual e os enfrentamentos quanto à
visibilidade ou invisibilidade dessa orientação sexual na família e sociedade. Ambas as pesquisas
tiveram um delineamento qualitativo, diferenciando-se quanto à forma de análise dos dados. As
participantes dos estudos foram respectivamente oito mulheres que se identificam como lésbicas,
com idades entre 22 e 44 anos, residentes na capital do estado e seis com idades entre 22 e 33 anos,
residentes no interior do estado, totalizando 14 entrevistadas. Para compor o corpus do estudo, as
entrevistas foram gravadas e transcritas e para sua análise, o primeiro estudo utilizou o método
da análise de discurso e o segundo, o método da análise de conteúdo. Os resultados apontam que
tanto no interior, quanto na capital, as vivências dessas mulheres se assemelham e que apesar de
estar havendo uma mudança social na forma de pensar e agir diante da homossexualidade feminina,
essa parece ser ainda lenta e gradual. A partir de um olhar dos estudos de gênero, considera-se que
a sociedade, ainda predominantemente heterossexista e patriarcal, necessita ampliar seus espaços
para expressão da diversidade e investir em esforços para mudança desse paradigma.
Palavras-chave: Gênero; lésbicas; família.
Experiences of life and the process of social visibility of women
who loves women
Abstract: The present study presents a reflection concerning two researches that have had as
an aim, a way of knowing the processes of recognizing the life experiences of women who love
women, and more specifically to know the perception of these women in relation to their sexual
orientation and encountering visibility or invisibility of the sexual orientation in family and society.
Both researches have had a qualitative delimitation, differing from each other in the way of data
analysis. The participants of the studies were eight women, who identify themselves as lesbians,
with ages between 22 and 44 years old, living at the suburb of the state, Rio Grande do Sul and six
women with ages between 22 and 33 years old, from the inner city, totaling 14 interviewees. To
take part on the corpus of the study, the interviews were taped and transcribed for the analyses, on
the first study it was used the method of discourse analyses, and the second the method of content
analyses. The results show that at the country side and at the capital, the experiences of these women
are similar, and show that apart from having a social change at the ways of thinking and perceiving
female homosexuality, it still is a slow and gradual process. From a gender studies point of view, it
is considered that society still is predominantly heterosexist and patriarchal, needing to enlarge its
spaces for the expression of diversity and investment in efforts to a change of paradigms.
Keywords: Gender, lesbians, family.
Introdução
O artigo apresentado é produto do encontro de reflexões presentes em duas pesquisas
que tratam da mesma temática, que é conhecer as experiências de vida de mulheres que
amam mulheres, e mais especificamente de conhecer a percepção das mesmas quanto à
sua orientação sexual e os enfrentamentos quanto à visibilidade ou invisibilidade dessa
orientação sexual na família e sociedade.
Os dois estudos referem-se respectivamente a uma pesquisa de mestrado realizada
na PUCRS, com a participação de oito mulheres que se identificam enquanto lésbicas
residentes na capital do Rio Grande do Sul, com idades entre 22 e 44 anos. O outro estudo
trata-se de um trabalho de conclusão de curso na UCS, realizado em uma cidade do interior
do estado, com a participação de seis mulheres que também se autoidentificam enquanto
lésbicas, com idades entre 22 e 33 anos. A integração dos dois estudos possibilitou que
ampliássemos a compreensão do universo dessas mulheres e alcançássemos com maior
eficácia os objetivos propostos.
No trabalho desenvolvido por Marlene Strey (2004), foram levantadas hipóteses,
a partir de pesquisa realizada por Eicher (1978), de que as mulheres, em um período
pré-histórico datado entre os anos 12.000 e 8.000 ac, poderiam ter vivenciado e gozado
de plena liberdade sexual. Porém, tal fato permanece como hipótese sem comprovação.
O que se reconhece historicamente é a presença do controle e da repressão dos impulsos
sexuais femininos, principalmente diante do modelo proposto de uma família patriarcal,
transformada em pilar de nossa sociedade. O que percebemos, então, é que essa visão
misógina tem sido perpetuada na história da humanidade e transmitida de geração em
geração até os nossos dias.
Ainda segundo Marlene Strey (2004), as mulheres foram historicamente descritas
e narradas a partir da representação, dos desejos e do imaginário masculino. Seu corpo
se produz nesse imaginário e adere às práticas que se articulam em espaços definidos,
ritmos, formas de se vestir, gestos, olhares permitidos e proibidos. É fruto de um contexto
social, que cria, esquadrinha ou exclui.
Fixadas em seus corpos e suas produções, as mulheres simbolizam a reprodução
humana e a afetividade. Aparecem, durante muito tempo, não como sujeitos, mas como
seres apropriados e utilizados socialmente frente ao poder e à dominação masculina. Assim,
permanecem silenciadas no mundo da vida privada e familiar, sendo impossibilitadas de
expressar outras formas de criação (Colling, 2004; Strey, 2004; Swain, 2008).
Garcia (2003) realizou uma pesquisa em Florianópolis com 10 mulheres
que mantinham a prática sexual com outras mulheres, mas se identificavam como
heterossexuais, por também possuírem parceiros sexuais do sexo oposto. Os resultados
apontaram que a primeira experiência sexual com outra mulher ocorreu, para grande
parte delas, aos 24 anos (40%) sendo esta descrita por 40% das participantes como
razoável e por 60% como ótimo, apesar da sensação de estar fazendo algo errado. Para
60% das participantes a vida sexual era considerada ruim, tendo em conta somente o
relacionamento heterossexual.
Esses dados nos remetem à heteronormatividade, referenciada por Rich (1980), que
ainda é vigente na contemporaneidade. Muitos gays e lésbicas não conseguem viver de
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maneira plena seus desejos em função do estigma que carregam por fazerem parte de uma
posição “desviante”, pois uma orientação sexual diferente da esperada por vezes ainda
é vista como patológica. Esse fato intensifica-se quando é proveniente de profissionais
das ciências psicológicas e/ou de instituições tais como escola, igreja, representativos
da sociedade. O estigma prevalece apesar de em 1993 a Organização Mundial de Saúde
ter retirado a homossexualidade de sua lista de doenças.
Diversos estudos, como o de Heilborn (2004), vêm sendo realizados com o propósito
de romper este estigma. A autora, ao falar sobre o par igualitário enfatiza a importância
do companheirismo e da amizade na relação, sem esquecer a dimensão sexual. O casal
de mulheres aparece bastante marcado por um intenso companheirismo, com forte ênfase
no apoio psicológico mútuo, deslizando da conjugalidade para a amizade. Porém, temos
que ter presente que não existem identidades nem papéis fixos, logo essas reflexões não
dizem respeito a todo o universo de mulheres que se identificam como lésbicas.
Portinari (1989) comenta que o discurso da homossexualidade funciona como crítica
e ultrapassagem do sentido estabelecido, apontando para a intraduzibilidade da ideia de
lesbiandade e da ideia de mulher em geral. Tal ideia é corroborada por Swain (2004)
dizendo que não há uma sexualidade lesbiana, pois não há um modelo a ser seguido. Há
uma busca e um conhecimento do próprio corpo, que é utilizado no prazer de outrem e
de si mesmo.
McGoldrick (1995) sinaliza, a respeito de revelar a orientação sexual, que o
relacionamento com a comunidade provavelmente será influenciado pela questão do
tornar público. Esse é outro importante ponto para os casais de lésbicas, que precisam
lidar com a consequente perda de status em resultado de sua orientação sexual. Marvin
e Miller (2002) apontam que a decisão de ser franca, seja com um membro da família,
amigos (as) ou colegas de trabalho, traz consigo o risco de perigo sempre presente para
si mesma e para as pessoas amadas. No caso das mulheres, com o revelar do segredo,
devem ainda ter uma cautela dupla contra aqueles (as) que as desvalorizam como lésbicas
e também como mulheres.
Mott (1987) afirma que são poucas as homossexuais que conseguem a maturidade
da autoaceitação e que chegam a revelar a sua inclinação homossexual para os familiares
ou colegas. Por outro lado, a grande maioria das mães que têm filhas lésbicas assumidas
espera que aconteça uma mudança de orientação sexual e são poucas as famílias que
aceitam e convivem bem com um de seus membros que possua orientação homossexual.
O que está mais presente é a intolerância e o inconformismo constituindo a família, para
a grande maioria das lésbicas, a principal preocupação, seja como fonte de repressão,
seja como cobradora de compromissos sociais heterossexuais.
As famílias de origem, na maior parte das vezes, operam a partir de uma crença de
que todos os filhos serão heterossexuais e crescerão seguindo estilos de vida e experiências
heterossexuais. Amigos (as) da família, das mães e dos pais e da própria criança (mesmo
essa sendo gay ou lésbica) são escolhidos (as) sobretudo, com base no ajuste a um modelo
heterossexual, além das interações ocupacionais e sociais estarem baseadas em um plano
de vida heterossexual (Sanders, 1994).
No entanto, estamos percebendo uma mudança social com o aumento da visibilidade
lésbica, assim como apresentado no estudo de Borges (2005). Segundo a autora, esta
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visibilidade passou a existir em função das contribuições dos movimentos feministas
e da mídia. Destaca que a percepção da mulher como sujeito histórico e sexual está
intimamente ligada à intensificação das lutas feministas, algo que ocorreu a partir do
século XX. Mais especificamente, as décadas de setenta e oitenta são consideradas marcos
na história do feminismo brasileiro. A partir deste período, aumentou a participação de
mulheres autodeclaradas lésbicas e feministas, que pressionaram o movimento para a
discussão da lesbiandade como pauta dos direitos sexuais.
Nesse sentido, reconhecemos a importância em visibilizar essa multiplicidade
e diversidade, revelando as vivências pessoais, as relações familiares e sociais de
mulheres que amam mulheres. Para alcançar este objetivo, consideramos que os estudos
de gênero podem se mostrar uma ferramenta importante nessa tarefa, devido ao fato da
abordagem de gênero ser amplamente reconhecida como facilitadora na produção de
novos questionamentos para os estudos das mulheres. Promovem ainda, importantes
contribuições para desnaturalizar preconceitos (Narvaz, 2005; Pereira, 2004).
Diante desta perspectiva, os estudos de gênero, apoiados em teorias pós-estruturalistas
(Butler 1998, 2003; Nicholson, 2000; Rago, 1995/1996; Scott, 1990), procuram romper
esta perspectiva essencialista e heteronormativa ao se propor contemplar e resolver o
dilema binário do sistema sexo-gênero, ou seja, entre o natural (corpo) e o cultural (Narvaz,
2005; Pereira, 2004). Desta forma, o gênero se constituiu em um campo de estudos de
concepções relacionais, fazendo emergir problematizações de outros sujeitos, uma vez
que, nas últimas décadas esse campo tem descortinado e incluído outros sujeitos, como
os homens, gays, lésbicas, bissexuais e transexuais (Pereira, 2004).
Os estudos que tratam dessas questões acabam rompendo com as normas
heteronormativas ainda presentes na contemporaneidade e colaboram para que as lésbicas
sejam cada vez mais visibilizadas. Pensando nisto, este artigo pretende contribuir para
a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, pois dá subsídios para reflexões
acerca das experiências de vida e os processos de visibilidade social de mulheres que
amam mulheres.
Método
O presente artigo apresenta reflexões acerca de duas pesquisas que investigaram
questões relacionadas às experiências de vida e os processos de visibilidade social de
mulheres que amam mulheres. Estas foram realizadas nas cidades de Porto Alegre, capital
do Rio Grande do Sul, e de Caxias do Sul, situada no interior do Estado. A primeira
pesquisa partiu de uma dissertação de mestrado em Psicologia Social (PUCRS) e a segunda
se originou de uma monografia de conclusão da graduação em Psicologia (UCS). Estes
estudos tiveram um delineamento qualitativo, diferenciando-se quanto à forma de coleta
e análise dos dados. As participantes dos estudos totalizaram 14 mulheres homossexuais.
Foram, respectivamente, oito mulheres que se identificam como lésbicas, com idades
entre 22 e 44 anos, residentes na capital, e seis com idades entre 22 e 33 anos, residentes
no interior do estado.
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Procedimentos de coleta de dados
Para a obtenção dos dados dessas pesquisas foram utilizadas como recurso, na
primeira pesquisa, entrevistas narrativas, e na segunda, entrevistas semiestruturadas.
Ambas entrevistas abordaram questões sobre a visibilidade social e as experiências de
vida dessas mulheres com o enfoque das teorias feministas de gênero. No primeiro estudo
as entrevistas ocorreram nos meses de junho a novembro de 2008 e na segunda, no mês
de setembro de 2006.
O contato com as participantes foi por meio de indicações, utilizando a técnica
“Snowball Sampling” (amostragem por bola de neve) e teve como ponto de partida o
contato com ONG’s que defendem a livre expressão sexual, na cidade de Porto Alegre,
e no interior se deu a partir da rede de relações da pesquisadora. O uso dessa técnica
é sugerida em pesquisas anteriores (Cechin, 2005; Numan, 2003; Víctora, Knauth &
Hassen, 2000), pois envolvem participantes que geralmente convivem em grupos cujos
membros se conhecem entre si, como as comunidades de gays e lésbicas, e também
pela dificuldade de identificação destas pessoas, uma vez que muitos ainda optam por
invisibilizar sua orientação sexual.
A aplicação das entrevistas ocorreu nas residências e locais de trabalho, conforme
disponibilidade e preferência das entrevistadas. As entrevistas narrativas tiveram em
média quarenta minutos de duração e as entrevistas semiestruturadas, em média de vinte
minutos.
A entrevista narrativa é indicada para pesquisas qualitativas, por ser considerada
não estruturada e de profundidade. A ideia básica é reconstruir acontecimentos sociais
a partir da perspectiva da informante (Jovchelovitch & Bauer, 2002). A entrevista
narrativa necessita de uma situação que encoraje e estimule a entrevistada a contar a
história sobre os acontecimentos de sua vida e seu contexto familiar e social. Portanto,
a pesquisadora solicitou que as participantes relatassem suas experiências no processo
de se reconhecer lésbicas, bem como suas vivências quanto à sua orientação sexual e a
visibilidade social.
A entrevista semiestruturada permite que a entrevistadora explicite algumas questões
no curso da entrevista, apesar de haver um roteiro prévio de questões a serem investigadas,
reformulando-as para atender as necessidades da entrevistada. A flexibilidade deste tipo
de entrevista possibilita um contato mais intimo entre a entrevistadora e a entrevistada,
favorecendo assim a exploração em profundidade de seus saberes, bem como de suas
representações, crenças e valores (Laville & Dionne, 1999). Assim, no segundo estudo o
roteiro versou sobre as vivências pessoais e familiares e as possibilidades de visibilidade
social quanto à orientação sexual.
Análise dos dados
Os estudos apresentados também se diferenciavam quanto à análise dos dados.
No primeiro estudo, utilizou-se o método de análise de discurso e no segundo estudo,
utilizou-se o método da análise de conteúdo, segundo Bardin (1977).
A análise de discurso é o nome dado aos diferentes enfoques no estudo de textos.
Existem várias análises de discurso, porém todas partilham da questão da importância
central do discurso na construção da vida social (Gill, 2002). No primeiro estudo foi
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utilizada a análise de discurso baseado nas teorias feministas de gênero (Butler, 2003;
Louro, 2007) que apontam para uma reflexão sobre a heteronormatividade ainda vigente
em nossa sociedade, interrogando os discursos presentes nas falas das entrevistadas,
perguntando-se de que modo a linguagem é produzida e produz sentidos, determinando
a existência daquele enunciado.
Já a análise de conteúdo, segundo Bardin (1977), é um método empírico, dependente
do tipo de fala a que se dedica e ao tipo de interpretação que se pretende como objetivo.
Este método de análise foi escolhido no segundo estudo a fim de estudar e analisar
material qualitativo, buscando-se melhor compreensão da comunicação e aprofundando
suas características ideológicas, além de extrair os aspectos mais relevantes das falas
das entrevistadas.
Após as análises das informações obtidas, foi possível discutir os resultados e fazer
um entrelaçamento entre estes estudos por se tratarem da mesma temática, possibilitando
expandir a compreensão do fenômeno e chegar a algumas considerações apresentadas
nesse artigo.
Considerações éticas
Os estudos tiveram aprovação nos Comitês de Ética em Pesquisa tanto da PUCRS
quanto da UCS de acordo com Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde –
Ministério da Saúde.
Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
para a autorização da coleta e análise dos dados, cientes que as informações geradas
serão divulgadas, via relatório e publicações, seguindo os princípios éticos da pesquisa
em saúde. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas para a realização
da análise das informações, com a preservação do sigilo sobre a identidade das
participantes.
Resultados e discussão
A partir dos entrelaçamentos feitos neste estudo, podemos perceber semelhanças
entre as experiências de vida das mulheres da capital e do interior do Estado, através das
duas pesquisas realizadas, bem como uma maior caracterização dessas mulheres1 quanto
as suas vivências e os processos de visibilidade social.
O presente estudo, com o propósito de revelar as experiências vivenciadas por lésbicas,
investigou questões relacionadas aos aspectos que levaram a descoberta da lesbiandade, que
foi evidenciada nas pesquisas como: atração por mulheres, não ter atração por homens e
decepção pelo sexo masculino. Também tiveram participantes que relataram que não houve
um fator específico para a escolha da orientação sexual: “[...] minha amizade com essa
menina foi ficando cada vez mais intensa, era um amor (Maria). Eu tentei ficar com guris,
só que não rolava desejo, mas vi que não era isso que eu queria (Clara). Isso aconteceu
naturalmente, não foi um momento que eu decidi fazer isso (Flávia)”.
1
O nome das participantes neste estudo é fictício, mantendo preservado o sigilo de identidade.
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Muitas mulheres já se acham diferentes desde crianças, mas só se definem e se
sentem homossexuais quando se percebem atraídas sexualmente por pessoas do mesmo
sexo (Fairchild & Hayward, 1996). Os achados da entrevista se confirmam com os estudos
acima citados, pois algumas participantes referiram a homossexualidade não como uma
opção, mas sim como algo que foi se revelando, a partir da percepção de diferenças em
relação às amigas: “[...] As minhas experiências com meninas começaram muito cedo.
Com uma amiga, uma vizinha de rua, que antes de vir para capital morava no interior,
e acho que por brincadeira, como tu brinca de papai e mamãe. Só que aí eram duas
meninas, brincando assim... Se for pensar que essa experiência pode ter me orientado
para gostar de meninas, aí... até pode ser! (Alice)”.
A participante segue comentando: “Eu tenho muito medo de dizer que eu nasci assim,
porque a gente não nasce, a gente realmente vai se construindo pelas experiências que
tu tem, o lugar onde tu vive, a época...”. Esta fala nos remete à grande feminista Simone
de Beauvoir (1949) com sua célebre frase: “não se nasce mulher, torna-se mulher”, ou
seja, não há um determinismo, mas algo que vai se construindo socialmente.
Em seu estudo, Marlene Strey (2004) mostrou que as concepções femininas de
desejo estavam baseadas no imaginário masculino e que seus anseios acabariam sendo
condicionados às ideias que partem desta perspectiva, como aparece na reflexão que segue:
“[...] desde cedo eu já achava as mulheres interessantes. Algumas mulheres interessantes.
Acho bom marcar isso porque existe um senso comum que considera que mulheres que
amam mulheres acham todas as mulheres interessantes. Assim, como uma ideia machista
de enxergar o mundo, não é?” (Taís).
No que se refere aos fatores de visibilidade e invisibilidade social, as participantes
das pesquisas relataram que vivenciaram experiências tanto positivas quanto negativas
a partir da revelação da orientação sexual. Dentre os aspectos positivos, puderam-se
observar questões tais como, felicidade, maior qualidade do relacionamento com a
parceira e com suas famílias, possibilidade de ampliação de novos relacionamentos e a
possibilidade de novas amizades.
Quanto aos aspectos positivos, consideramos que a fala de uma das participantes
explicita a discussão feita por Heilborn (2004) sobre o par igualitário destacando a questão
do companheirismo evidenciado nos casais do mesmo sexo “[...] então é a troca de
carinho, o companheirismo, a mulher se autoconhece, então ela sabe como lidar, então
é muito mais fácil tu lidar com a tua companheira” (Maria). Ainda sobre este aspecto,
Marvin e Miller (2002) assinalam que casais de lésbicas consideram-se significativamente
mais satisfeitas com os seus relacionamentos que casais heterossexuais.
Já os fatores relatados como negativos foram principalmente o preconceito e o
isolamento: “o preconceito é muito grande, mostrar carinho é muito complicado [...] tem
que ficar se segurando pra não fazer alguma coisa, as pessoas ficam olhando reparando
[...] (Júlia). Ainda existe muito preconceito, ainda mais aqui no interior, que o povo é
mais conservador [...] (Maria). [...] a gente vive num meio bem fechado, é complicado
[...] (Paola)”.
O preconceito pode ser considerado como uma frustração reprimida e deslocada
para grupos mais fracos (Lacerda, Pereira & Camino, 2002). As participantes caracterizam
o preconceito como prejudicial para o relacionamento afetivo homossexual, limitando e
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restringindo ações não restritas ao público heterossexual, como segue no diálogo relatado
de uma delas com sua prima: “[...] a única coisa que eu queria te pedir era que tu não
beijasse ela na nossa frente. Daí eu disse: Com certeza eu não vou beijar, mas eu acho
muito estranho tu me pedir isso a medida que eu entro em casa e tu está com teu namorado
no sofá, e eu nem sei quem é um e quem é o outro. Então, assim, eu nem estou dizendo
que eu vou beijar, mas eu estou dizendo para ti pensar como é complicado tu te privar
se tu está a fim de beijar, né?” (Roberta).
Autores como Fairchild e Hayward (1996) apontam que a maioria dos gays e das
lésbicas enfrentou dificuldades ou reprimiu seus sentimentos, na tentativa de se moldar à
sociedade. Essa tentativa gera diversos sentimentos e preocupações como nos é explicitado
no relato que segue: “[...] comecei a namorar esse cara aos 21 anos. Aí se passaram 3
anos e com 25 anos eu finalmente decidi o que queria. Eu sou assim, sabe, nunca me
preocupei muito, encarei numa boa. Quer dizer, só fiquei preocupada mesmo com o
externo, com a minha família, com a opinião deles, se eles iriam me aceitar [...]”(Laura).
No momento em que não há mais a repressão, os sentimentos são expostos e a felicidade
vem ao encontro dessa liberdade e satisfação com a orientação sexual.
Além do preconceito da sociedade, muitas lésbicas também sofrem o preconceito
advindo da família de origem, o que torna ainda mais penosa a revelação de uma orientação
sexual diferente da esperada, como constatamos nos relatos: “[...] queria que eu desse
neto. Ela queria muito ter netos. Foi uma experiência que, eu lembro que no início foi
quando eu ainda era adolescente, imatura e tal, essas coisas ainda me tocavam, me
preocupavam, fazia pensar se era mesmo isso o que eu queria? Mas na verdade eu tava
transferindo as coisas, muito preocupada com a minha mãe, com a vontade dela e não
comigo. Mas a minha vontade prevaleceu” (Laura).
Esse preconceito também pode implicar as questões de autoaceitação, uma vez que
provoca sentimentos de exclusão e estranhamento, como na declaração a seguir: “A minha
irmã até falou: porque tu vai noivar com esse cara se não é isso que tu quer? A minha
irmã já sabia, entendeu? As pessoas já enxergavam isso em mim. E eu lutei contra, na
verdade contra o preconceito. Eu lutei contra o meu preconceito mesmo. Tava me forçando
e não era o que eu queria, não era o meu desejo” (Priscila). Mott (1987) comenta que
são poucas as lésbicas que atingem a maturidade da autoaceitação e que chegam a revelar
a sua orientação homossexual para os (as) familiares e/ou colegas.
As falas a seguir são representativas da reação negativa que muitas famílias podem
apresentar, denotando o preconceito vigente na sociedade: “Olha, ela ficou um pouco
assustada, meio sem saber o que me dizer” (Júlia) “Escutei muitas coisas deles horríveis,
tentei me expressar, só que não conseguia, foi bem ruim, o clima ainda não tá muito
agradável [...] foi muito cruel” (Flávia) “A primeira coisa foi ela começar a chorar, eu
lembro até hoje, ela disse ‘onde foi que eu errei?’” (Maria).
Revelar sua orientação sexual para além das relações familiares torna-se uma
experiência ainda mais desafiadora, pois há o medo da perda de emprego, do isolamento
social e segregação, tal como se apresenta nos relatos: “[...] aí nos diziam: tem que ser
mais discretas, porque vocês vão ser prejudicadas. [...] vocês tem que se darem conta
que vai ser uma escolha muito difícil, que talvez nem consigam trabalhar. E quem é que
vive uma situação sem poder se manter?” (Roberta). “[...] o único lugar que eu não me
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exponho de verdade é no meu trabalho. [...] é difícil de abrir, é difícil porque diariamente
a gente escuta piadinhas, de ficarem debochando mesmo” (Priscila).
Todavia, como refere Borges (2005), é possível identificar a existência de uma maior
visibilidade a partir das contribuições dos movimentos feministas e da mídia. Tal fato é
igualmente reconhecido pelas participantes: “[...] se eu tivesse nascido hoje, certamente
não seria a mesma coisa, é uma época totalmente diferente. Hoje tu tem a representação
na mídia que eu não tive. Hoje se tu pega uma criança de 5 anos e pergunta o que é uma
lésbica, ou o que é um gay, ou o que é um travesti? Ela te explica, porque isso aparece
na televisão, no filme, na novela. A minha geração não teve isso.” (Rosa).
A visibilidade social e a repercussão na mídia auxiliaram também no entendimento
por parte das famílias, em relação a seus membros com orientação sexual gay ou lésbica.
A participante a seguir exemplifica uma maneira positiva em relação à família lidar com
a lesbiandade da filha: “Normal, como um casal hetero, eles lidam com a gente, minha
mãe gosta muito dela também, trata como uma filha, normal” (Clara). Porém, ainda
encontramos muito sofrimento relacionado à falta de aceitação e apoio por parte da
família: “É um pouco complicado ainda, eles não falam muito sobre isso, eles fogem do
assunto, fazem de conta que não é verdade, que eles não sabem...” (Flávia).
Apesar de todos os problemas e dificuldades enfrentadas pelas lésbicas frente
à família e a sociedade, os sentimentos que se evidenciam nas vozes das próprias
participantes são de felicidade e alegria ao estarem vivendo em maior congruência consigo
mesmas. Demonstraram, assim como nos estudos de Fairchild e Hayward (1996), que
a repressão não tem mais sentido em suas vidas e a felicidade vem ao encontro dessa
liberdade e satisfação pessoal com sua orientação sexual: “Eu acho bem bom, assim, ter
essa liberdade. E acredito que essa liberdade cresce muito mais dentro de ti do que fora,
porque à medida que tu assimila isso pra ti, embora todas as pessoas venham dizer que
não é viável, acaba sendo uma ética contigo mesmo, e tu vai assumir ela para ti, aí o
resto... sei lá, deixa de ter tanta importância” (Roberta).
Contudo, como nos diz Swain (2004) existe um leque extenso de ser lesbiana, de
ter visibilidade social, de reivindicar um estilo de vida e resistir às normas. E, assim, este
estudo não pretende fazer generalizações, mas proporcionar uma maior visibilidade a essa
diversidade de experiências vividas pelas mulheres que amam mulheres.
Considerações finais
Este estudo possibilitou que continuássemos a reflexão acerca das mulheres que
se identificam como lésbicas, tanto na capital do Estado, quanto no interior, através das
percepções advindas dos resultados das pesquisas realizadas. As falas das participantes
criaram um espaço de intersecção, onde as questões referentes às experiências de vida
e à visibilidade social pudessem ser compartilhadas e apresentadas para uma sociedade
ainda permeada por preconceitos e estereótipos.
Embora morando em cidades diferentes, podemos perceber que os sentimentos das
participantes frente ao enfrentamento de ser lésbica possuem grande semelhança, e que
mesmo com todos os avanços referentes ao respeito pelos direitos humanos, a sexualidade
ainda é controlada por uma heteronormatividade. Porém, essa proximidade também nos
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permitiu visualizar a satisfação expressada por sentirem-se respeitando os seus desejos,
satisfeitas em suas relações lesbianas.
Também consideramos que a família continua tendo um papel fundamental para
a qualidade de vida das participantes. Visto que com a existência do apoio e do carinho
da família de origem, em relação à suas orientações sexuais, as participantes sentem-se
fortalecidas para irem buscar seus ideais. Se a sociedade condena sua orientação, as mães
e os pais dão a segurança necessária para que sigam a luta por seus direitos.
Apesar da invisibilidade social passada por muitas lésbicas, do impedimento da
expressão dos desejos e afetos e dos rótulos colocados através dos papéis estereotipados,
muitos avanços foram conquistados através dos tempos. As mulheres que se identificam
como lésbicas articularam-se e organizaram-se através de movimentos sociais, para
contribuir com a ampliação do modo de pensar que está ocorrendo na sociedade, mesmo
com todos os empecilhos encontrados.
Espaços que possibilitam que essas mulheres visibilizem sua causa estão cada
vez mais sendo construídos e utilizados de maneira com que homens e mulheres sejam
valorizados nas suas diferenças, respeitados (as) na totalidade de seus seres. Para
tanto, é fundamental que esses espaços continuem em expansão, seja através de ações
propriamente ditas, seja através de produções acadêmicas.
A criação de outros estudos, que possam contribuir na visibilidade social das
lésbicas é fundamental, para que as realidades possam ser conhecidas e, através desse
conhecimento, respeitadas. O “amor que não ousa dizer seu nome”, de Oscar Wilde,
acaba ousando a dizer muitos outros nomes e expressões. Nossa sociedade, ainda regida
pelo patriarcado, está em momento de ampliação de sentidos, possibilitando que outras
maneiras de se relacionar afetivo e sexualmente possam existir.
À medida que os estudos com essa mesma temática se ampliam, maior será o
espaço conquistado por essas mulheres, pois a visibilidade colabora para que exista uma
reflexão em cima do instituído e possibilita que os sentidos possam ser ressignificados.
Essa ressignificação vai ao encontro de uma sociedade mais justa, onde a diversidade
seja respeitada e todas e todos sejam tratados de maneira igualitária.
Referências
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Beauvoir, S. (1949). Le deuxieme sexe. Paris: Editions Gallimard.
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____________________________________
Recebido em 11/03/2010
Aceito em 20/11/2010
Yáskara Arrial Palma: Psicóloga graduada pela Universidade de Caxias do Sul – UCS, Mestranda em
Psicologia Social, bolsista CNPq da PUCRS.
Aline Piason: Psicóloga graduada pela PUCRS, Diretora do Instituto Delphos de Psicologia Humanista,
Doutoranda em Psicologia pela PUCRS, bolsa Capes.
Ana Cláudia Menini Bezerra: Psicóloga Graduada pela ULBRA Manaus, Mestranda em Psicologia Social,
Bolsista Capes.
Marlene Neves Strey: Departamento de Psicologia PUCRS, Professora Titular PUCRS, Bolsista de
produtividade CNPq.
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 33, set./dez. 2010
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Aletheia 33, p.30-44, set./dez. 2010
Escala de Altruísmo Autoinformado: evidências de validade
de construto
Valdiney V. Gouveia
Rebecca Alves Aguiar Athayde
Rildésia S. V. Gouveia
Ana Isabel Araújo Silva de Brito Gomes
Roosevelt Vilar Lobo de Souza
Resumo: Este artigo objetivou adaptar a Escala de Altruísmo Autoinformado (EAA), reunindo
evidências de sua validade de construto. Realizaram-se dois estudos em João Pessoa (PB), nos
quais os participantes responderam a EAA e perguntas demográficas. No Estudo 1 participaram
331estudantes universitários com idade média de 20. Por meio de análise fatorial exploratória
identificou-se um fator geral de altruísmo com 17 itens, explicando 29% da variância total (α =
0,85; homogeneidade média = 0,29). No Estudo 2 participaram 408 estudantes universitários com
idade média de 22 anos. Realizou-se uma análise fatorial confirmatória com os 17 itens saturando
em um fator (α = 0,83; homogeneidade média de 0,28), observando-se indicadores de ajuste que
confirmaram esta estrutura (GFI = 0,92, RMSEA = 0,058). Comprovou-se que as estruturas fatoriais
e os coeficientes de consistência interna foram invariantes através dos estudos, concluindo-se que
existem evidências de validade de construto da EAA.
Palavras-chave: Altruísmo; escala; validade de construto.
Self-report Altruism Scale: Evidences of construct validity
Abstract: This study aimed to adapt the Self-report Altruism Scale (SAS), providing evidences of
its construct validity. Two studies were carried out in João Pessoa (PB), with participants having
answered the SAS and demographic questions. In Study 1 participants were 331 undergraduate
students with mean age of 20. A general factor of altruism, with 17 items, was identified by
exploratory factor analysis, accounting for 29% of the total variance (α = 0.85; average homogeneity
= 0.29). In Study 2 participants were 408 undergraduate students with mean age of 22. A confirmatory
factor analysis was performed with 17 items loading on a single factor (α = 0.83; average
homogeneity = 0.28), having been observed fit indices that confirmed this structure (GFI = 0.92,
RMSEA = 0.058). Moreover, it was observed that the factorial structure and reliability coefficients
were invariant across studies. In conclusion, there are evidences of construct validity of the SAS.
Keywords: Altruism; scale; construct validity.
Introdução
No primeiro quarto do século passado, William McDougall (2001/1919) pontuara
que o problema fundamental do psicólogo social é lidar com a moralização do indivíduo
pela sociedade. Na sua concepção, este indivíduo compreendia uma criatura em que as
tendências não morais e puramente egoístas eram tão ou mais fortes que todas as tendências
altruístas. O paradoxo inerente às ideias deste autor tem raízes ou sustentação em diversos
filósofos e teóricos, alguns advogando a natureza benevolente do ser humano (e.g., Jean
Jacques Rousseau, Abraham Maslow, Karl Marx) e outros afirmando que a humanidade
é genuinamente má, tendo a sociedade o papel de controlar suas tendências ruins (e.g.,
Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes, Sigmund Freud) (Goldstein, 1983). O mesmo ocorre
no cotidiano, uma vez que é possível ficar perplexo ao perceber atos de crueldade e, ao
mesmo tempo, admirado quando se identificam atos extremamente generosos (Batson
& Powell, 2003; Penner, Dovidio, Piliavin & Schroeder, 2005; Rodrigues, Assmar &
Jablonski, 2009).
Durante décadas, antropólogos, psicólogos sociais e sociólogos, além de leigos
em geral, têm se inquietado com questões que revelam tendências tanto positivas como
negativas no ser humano. Por exemplo, indagam-se acerca de por que e quando as pessoas
praticam atos nobres de admirável autossacrifício, ao passo que em outras ocasiões
agem de maneira indiferente, ignorando os apelos desesperados de pessoas necessitadas.
Neste cenário de questionamentos, parece ter lugar um tipo específico de ato pró-social,
por vezes considerado atípico, raro ou extraordinário, que poderia explicar parte dos
comportamentos das pessoas, sobretudo no que diz respeito ao autossacrifício, à entrega
e às atitudes positivas frente aos demais: o altruísmo (Batson & Powell, 2003; Krueger,
Hicks & Mcgue, 2001; Michener, DeLamater & Myers, 2005).
Ainda que as implicações do altruísmo para a moralidade, ética, religião e direito
sejam seguidas do status de uma atitude genuína, discute-se se este comportamento é
verdadeiramente altruísta ou é mais dirigido por motivos egoístas (Rodrigues & cols.,
2009). De fato, mesmo diante de debates filosóficos e diversas pesquisas, algumas questões
básicas ainda demandam respostas contundentes, como a viabilidade de medir o altruísmo
e a adequação dos instrumentos existentes para fazê-lo. Este aspecto motivou os estudos
ora descritos, justificando-se em razão da importância do altruísmo para a explicação de
comportamentos sociais importantes, como a doação de sangue (Blanca, Rando, Frutos
& López-Montiel, 2007; Rushton, Chrisjohn & Fekken, 1981) e a atividade voluntária
(Carpenter & Myers, 2007). Neste sentido, procura-se fundamentar a seguir a concepção
adotada aqui sobre o altruísmo.
O altruísmo: comportamento pró-social motivado e tipo de personalidade
O altruísmo foi bastante pesquisado entre os anos 1950 e 1980 (Chacon, Menard,
Sanz & Vecina 1998). Segundo Bohannan (1963), este tema ganhou relevância por ser
um princípio básico nas religiões que afirmam que o não egoísmo é a virtude humana
primária, em contraposição ao egoísmo, que representa a raiz do adoecimento do mundo.
O altruísmo também ganhou status na sociedade por ser considerado uma virtude ou um
papel desejado e valorizado pelo sistema social (Krueger & cols., 2001). Krebs (1970)
afirma que este aspecto do comportamento é relevante em termos de pesquisa científica,
capturando, assim, o interesse dos cientistas sociais e tornando-se popular no estudo do
comportamento social.
Psicólogos discordam sobre uma definição precisa de altruísmo (Goldstein, 1983),
mas sabe-se que o comportamento correspondente não pode ser igualado ao pró-social. Este
último é mais abrangente e refere-se a todo e qualquer ato que vise à restituição da relação
humana ou o benefício de outra pessoa (ou grupo) de forma direta ou indireta, podendo
ou não envolver benefícios para o agente (Michener & cols., 2005). Por outro lado, o
Aletheia 33, set./dez. 2010
31
altruísmo é tido como um ato pró-social anômalo, ou seja, figura como um tipo específico
de comportamento pró-social com uma conotação de raridade, como comportamento
atípico, extraordinário (Batson & Powell, 2003; Krueger & cols., 2001).
O comportamento de ajuda, por outro lado, além do altruísmo, inclui outros tipos
de comportamentos não altruístas ou que não podem ser firmemente identificados como
altruístas (Eisenberg, Guthrie, Muphy, Shepard, Cumberland & Carlo, 1999). Há que
se diferenciar, ainda, entre o comportamento de ajuda e de doação, embora haja uma
grande proximidade entre tais conceitos. Conforme observado em Goldstein (1983),
ajudar é prestar qualquer ajuda ou assistência a alguém com um objetivo definido em
mente (podendo implicar em ganho externo ou interno); doar designa o ato de fazer
uma doação ou contribuição, não necessariamente implicando um comportamento,
mas, principalmente, remetendo a coisas materiais concedidas, geralmente a uma
instituição de caridade. Quanto ao altruísmo, o aspecto diferencial é que este envolve
maior autossacrifício do que ganho próprio evidente. Ou seja, apesar de envolver o
comportamento de ajuda e o de doar, o construto supracitado não implica em obtenção
de recompensa interna ou externa, evidente ou não (Chou, 1996; Goldstein, 1983).
Quanto ao comportamento altruísta, compreende um fim em si mesmo, não
sendo direcionado ao lucro; ele é dotado voluntariamente com o propósito de fazer
o bem (Rodrigues & cols., 2009). Maner e Gailliot (2007) afirmam que o altruísmo
pode ser compreendido como uma ação contemplando três componentes principais:
comportamento, atitude e motivação, estando dirigida ao auxílio de outra pessoa. Neste
aspecto, assemelha-se a uma atitude, tendo natureza mais efêmera, situacional e dirigida
para um contexto específico (Goldstein, 1983), não existindo razão para perdurar ou ser
uma característica típica e descritiva de uma pessoa. Entretanto, esta não é a concepção
que se assume nesta oportunidade; diferentemente, admite-se um traço de personalidade
nomeado como altruísmo.
Consoante com a perspectiva adotada, apesar da defesa por parte de alguns
pesquisadores de que o altruísmo compreende um fator situacional, Rushton e cols.
(1981) destacam evidências que justificam considerá-lo como um traço de personalidade.
Isso significa que algumas pessoas são consistentemente mais generosas, prestativas e
gentis do que outras, o que faz com que sejam prontamente percebidas e descritas como
altruístas. Portanto, observou-se que as pessoas respondem consistentemente (medidas
de autorrelato) diversas situações que envolvem comportamentos altruístas, assim como
são percebidas por seus pares como agindo deste modo (Krebs, 1970; Rushton & cols.,
1981). A presente pesquisa admite esta forma do altruísmo, tratando-o como um traço
de personalidade e procurando medi-lo nestes termos.
Medidas de altruísmo
Com o intuito de medir diferenças individuais no comportamento altruísta, diversos
instrumentos foram elaborados (Chacon & cols., 1998), tendo surgido, sobretudo,
nos anos 1960 (Heist & Yonge, 1962), 1970 (Mehrabian & Epstein, 1972) e 1980
(Rushton & cols., 1981; Weir & Duveen, 1981). Apesar de existirem alternativas de
medir o altruísmo, a exemplo de experimentos pautados na teoria dos jogos (Bekkers,
32
Aletheia 33, set./dez. 2010
2007), tradicionalmente este construto tem sido avaliado por meio de instrumentos de
autorrelato (Figueiredo, 2007; O’Connor, 2005). Por exemplo, O’Connor (2005) propôs
a Escala de Disposição Altruísta, embora não tenha oferecido detalhamento acerca de
sua adequação psicométrica. Figueredo (2007) construiu uma bateria com 199 itens
para medir indicadores cognitivos e comportamentais de estratégias de história de vida,
organizadas em quatro fatores de altruísmo, segundo o grupo a que se dirigia: filhos,
familiares, amigos e comunidades. Entretanto, não apresentou qualquer informação
acerca de seus parâmetros psicométricos.
A partir de alguns instrumentos previamente elaborados para medir altruísmo,
Smith (2006) desenvolveu dois conjuntos de comportamentos desta natureza. O primeiro
formado por onze itens gerais (e.g., Deu comida ou dinheiro para um morador de rua;
Deu dinheiro para uma instituição de caridade) e o segundo por quatro mais específicos,
dirigidos a alguma pessoa próxima ou conhecida (e.g., Ajudou alguém fora da sua casa
com trabalhos domésticos ou compras; Ajudou alguém a encontrar um trabalho). Além
deste autor não ter apresentado informações sobre a estrutura fatorial desta medida, os
coeficientes de consistência interna (Alfas de Cronbach) para os dois conjuntos de itens
presumidos foram inferiores a 0,70.
Rushton e cols. (1981) criaram um instrumento a respeito, denominado Escala de
Altruísmo Autoinformado (EAA). Embora não seja uma medida recente, ela vem recebendo
atenção de diversos pesquisadores, tendo sido empregada em ao menos quatro países
(Canadá, China, Estados Unidos e Índia). A propósito, ao realizar uma busca na base de
dados do Google Acadêmico (2010), utilizando o termo “Self-report Altruism Scale”,
constataram-se 233 publicações em que esta medida foi citada. Não obstante, incluindo
o termo equivalente em português, isto é, “Escala de Altruísmo Autoinformado”, não se
encontrou qualquer publicação. Isso demonstra que, embora amplamente empregada,
esta medida ainda não foi objeto de análise ou foi empregada no contexto brasileiro,
justificando a pertinência de adaptá-la e averiguar seus parâmetros métricos. Embora
empreender esforços para construir uma escala seja uma possibilidade plausível, parece
mais parcimonioso partir de um instrumento já elaborado, procurando conhecer evidências
de sua adequação psicométrica. Descreve-se a seguir esta medida.
Escala de Altruísmo Autoinformado (EAA)
Trata-se de uma medida de tipo lápis e papel, autoaplicável, composta por 20 itens
(e.g., Já ofereci ajuda a um deficiente ou idoso desconhecido para atravessar a rua; Já
troquei dinheiro para um estranho), respondidos em escala de cinco pontos, variando
de 0 = Nunca a 4 = Muito frequentemente. Este instrumento foi originalmente elaborado
no contexto canadense por Rushton e cols. (1981), contando com cinco amostras de
estudantes universitários (n1 = 99, n2 = 56, n3 = 118, n4 = 146 e n5 = 192). Sua consistência
interna (Alfa de Cronbach) variou de 0,78 (n3) a 0,87 (n4), com coeficiente Alfa médio de
0,84. Observou-se (n1 e n2) que a pontuação total nesta escala não se correlacionou com
uma medida de desejabilidade social (r = 0,05), sugerindo que a Escala de Altruísmo
Autoinformado (EAA) não é uma indicação da tendência para responder de modo
socialmente desejável. Seus autores consideraram também uma amostra de informantes
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(pares, pessoas conhecidas dos respondentes) (n = 416), que preencheram a EAA (Alfa
de Cronbach = 0,89) e quatro perguntas globais sobre o quanto a pessoa sob consideração
era cuidadosa, prestativa, tinha em conta os sentimentos dos demais e se dispunha a fazer
um sacrifício por alguém. A pontuação total da EAA se correlacionou diretamente (n3; r
= 0,54, p < 0,001) com o somatório das quatro questões globais.
A validade preditiva da EAA foi também avaliada (n4) por seus autores (Rushton
et al., 1981). Neste caso, os participantes responderam oito indicadores de altruísmo:
(1) ler para uma pessoa cega em resposta a uma solicitação telefônica, (2) participar
voluntariamente em um experimento de um pesquisador que necessitava de colaborador,
(3) receber curso de primeiros socorros, (4) preencher uma carteira de doador de órgão
que é anexada à licença de motorista em Ontário, (5) um questionário medindo “atitudes
sensitivas”, (6) medida do traço de cuidado / atenção, (7) uma medida de presteza em
cenário de urgência e (8) ter interesse em ajudar. As pontuações na EAA se correlacionaram
com uma combinação linear das oito medidas (r = 0,40, p < 0,01), e o fizeram mais
fortemente (p < 0,01) com as seguintes variáveis: doação de órgãos (r = 0,25), atitudes
sensitivas (r = 0,33) e cuidado (r = 0,28). Além disso, esta medida apresentou validade
convergente (n5) com responsabilidade social (r = 0,15, p < 0,01), empatia emocional (r
= 0,17, p < 0,01), empatia-fantasia (r = 0,20, p < 0,01), maquiavelismo (r = -0,13, p <
0,05), valor prestativo (r = 0,14, p < 0,05) e julgamento moral (r = 0,16, p < 0,01).
Como antes indicado, a Escala de Altruísmo Autoinformado foi também empregada
em outros países. Não obstante, não têm sido abundantes os estudos para conhecer
suas propriedades psicométricas; tão somente foram identificadas duas versões em
que se ofereceram detalhes a respeito: Índia (Khanna, Singh & Rushton, 1993) e
China (Chou, 1996). Contudo, mesmo nestes casos não se comprovou sua estrutura
fatorial, presumivelmente representada por um fator geral; o único parâmetro citado
foi sua consistência interna, com valores superiores a 0,70, resultado corroborado por
pesquisadores independentes no Canadá (Mclean, Walker & Matsuba, 2004) e nos Estados
Unidos (Krueger & cols., 2001).
Em razão da importância do altruísmo para explicar diversas condutas prósociais (e.g., doação de órgãos, doação de sangue, engajamento em condutas próambientais), parece justificável contar com uma medida psicometricamente adequada
sobre tal construto. Dentre as medidas existentes na literatura, destaca-se a EAA, cujas
informações no Brasil sobre seus parâmetros psicométricos não foram encontradas.
Neste sentido, decidiu-se adaptá-la, conhecendo evidências de sua validade de construto
(estrutura fatorial e consistência interna). Deste modo, realizaram-se dois estudos,
descritos a seguir.
Estudo 1. Adaptação da Escala de Altruísmo Autoinformado
O objetivo principal deste estudo foi contar com uma primeira versão brasileira
da Escala de Altruísmo Autoinformado (EAA), realizando sua tradução e checando
indicadores de sua validade semântica, poder discriminativo dos itens, estrutura fatorial
e consistência interna. Portanto, tratou-se de um esforço inicial por reunir evidências de
que esta medida pode ser empregada com fins de pesquisa.
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Método
Participantes
Contou-se com a participação de 331 estudantes universitários de João Pessoa
(PB). Estes tinham idades de 17 a 42 anos (m = 20,1; dp = 3,20), sendo a maioria do
sexo feminino (53,5%), solteira (90%), declarando-se como de classe média (62,8%) e
do curso de Administração (19,6%). Seu nível de religiosidade (m = 3,4; dp = 1,12) se
situou acima da mediana teórica da escala de resposta (3; variando de 1 = Nada religioso
a 5 = Muito religioso). A maioria afirmou não realizar atividade voluntária (94,2%) ou de
caridade (78,5%), e 89,4% deles afirmaram não ser doadores de sangue.
Instrumentos
Os participantes responderam um questionário composto por duas partes:
Escala de Altruísmo Autoinformado. Desenvolvida por Rushton et al. (1981), consta
de 20 itens que expressam comportamentos que a pessoa possa ter realizado (e.g., Já doei
bens ou roupas para uma organização de caridade; Já segurei um elevador e mantive a
porta aberta para que um estranho pudesse entrar). As respostas são dadas em escala de
cinco pontos, com os extremos: 0 = Nunca e 4 = Muito frequentemente. Seus parâmetros
psicométricos foram previamente descritos.
Informações demográficas. Procurou-se incluir no final do questionário perguntas
de caráter demográfico: idade, sexo, estado civil, religião, nível de religiosidade, curso
universitário e classe socioeconômica autopercebida do participante. Além disso, buscouse levantar informações acerca de atividades altruístas ou voluntárias desenvolvidas, bem
como a disponibilidade de se engajar em uma ação genuinamente altruísta: doar sangue
a uma pessoa desconhecida, indicando um telefone para contato.
Inicialmente, dois psicólogos bilíngues traduziram a EAA do inglês para o português.
Em seguida, contou-se com a participação de 16 pessoas do estrato mais baixo da
população-alvo (primeiro período de curso universitário), as quais foram solicitadas a
ler a versão traduzida, indicando em que medida compreendiam as instruções de como
respondê-la, a redação de seus itens e o formato da escala de resposta empregada. Feitas
as alterações sugeridas, a versão experimental deste instrumento foi aplicada.
Procedimento
Realizou-se a aplicação dos questionários em ambiente coletivo de sala de aula,
porém demandando a resposta individual dos participantes. Três colaboradores previamente
treinados se encarregaram de coletar os dados, permanecendo presentes em sala de aula para
dirimir dúvidas sobre a forma de como responder os instrumentos. Os participantes foram
orientados a não assinarem ou se identificarem no questionário, assegurando o anonimato
de sua participação. Garantiu-se o caráter voluntário de sua contribuição, indicando que
poderiam deixar o estudo a qualquer momento sem penalização; todos assinaram um Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido. Esta pesquisa recebeu parecer favorável do Comitê
de Ética do Hospital Universitário da Universidade Federal da Paraíba (Protocolo nº 0158).
O tempo médio de participação foi de 20 minutos.
Aletheia 33, set./dez. 2010
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Análise dos dados
Para a tabulação e análise dos dados foi utilizado o PASW (Predictive Analytics
SoftWare; versão 18). Inicialmente, avaliou-se o poder discriminativo dos itens a fim de
identificar aqueles mais sensíveis a diferenciar grupos-critério internos, definidos a partir
da mediana da pontuação total da escala. Em seguida, procurando conhecer evidências
de validade de construto, optou-se por realizar uma Análise Fatorial dos Eixos Principais
(PAF), checando a consistência interna (Alfa de Cronbach) do(s) fator(es) resultante(s),
além de avaliar a correlação item-total (homogeneidade).
Resultados
Como primeiro passo, checou-se o poder discriminativo dos itens a partir de gruposcritério internos, verificando se havia algum item que não diferenciava os respondentes
com magnitudes próximas no traço latente de interesse (altruísmo). A comprovação foi
feita com o teste t de Student para amostras independentes, comparando-se as médias dos
grupos inferior e superior (critério da mediana) para cada item; unicamente o item 8 (Já
doei sangue) não alcançou o valor crítico esperado (1,96). Contudo, decidiu-se incluí-lo
nas análises subsequentes com o fim de observar como se comportava.
Posteriormente, procedeu-se à análise PAF, fixando a extração de um único fator,
conforme sugerido pela literatura. A partir dos índices Kayser-Meyer-Olkin (KMO =
0,88) e Teste de Esfericidade de Bartlett [χ² (171) = 1400,26, p < 0,001], comprovou-se
a adequação da matriz de correlações interitens para a realização deste tipo de análise. O
conjunto de 20 itens da EAA apresentou eigenvalue (valor próprio) de 5,50, explicando
29% da variância total; o critério de Cattell (scree plot) corroborou os achados acerca de
sua unifatoriabilidade, apresentando este fator um valor próprio que se sobressaiu dos
demais, conforme a figura a seguir.
Figura 1. Distribuição gráfica dos valores próprios.
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Admitiu-se, assim, a estrutura unifatorial, como descrita na Tabela 1. Tomando
em conta para interpretação da solução fatorial os itens que apresentaram carga fatorial
(saturação) acima de |0,40|, três itens precisaram ser eliminados: 1 [Já ajudei a empurrar
um carro enguiçado (quebrado) de um estranho], 8 (Já doei sangue) e 12 [Já dei carona
a um estranho no meu carro (dos meus pais ou amigos)].
A versão reduzida do instrumento, composta por 17 itens, apresentou consistência
interna (Alfa de Cronbach) de 0,85. Entretanto, como este índice pode ser afetado pelo
número de itens, decidiu-se checar também a homogeneidade da EAA, isto é, a correlação
corrigida item-total. Constatou-se, então, que todos os itens apresentaram correlações
entre 0,24 (Item 20. Já ajudei um conhecido a mudar de casa) e 0,34 (Item 18. Já ofereci
ajuda a um deficiente ou idoso desconhecido para atravessar a rua), com valor médio
de 0,29, reforçando o parâmetro psicométrico de confiabilidade desta escala.
Tabela 1. Saturações dos itens da Escala de Altruísmo Autoinformado.
Saturação
18. Já ofereci ajuda a um deficiente ou idoso desconhecido para atravessar a rua.
0,61
09. Já ajudei a carregar os pertences de um estranho (livros, sacolas, etc.).
0,60
03. Já troquei dinheiro para um estranho.
0,55
14. Já deixei um vizinho, que não conheço muito bem, pegar emprestado algo de valor (por
exemplo, ferramentas, eletrodomésticos).
0,55
15. Já comprei cartões de Natal de organizações de caridade só por saber que se tratava de
uma boa causa.
0,54
02. Já dei direções ou orientações a um estranho.
0,53
04. Já dei dinheiro para uma organização de caridade.
0,52
19. Já ofereci meu assento no ônibus para um desconhecido que estava de pé.
0,52
16. Já ajudei um(a) colega de classe, que não conheço muito bem, com um trabalho da
faculdade quando meu conhecimento era maior que o dele(a).
0,50
10. Já segurei um elevador e mantive a porta aberta para que um estranho pudesse entrar.
0,50
17. Já fui solicitado, voluntariamente, para tomar conta de animais de estimação ou crianças
do vizinho sem receber qualquer pagamento em troca.
0,50
07. Já trabalhei como voluntário para uma organização de caridade.
0,47
13. Já mostrei a um balconista (por exemplo, no supermercado, na lanchonete) seu erro por
ter me cobrado menos do que eu deveria pagar.
0,46
06. Já doei bens ou roupas para uma organização de caridade.
0,46
05. Já dei dinheiro para um estranho necessitado (ou que me pediu).
0,43
11. Já deixei alguém passar na minha frente em uma fila (na fotocopiadora ou no
supermercado).
0,43
20. Já ajudei um conhecido a mudar de casa.
0,42
12. Já dei carona a um estranho no meu carro (dos meus pais ou amigos).
0,36
01. Já ajudei a empurrar um carro enguiçado (quebrado) de um estranho.
0,33
08. Já doei sangue.
0,17
Aletheia 33, set./dez. 2010
37
Em resumo, parecem existir evidências iniciais de validade de construto
(estrutura fatorial e consistência interna) da Escala de Altruísmo Autoinformado no
contexto brasileiro, mesmo que considerando uma versão reduzida, formada por 17
itens. Não obstante, a natureza das análises realizadas é eminentemente exploratória;
resta verificar se os achados descritos podem ser replicados em amostra independente,
comprovando a estrutura unidimensional desta medida. Isso é feito no Estudo 2, descrito
a continuação.
Estudo 2. Comprovação da estrutura fatorial
O propósito deste estudo foi comprovar a adequação da versão reduzida da Escala
de Altruísmo Autoinformado (EAA), excluindo os itens 1, 8 e 12 da versão original.
Especificamente, pretendeu-se checar sua estrutura unifatorial e consistência interna,
reunindo evidências complementares de sua validade de construto.
Método
Participantes
Participaram 408 estudantes de universidades públicas e privadas de João Pessoa
(PB), tendo idades de 17 a 58 anos (m = 22,0; dp = 6,39). A maioria indicou ser do sexo
feminino (60,3%), solteira (83,9%), de classe média (60,1%) e estudante de Psicologia
(33,2%). No que diz respeito à religião, eles apresentaram um nível de religiosidade (m
= 3,5; dp = 1,17) acima da mediana teórica da escala de resposta (3; amplitude de 1 =
Nada religioso a 5 = Muito religioso).
Instrumentos e procedimento
Os participantes responderam o mesmo questionário descrito previamente, composto
pela Escala de Altruísmo Autoinformado e informações demográficas. As instruções sobre
como responder estes instrumentos, assim como o procedimento de sua aplicação foram
os mesmos descritos no Estudo 1.
Análise dos dados
Com o fim de reunir mais evidências da validade de construto (fatorial) da Escala
de Altruísmo Autoinformado, foi realizada análise fatorial confirmatória (CFA) com o
pacote estatístico AMOS (Analysis Moment Strutures, versão 18). Considerou-se como
entrada a matriz de covariâncias, tendo sido empregado o estimador ML (Maximum
Likelihood). A adequação de ajuste do modelo aos dados empíricos foi avaliada com
os seguintes indicadores (Byrne, 2009; Garson, 2010; Hair, Black, Babin, Anderson &
Tathan, 2009):
• χ2 / g.l. A razão entre o qui-quadrado (χ2) e os respectivos graus de liberdade (g.l.)
compreende um indicador “subjetivo” de ajuste, sendo considerado ajustado aos dados
o modelo teórico com valores de até 5, porém são ideais aqueles entre 2 e 3.
38
Aletheia 33, set./dez. 2010
• Goodness-of-Fit Index (GFI) e Adjusted Goodness-of-Fit Index (AGFI). O
primeiro equivale ao Índice de Qualidade de Ajuste, e o segundo equivale ao Índice de
Qualidade de Ajuste Ponderado, tomando em conta os graus de liberdade do modelo
em relação ao número de variáveis em questão. Estes indicadores descrevem o quanto
o modelo explica a proporção de variância-covariância dos dados, sendo considerados
ideais valores iguais ou superiores a 0,90.
• Comparative Fit Index (CFI). É um índice de comparação de ajustamento de
modelos; valores próximos a 0,90 ou superiores são admitidos como expressando um
ajustamento adequado.
• Root-Mean-Square Error of Approximation (RMSEA). Este indicador é baseado
na análise dos residuais, revelando um índice de “maldade” de ajuste, isto é, quanto mais
alto o valor, mais desajustado o modelo. É comumente expresso com seu intervalo de
confiança de 90% (IC90%), adotando-se valores entre 0,05 e 0,08 como ideais, embora
sejam aceitáveis aqueles de até 0,10. O Pclose é um indicador mais criterioso, testando
a hipótese nula de RMSEA = 0,05. Quando seu valor é próximo a zero, rejeita-se esta
hipótese, sugerindo ausência de ajuste do modelo. Portanto, é recomendado Pclose >
0,05 como indicativo de modelo ajustado.
Resultados
Coerente com o modelo teórico proposto por Rushton e cols. (1981) e levando
em conta os achados do Estudo 1, previu-se uma estrutura unifatorial, isto é, todos
os 17 itens saturando em um único fator. Os indicadores de ajuste observados foram
como se descrevem: χ²/g.l. = 2,20, GFI = 0,92, AGFI = 0,89, CFI = 0,88, RMSEA
= 0,058 (IC90% = 0,049-0,068) e Pclose = 0,080. Todas as saturações (λ, lambdas)
foram iguais ou superiores a |0,38|, com valor médio de 0,49, sendo estatisticamente
diferentes de zero (λ ≠ 0; z > 1,96, p < 0,001). A Figura 2 apresenta um resumo deste
modelo.
Observando os IMs (Índices de Modificação), constatou-se que os indicadores
de ajuste poderiam ser melhorados ao correlacionar dois pares de erros de medida (δ),
correspondendo aos itens 4-6 e 2-15. Procedendo desta forma, os seguintes indicadores
de ajuste foram observados: χ²/ g.l. = 1,78, GFI = 0,94, AGFI = 0,92, CFI = 0,92, RMSEA
= 0,047 (IC90% = 0,036-0,057) e Pclose = 0, 69.
Quanto à consistência interna da EAA, calculou-se inicialmente seu Alfa de
Cronbach (0,83). Porém, procurou-se igualmente checar a homogeneidade do conjunto
de itens, observando-se correlações item-total entre 0,23 (Item 3. Já troquei dinheiro para
um estranho) e 0,35 (Item 18. Já ofereci ajuda a um deficiente ou idoso desconhecido
para atravessar a rua), cujo valor médio correspondente foi 0,28.
Aletheia 33, set./dez. 2010
39
Figura 2. Estrutura Unifatorial reduzida da Escala de Altruísmo Autoinformado.
Finalmente, procurou-se checar a invariância das estruturas fatoriais e dos Alfas
de Cronbach (α) nos dois estudos. No primeiro caso, tomaram-se em conta as saturações
produzidas por meio da análise fatorial exploratória (PAF), solicitando a extração de um
único fator com 17 itens; a seguinte equação foi utilizada: rcongruência = (∑ab) / [(∑a²).
(∑b²)]½, tendo sido observado um coeficiente correspondente de 0,998. Neste sentido, as
estruturas fatoriais podem ser consideradas equivalentes. Com respeito aos coeficientes
de consistência interna (α), constatou-se igualmente sua invariância através dos grupos
(MH-W = 1,31, p > 0,05) (Kim & Feldt, 2008).
Discussão
Avaliar o altruísmo como traço de personalidade requer contar com uma medida
que proporcione conhecer seus antecedentes e consequentes por meio de múltiplas
observações, o que pode ser alcançado tendo em conta escalas psicométricas (Pasquali,
2010). Uma alternativa plausível neste âmbito é a Escala de Altruísmo Autoinformado
40
Aletheia 33, set./dez. 2010
(EAA), que parte da concepção do altruísmo como um traço de personalidade que consiste
em prover ajuda ao próximo sem esperar recompensa externa ou interna (Rushton &cols.,
1981). Esta escala tem sido utilizada em ao menos quatro países, com mais de duas
centenas de artigos citando-as, indicando sua relevância prática e teórica. Diante destas
constatações, decidiu-se adaptá-la ao contexto brasileiro, favorecendo o conhecimento
dos correlatos do altruísmo neste país.
Os resultados sugerem a adequação psicométrica (validade de construto) da
EAA, embora pareça pertinente apontar limitações potenciais dos estudos realizados.
Especificamente, tratou-se de amostras de estudantes universitários, que não representam
a população brasileira ou mesmo a paraibana. Além disso, estas foram de conveniência,
não aleatórias, devendo-se, por isso, ponderar a generalização dos resultados. Destacase, no entanto, que não foi o propósito deste artigo generalizar os achados, mas checar
os parâmetros psicométricos desta medida. Quanto a esta finalidade, as amostras dos
dois estudos atendem o tamanho requerido para análises estatísticas mais avançadas
(i.e., mínimo de 200 participantes), como sugerido para a análise fatorial confirmatória
(Watkins, 1989). Portanto, parece pertinente discutir os resultados anteriormente
descritos.
Originalmente, a EAA estava formada por 20 itens (Rushton & cols., 1981). Não
obstante, já na análise do poder discriminativo dos itens (Estudo 1) o item 8 mostrouse inadequado, o que foi corroborado na análise fatorial exploratória. Além deste item,
dois outros se revelaram igualmente inadequados (1 e 12). Neste sentido, pareceu mais
adequado contar com uma versão com 17 itens desta escala. Apesar de menor número
de itens, as evidências observadas parecem suportar sua validade de construto, cujos
indicadores são indicados a seguir.
Estrutura fatorial
Apesar de Rushton et al. (1981) considerar sua medida como unifatorial,
computando um único Alfa de Cronbach, pouca informação tem sido disponibilizada
acerca desta estrutura. De fato, os diversos estudos que vêm empregando a EAA se
limitam a apresentar sua consistência interna (Chou, 1996; Khanna & cols., 1993; Mclean
& cols., 2004). Neste sentido, o presente artigo contribui ao reunir evidência de sua
unidimensionalidade, considerando análises fatoriais exploratória e confirmatória. De
forma contundente, emergiu um fator geral (Estudo 1), que logo foi confirmado (Estudo
2); os indicadores de ajuste do modelo unifatorial podem ser considerados adequados
(Byrne, 2009; Garson, 2010). Complementando este parâmetro psicométrico (validade
fatorial), observou-se coeficiente de congruência alto para o fator geral de altruísmo,
acima de 0,90, tal como tem sido recomendado (Reynolds & Ramsay, 2003), indicando
sua invariância quando comparadas as saturações nos dois estudos.
Consistência interna
Os valores dos Alfas de Cronbach observados em ambos os estudos cumprem
a rule of thumb, a qual sugere o valor mínimo de 0,70 (Nunnally, 1991). Além disso,
apesar do menor número de itens, tais coeficientes foram equivalentes àqueles
apresentados nas múltipas amostras do estudo de Rushton e cols. (1981), bem como
Aletheia 33, set./dez. 2010
41
em outros estudos em que a EAA foi empregada (Chou, 1996; Krueger & cols., 2001;
Mclean & cols., 2004). Destaca-se, igualmente, que este parâmetro de confiabilidade
não pode ser atribuído a alguma característica amostral, uma vez que os coeficientes
observados foram equivalentes através dos dois estudos (Kim & Feldt, 2008).
Reforçando este parâmetro, observaram-se também evidências de homogeneidade do
conjunto de itens que foram esta escala, com valores próximos ao 0,30 recomendado
(Clark & Watson, 1995).
Em resumo, a Escala de Altruísmo Autoinformado reúne evidências de sua validade
de construto, isto é, mede o altruísmo como um traço ou uma dimensão da personalidade,
revelando que as respostas dos participantes são congruentes (consistentes) através dos
itens. Neste sentido, poderá ser adequadamente empregado em estudos para conhecer os
antecedentes e consequentes do altruísmo. Porém, estudos futuros são demandados no
contexto brasileiro. Por exemplo, seria importante avaliar a estabilidade temporal desta
medida (teste-reteste), assim como checar sua validade discriminante com uma medida
de desejabilidade social (Gouveia, Guerra, Souza, Santos & Costa, 2009), descartando
este traço como um viés de resposta. Finalmente, poderia ser interessante diversificar
os participantes, incluindo pessoas da população geral e aquelas inscritas em banco de
doadores de sangue; visto que este comportamento tem sido relacionado com o traço
de personalidade altruísta (Blanca & cols., 2007; Rushton & cols., 1981), poderia servir
como indicador da validade preditiva desta escala.
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_____________________________
Recebido em 25/10/2010
Aceito em 10/03/2011
Valdiney V. Gouveia – Doutor em Psicologia Social pela Universidade Complutense de Madri. Professor
Associado II da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador 1B do CNPq.
Rebecca Alves Aguiar Athayde – Mestranda em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba.
Rildésia S. V. Gouveia – Doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba. Professora
Titular do Centro Universitário de João Pessoa (Unipê).
Ana Isabel Araújo Silva de Brito Gomes – Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da
Paraíba.
Roosevelt Vilar Lobo de Souza – Aluno do curso de graduação em Psicologia da Universidade Federal da
Paraíba.
Toda correspondência deverá ser encaminhada a Valdiney V. Gouveia, Universidade Federal da Paraíba, CCHLA
– Departamento de Psicologia – 58.051-900, João Pessoa – PB. E-mail: [email protected]
44
Aletheia 33, set./dez. 2010
Aletheia 33, p.45-55, set./dez. 2010
A Bela e a Fera: uma análise psicológica da personagem Bela
Luísa Puricelli Pires
Tatiana Helena José Facchin
Resumo: Pensando no instigante sucesso do desenho animado “A Bela e a Fera”, da Walt Disney, que
teve grande repercussão mundial na época em que fora exibido, este artigo propõe-se a compreender
o desenvolvimento psicológico da personagem Bela. Para tanto, algumas cenas do filme foram
escolhidas para análise, com o aporte teórico de Sigmund Freud, tendo-se observado, com isso, a
transformação ocorrida na vida psicossexual de Bela ao passar do Narcisismo para o Complexo
de Édipo e a resolução deste. Foi entrelaçada a seguir, com a colaboração do entendimento de
Marie-Louise Von Franz, a aquisição do Feminino por parte da personagem com a importância
dos contos de fadas na construção da personalidade das crianças, que, a partir destes, vivenciam
de forma lúdica os conflitos inerentes ao desenvolvimento psíquico, facilitando sua elaboração e
aumentando sua capacidade de simbolização.
Palavras-chave: A Bela e a Fera; Desenvolvimento Psíquico; Contos de fadas.
The Beauty and the Beast: A psychological analysis of Belle’s character
Abstract: Thinking about the amazing success of the cartoon with great impact worldwide
“The Beauty and the Beast”, Walt Disney, this article aimed to understand the psychological
development of the character Belle. To this end, some parts of the movie were chosen and analysed,
based in the theory of Sigmund Freud, providing an understanding about Belle’s psychosexual
life, when she overcame Narcissism and Oedipus Complex. Then it was contextualized, throw
Marie-Louise Von Franz, the female’s acquisition of the character along the importance of fairy
tales in the construction of children’s personality, that experience in playful way conflicts of
the psychological development, leading to a elaboration and empowering its symbolization
capacity.
Key words: The Beauty and the Beast; Psychological Development; Fairy Tales.
Introdução
A história “A Bela e a Fera” tem como origem o mito Eros e Psique, sendo esta
última publicada no século II d.C., em “Metamorfose de Lucio”, também conhecida
como “O asno de ouro”. Tendo estudado ambas histórias e comparado-as, suprimimos
essa relação no atual artigo na expectativa de tornar melhor o entendimento do leitor ao
comentarmos apenas aspectos referentes ao filme (Tatar, 2004).
Enfocamos o conto de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, na sua versão como
desenho animado, imortalizada nas telas em 1991 pela Walt Disney. Este alcançou
índices jamais imaginados para um desenho até a época de seu lançamento, incluindo
a indicação ao Oscar de melhor filme e diversas versões para o teatro. Esta animação
deslumbra pessoas de todas as idades, não apenas pela história em si, mas por todo
o enredo que a cerca, revelando conflitos naturais do desenvolvimento humano
(Beaumont, 1756/2008).
A personagem Bela, nosso foco de estudo, fascinou os telespectadores, pois, além
de romper com os paradigmas de submissão da mulher e seu suposto desinteresse pelo
conhecimento e pela cultura, mostrava-se uma mulher feminina e doce. Identificamos
ainda no filme as mensagens de amizade, na relação dos funcionários do castelo com
Bela e Fera, e de amor verdadeiro, no qual a beleza interior predomina em detrimento
da aparência física.
Por meio de estímulos visuais e auditivos, o filme projeta mensagens ao espectador,
através da passagem de conteúdos marginais, de forma que este obtém significados
providos por ele mesmo ao imaginar e associar conteúdos reais e fantasiados a partir
da comunicação inconsciente que se estabelece nesse encontro tela-atenção. É aí que as
pessoas se sentirão mais ou menos incomodadas, comovidas, irritadas, enfim, onde são
despertados sentimentos que, muitas vezes, não são passíveis de controle.
Utilizando o entendimento de Dieckmann (1986, p.14) sobre o conto de fadas ser
similar ao sonho, uma vez que nos contos “acontecem coisas extraordinárias – impossíveis
para o pensamento racional – e aí existem monstros, bruxas, fadas e mágicos ou animais
falantes”, facilitando a intimidade com o conteúdo latente da história, lembramos a mais
instigante contribuição de Freud.
“A interpretação dos Sonhos” (Freud, 1900/1980) marcou a virada do século
e uma reviravolta no entendimento das questões inconscientes dos seres humanos,
influenciando nosso pensamento até a atualidade. Trabalhando aspectos como condensação
e deslocamento nos sonhos, ele evidenciou a estruturação do psiquismo e a formação dos
sintomas, bem como a ideia de conflito intrapsíquico.
O sonho é uma formação inconsciente que busca revelar e reorganizar algum
aspecto da vida infantil e cotidiana. No momento do sono, o consciente deixa de agir tão
fortemente sobre o ego, permitindo uma passagem de conteúdos até então inimagináveis
na vida de vigília. Há um acerto entre as instâncias psíquicas (uma oferece roupagens
inofensivas, facilitando à outra aparecer em cena) que promove o devido disfarce daquilo que
invariavelmente é uma realização de desejo infantil sexual. Ora, se uma ideia inconsciente
aparece no sonho de forma demasiadamente explícita, gera angústia e logo damos conta de
acordar, redirecionar o sonho ou esquecê-lo ao despertar (Freud, 1900/1980).
Da mesma forma, ocorre esse movimento psíquico quando se assiste a um filme. Ele
passa a ser constituído por aquilo que lembramos dele, pela maneira como o fazemos, as
cenas escolhidas, as personagens a que damos maior atenção e a forma como o recontamos
a outros e a nós mesmos em nossa mente aquela história que muitas vezes nem se sabe
por que nos emocionou ou intrigou tanto.
E, assim, como os sonhos, os contos de fadas ajudam a elaborar uma situação de
conflito, tornando possível ao sujeito analisar as representações feitas anteriormente.
Essa possibilidade de fantasiar, montar histórias e imaginar vidas diferentes é ainda
mais imprescindível na infância, já que o desenvolvimento do psiquismo depende dessa
mobilidade construída pelo pensar.
Através dos contos de fadas, portanto, a criança media a relação entre os mundos
interno e externo, desenvolve a linguagem por meio do simbolismo e pode se experimentar
em diferentes papéis no contexto familiar por meio da identificação com os vários
personagens do conto (Radino, 2003).
46
Aletheia 33, set./dez. 2010
Os contos falam por meio de metáforas, nas quais histórias assustadoras podem
não ser ameaçadoras; representam situações e símbolos das vivências das pessoas que
os ouvem ou assistem e estas estão diretamente implicadas no processo de entender e
repassar essas histórias (Alves & Emmel, 2008; Rosa, 2008).
Aqui, nós também somos contadoras de uma história e de um entendimento,
permitimo-nos uma licença poética, se é que assim podemos chamar, e convidando o
leitor a trilhar esse caminho de sonhos e contos de fadas. Tendo sido primeiramente
analisado em separado, através da seleção de oito cenas e categorização das mesmas à luz
da teoria psicanalítica, agora, neste artigo, está proposto um entendimento mais dinâmico.
Partindo do resumo do filme analisado, a seguir trabalhamos a questão do Narcisismo
e do Complexo de Édipo. Depois reunimos considerações acerca das relações entre as
personagens de um conto e de um sonho, das mudanças cotidianas da vida real e sua
relação com a história da Bela e a Fera, bem como a vivência dos contos de fadas na vida
das crianças como um lugar de simbologia direta à teoria psicanalítica freudiana.
A Bela e a Fera de Walt Disney
Em um povoado da antiga França havia uma linda moça chamada Bela, filha de um
inventor desacreditado da região. A garota era conhecida por ser a mais bonita da cidade
e por isso cortejada por Gaston, que ela esnobou, negando seu pedido de casamento.
Durante uma mostra de inventos, o pai da moça se perdeu quando se deslocava para
o local da feira. Perseguido por lobos, ele encontrou um castelo escuro e feio, adentrando
o recinto para salvar-se. Fera, o dono do castelo, ao perceber o intruso, ficou irado e o
tornou seu prisioneiro.
Fera, na verdade, era um príncipe egoísta que fora amaldiçoado por uma feiticeira.
O castigo dirigiu-se a todos em seu castelo, fazendo os empregados viverem como
objetos e ele como monstro. O feitiço tinha um tempo e era contado pelo desabrochar
de uma rosa encantada. Se ele aprendesse a amar alguém e fosse retribuído na época
em que a última pétala caísse, o feitiço estaria desfeito, senão ele estaria condenado a
ser fera para sempre.
Sabendo do sumiço do pai, Bela fora levada ao castelo de Fera por seu cavalo Felipe.
Preocupada com a saúde do pai, a moça se ofereceu para ficar no lugar dele. Fera concordou
com a proposta e o homem, relutantemente, foi mandado de volta à sua moradia.
Os serviçais do castelo sugeriram que Fera deixasse Bela em um quarto, em vez
de na masmorra, e que se aproximasse dela; porém, brigas sobre a grosseria dele e a
teimosia dela apareceram a partir do convívio dos dois, e Bela tentou fugir. Apenas após
ser atacada por uma matilha e salva por Fera eles se aproximaram.
Ao dizer que se preocupava com a saúde do pai, embora se sentisse feliz vivendo
no castelo, Bela foi libertada por Fera. De volta à casa, Gaston prendeu Bela e seu pai,
enquanto ele e os outros homens da cidade iam a caminho do castelo, a fim de matar Fera.
Durante a briga violenta de Gaston e Fera, Bela chegou com seu pai e Felipe, adentrando
o castelo sozinha e impedindo que Fera caísse da torre e morresse.
A jovem, desesperada, se debruçou sobre Fera e chorou, declarando seu amor
(enquanto a última pétala da rosa caía). Neste momento, o feitiço começou a ser desfeito,
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47
com os objetos voltando a ser pessoas e Fera se tornando príncipe. O castelo ficou branco,
a chuva cessou e o dia ficou claro. O casal se beijou e em seguida apareceu dançando
numa festa no castelo.
O desenvolvimento de Bela: em busca de si mesma
Agora que colocamos nosso entendimento sobre a importância dos contos de fadas
e dos filmes e o auxílio destes para a resolução de conflitos intrapsíquicos, bem como
um resumo do desenho animado analisado, apresentaremos a teoria que embasa nossa
discussão durante todo o processo, de forma dinâmica, criando assim um diálogo com
o leitor e levando-o a observar o desenvolvimento psicológico da personagem Bela em
três aspectos: narcisismo, passagem do feminino e o Complexo de Édipo.
No início da vida, a mãe exerce as funções de cuidado com o bebê e seu corpo,
provendo sua sobrevivência. É ela quem propicia um espaço de fundação do psiquismo
ao transmitir na relação com seu filho, além do leite, o desejo de tê-lo, as expectativas
sobre ele e a possibilidade de unir-se a ele como um só, até que seja possível diferenciar
as suas necessidades.
A genitora, primeiramente, passa a noção de completude, à medida que está ligada
a seu bebê de forma simbiótica, e proporciona a ele sentir-se inteiro, perfeito, voltado
a si próprio, sem preocupação com a realidade. Aos poucos, contudo, esse narcisismo
constitutivo é abandonado; a mãe já não pode mais estar fundida com o bebê, pois ela
tem outras funções a desempenhar no laço familiar e social, e seu filho precisa aprender
a relacionar-se com esse mundo também (Freud, 1931/ 1980).
A mãe exerce ainda a função de passagem do feminino, daquilo que falta, mas pode
ser buscado em outro, do mistério de ser dois separadamente e ainda estarem ligados. Essa
mulher, se tudo correr bem, ouve o seu filho, responde a ele e lhe apresenta o mundo lá
fora; ela não está narcísica com a chegada do filho, achando-se, por sua vez, completa, e
nem apática, desvalorizando sua posição de mãe; ela atende quando pode e trata de não
deixar seu bebê à mercê da dura realidade desde muito cedo, mesmo que para isso precise
da ajuda do marido, da babá ou de sua própria mãe, agora avó; a mãe já tem em si a marca
da castração e ensina e impõe regras já nos cuidados de sua criança, evidenciando que
a função paterna de corte da relação dual mãe-bebê pode estar internalizada na mulher
(Paixão, Decker, Fiorenzano & Ribeiro, 2001).
A ambivalência de sentimentos pelo objeto de amor nos adultos seria um resquício
dessa etapa do desenvolvimento psíquico, pois a mãe representa tanto a cuidadora como
aquela que joga o filho ao mundo. Especialmente em mulheres, cuja troca de objeto é
necessária durante o Complexo de Édipo (discutido adiante), esse abandono da experiência
simbiótica com a mãe é particularmente complicado (Freud, 1931/1980).
Quando esta etapa inicial, pois, não pode ser desvencilhada do corpo do próprio
sujeito e da satisfação que provém desse estado simbiótico com a mãe, a libido1 se
redirecionaria para o Eu, interessando-se cada vez menos pelos objetos externos,
1
A libido ou energia narcísica seria a energia geral dos impulsos, instituída nessa primeira relação objetal –
como conceito teórico só trabalhado por Freud (1980) a partir de 1914, podendo ser vista com este importante
papel no desenvolvimento sexual do ser humano.
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modificando assim a realidade a seu bel prazer e, caso se estenda além do período
desejável e/ou com demasiada intensidade, configurando as patologias narcisistas e
psicóticas (Lagache, 1959).
A mãe de Bela não aparece no conto, mostrando-nos, talvez, que o foco do filme
realmente seja o conflito edípico. De qualquer forma, arriscamo-nos a falar sobre esses
aspectos pré-edípicos da personagem por constituírem um ponto do desenvolvimento
psíquico que acompanha o ser humano sempre, não estando, portanto, separado da
passagem pelo Édipo.
O narcisismo está simbolizado nos comportamentos de Bela no início da história,
quando ela deseja uma realidade tão distante da sua, nega pretendentes por achá-los
inferiores a ela ou tem sua beleza física reverenciada.
Bela canta em uma das primeiras cenas do filme dizendo que desejava mais do
que a vida do interior e parecia estar vivendo em um mundo isolado, pois quando
passeava no vilarejo estava voltada ao seu livro de contos de fadas e nem percebia o
alvoroço que causava nos moradores da cidade, os quais admiravam sua beleza.
Pensando no mito de Narciso, fica clara esta paixão por si mesmo e sua aparência
física como algo vivido por todos os seres humanos. Ainda que Narciso tivesse Eco
amando-o, devido à sua arrogância, nenhuma mulher “parecia bastar à sua vaidade”
(Franchini & Seganfredo, 2004). O jovem, então, ao deparar-se com sua imagem sob
a água de um rio, liberou todas as pulsões sexuais sobre si e definhou até a morte
esperando pelo retorno daquele amor.
Para Bettelheim (1980), o palácio da Fera representa as fantasias narcisistas
típica de crianças. O castelo negro e vazio, por sua vez, é um “símbolo feminino
impessoal, [...] corresponde a um aspecto específico da imagem materna”, referente
à relação intrauterina (Franz, 1985, p.74).
De forma geral, a maneira como Fera e seus subordinados conquistaram sua
donzela foi realizando suas vontades, alimentando o comportamento narcísico desta,
como se realizassem a primeira função materna. Nesse ponto, Fera ganha de Gaston,
pois ao perceber o interesse da moça por livros, dá a ela uma biblioteca inteira, ao
passo que o segundo despreza totalmente esse hábito de Bela.
Interessante pensar que Gaston também interpreta uma personagem narcisista,
enciumada e egoísta, levado à vingança pelo ego ferido de ter sido rejeitado
pela mulher escolhida. E Fera representava inicialmente um outro modelo de
narcisismo, conquanto negou ajuda à velha senhora e com isso provocou a punição
da transformação.
De toda forma, o mito de Narciso mencionado anteriormente reflete bem o que
pode acontecer com quem não transfere sua energia do Eu ao mundo exterior, assim
como para Bela só seria exequível conquistar seus sonhos quando se libertasse do
Narcisismo e do Complexo de Édipo e colocasse seu desejo como algo passível de
realização na realidade, amando outra pessoa, outro homem. E ela se esforçará para
isso no decorrer da história.
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Em busca do Outro
A neurose, tendo como fixação principal a fase fálica, em que ocorre o Complexo
de Édipo, pode mostrar-nos aspectos muito parecidos como estes que apontamos agora, e
por ser realmente muito dinâmico esse desenvolvimento, não poderíamos designar fases
específicas sem perder a riqueza do caso.
A ideia de Freud (1924/1980) sobre o Complexo de Édipo é a de que ocorreria o
despertar dos desejos sexuais da criança, sendo as afeições de uma menina direcionadas
para seu pai e as de um menino para sua mãe. Desse modo, surgiriam sentimentos de
rivalidade para com o genitor do mesmo sexo, os quais poderiam vir a facilitar o desejo
de morte deste. O complexo de Édipo, entretanto, seria um acontecimento inerente à vida
mental e organizador da barreira de recalque que leva à criação do superego.
Bettelheim (1980) afirma ser o conto “A Bela e a Fera” o que mais clarifica para
as crianças que a ligação edípica com os genitores é natural, desejável e acarreta em
consequências muito positivas, desde que durante o processo de amadurecimento seja
transferido do pai para o ser amado, e, na sequência, se transforme.
Podemos pensar que Bela está fortemente ligada a seu pai, não havendo no
desenho uma figura materna que lhe pudesse prover um estado de competição pelo
amor desse homem e, a partir desta, ser-lhe um modelo de identificação feminina. Em
consequência dessa forte relação, toda a presença masculina que não a do pai causalhe medo ou nojo.
Na cena em que Gaston vai pedir a mão de Bela em casamento, o repúdio à
sexualidade genital pode ser observada. O rapaz adentra a casa da moça e tira as botas,
ficando com os pés descalços enquanto descreve sua visão do que seria o casamento deles
e tentando beijá-la, ao que ela atira as botas dele para fora da casa, depois de fazê-lo
cair em uma poça de lama. Frequentemente, atribui-se ao pé um significado fálico e ao
sapato sua contrapartida feminina, símbolo da fecundidade em vários costumes ligados à
colheita e ao casamento (Lexikon, 1997). Com isso, percebe-se todo o trâmite por detrás
de algo aparentemente inocente e o pavor da menina perante esse comportamento do
pretendente de incitar-lhe ao sexo.
Com Fera o processo foi diferente, mas no início sua figura animalesca causou medo
e repulsa em Bela da mesma maneira. Esse animal que escondia o verdadeiro homem
representava tanto as “forças simbólicas sobrenaturais, divinas e cósmicas, como também
os poderes do inconsciente e do instinto” (Lexikon, 1997, p.20). Levando mais em conta
a parte instintiva, pensemos na sexualidade como parte das necessidades primárias do ser
humano como forma de perpetuação da espécie e, portanto, materializada na transfiguração
da aparência do príncipe como Fera.
E mais, suas vestimentas cor de vermelho e marrom aludem ao amor, à paixão
fervorosa e ao erótico (Lexikon, 1997). Por isso, quando, ao se verem pela primeira vez,
Fera ergue-se de maneira similar ao órgão genital masculino, imponente, Bela sente medo,
pois ele é a representação exata do significado de sexualidade genital, ainda impossível
de ser enfrentada por ela naquele momento.
Nessa mesma cena da jovem propondo ficar no lugar do pai, Bettelheim (1980)
acredita que Bela se une à Fera por amor e preocupação a seu pai, sendo as intenções
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da moça apenas as de ter uma relação assexuada com o animal. Neste momento o pai
também deseja manter a simbiose com a menina, pedindo a ela que não fique em seu
lugar e implorando à Fera que “poupe” sua filha. Fera, porém, defende o rompimento do
Complexo dizendo: “Não tem mais nada com ela”.
Em contrapartida, podemos ver Bela com muita força e determinação. Ela monta
seu próprio cavalo, algo incomum para a sociedade da época e ainda, sendo cavalo, para
Franz (1985, p.286), “força vital completamente inconsciente e espontânea”, podemos
pensar nesse duplo que se estabelece nas personagens de buscar a evolução. Afinal, o
cavalo levou-a tanto até seu pai quanto à Fera, quando foi salvar cada um deles, no começo
e no final do filme, respectivamente.
Nesse jogo de aproximação e afastamento, Bela, logo no início de sua estada no
castelo, tentou fugir e fora atacada por um bando de lobos, dos quais tentou defender-se,
superando seus medos e tomando a iniciativa. Fera chega ao seu encontro, entretanto luta
com os animais e a salva, mas fica machucado. Em seguida nesta cena, ela faz menção de
subir no cavalo e deixá-lo ali, mas resolve ajudar Fera. Ela parece entender ser necessário
abrir mão de alguns interesses narcísicos para tornar realidade um amor, agora podendo
ajudá-lo e aceitando seu desejo, já que Fera não lhe parece mais um bicho repugnante,
mas uma possibilidade de relação com um homem que não seu pai.
Após esse episódio, o vínculo dos dois começa a ter um novo sentido. Fera, com
a ajuda dos funcionários do castelo, também amaldiçoados, propõe à Bela um encontro.
Eles passeiam pelo jardim e lá brincam com a neve, a qual simboliza “castidade e a
intangibilidade virginal” (Lexikon, 1997, p.144), o que nos incita pensar que neste
momento Bela ainda está desabrochando para a sexualidade. A seguir, Fera lhe faz
uma surpresa, dando-lhe de presente uma biblioteca gigantesca que tem em seu castelo
– única peça iluminada e colorida da casa, em contraste com o restante sombrio e
amaldiçoado.
No momento em que Bela e Fera se encontram na sala, com a lareira acesa, a fim
de ler um dos livros da biblioteca, os objetos falantes ali presentes dizem “estamos vendo
alguma coisa acontecer”. Zip, a xícara-criança, não entende e pergunta o que acontecera,
recebendo como resposta de sua mãe: “Psiu! Eu lhe conto quando crescer!” e eles se
retiraram.
Avaliando o significado de fogo dado por Lexikon (1997) de ser algo “sagrado,
purificador e regenerador; meio de renascimento em uma esfera mais elevada” entendemos
haver um entrelace das duas personagens em prol de uma superação dos medos de ambas
e uma aproximação física, podendo significar o ato sexual propriamente dito.
Neste mesmo dia, Bela e Fera tiveram um jantar em que ambos se arrumam em
seus quartos, tornando-se atraentes um para o outro. Após dançarem, Fera perguntou à
Bela se ela estava feliz no castelo e esta disse que sim, porém pediu para saber notícias
de seu pai. Para facilitar seu contato, Fera lhe deu um espelho mágico no qual ela poderia
ver o pai. Sabendo que o mesmo estava perdido e doente, procurando pelo castelo, Fera
permitiu que Bela fosse ao encontro do seu genitor, mesmo sabendo que poderia perder
todas as chances de desfazer o seu feitiço.
A vida no castelo seria para a personagem feminina do conto uma ida ao inconsciente,
e a ponte feita entre este e o consciente é simbolizada pela sua volta passageira até o pai
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51
doente (Dieckmann, 1986). O espelho, entretanto, é o elo entre Bela e Fera, e a faz retornar
ao ser amado quando os moradores da vila e Gaston vão invadir o castelo.
Motivo de redenção e transformação
Fera representa de forma significativa as manifestações do inconsciente de Bela,
tornando mais fácil, por ser feio e rude, o distanciamento físico entre eles e deixando-a,
assim, livre para negar sua sexualidade e manter suas pulsões sexuais voltadas para o
pai durante o período inicial do conto, que delineamos como a saída do narcisismo para
a entrada no Complexo de Édipo.
Franz (1980) ressalta que, nos contos de fadas, sempre uma personagem sofre com
uma maldição e comporta-se de um modo destrutivo e negativo, sendo, então, a tarefa
do herói salvar a pessoa enfeitiçada. Desse modo é a junção das várias personagens que
constitui um psiquismo completo com consciente e inconsciente, ego, id e superego,
assim como no sonho. Fera seria, pois, uma parte negada da própria Bela.
Inicialmente, as personagens não lidam muito com o problema da maldição, mas,
sim, com o método de redenção (Franz, 1980). Primeiramente, Fera adapta-se ao cortejo
narcisista – conquistar Bela satisfazendo todos seus desejos – a fim de desfazer o feitiço,
seu objetivo maior até o momento.
Comparando um ser humano neurótico com uma pessoa enfeitiçada, percebe-se que
ambos podem apresentar, durante um período, um comportamento destoante e destrutivo
para consigo e para com os outros, estando à mercê desta maldição, sentindo-se sem
forças para lutar contra ela.
Os temas maldição e motivos de redenção em contos de fadas cooperam com o
processo de cura ao gerarem representações de processos instintivos da psique comuns
a todos e por isso são bastante frequentes. A redenção é o marco de passagem da
personagem de uma história, assim como os humanos têm a menstruação como um ponto
de transição da menina para a mulher. Neste momento, o amaldiçoado terá concluído sua
transformação, só possível se seu interesse estiver voltado para desmanchar o verdadeiro
motivo do seu suplício (Franz, 1980).
O castelo negro e vazio, conforme Lexikon (1997, p.48) “pode ser também símbolo
de perda e de desesperança” e este é o estado inicial do casal, pois ao propor a troca,
Bela percebe que ficará prisioneira para sempre, perderá seu pai e seus sonhos préedípicos, e Fera encontra-se sem forças para vencer sua maldição e encontrar o amor.
O castelo é, portanto, um símbolo do luto realizado por todas as pessoas quando abrem
mão da onipotência, da bissexualidade e da imortalidade infantis, e é mais um objeto de
transformação, ao final da história, quando as fases do desenvolvimento já se encontram
todas transformadas por Bela e Fera.
No instante em que a lágrima de Bela cai no peito de Fera, ao final do filme, a
personalidade dele, representada na transfiguração do seu físico, foi totalmente modificada,
embora ele estivesse tornando-se mais dócil e generoso no decorrer do relacionamento
com a moça. Esse é o motivo de redenção de Fera.
Por outro lado, mesmo a rosa sendo explicitamente o símbolo da maldição do
príncipe, podemos entendê-la como uma representação da passagem de Bela pelo
52
Aletheia 33, set./dez. 2010
narcisismo até a aquisição do feminino. O desabrochar da flor representa, segundo
Guénon (1993), a própria manifestação do feminino e a cúpula envolvendo-a evidencia
a proteção da virgindade de Bela, dos medos e desejos infantis que prevaleciam em sua
vida até aquele momento.
Sendo assim, a rosa simboliza o despertar sexual e a redenção de Bela perante seus
conflitos. A queda da última pétala é o ponto de culminação das mudanças sofridas até
então, pois caso esta caísse sem a declaração de seu amor por Fera, o feitiço não seria
desfeito. De alguma forma, a maldição também é para Bela, já que todos os acontecimentos
se dão conforme ela transpõe seu Complexo de Édipo e entende realmente o significado
de amar e ser amada.
Pensando, então, nestes aspectos, consideramos as mudanças de vestimenta da moça
nos diferentes momentos do filme indícios simbólicos das etapas de seu desenvolvimento
psíquico. Inicialmente, usava roupas azul e branca, signo de fidelidade, pureza e perfeição,
mas já na cena em que Fera lhe dá de presente a biblioteca de seu castelo e eles sentam-se
à lareira, ela usa um vestido rosa, signo do amor e da aceitação do feminino. E na última
cena, quando eles dançam no que seria sua festa de casamento, após a dissolução do feitiço,
ela usa o seu vestido dourado, signo da “eternidade e da transfiguração”, simbolizando,
assim, uma dissolução dos conflitos (Lexikon, 1997, p.16).
E viveram tentando para sempre
Segundo Bettelheim (1980, p.347), o conto “A Bela e a Fera’ começa com uma
visão imatura, propondo que o homem tenha uma existência dualista, como animal e como
racional” de forma que Bela, no que seria sua busca inconsciente por Fera, representa
partes de uma mesma pessoa e seus conflitos. Desse modo, tanto Bela quanto Fera entra
em processo de amadurecimento.
Para Bela deixar o pai, precisou, por assim dizer, aceitar este medo ao incesto e
tê-lo presente apenas na sua fantasia, até conhecer o homem-animal e descobrir suas
verdadeiras reações como mulher. Ela, ao voltar para sua casa a fim de ajudar o pai,
constata que seu coração já não pertence mais àquele lugar, e, desta maneira, passa a ter
condições de viver um amor não incestuoso com Fera (Corso & Corso, 2006).
Isso é elucidado na cena final, em que Fera se transforma em príncipe e uma luz
colorida envolve-os enquanto se beijam. A luz poderia ser comparada à libido que foi
transferida a outro objeto de desejo através do rompimento concreto do Complexo, sendo
o próprio beijo selador dessa transição, “transmissor de força e doador de vida”, aludindo
ao erótico, bem como ao sagrado (Lexikon, 1997, p.35).
A chuva presente na cena introduz igualmente a ideia de sexualidade superada,
sendo considerada o símbolo de fertilidade da terra e das influências psíquicas dos deuses
no mundo dos homens (Lexikon, 1997, p.74). E a transformação de noite – irracional,
inconsciente e mortífera – em dia – racional, clareza – quando a maldição de todo o castelo
se desfaz e tudo volta a ter cor, faz novamente uma referência à mudança de conceitos
dos protagonistas do filme e à tomada de consciência (Lexikon, 1997).
Ao olharmos o filme do ponto de vista social, vemos claramente o impacto que
teve na época em que fora lançado. Bela marca, no transcorrer do conto, a ideia de uma
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princesa que se faz tornar. Destemida e corajosa, ela aceitou seu destino de proteger sua
família e enfrentou Fera, discutindo ou descumprindo alguma regra imposta por ele.
Enquanto Branca de Neve e A Bela Adormecida esperam ser salvas por seus
respectivos príncipes, é Bela quem salva o seu física e emocionalmente. Primeiramente,
na cena com os lobos, em que ele quase morre devido aos machucados providos do
combate com os animais, e depois com o rompimento do feitiço, quando declara seu
amor. Em contrapartida, podia de fato conhecer o homem pelo qual se apaixonaria mais
tarde, desejando uma relação e não um casamento.
O que seria a dissolução do Complexo de Édipo senão o ato de solucionar um
feitiço da própria fantasia do sujeito? Daí o imprescindível papel dos contos de fadas na
vida das crianças e na vida de todo adulto, o qual se identifica e se recria através dessas
personagens marcantes da sua história guardadas dentro de si, fazendo-as voltar à vida
toda vez que um novo conflito aparece e precisa ser ressolucionado, ou seja, toda vez
que o retorno do recalcado se faz presente.
Não é surpreendente descobrir que a psicanálise confirma nosso reconhecimento do
lugar importante que os contos de fadas populares alcançaram na vida mental de
nossos filhos. Em algumas pessoas, a rememoração de seus contos de fadas favoritos
ocupa o lugar das lembranças de sua própria infância; elas transformaram esses
contos em lembranças encobridoras. Elementos e situações derivados de contos
de fadas podem também ser encontrados em sonhos. Interpretando as passagens
em apreço, o paciente produzirá o conto de fadas significativo como associação
(Freud, 1913/1980, p.305)
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Aletheia 33, set./dez. 2010
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_____________________________
Recebido em 17/11/2010
Aceito em 04/10/2011
Luísa Puricelli Pires: Psicóloga atuante nas áreas clínica e institucional, Psicanalista em formação no Centro
de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre.
Tatiana Helena José Facchin: Psicóloga, Mestranda de Psicologia Clínica (PUCRS); Pós-Graduação em
Psicossomática pela Associação Sul-Rio-Grandense de Medicina Psicossomática e pela Unisinos. Integrante
do Instituto Brasileiro de Psicologia da Saúde (IBPS).
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 33, set./dez. 2010
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Aletheia 33, p.56-68, set./dez. 2010
Práticas educativas e estratégias de coping em crianças
abrigadas
Giorgina Leni Batista
Patricia Santos da Silva
Caroline Tozzi Reppold
Resumo: Este estudo investigou práticas educativas de pais e educadores sociais e estratégias de
coping adotadas por crianças abrigadas. Participaram da pesquisa 20 crianças, entre sete e 11 anos.
Elas responderam a duas entrevistas, que objetivavam identificar práticas educativas e problemas
nos ambientes familiar e institucional, e as estratégias de coping utilizadas. Resultados mostraram
preponderância das práticas coercitivas em ambos ambientes. No ambiente familiar, os problemas
mais comuns foram conflitos conjugais, e as estratégias de coping mais citadas foram coping focado na
emoção e inação. Problemas no ambiente institucional pareceram estar mais relacionados a conflitos
com pares. O coping focado no problema e a busca de apoio dos educadores foram estratégias mais
frequentes para lidar com esta situação. O conhecimento destes aspectos subsidia a elaboração de
programas de treinamento para os pais e educadores sociais que possam contribuir ao processo de
socialização das crianças abrigadas, considerando as dificuldades próprias do contexto.
Palavras-chave: práticas educativas, estratégias de coping, crianças abrigadas.
Educational practices and coping strategies for sheltered children
Abstract: This study investigated educational practices of parents and social educators and coping
strategies adopted by sheltered children. This study involved 20 children between 7 and 11 years of
age. They answered 2 interviews, whose purpose was to identify educational practices and problems
in the family and institutional environments and coping strategies employed. The results showed
prevalence of coercive practices in both environments. In the family environment, the most frequent
problems are conflicts between mother and father and the most mentioned coping strategies are
coping focused on emotion and inaction. Problems in the institutional environment are often related
to conflicts with their peers. Problem-focused coping and the search for the educators’ support are
more frequent strategies to deal with this situation. Understanding these aspects helps the creation of
training programs for parents and social educators to promote the socialization process of sheltered
children, considering the specific difficulties of this context.
Keywords: educational practices, coping strategies, sheltered children.
Introdução
O desenvolvimento de crianças em condições adversas, como violência intrafamiliar,
pobreza, desemprego, alcoolismo, políticas públicas inadequadas e outros problemas
sociais, tem sido foco de muitos estudos no campo das ciências humanas. Pesquisas
mostram que condições socioeconômicas desfavoráveis e práticas educativas ineficazes
são alguns dos principais fatores de risco que levam crianças e adolescentes à situação
de abrigamento no Brasil (Siqueira & Dell’Aglio, 2007).
Fatores de risco são entendidos como condições que aumentam a probabilidade
de resultados negativos ou indesejáveis para o desenvolvimento dos sujeitos, incluindo
comprometimentos à saúde, ao bem-estar ou ao desempenho social do indivíduo. Em
contraponto, os fatores protetivos são entendidos como condições que diminuem a
probabilidade de o indivíduo desenvolver problemas (Jessor, Van Den Boss, Vanderryn,
Costa & Turbin, 1995). Segundo Masten e Garmezy (1985), uma rede de apoio social se
constitui como um tipo de fator protetivo e exerce grande impacto na saúde e no bem-estar
do indivíduo (Samuelsson, Thernlund & Ringström, 1996), bem como em um melhor
enfrentamento de adversidades (Poletto & Koller, 2002).
Porém, quando os resultados desses fatores implicam ameaças ao desenvolvimento
saudável de crianças e adolescentes e seus direitos estão sob ameaça ou são violados,
estão previstas a aplicação de medidas jurídicas de proteção provisória; dentre essas,
o abrigamento da criança em instituições próprias para cuidado infanto-juvenil (ECA,
1990, art. 98). Segundo Barros e Fiamenghi Jr. (2007), a institucionalização pode ser
percebida pelas crianças e pelos adolescentes como uma perda do acolhimento familiar,
e por isso constituir-se como um fator de risco ao desenvolvimento. Contudo, apesar de
os jovens pesquisados demonstrarem dificuldades em relação à criação de laços afetivos
com novos pares, muitos também apresentam uma adaptação resiliente, superando os
riscos inicialmente previstos.
Em específico com relação aos estudos que investigam a situação de abrigamento
e as práticas educativas recebidas, observa-se que os estudos, em sua maioria, tratam
da questão das práticas educativas parentais, como apresentado por Macarini, Martins,
Minetto e Vieira (2010) em revisão da literatura brasileira. Contudo, no caso da
institucionalização, é imprescindível também a consideração das práticas educativas de
outros agentes socializadores, como professores e educadores do abrigo. Em função disso,
a literatura que respalda as práticas parentais foi utilizada nesse estudo como o norte para
avaliação das práticas educativas dos educadores das instituições de amparo à infância.
As práticas educativas parentais são estratégias utilizadas na orientação e socialização
do comportamento dos filhos (Alvarenga & Piccinini, 2009; Reppold, Pacheco & Hutz,
2005). O processo de socialização da criança, muito influenciado pelo contexto familiar,
é o meio pelo qual a criança adquire comportamentos adequados e esperados em sua
cultura (Steimberg, 2000).
Estudos como o de Prada e Williams (2007) salientam que um dos objetivos desse
processo é a aquisição de autonomia, e afirmam a importância da função dos pais no
processo de socialização, devido à influência que exercem sobre os filhos através de
exigências, restrições e valores. Um estudo que corrobora estes achados é o de Sapienza,
Aznar-Farias e Silvares (2009), que, ao investigar as práticas educativas utilizadas
pelos pais de jovens com alto e baixo rendimento escolar, mostrou que o rendimento
é diretamente relacionado à competência social adquirida e à utilização de práticas
educativas positivas, como reforçamento e monitoramento.
Hoffman (1994), ao tratar das práticas empregadas pelos pais na socialização
das crianças, diz que existem duas formas utilizadas para modificar o comportamento
dos filhos: as estratégias indutivas e as coercitivas. Para ele, as estratégias indutivas
possibilitam à criança a compreensão de suas ações e da necessidade de mudança no
seu comportamento, sendo a forma mais efetiva, pois atingem o objetivo disciplinar
mostrando à criança as consequências do seu comportamento e chamando sua atenção
para os aspectos lógicos da situação, sem consequências punitivas. Já as estratégias de
Aletheia 33, set./dez. 2010
57
força coercitiva são marcadas pela aplicação direta da força e do poder dos pais, com
punição física, perda de privilégios e afeto e uso de ameaças (Hoffman, 1994). Segundo
Dix, Ruble e Zambarano (1989), o objetivo da técnica coercitiva é forçar a criança a
comportar-se de modo adequado, e os pais podem fazer isso de forma verbal, por ordens
ou comandos, ou física, através da punição física.
Na literatura sobre práticas educativas, uma série de estudos ressalta que
características como demonstração de afeto positivo, intimidade e comunicação familiar
têm sido associadas ao bem-estar infantil e a menores índices de estresse psicológico, bem
como ao emprego de estratégias de coping adaptativas (Hermam-Stahl & Peterse, 1996;
Sanzovo & Coelho, 2007). Em contraponto a isto, Pacheco e Hutz (2009) destacam em
seus estudos com adolescentes infratores e não infratores (que estavam cumprindo ou não
medidas socioeducativas) variáveis relacionadas às práticas educativas que aumentam o
risco de comportamento antissocial. Segundo os autores, o uso de substâncias, o número
de irmãos, o envolvimento de um familiar com o crime e as práticas educativas parentais
(como falta de monitoramento, punição e expressão de afeto negativo) explicaram 53%
da variância do comportamento infrator.
Dentro desse contexto, um conceito importante para avaliação do ajustamento
psicológico de crianças em situação de risco familiar é o de coping, que diz respeito às
diferentes formas de adaptação dos indivíduos às circunstâncias adversas e aos esforços
utilizados por eles para lidar com situações estressantes. Lazarus e Folkman (1984)
definem coping como um conjunto de esforços cognitivos e comportamentais, utilizados
pelos indivíduos para controlar (vencer, tolerar ou reduzir) demandas internas ou externas
específicas: diante de uma situação de estresse. Nessas condições, o indivíduo emite
um conjunto de respostas comportamentais para modificar o ambiente, na tentativa de
adaptar-se da melhor maneira possível ao evento estressor, minimizando seu caráter
aversivo (Sanzovo & Coelho, 2007).
Segundo Folkman e Lazarus (1980), as estratégias de coping podem ser divididas
em dois grupos distintos, de acordo com sua função: coping focalizado na emoção ou no
problema. De acordo com os autores, o primeiro é definido com um esforço para regular o
estado emocional resultante de eventos estressantes ou associado ao estresse, tendo como
função reduzir a sensação desagradável, mas não necessariamente resolver o problema
causador do estresse. O segundo é caracterizado como um esforço que opera na origem
do estresse e tenta mudá-lo. Sua função é alterar o problema existente na relação entre
pessoa e o ambiente causador da tensão (Folkman & Lazarus, 1980). Estudos, nesta linha,
ressaltam que o coping surge em diferentes fases do desenvolvimento. A aquisição do
coping focalizado no problema ocorre, em geral, nos anos pré-escolar, enquanto o coping
focalizado na emoção tende a aparecer mais tarde na infância e se desenvolve durante a
adolescência (Heckhausen & Schulz,1995).
Segundo Beresford (1994), a disponibilidade de recursos sociais é considerada
um significativo componente para a utilização de estratégias de coping eficaz. A rede de
apoio mais próxima da criança, durante a infância, na maioria das vezes, é constituída
por sua família, que tem sido apontada como um importante fator de proteção, já que
seu apoio pode ajudar as crianças no ajustamento psicológico e na organização de rotina
frente às mudanças (Herman-Stahl & Peterson, 1996). Contudo, nem sempre esse apoio é
58
Aletheia 33, set./dez. 2010
viável, como mostra o Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes,
realizado em 589 abrigos. Por esse estudo, é possível constatar que em torno de 20 mil
crianças e adolescentes viviam em abrigos em 2004, sendo na maioria meninos entre 7
e 15 anos, negros e pobres (Silva, 2004).
Apesar de a institucionalização ser uma realidade no Brasil, alguns autores
defendem que o abrigo não é o melhor ambiente para o desenvolvimento das crianças.
Entre eles, Carvalho (2002) destaca que, nas instituições de abrigamento, o atendimento
é padronizado e coletivo, não há atividades planejadas e há fragilidade das redes de
apoio social e afetivo, o que caracteriza alguns dos fatores que podem trazer prejuízos
psicossociais ao longo do tempo. No entanto, outros estudos, como o de Dell’Aglio
(2000), sugerem a institucionalização como uma alternativa positiva nos casos em
que o ambiente familiar é desorganizado e caótico. As oportunidades de atendimentos
oferecidas pelas instituições podem ser a melhor saída nos casos em que a família se
encontra em situação desfavorável, sendo que existem diversas alternativas possíveis em
se tratando de uma institucionalização como casas abrigo, instituições governamentais
e não-governamentais.
Revisando a literatura sobre instituições de abrigo, Siqueira e Dell’Aglio (2006)
salientam o lugar fundamental que instituições adquirem na vida das crianças e dos
adolescentes abrigados e, em função disso, consideram indispensável investir neste
ambiente de socialização, visando à transformação e à desestigmatização das concepções
socialmente estabelecidas sobre a institucionalização. Neste sentido, Yunes, Miranda
e Cuello (2004) também entendem que, para a instituição de abrigo transformar-se
em um ambiente de desenvolvimento, é necessário instrumentalizá-la e capacitar
seus agentes socializadores. As consequências da falta de apoio percebido por parte
das crianças abrigadas são ilustradas, por exemplo, pela experiência apresentada por
Ribeiro e Ciampone (2002) com crianças em situação de rua da cidade de São Paulo.
Muitas afirmaram preferir permanecer na rua por não encontrarem no abrigo um lugar
de acolhimento, sendo frequente a ocorrência de conflitos com os educadores sociais ou
mesmo com pares durante o período no abrigo.
Outra questão relevante sobre a situação de abrigamento é o tempo em que, em geral,
as crianças permanecem institucionalizadas. Apesar de o programa de abrigamento ser
previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) como uma medida provisória
e temporária, muitos adolescentes e crianças passam anos em abrigos. Sendo assim,
é ainda mais importante que a instituição ofereça um ambiente propício para o pleno
desenvolvimento cognitivo, social e afetivo das crianças e adolescentes inseridos neste
contexto.
A literatura sugere que, nos casos de abrigamento motivados pela negligência
parental e pelas práticas educativas disfuncionais, muitas crianças tendem a apresentar
déficits em relação à aquisição de habilidades sociais e a assumir estratégias de coping
disfuncionais. Frente a isto, este estudo teve como objetivo investigar as práticas
educativas empregadas por pais e educadores sociais de crianças institucionalizadas
e as estratégias de coping por elas utilizadas em relação às dificuldades relativas à
situação de abrigagem.
Aletheia 33, set./dez. 2010
59
Método
Participantes
Participaram deste estudo 20 crianças, seis meninas e 14 meninos, com idades
entre sete e onze anos (M= 8,9 anos; d.p.=1,37), escolaridade entre 1º e 6º ano do ensino
fundamental (M=2,6 anos de escolaridade; d.p.= 1,50), abrigados sem destituição do
pátrio poder, em uma instituição pública da cidade de Caxias do Sul/Rio Grande do
Sul. Os participantes estavam abrigados por motivos de abandono, maus-tratos (físico,
psicológico, negligência) violência sexual intrafamiliar, dependência química dos pais
ou responsáveis e/ou situação de rua. O tempo médio de abrigagem da amostra foi de 10
meses (d.p.= 10,36). A instituição trata-se de uma Casa Abrigo, que presta atendimento
para crianças de zero a 12 anos.
Instrumentos
Foram utilizadas como instrumentos deste estudo duas entrevistas semiestruturadas,
elaboradas pelas pesquisadoras.
A Entrevista de Práticas Educativas objetivou investigar as práticas educativas
empregadas pelos pais e pelos educadores sociais em situações cotidianas. Nesta entrevista,
eram apresentadas situações cotidianas possivelmente vivenciadas pelas crianças e
questionado qual era a prática educativa adotada por pai, mãe e educador social diante
daquela situação. Em específico, perguntou-se à criança: O que teu pai/mãe/educador
social faz quando (situações cotidianas: brigar com colegas, não fazer os deveres escolares,
apresentar o boletim escolar, desobedecer a ordens, descumprir combinações sobre
horários estabelecidos para retorno, mentir e sair sem a permissão de responsáveis).
A entrevista de coping teve como objetivos investigar o sentimento destas em relação
à institucionalização e verificar as estratégias de coping utilizadas pelas crianças frente a
situações de estresse no ambiente familiar e no abrigo. Nesta entrevista, as crianças foram
questionadas sobre quais eram os problemas mais comuns vivenciados em casa, com
os pais, ou, no abrigo, com os educadores. Após, era pedido que relatassem a maneira
como costumavam lidar com esse problema (estratégia de coping adotada) e, a seguir,
o que poderia ter sido utilizado como estratégia alternativa de coping frente à situação
adversa relatada.
Procedimentos
O presente projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (protocolo nº. 2749). Os Termos de
Consentimento Livre e Esclarecido da pesquisa e o Termo de Concordância da Instituição
foram obtidos junto à coordenação do abrigo e ao juiz da infância da cidade do estudo,
uma vez que a pesquisa trata de crianças abrigadas e a guarda dessas é de responsabilidade
do Estado. Após consentimento da instituição e do juiz, entrou-se em contato com as
crianças, foi feito o convite para participarem e solicitada a permissão para que se anotasse
suas respostas. As entrevistas foram realizadas individualmente em sala adequada, cedida
pela própria instituição, combinadas com antecedência.
60
Aletheia 33, set./dez. 2010
Resultados
Os dados provenientes das entrevistas foram examinados através da análise de
conteúdo quantitativa (Bardin, 1979). As respostas da Entrevista Semiestruturada de
Práticas Educativas dos pais, das mães e dos educadores sociais foram categorizadas
segundo a concepção teórica de Hoffman (1994) em estratégias indutivas (conversar /
explicar / estímulo verbal) e estratégias coercitivas (punição física e/ou verbal / castigo
/ privação / ameaça de punição). Uma terceira categoria foi criada pelas autoras para
contemplar as respostas de Inação (não fazer nada / não sei).
Com base na teoria de estresse de Lazarus e Folkman (1984), as respostas fornecidas
pelos participantes na entrevista para investigar as estratégias de coping utilizadas para
lidar com problemas nos ambientes familiar e institucional foram classificadas nas
seguintes categorias: estratégias de coping “focalizado no problema” (bater, obedecer,
pedir ajuda para alguém, mandar parar, continuar batendo), “focalizado na emoção”
(chorar, esconder-se, ficar quieto) ou “inação” (não sei; não fazer nada).
Os dados foram categorizados por dois juízes independentes. O índice de
concordância quanto à categorização foi superior a 90% e foi obtido através de Análise de
Concordância – Kappa. Nos casos em que houve dúvidas sobre as categorias escolhidas, a
avaliação de um terceiro juiz foi considerada.
Práticas educativas percebidas
As respostas sobre as práticas educativas percebidas (PEP) foram obtidas em relação
ao pai ou figura paterna (tio ou padrastos), à mãe e ao educador social do abrigo. Na Tabela
1 é possível observar os dados obtidos em relação às PEP dos pais (n=15).
Tabela 1 – Frequência e percentual das respostas sobre práticas educativas paternas.
Questão
Situação
Práticas indutivas
FR
%
Práticas coercitivas
FR
%
Inação
FR
%
1
Brigar com colega
3
20
8
53,4
4
26,6
2
Não cumprir horário
1
6,6
10
66,7
4
26,6
4
Desobedecer ordens
1
6,6
10
66,7
4
26,6
5
Sair sem permissão
0
0
10
66,7
5
33,3
6
Comunicado da escola
1
6,6
11
73,4
3
20
7
Descobrir uma mentira
0
0
12
80
3
20
8
Não fazer as tarefas escolares
1
6,6
8
53,4
6
40
Quanto às figuras paternas eleitas pelas crianças que desconheciam seu pai (tio ou
padrasto) (n= 5), as práticas educativas coercitivas chegaram a atingir uma frequência de
100% nas situações em que as crianças desobedeciam a ordens ou recebiam o boletim
escolar. Nesses cinco casos, as práticas indutivas foram referidas com maior frequência nas
Aletheia 33, set./dez. 2010
61
situações de brigas com colegas e não cumprimento de horários combinados previamente
(40%). A inação foi mais frequentemente relacionada às situações em que as crianças não
cumpriam suas tarefas escolares (40%) e saíam sem pedir permissão (33,3%).
A Tabela 2 apresenta os percentuais e frequências das respostas referentes às
práticas educativas utilizadas pelas mães. Quanto às práticas educativas utilizadas pelos
educadores sociais, as práticas coercitivas foram mencionadas pelas crianças como
sendo utilizadas frequentemente em todas as situações: brigar com colegas (95%), não
cumprir horário e desobedecer a ordens (85%), descobrir uma mentira (80%), sair sem
pedir permissão (75%), não fazer as tarefas da escola (65%) e receber o boletim escolar
(50%). As respostas referentes à inação dos educadores sociais foram mais frequentemente
relatadas em relação às seguintes situações vividas pela criança: receber o boletim escolar
(40%), não fazer as tarefas escolares (35%), descobrir uma mentira contada pela criança
(20%) e desobedecer a ordens (15%). As crianças relataram o uso de práticas indutivas
por parte dos educadores sociais somente em três situções: sair sem pedir permissão
(15%), receber o boletim escolar (10%) e não cumprir horário (5%).
Tabela 2 – Frequência e percentual das respostas sobre práticas educativas maternas (n=20).
Questão
Situação
Práticas indutivas
FR
%
Práticas coercitivas
FR
%
Inação
FR
%
1
Brigar com colega
6
30
11
55
3
15
2
Não cumprir horário
2
10
12
60
6
30
4
Desobedecer a ordens
3
15
13
65
4
20
5
Sair sem permissão
2
10
12
60
6
30
6
Comunicado da escola
4
20
12
60
4
30
7
Descobrir uma mentira
3
15
11
55
6
30
8
Não fazer as tarefas escolares
4
20
7
35
9
45
Problemas no ambiente familiar x coping
A respeito das respostas obtidas na entrevista semiestruturada sobre estratégias de
coping, quando questionados sobre como se sentiam no abrigo, a maior parte das crianças
referiu sentir-se melhor ou mais feliz que em casa (75%). Cerca de 15% referiu sentir-se
“mais ou menos” e 10%, sentir-se mal ou triste. Ao serem questionadas sobre o tempo de
abrigagem, grande parte das crianças referiu não saber há quanto tempo já estava abrigada
(50%). Quando questionada se gostavam do abrigo, 65% da amostra respondeu que sim,
25% referiu gostar mais ou menos e 10% disse não gostar.
Na pergunta sobre o motivo do abrigamento, a resposta mais frequentemente
citada estava relacionada à categoria “Problema intrafamiliar” que incluiu uso de drogas,
álcool, violência e negligência por parte dos pais (55%). Cerca de 40% das crianças
disseram terem sido conduzidas ao abrigo pelo Conselho Tutelar sem saber a razão do
encaminhamento.
62
Aletheia 33, set./dez. 2010
Quando solicitadas a relatar um problema ocorrido no contexto familiar (o
que foi questionado na intenção de investigar, na sequência, a estratégia de coping
adotada pela criança), 75% das respostas referiram-se à “Violência Intrafamiliar”.
Nessa categoria foram incluídas as respostas relacionadas à agressão física e verbal.
Problemas como abuso sexual foi relatado por 5% da amostra, o mesmo percentual
que relatou a prisão parental como motivo de abrigamento. Chama a atenção o
fato de outros 15% das crianças terem referido nunca ter tido qualquer problema
doméstico.
Diante dos problemas mencionados pelas crianças como vivenciados no ambiente
familiar antes do abrigamento, a estratégia de “coping focalizado na emoção” foi a mais
utilizada pelas crianças (60%). Respostas categorizadas como “Inação” totalizaram 25%,
e como “coping focalizado no problema”, 15%.
Quando questionadas sobre uma estratégia de coping alternativa que poderia
ter sido adotada frente ao problema no ambiente familiar relatado, 35% das crianças
disseram que outra estratégia viável seria não fazer nada (inação) e 30% afirmaram
que poderiam ter buscado apoio social (exemplos citados: chamar a polícia, contar
para avó e comunicar o Conselho Tutelar para ser abrigado). Respostas categorizadas
como “coping focado na emoção” foram citadas por 20% das crianças como estratégias
alternativas (exemplos: ir brincar, ir para o quarto ou ficar chorando). Já os atos
agressivos (intrometer-se na briga para afastar os pais e ajudar a mãe a bater no pai)
foram citados em 15% dos casos.
Problemas enfrentados no abrigo x coping
Os problemas vivenciados no ambiente da instituição que foram mais frequentemente
relatados pelas crianças referiam-se a problemas com colegas, como agressões físicas
e verbais (50%). Também foram relatados “problemas com os educadores” (30%), que
incluíam xingá-los ou desobedecê-los. Em acréscimo, 20% das crianças consideraram
nunca ter problemas no abrigo.
A respeito das estratégias de coping que as crianças utilizaram frente aos problemas
vividos no ambiente institucional, 35% das crianças que disseram já ter tido problemas
relataram que tentaram resolvê-lo utilizando-se de agressão física ou verbal. Entretanto,
25% das crianças relataram ter buscado apoio dos educadores, o mesmo percentual
obtido para a categoria inação. As categorias “pedir para o agressor parar a briga”
(5%), “esconder-se” (5%) e “passar a obedecer” (5%) foram também relatadas pelas
crianças.
Quando indagadas sobre o que sentiam depois do problema resolvido, a maioria
das crianças informou sentir-se mais calmo(a) e feliz (75%). Contudo, 20% informou
sentir-se mal ou triste e 5% relatou não saber o que sentia nessa situação.
Quanto à possibilidade de coping alternativo considerado pelas crianças, a relatada
com maior frequência em relação a problemas no ambiente institucional foi a possibilidade
de busca de apoio dos educadores (35%), seguida pela categoria “agressão física” (20%).
As categorias “parar a briga”, “entristecer-se” e “não fazer nada” foram relatadas, cada
uma, por 15% da amostra.
Aletheia 33, set./dez. 2010
63
Discussões
Os dados do presente estudo revelaram uma predominância de práticas educativas
coercitivas utilizadas pelas mães, pais e/ou figuras paternas, bem como pelos educadores
sociais nas diferentes situações investigadas. As técnicas coercitivas usadas com
mais frequência pelas figuras parentais deste estudo podem ser discutidas à luz das
considerações das ideias de Marinho (1999), que sugerem que os pais que adotam práticas
disciplinares severas, coercitivas e inconsistentes, em geral, não possuem conhecimentos
ou recursos pessoais para atuarem de modo eficiente na educação dos filhos, o que reforça
a importância de programas de orientação psicoeducativa a essa população.
Quanto aos educadores, os dados indicam a predominância de agressão verbal,
ameaças de privação, castigo e privação de privilégio. Esses achados são coerentes com
outros estudos relacionados ao tema. Entre eles, está a pesquisa realizada por Prada e
William (2007) em dois abrigos na cidade de Curitiba, que constatou que as práticas
educativas nessas instituições eram pautadas pela coerção.
De modo geral, observa-se que as práticas indutivas foram, no presente estudo,
mais usadas pelas mães, já que os pais e educadores tendem a praticar mais técnicas
coercitivas. Dentre os pais e figuras paternas, a prática de inação é significativamente
alta em todas as situações. Estes dados revelam famílias com características abusivas
(violência, abuso de droga e álcool) e negligentes, representando alto índice de fatores de
risco para as crianças. Nessa linha, ressalta-se resultados de outros estudos realizados sobre
práticas educativas parentais, os quais apontaram que pais abusadores tendem a aplicar,
de maneira indiscriminada, a punição física, aumentando os riscos de manifestação de
comportamentos agressivos ou de distúrbios afetivos nas crianças e adolescentes (Black,
Heyman & Slep, 2001).
Em síntese, em todas as situações apresentadas para as crianças, os resultados
apontaram uma preponderância do uso das práticas educativas coercitivas tanto no
ambiente familiar quanto no institucional. No entanto, é preciso considerar que estudos
como o de Reppold, Pacheco e Hutz (2005) chamam a atenção para o fato que o uso
predominante de práticas coercitivas por parte dos pais ou educadores pode trazer
consequências negativas para o desenvolvimento emocional infantil e não propiciar a
internalização de padrões morais e regras sociais, podendo fazer com que as crianças
reproduzam comportamentos coercitivos com seus pares. Os resultados do presente estudo
destacam as dificuldades parentais e dos educadores sociais em praticar a autoridade de
forma adequada e afetiva, bem como a indisposição das crianças em obedecer a regras
e normas frente a essas práticas.
Em relação aos problemas enfrentados pelas crianças, os participantes apontaram
como principal evento estressor no ambiente familiar os conflitos relacionados à violência,
abuso de álcool/droga parental e à negligência. As estratégias de coping focadas na
emoção e a inação, adotadas para lidar com os problemas envolvendo as figuras parentais,
obtiveram maior frequência de respostas. Estes dados apontam para o déficit de recursos
das crianças para lidar com seus estressores, especialmente quando estes são produzidos
de seus pais. Segundo a literatura, o coping focado na emoção e a inação, na maioria das
vezes, estão associados aos baixos índices de controle sobre evento estressor e à percepção
64
Aletheia 33, set./dez. 2010
de que seus recursos pessoais são suficientes para lidar com a situação de estresse a ser
enfrentado (Almquist & Hwang, 1999).
A maioria das crianças refere que, se passasse novamente pelo problema relatado,
iria adotar uma estratégia de resolução de problema diferente. A estratégia mais relatada
como coping alternativo foi coping focado no problema (busca de apoio social), uma
alternativa mais adaptativa que a agressão física. Este dado corrobora estudos anteriores
que indicam que as crianças apresentam-se mais dependentes para lidar com situações
estressantes em comparação aos adultos (Compas, Davis, Forsythe & Wagner, 1987) e que
a busca de apoio social nessa população é associada ao fato de a maioria dos estressores
infantis estarem relacionados a situações que estão fora de controle direto da criança
(Ryan-Wenger, 1992).
Outra estratégia frequentemente citada como coping alternativo pelas crianças
da amostra foram as ações agressivas. Isso porque essas são eficazes para a redução da
sensação desagradável provocada pela percepção de um evento estressor. Contudo, o uso
da mesma é associado a diversos problemas psicossociais, que têm como consequências
déficits relacionais, inabilidades sociais e, em casos extremos, evasão escolar. Contudo,
crianças vítimas de violência intrafamiliar comumente utilizam ações agressivas por
terem aprendido que são maneiras adequadas de lidar com possíveis contrariedades
(Coie & Dodge, 1998).
Quanto à situação adversa enfrentada no ambiente no abrigo, a resposta mais
frequente referiu-se a problemas com colegas. Nesta situação, observa-se com alta
frequência o uso de coping focado para o problema, sobretudo no que tange à utilização
de agressões físicas e verbais e à busca de apoio dos educadores como estratégia para
lidar com a situação. O fato de a amostra ser composta de crianças vítimas de violência
intrafamiliar pode estar associado às altas frequências de respostas de agressões físicas e
verbais. Conforme já exposto, muitas crianças nessas condições aprendem a desenvolver
no ambiente familiar um repertório violento e tendem repeti-lo na interação social
(Bandura, 1997; Coie & Dodge, 1998).
A frequente busca de apoio dos educadores, utilizada pelas crianças como
estratégia de coping para lidar com problemas que envolvem o grupo de iguais,
pode ser compreendida à luz da insuficiência de recurso (físicos, cognitivos e/ou
emocionais) que as crianças dispõem para lidarem sozinhas com seus estressores
(Boekaerts, 1996). O uso de estratégia de coping focado na emoção e a inação não
obtiveram frequência alta nas respostas relativas a problemas enfrentados no abrigo.
Já em relação a problemas envolvendo os pais, mães e padrasto, esse foi um padrão de
resposta recorrente, o que pode ser explicado pela presença de hierarquia e autoridade
envolvidas nestes relacionamentos, sobretudo quando as relações eram pautadas pela
violência familiar.
Em se tratando de problemas com colegas (grupo de iguais), situação na qual existe
maior equilíbrio de poder, as crianças tendem a buscar orientações, conselhos e apoio
emocional. Esta tendência foi apontada também em outros estudos, nos quais as crianças
mencionaram utilizar da busca de apoio social ou estratégias agressivas para lidar com
conflitos relacionados com seus pares (Dell’Aglio, 2000; Lisboa, 2002), respaldando os
resultados desta pesquisa.
Aletheia 33, set./dez. 2010
65
Para finalizar, podemos considerar que os resultados deste estudo confirmam a
necessidade de programas de treinamento de práticas educativas para os pais, durante
o período de abrigamento das crianças, para que o processo de reinserção familiar
das crianças ocorra de forma segura e, se possível, definitiva. E, para educadores, de
treinamentos voltados para o desenvolvimento de práticas educativas positivas e mais
afetuosas com as crianças, para que eles compreendam a influência que suas ações exercem
no processo de socialização das crianças abrigadas.
Por este ser um estudo exploratório, não foram analisadas possíveis relações
existentes entre as práticas educativas e a escolha das estratégias de coping das crianças
abrigadas e entende-se que esta é uma de suas limitações. Portanto, são necessárias
realizações de futuras pesquisas, a fim de investigar possíveis relações existentes entre
estes fatores. Por fim, destaca-se a importância da criação de políticas públicas voltadas
para as instituições de abrigos, que proporcionem melhor qualidade de atendimento para
as famílias e as crianças que dependem deste serviço.
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____________________________________
Recebido em 09/07/2010
Aceito em 10/10/2011
Giorgina Leni Batista: Psicóloga, especialista em Psicologia Clínica – Ênfase em Terapia CognitivoComportamental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Patricia Santos da Silva: Aluna de Psicologia da UFCSPA.
Caroline Tozzi Reppold: Doutora em Psicologia. Docente da UFCSPA.
Endereço para contato: [email protected]
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Aletheia 33, set./dez. 2010
Aletheia 33, p.69-83, set./dez. 2010
Avaliação de indicadores de problemas de comportamento
infantil relatados por pais e professores
Juliana Rigon Pedrini
Giana Bitencourt Frizzo
Resumo: O presente estudo investigou os indicadores de problemas de comportamento de
internalização e externalização de 88 crianças de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental de
uma escola pública de Porto Alegre/RS, de acordo com o CBCL e TRF. Foram comparados os
relatos de pais e professores em geral e posteriormente diferenças de sexo entre as crianças.
Houve concordância significativa no relato de pais e professores quanto à externalização,
mas não em relação à internalização. Houve, no relato tanto de pais como de professores,
um alto índice de comorbidade entre indicadores de internalização e externalização. Não
foram encontradas diferenças significativas entre o sexo das crianças. De forma geral, os
resultados destacaram maior relato parental de problemas de internalização enquanto os
professores relataram mais os comportamentos de externalização, por serem os que interferem
no ambiente escolar.
Palavras-chave: problemas de comportamento; escola; internalização; externalização.
Evaluation of child behavior problems indicators reported by parents
and teachers
Abstract: This study examined indicators of internalizing and externalizing behavior problems
of 88 children from 1st to 4th grades of elementary education from a public school in Porto
Alegre / RS, according to the CBCL and TRF. Reports from parents and teachers were compared
in general, and afterwards gender differences among children were considered. There were
significant differences in the reporting of parents and teachers on the externalization, but
not in relation to internalization. There was, reporting both parents as teachers, a high rate of
comorbidity between internalizing and externalizing indicators. No significant differences were
found considering the sex of children. Overall, the results highlighted greater parental report of
internalizing problems, while teachers reported more externalizing behaviors, because they can
disturb the school environment.
Keywords: behavior problems; school; internalization; externalization.
Introdução
A prevenção de problemas de comportamento na infância deve ser prioridade
nas políticas de saúde, visto que a taxa de frequência de problemas de comportamento
em crianças atinge índices alarmantes, chegando a 35% em famílias de baixa renda
(Reid, Webster-Stratton & Beachaine, 2001). Esse alto índice de problemas de
comportamento afeta a vida escolar dos sujeitos, sua aprendizagem e relação com colegas
e professores.
A literatura apresenta inúmeros estudos que envolvem os problemas de
comportamento na infância e na adolescência (Assis, Avanci, Pesce & Ximenes, 2009;
Bolsoni-Silva, Marturano, Pereira & Manfrinato, 2006; Borsa & Nunes, 2008; Campo
& Marturano, 2003; Oliveira, Marin, Pires, Frizzo, Ravanello & Rossato, 2002; Salvo,
Mazzarotto & Löhr, 2005; Santos & Silvares, 2006; Szelbracikowski & Dessen, 2007).
Newcombe (1999) já relatava que os problemas comportamentais sérios na infância
provavelmente persistem nos períodos posteriores da vida. Diversos autores destacaram
que a média de prevalência de problemas de comportamento é de 30% (Alvarenga &
Piccinini, 2001; Bolsoni-Silva & Del Prette, 2003; Santos & Graminha, 2006) e a maior
parte dos estudos utilizou o Inventário de Comportamento de Crianças e Adolescentes
– CBCL (Achenbach, 1991) para avaliar tais indicadores. Já um estudo que avaliou
a concordância entre pais e mães sobre indicadores de problemas de comportamento
infantil em Porto Alegre apontou 25,3% das crianças como grupo clínico e 49,3% como
não clínico para internalização e 16,4% para grupo clínico e 67,8% para não clínico nos
problemas de externalização (Borsa & Nunes, 2008).
Um panorama sobre os problemas de comportamento infantil foi realizado por
Bolsoni-Silva & Del Prette (2003). Esses autores revisaram diferentes fontes como
o Ministério da Educação e da Cultura (MEC), o Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais (DSM-IV) e o Código Internacional de Doenças (CID-10), e
sugeriram que apenas os problemas de comportamento que prejudicam outras pessoas, ou
seja, de externalização (especialmente os comportamentos agressivos e de hiperatividade)
devem ser considerados como “problemas de comportamento infantil”. Entretanto,
Achenbach e Edelbrock (1979) e Graminha (1998) consideram comportamentos como
asma, enurese, nervosismo e timidez também como problemas de comportamento, mas
de internalização.
Existem três principais grupos diagnósticos na psiquiatria infantil (Assis & cols.,
2009; Newcombe, 1999): a) Desordens emocionais (também descritas como problemas
de internalização, internalizantes ou problemas de supercontrole), a exemplo da depressão,
ansiedade, desordens obsessivo-compulsivas e somatização, em que os sinais estão
especialmente interiorizados nos indivíduos; b) Desordens de comportamento disruptivo
(nomeadas também como problemas de externalização, externalizantes ou problemas
de supercontrole), tais como conduta desafiadora excessiva e transtornos de condutaagressividade a pessoas e animais e comportamento transgressor, em que as condutas
estão mais dirigidas para o outro; c) Transtornos do desenvolvimento (denominados,
por vezes, desvios graves do desenvolvimento e, algumas vezes, psicoses) como, por
exemplo, problemas de aprendizagem, transtornos invasivos do desenvolvimento, enurese,
encoprese e esquizofrenia.
No presente estudo serão considerados tanto os problemas de comportamento de
externalização como os de internalização. Segundo Dessen e Szelbracikowski (2006)
são incluídos nos comportamentos de externalização, “não somente os manifestos,
como agressão física e verbal, mentira, rebeldia, delinquência, mas também padrões de
pensamento e sentimento, dentre os quais atribuições hostis e irritabilidade” (Dessen &
Szelbracikowski, 2006, p.71). Já os comportamentos de internalização são evidenciados
por retraimento, depressão, ansiedade e queixas somáticas (Gonçalves & Murta, 2008).
Segundo Borsa e Nunes (2008), os comportamentos de internalização são os
de padrões privados desajustados, como tristeza e isolamento, e são mais restritos ao
mundo interno da criança, talvez por isso de mais difícil identificação por parte de
70
Aletheia 33, set./dez. 2010
pais e, principalmente, dos professores. Já os comportamentos de externalização são
aqueles visivelmente desajustados do que é aceito socialmente, como agressividade,
agitação psicomotora e comportamento delinquente. Szelbracikowski e Dessen (2007)
complementam os exemplos de comportamento de externalização com agressão física
e verbal, roubo, mentira entre outros comportamentos de descumprimento de regras
sociais e de problemas de conduta. Quaisquer das duas manifestações de problemas
de comportamento dificultam o desenvolvimento psicossocial da criança, já que
podem privá-la de interagir com o ambiente, isto é, o indivíduo pode evitar iniciar
uma interação, quando sofre de problemas de comportamento de internalização, ou,
quando apresenta problemas de comportamento de externalização, pode gerar conflitos
e provocar rejeição de pais, professores e colegas (Gonçalves & Murta, 2008). Na
última década, as queixas por problemas de atenção (internalização) e comportamento
desafiador (externalização) estão aumentando (Merg, 2008). Atualmente, também
existe, segundo Newcombe (1999), um reconhecimento maior de que as crianças
podem apresentar comorbidades.
As características da população da clientela infantil que buscou atendimento
psicoterápico em clínica-escola não mudaram nas últimas três décadas, segundo uma
revisão sistemática da literatura brasileira realizada por Merg (2008). No estudo, Merg
(2008) afirma que os meninos continuam sendo os que requerem mais atendimento que
as meninas (66%) e predomina a faixa etária de sete a nove anos (42%).
Considerando também que boa parte do desenvolvimento infantil acontece
durante a vida escolar, há estudos que se focaram na avaliação dos alunos segundo
a percepção dos pais e professores (Frigerio, Cattaneo, Cataldo, Schiatti, Molteni
& Battaglia, 2004) e na interação entre família e escola (Silveira, 2007). Segundo
Santos (1990), a criança de sete a nove anos pode apresentar problemas de atenção e
de aprendizagem porque até a entrada formal na escola, no Ensino Fundamental, ela
não tinha muitas exigências e, ligado a isso, pode surgir a necessidade de psicoterapia.
Junto a este dado, observa-se que a escola é a fonte de encaminhamento de maior
frequência (Merg, 2008).
É importante observar que a escola ainda é uma das principais fontes de
encaminhamento das crianças para avaliações especializadas, como a psicológica
(Silvares, 1996). A pesquisa de Merg (2008) analisou 2.106 crianças atendidas por
clínicas-escola e a maior fonte de encaminhamento foi a escola, sendo responsável pelo
encaminhamento de 654 (31%) crianças. Merg (2008) também comparou artigos das três
últimas décadas e pode concluir que nestes 30 anos permanece um padrão de crianças
serem encaminhadas pela escola com queixas de comportamento de externalização e
problemas de aprendizagem.
Além disso, em geral, a literatura tem avaliado principalmente a percepção dos pais
e mães sobre seus filhos, mas alguns autores têm enfatizado a importância de se incluir
também a avaliação dos professores. Na literatura sobre problemas de comportamento e
aprendizagem, há indicações de que uma avaliação mais consistente sobre comportamento
deve considerar mais de um olhar sobre a criança (Santos & Graminha, 2006). Por isso
os instrumentos de avaliação costumam ter versões para o cuidador, o professor ou a
própria criança (Duarte & Bordin, 2000).
Aletheia 33, set./dez. 2010
71
As diferentes perspectivas de pais e professores sobre a saúde mental são pouco
debatidas no país. Em uma revisão não sistemática da literatura realizada por Assis e cols.
(2009), os autores relataram um estudo longitudinal de um ano realizado pelo grupo de
pesquisa em escolas e comunidades brasileiras, no qual houve 2,7% de casos clínicos
incidentes de acordo com o relato parental e 4% de acordo com os professores. Para os
problemas de internalização, foram mencionados em 3,7% das crianças (informação
dos pais) e 4,9% (professores); para os comportamentos de externalização, 4% e 5,7%,
respectivamente (Assis & cols., 2009). A importância da concordância entre o relato parental
e de professores tem sido debatido como possível fator de risco no desenvolvimento infantil
(Ferdinand, van der Ende & Verhulst, 2007a; 2007b). Estes autores relataram que alguns
comportamentos tendem a ser mais bem avaliados por pais, por exemplo comportamentos
autoagressivos, enquanto outros autores descrevem maiores indicadores gerais de
comportamento de internalização no relato parental do que de professores (Grietens &
cols. 2003). Mas tanto a descrição de indicadores de problemas de comportamento relatado
por pais como por professores tiveram importante correlação com o diagnóstico clínico de
problemas comportamentais (Ferdinand & cols., 2007a; 2007b). Nesse sentido, os autores
reforçam a importância de múltiplos informantes sobre o desenvolvimento infantil.
No estudo de percepção dos pais quanto ao perfil comportamental de crianças,
comparando um grupo com enurese durante o sono e outro de crianças encaminhadas
para atendimento psicológico por problemas de desempenho escolar e social, as
crianças com enurese obtiveram o escore médio de internalização classificado como
grupo clínico e externalização com escore médio de grupo não clínico. No entanto, as
crianças encaminhadas tiveram escores de grupo clínico nas duas categorias, indicando
comorbidade (Santos & Silvares, 2006).
Comparando por sexo, as queixas dos meninos estão mais relacionadas a
comportamentos de externalização, e as queixas das meninas a comportamentos de
internalização. Os comportamentos de externalização aparecem no ambiente e atrapalham
quem está com esta criança. Já os comportamentos de internalização referem-se a
comportamentos considerados problemáticos, mas não influenciam diretamente o
ambiente, restringindo-se ao mundo interno da criança, razão pela qual muitas vezes
passam despercebidos pelos cuidadores (Merg, 2008).
Considerando a importância de analisar os problemas de comportamento a partir
de dupla perspectiva – de pais e professores –, o presente estudo teve como objetivo
geral investigar quantos alunos de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental de uma escola
pública de Porto Alegre apresentam indicadores de problemas de comportamento, além
de comparar a avaliação realizada pelos pais e pelas professoras das turmas dessas
crianças. Também se buscou comparar estes indicadores de problemas por sexo das
crianças, assim como investigar a incidência de comorbidade dos dois problemas. Este
estudo justifica-se porque, no Brasil, ainda se conhece pouco sobre a ocorrência de
problemas de saúde mental infantil (Assis & cols., 2009). Nos últimos anos, verificase nas escolas uma crescente preocupação quanto às manifestações de agressividade e
violência apresentadas por alunos de diferentes níveis de ensino (Picado & Rose, 2009).
Além disso, as diferentes perspectivas de pais e professores sobre a saúde mental são
pouco debatidas no país (Assis & cols., 2009).
72
Aletheia 33, set./dez. 2010
Método
Delineamento
O delineamento utilizado para este estudo foi o levantamento quantitativo dos
casos (Laville & Dionne, 1999). A finalidade desse tipo de delineamento é descrever
quantitativamente tendências, atitudes ou opiniões de uma amostra da população
(Creswell, 2007). No presente estudo, o objetivo foi investigar e compararar os problemas
de comportamento infantil de acordo com pais e professores.
Participantes
Participaram deste estudo pais e professores de 88 crianças de uma escola pública
de Porto Alegre/RS. Foram convidados a participar os pais dos 100 alunos de 1ª a 4ª séries
do Ensino Fundamental. Dos alunos participantes, 19 (22%) frequentavam a 1ª série, 22
(25%) são alunos da 2ª série, 25 (28%), da 3ª série e 22 (25%), da 4ª série. A idade das
crianças variou entre seis anos e meio e onze anos e três meses, e a média é de oito anos e
dez meses. Cada uma destas turmas está sob responsabilidade de uma mesma professora.
Dessa maneira, o estudo contou com apenas quatro professoras avaliando 88 alunos. Na
1ª série a idade média é de sete anos; na 2ª série, é de oito anos e um mês; na 3ª série, é
de nove anos e meio; e, na 4ª série, é de dez anos e quatro meses. O motivo pela diferença
ser maior entre a 2ª e a 3ª séries é explicado pela mudança curricular ocorrida na escola
em 2008. Até 2008 os alunos ingressavam aos sete anos de idade na 1ª série para fazerem
o Ensino Fundamental em oito anos. Atualmente os alunos ingressam aos seis anos para
completarem o Ensino Fundamental em nove anos. Dos 88 alunos participantes, 53 (60%)
são meninos e 35 (40%) são meninas.
Os responsáveis pelos alunos que responderam ao questionário são na sua maioria
as mães biológicas, 73 (83%). Os demais responsáveis participantes foram 12 (14%) pais
biológicos, uma (1%) mãe adotiva, uma tia-avó (1%) e uma avó (1%).1
A escola participante do estudo tem como sorteio público sua única forma de
ingresso, tornando os níveis de escolaridade dos responsáveis e o nível socioeconômico
das famílias bastante variados.
Também participaram deste estudo quatro professoras polivalentes (termo usado na
escola para definir as pedagogas regentes/responsáveis pelas turmas das séries iniciais do
Ensino Fundamental). A idade média das professoras participantes era de 28 anos.
Instrumentos
Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram:
1. Inventário de Comportamento da Infância e Adolescência (adaptação em
português do Child Behavior Checklist – CBCL – Achenbach, 1991): questionário
auto aplicado, que tem versão para pais e uma para professores (chamado de TRF –
Relatório para Professores), com 118 itens, que avalia competência social e problemas
1
Embora em alguns casos o responsável pela criança não seja pai ou mãe, optou-se por chamar todos os que
responderam ao questionário de pais durante o texto para facilitar a fluência da leitura.
Aletheia 33, set./dez. 2010
73
de comportamento a partir de informações fornecidas por adultos. Já foi traduzido em 55
idiomas, sendo que a versão brasileira foi validada por Bordin, Mari e Caeiro em 1995.
Este instrumento é mundialmente utilizado para identificar problemas de saúde mental
em crianças e adolescentes a partir de informações dos pais (Duarte & Bordin, 2000) e
professores. O CBCL agrupa as respostas dos questionários em dois âmbitos principais:
internalização e externalização (Salvo, Silvares & Toni, 2005). Foi utilizado, como ponto
de corte, até 59 pontos como grupo não clínico, de 60 a 64, grupo limítrofe, e de 65 pontos
em diante, o grupo clínico, nas escalas dos problemas de internalização e externalização.
Para fins de redução de dados, Achenbach (1991) sugere que as crianças classificadas no
grupo limítrofe sejam incluídas no grupo clínico.
2. Ficha de Dados Demográficos da Família: Os pais preencheram também uma
ficha de dados demográficos da família – que avaliou características como idade, sexo,
escolaridade da criança e dados do responsável ou cuidador principal, como idade, sexo,
escolaridade, profissão.
3. Ficha de Dados Demográficos do Professor: Avaliou formação, tempo na
profissão, carga horária, número de alunos por sala de aula.
Procedimentos
Em uma reunião de pais das séries iniciais do Ensino Fundamental, a pesquisadora
apresentou o estudo e o questionário explicando a importância da participação de todos.
Cada responsável recebeu um envelope constando uma apresentação do projeto, o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido e uma ficha de dados demográficos dos alunos e
do cuidador. Os que não estavam presentes na reunião receberam os envelopes dentro
da agenda dos filhos. Após um mês, a pesquisadora informou, via agenda dos alunos,
que estaria finalizando o recebimento dos materiais distribuídos. A adesão de 88% pode
justificar-se pelo fato do estudo viabilizar uma contribuição para o desenvolvimento
de seus filhos, ao identificar eventuais problemas de comportamento nas crianças e
encaminhá-las para atendimento especializado, quando necessário.
Após o retorno de 88 questionários, as professoras polivalentes, que passam 20
horas por semana com os estudantes em sala de aula, receberam questionários referentes
a cada um dos seus alunos. Cada uma delas recebeu um envelope, onde constavam os
questionários identificando qual aluno estaria sendo avaliado. As professoras também
preencheram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e Ficha de Dados
Demográficos. O preenchimento do instrumento foi realizado individualmente. A
professora respondeu de acordo com o comportamento de uma determinada criança
por vez. A identificação das crianças foi necessária porque posteriormente, na coleta de
dados, foi feita a comparação com os dados obtidos com os pais do respectivo aluno. Nos
resultados da pesquisa, nenhum nome foi citado, pois o objetivo geral do estudo era fazer
um levantamento geral dos indicadores de problemas de comportamento das crianças.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS (processo 2009053), em
conformidade com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde Ministério
da Saúde. A escola tem uma Comissão de Pesquisa que também foi consultada antes do
início da atividade.
74
Aletheia 33, set./dez. 2010
Análise de dados
A estatística descritiva foi utilizada para caracterização dos participantes. Para análise
de dados, foi utilizado o software Assessment Data Manager (ADM), que acompanha
o kit do Inventário de Comportamento da Infância e Adolescência (Achenbach, 1991).
Os dados dos pais e dos professores foram analisados por meio do software Statistical
Package for the Social Sciences – SPSS 16.
Resultados e discussão
A Tabela 1 apresenta uma descrição geral dos dados obtidos nos questionários
respondidos pelos pais e pelos professores das crianças. Entre os pais, os indicadores
de internalização ficaram em torno de 33%, e de externalização, 23%. A ausência de
indicadores de internalização ficou próximo aos 55% e de externalização, 66%. Borsa
e Nunes (2008) corroboram com a indicação de ausência de externalização de 67,8%,
mas apontam os demais indicadores diferentes, sendo 25,3% das crianças como grupo
clínico e 49,3% como não clínico para internalização e 16,4% para grupo clínico de
externalização.
Tabela 1 – Incidência e frequência de problemas de comportamento relatados por pais e professoras (n=88).
Indicadores
Pais (CBCL)
Professoras (TRF)
Ausente
48 (54,5%)
68 (77%)
Grupo Clínico
40(46%)
20 (23,5%)
Ausente
58 (66%)
69 (78%)
Grupo Clínico
30 (34%)
19 (22%)
Internalização
Externalização
Foi realizado o teste Kappa para verificar a concordância entre pais e professoras
nos indicadores de internalização e externalização. A concordância para indicadores de
externalização foi significativa (p<0,01), embora ainda seja considerada baixa segundo
os critérios de Landis e Koch (1977)2. Não houve concordância quanto aos indicadores
de internalização, como pode ser observado na Tabela 2.
2
Os critérios de Landis & Koch (1977) são: Kappa <0=não há concordância; entre 0 e 0.19 –concordância
pobre; entre 0.20 e 0.39 – concordância baixa; entre 0.40 e 0.59 – concordância moderada; entre 0.60 e 0.79
– concordância substancial; entre 0.80 e 1.00 – concordância quase perfeita.
Aletheia 33, set./dez. 2010
75
Tabela 2 – Incidência média, desvio padrão, Kappa e nível de significância de indicadores de internalização e
externalização relatados por pais e professoras (N=88).
Pais (CBCL)
Professoras (TRF)
Kappa
M
Dp
m
Dp
Internalização
57,64
10,17
51,82
10,51
0,14
0,14
Externalização
54,76
11,71
53,14
10,19
0,25
0,01
p<
A diferença na avaliação das professoras e dos pais pode ser devido à convivência
direta com muitas crianças ao longo de anos e os parâmetros normativos que acabam por
utilizar ao comparar indivíduos, podendo ser restritivas, tendo em vista que as regras da
escola acabam por reduzir a variabilidade de comportamento dos alunos. Já no contexto
familiar, é, em geral, feito por alguém que convive com um número bem menor de
crianças comparado a uma professora, ocasionando maior probabilidade de considerar
desviante aquela criança cujas atitudes não se enquadram no padrão esperado. Em
contrapartida permite que se observem melhor as nuances que escapam aos professores,
como manifestações de internalização mais sutis (Bolsoni-Silva & cols., 2006), como
encontrado no presente estudo.
A média das respostas dos pais em relação ao comportamento das crianças foi,
em geral, mais alta do que as relatadas pelos professores. Esse resultado discorda com a
literatura que aponta que as crianças com problemas de comportamento têm dificuldade de
lidar com desafios interpessoais e esses são muito mais presentes no ambiente escolar que
na família. Isso poderia gerar uma avaliação aparentemente mais severa dos professores
do que dos pais (Bolsoni-Silva & cols., 2006).
Na Tabela 3 são apresentadas as análises de correlação de Pearson que foram
realizadas a fim de examinar as comorbidades entre os indicadores de problemas de
internalização e de externalização. Os resultados encontrados indicaram que, segundo os
pais, há 75% de chance de haver a comorbidade, pois as duas variáveis estão fortemente
associadas (p<0,05). Já as professoras indicam uma incidência menor, mas ainda
significativa de 25% (p<0,001).
Tabela 3 – Correlação entre os indicadores de problemas de internalização e problemas de externalização
segundo pais e professoras.
1.
2.
3.
4.
1.Internalização CBCL
-
0,75**
0,26**
0,31**
2.Externalização CBCL
0,75**
-
0,06
0,48**
3.Internalização TRF
0,26**
0,06
-
0,25*
4.Internalização TRF
0,31**
0,48**
0,25*
-
*p ≤0,001 ** p≤0,05
76
Aletheia 33, set./dez. 2010
O presente estudo também investigou se havia diferenças entre os indicadores
de internalização e externalização de acordo com sexo da criança. A Tabela 4
apresenta os dados obtidos na Tabela 1 separados por sexo da criança. Os indicadores
de problemas de internalização, segundo os pais, são mais incidentes nos meninos
(49%) do que nas meninas (40%). Já os professores, concordando com a literatura
(Assis & cols., 2009; Merg, 2008) apontam mais meninas no grupo clínico (29%),
contra 19% nos indicadores dos meninos. As professoras e os pais concordam que
os meninos apresentam mais indicadores de problemas de externalização, 38%
(segundo os pais) e 24% (de acordo com os professores) do que as meninas (18%
e 17%, respectivamente). Tal dado pode ser justificado na literatura pelo fato de a
criança assimilar os valores e atitudes da cultura em que vive de que o homem seja
forte, independente, agressivo e dominante e a mulher dependente, sensível e afetuosa
(Frigerio & cols., 2004; Merg, 2008).
Tabela 4 – Incidência e frequência de problemas de comportamento relatados por pais e professoras nas avaliações em meninos e meninas.
Indicadores
Pais (CBCL)
Professoras (TRF)
Meninos*
Meninas**
Meninos*
Meninas**
Ausente
27 (51%)
21 (60%)
43 (81%)
25 (72%)
Grupo Clínico
26 (49%)
14 (40%)
10 (19%)
10 (29%)
Ausente
33 (62%)
25 (72%)
40 (76%)
29 (83%)
Grupo Clínico
20 (38%)
10 (18%)
13 (24%)
6 (17%)
Internalização
Externalização
* n=53; **n=35
Foi realizado um teste t de amostras independentes para comparar as diferenças
de sexo das crianças nos indicadores de internalização e externalização (Tabela
5). A diferença não foi significativa entre meninas e meninos. Houve apenas uma
tendência marginalmente significativa (p≤0,072) de que os meninos tenham mais
indicadores de problemas de comportamento externalizante que as meninas.
Não foi realizada a correlação de Pearson por sexo porque não houve diferença
significativa na incidência de indicadores de problemas de comportamento entre
meninos e meninas.
Aletheia 33, set./dez. 2010
77
Tabela 5 – Incidência média, desvio padrão e nível de significância de indicadores de internalização e externalização em meninos e meninas.
Internalização
Pais (CBCL)
Externalização
Pais (CBCL)
Internalização
Professoras (TRF)
Externalização
Professoras (TRF)
Sexo
n
m
Dp
F
p
Feminino
35
56,48
9,066
1,383
0,370
Masculino
53
58,41
10,86
Feminino
35
52,37
11,303
Masculino
53
56,33
11,809
Feminino
35
52,65
10,599
Masculino
53
51,28
10,519
Feminino
35
50,74
8,965
Masculino
53
54,73
10,709
0,387
0,001
0,118
0,120
0,001
0,552
0,551
0,075
0,062
0,072
Os achados na literatura sobre comparações de sexo sugerem que os pais costumam
estar mais atentos às manifestações internalizantes de suas filhas, enquanto que os
professores tendem a ressaltar mais manifestações externalizantes dos alunos do sexo
masculino (Bolsoni-Silva & cols., 2006) o que discorda parcialmente então com os
indicadores encontrados no presente estudo. Os pais ressaltaram mais indicadores de
problemas, tanto de internalização quanto de externalização nos meninos, mas a diferença
não foi significativa.
As professoras também não apresentaram diferença significativa entre meninos
e meninas (apenas uma tendência nesse sentido), o que pode levar a refletir sobre a
literatura que afirma que os professores percebem e se preocupam mais com os sinais
de externalização do que os de internalização, que normalmente acometem mais os
meninos, pois geram mais problemas imediatos no ambiente escolar (Bolsoni-Silva
& cols., 2006; Frigerio & cols., 2004; Newcombe, 1999; Merg, 2008;).
De acordo com o DSM IV (APA, 1994), os problemas de atenção e
comportamento desafiador são bem mais frequentes no sexo masculino. Segundo
Crick, Bigbee e Howes (1996), meninos e meninas podem apresentar agressividade,
mas a evidenciam de formas diferentes. Os meninos demonstram uma agressão mais
aberta (chutes e empurrões) e as meninas tendem a envolver-se em formas mais sutis
de agressão, indireta ou psicológica (espalhar rumores, recusa de amizade, excluir
alguém do grupo). Este tipo de agressão relacional pode acontecer sem que os adultos
consigam perceber, motivo pelo qual os problemas de externalização tendem a ser
menos relatados em meninas.
Considerações finais
O presente estudo teve como objetivo geral investigar, segundo os pais, quantos
alunos de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental de uma escola pública de Porto Alegre
78
Aletheia 33, set./dez. 2010
apresentavam indicadores de problemas de comportamento, bem como comparar com
a avaliação realizada pelas professoras das turmas dessas crianças. Foram considerados
tanto os indicadores de problemas de comportamento de externalização como os de
internalização. Também se avaliou se fatores como sexo da criança e série em que estava
na escola apresentavam diferençam em tais indicadores.
No Brasil, ainda é escasso o número de trabalhos sobre a ocorrência de problemas
de saúde mental infantil, sendo que especificamente as diferenças de perspectivas de
pais e professores sobre a saúde mental são pouco debatidas no país (Assis & cols.,
2009). Verifica-se nas escolas uma crescente preocupação quanto às manifestações de
agressividade e violência apresentadas por alunos de diferentes níveis de ensino (Picado
& Rose, 2009). Já em relação aos problemas de internalização que são comportamentos
considerados problemáticos, mas que se restringem ao mundo interno da criança, não
influenciando o ambiente diretamente, podem, por isso, passar despercebidos pelos
cuidadores (Merg, 2008).
De forma geral, os principais resultados corroboraram a literatura, que destaca
que pais relatam mais problemas de internalização, por terem mais tempo para
perceber sutis características dos filhos (Bolsoni-Silva & cols., 2006), e professores
apontam mais os comportamentos de externalização, por serem os que prejudicam
o ambiente escolar. Só houve diferença significativa na comparação entre pais e
professoras nos indicadores de internalização, o que corrobora a literatura que afirma
que no contexto familiar, em geral, a observação permite que presencie as nuances
que escapam aos professores, como manifestações internalizantes mais sutis (BolsoniSilva & cols., 2006), além de também poder ser consideradas a história de vida e
contexto familiar de cada criança. Além disso, se sabe que as discordâncias podem
também refletir a subjetividade de cada participante, a variabilidade do repertório
do comportamento infantil, algumas variações e erros inerentes aos instrumentos
utilizados (Grietens & cols. 2003).
Um dado alarmante e sobre o qual não foi encontrado parâmetro na literatura
foi o alto índice de comorbidades entre problemas de internalização e externalização.
Segundo as professoras, a comorbidade aconteceu em 25% dos casos e, para os pais, o
indicador foi muito maior, apresentando 75% de comorbidade. Outros estudos devem
ser realizados para confirmar este dado.
Em relação ao sexo da criança houve uma diferença apenas marginalmente
significativa, na direção apontada pela literatura, de que durante os últimos 30 anos, os
meninos têm o maior número de encaminhamento para atendimento psicológico, por
apresentarem, principalmente, problemas de comportamento e aprendizagem, detectado,
na maior parte das vezes, pela escola (Merg, 2008). Ressalta-se que o presente estudo
não teve um número equilibrado de participantes de sexos opostos, sendo 53 (60%) de
meninos e 35 (40%) de meninas. Novos estudos podem ser realizados com a amostra
com o mesmo número para ambos os sexos. Além disso, é provável que, com amostras
maiores, seja possível detectar melhor eventuais diferenças entre os grupos, o que deve
ser realizado por outras pesquisas. Novas investigações podem também investigar
diferenças em relação à série das crianças, pois a literatura aponta que o momento de
Aletheia 33, set./dez. 2010
79
entrada na escola pode gerar um aumento dos níveis de estresse e perturbação emocional
nas crianças (Correia & Pinto, 2008; Oliveira & cols., 2002).
A principal limitação do presente estudo é que a triagem fornecida pelo
Inventário de Comportamento da Infância e Adolescência (Child Behavior Checklist
– CBCL – Achenbach, 1991) versão para pais e professores (chamado de TRF –
Relatório para Professores), não é diagnóstica, pois aponta apenas indicadores de
problemas de comportamento. Seriam necessários estudos mais complexos, com
diferentes instrumentos de avaliação, para confirmar a suspeita de problemas de
comportamento.
Um ponto forte do presente estudo foi a triangulação dos dados. Quando se fala
em pesquisa com crianças, há que se buscar o maior número de informantes para se ter
uma caracterização mais completa. Por isso os instrumentos de avaliação costumam ter
versões para o cuidador, o professor ou a própria criança (Duarte & Bordin, 2000). Estudos
semelhantes, comparando as respostas de pais e professores quanto ao comportamento
dos alunos, foram encontrados apenas na literatura internacional (Ferdinand & cols.
2007a; 2007b; Frigerio & cols., 2004) e são extremamente necessários, considerando
que nos primeiros anos de vida da criança, a família é o contexto mais importante. As
pontes estabelecidas entre a família e a escola complementam e dão continuidade à
atenção com as crianças (Merg, 2008).
Ainda é necessário maior investimento em estudos que envolvam as famílias
e as escolas das crianças, que integrem dados através de entrevistas, observações
e instrumentos de avaliação a partir de um ponto de vista (Santos & Silvares,
2006). Espera-se, com este estudo, colaborar para um maior conhecimento sobre
o desenvolvimento infantil e sobre a integração entre a família e a escola. Essas
informações podem contribuir para planejamento de intervenções em problemas de
comportamento infantil, ao promover a saúde mental das crianças.
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_____________________________
Recebido em 02/07/2010
Aceito em 29/09/2011
Juliana Rigon Pedrini: Licenciada em Música (UFRGS), Especialista em Transtornos do Desenvolvimento
(UFRGS), Docente do Colégio de Aplicação da UFRGS.
Giana Bitencourt Frizzo: Psicóloga, Doutora em Psicologia (UFRGS) e Docente do Instituto de Psicologia
da UFRGS.
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 33, set./dez. 2010
83
Aletheia 33, p.84-94,set/dez. 2010
Escrever uma vida: biografia e acontecimento
Sara Hartmann
Tania Mara Galli Fonseca
Resumo: Este artigo discute a temática da escrita de vida, a partir de um campo de problematizações
em que ela difere de uma ordenação dos signos que aparecem ao pesquisador. Integra a experiência de
escrita com vidas de arquivo do projeto de pesquisa “Potência Clínica das Memórias da Loucura”, cujo
campo é o Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre.
A investigação teórica do conceito de acontecimento, com Gilles Deleuze, faz da escrita uma seta
para o que mais pode um corpo, uma pesquisa, uma linguagem. A tarefa que se coloca é a de extrair
de uma vida suas potencialidades, na aspiração de ser justo com o que dela insiste, e resiste em ser
significado. É assim que se encontra o biografema, ferramenta de escrita de vida proposta por Roland
Barthes, que sugere uma procura pelos pormenores injustificáveis de uma existência. É contar o que
dela sobrevive à tentação de torná-la inteira, total, autoexplicativa. Procura traduzir-se, assim, a vida
em estado de criação, enquanto índice de singularidades que ultrapassam a existência pessoal.
Palavras-chave: Escrita, Hospital Psiquiátrico, Acontecimento, Biografema.
To write a life: Happening (événement) and biographeme
Abstract: This article discusses the theme of life writing, in a field of problematization in which
it differs from an ordering of signs that emerges to the researcher. It integrates the experience of
writing lives of archive, in the research project “Clinical Potency of Memoirs of Madness”, whose
field is the Collection of the Creativity Workshop in São Pedro Psychiatric Hospital, in Porto Alegre.
The theoretical investigation on the concept of happenning (événement), by Gilles Deleuze, makes
of writing an arrow pointing to what else can a body, a research, a language. The task that arises is
that of extracting of a life its potential, on the aspiration of being fair to what insists, and resists to
be signified. It is in such a way that we find the biographems, Roland Barthes’ life writing tool, that
suggests a search for the unjustifiable details of an existence. To tell what survives to the temptation
of making it fulfilled, total, self-explanatory. We seek to translate, therefore, life in creation state,
such as an index of singularities that goes beyond personal existence.
Keywords: Writing, Psychiatric Hospital, Happening (Événement), Biographeme.
Campo problemático
O que dizer de uma vida? Essa é a pergunta que movimenta a escrever, desde
nosso encontro com certas vidas que, insistentemente, escrevem-se ou são escritas
nos registros de um hospital psiquiátrico1. Trata-se de vidas que habitam papéis e
1
O projeto de pesquisa “Potência Clínica das Memórias da Loucura”, do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tem como eixo a temática de
investigação de vidas, arte e loucura. Ele se desenvolve junto ao Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital
Psiquiátrico São Pedro, em torno de obras expressivas de moradores ou antigos moradores do hospital. O
projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (CEP-PSICO), sob o Protocolo de Pesquisa número 2010021. Este artigo, ainda, deriva
da dissertação de mestrado “Vida por um fio de escrita”, defendida por Sara Hartmann em abril de 2011, sob
orientação de Tania Mara Galli Fonseca.
algumas fotografias, em um conjunto de registros traçado a diversas mãos: aquelas
dos próprios internos ao hospital, de médicos, de enfermeiros, de psicólogos, de
estagiários. É no Acervo da Oficina de Criatividade, portanto, que esses documentos
foram reunidos, a fim de preservar a produção ali realizada desde 1990 até hoje – a
qual já soma aproximadamente dez mil trabalhos –, e de garantir a possibilidade de
exploração de sua potência expressiva. Para tanto, o Acervo conta ainda com diários de
registro, fotografias de atividades, trabalhos acadêmicos, notícias de jornal e convites
de exposições. Foi a partir da afetação com as produções dos internos que passamos
a nos interessar por suas histórias de vida, em busca de possíveis correspondências
entre vidas e obras. Os prontuários de internação, assim, passaram a compor também
a pesquisa, sem que com isso fosse possível assentar nosso inquietante trânsito entre
esquecimento e memória. Já que, a princípio, toda vida escrita parece estar envolta
por uma neblina densa, a partir da qual conclusões soam abusivas. Mas eis que
descobrimos, aos poucos, questões pertinentes ao ambiente em que se vasculha, as
quais ultrapassam as vidas pessoais. Estamos mergulhados em um arquivo que inclui,
portanto, produções dessas vidas, sabendo que, dali em diante, será como doar calor
a um corpo, na aspiração de dizer o que ele nos provocou. As vidas do arquivo já nos
arrastaram, e cremos que podem arrastar os sentidos de quem delas se aproxima.
Pensamos as vidas, desde esse encontro, como compósitos de signos soltos,
os quais invocam planos possíveis de serem compartilhados. Trata-se de um espaço
entrevidas, portanto, o que produz rumor. É o que faz uma vida – esta ou aquela,
qualquer e irredutível – deixar rastros atrás de si. Sabemos estar longe, e cada vez mais
perto, de algo que não deixa de ser uma passagem, já que dessas existências tomamos
o que pôde proliferar em nós. Elas, por sua vez, vão nos tomando a imaginação,
prenhes de muitas outras. A certo ponto, perguntamo-nos se não se trata dos possíveis
de uma qualquer vida, e não de muitas vidas diferentes.
Ainda, basta dizer que entre as altas paredes do hospital encontramos muitas
sombras inexploradas. Investigá-las nos lança em espaços em branco, procurando
povoar aquilo que habita os registros. Dedicamo-nos a efeitos de real: “é uma cena
pintada que a linguagem assume” (Barthes, 2004, p.186). Quando tomar a realidade
como aquilo que se apresenta, numa ideia de mundo concreto e dado, não passaria
de resistência ao sentido. Acreditamos que o que vive pode significar e variar.
Toda vida que se quer escrever, assim, precisa ser inflada a partir de seus rastros.
São traços com os quais se escolhe inscrever, organizar, justificar, ilustrar, irromper
ou reviver. A maneira de proceder vem responder à pergunta: o que caberá aos idos?
Questão mais espinhenta, quanto o que se vai fazer não contará com uma voz de
retorno. Suas vidas servirão, assim espera-se, para abrir caminho entre aquelas de
um jeito ou de outro escarnecidas, encerradas.
Para Foucault (2006), a escrita de vidas infames formava cristais de acesso a
mundos. Algo lhe parecia insistir sob palavras lisas como pedra. Aqui, escolhemos
fustigar uma tranquilidade tacitamente assumida, segundo a qual o que está dito
fica sem pronunciação póstuma. São agitações demais em um encontro para que
pudéssemos passar os olhos e seguir, sem parada. Dali não se pode sair incólume,
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já que não é de se esperar pés sem marcas após uma caminhada sobre pedregulhos.
Ou escolhe-se fazer outra coisa.
Adentraremos, para tanto, algumas temáticas que foram construindo a presente
reflexão. Trataremos de experimentar campos sem procurar explicitar, de antemão,
todas as conexões entre eles. Ao final, será proposta a estratégia metodológica
de escrita de vida chamada biografema, a partir da qual intentaremos reunir as
contribuições desenvolvidas ao longo do artigo. Convidamos ao leitor para esse (des)
caminho, que só tem como guia a pertinência ao tema da escrita, desde produções
com a loucura e a desrazão2.
Acontecimento
O encontro com vidas de arquivo faz-nos alargar a ideia de tempo para além
da cronologia. Surge um tempo irregular, povoado de intensidades, algo das quais
passa a nos aparecer mesmo longe dos papéis do hospital. Isto, do qual não sabemos
o nome, toca o pensamento e sugere quanto ao que pode ser pensado com tais vidas.
Já não se é o mesmo: as existências envolvidas vão sendo recolocadas em relação a
uma referência que se move. Deleuze (2007), em seu exercício retumbante em torno
de uma lógica do sentido, deixa pistas que tomamos em nosso caminho.
Assim, deparamo-nos com a fórmula segundo a qual o que acontece não remete
apenas a fatos e horas dizíveis. Tomamos alguns simples indícios: como situar o início
e o fim de uma transformação que se dá em nossa vida? Como explicar o encontro
com certo objeto que, nunca antes visto, faz retornar uma fraca memória? Alguns
fatos parecem constituir uma bolsa paralela à organização temporal em etapas. Todo
acontecimento, nesse sentido, é uma névoa, uma história embrulhada. Não se pega
com as mãos, nunca, a ação do passar-se. Passa-se por ela, ou melhor, algo passa
através nós, e imediatamente segue uma linha que nos ultrapassa.
Trata-se de “uma parte sombria e secreta, que não para de se subtrair ou de se
acrescentar a sua atualização” (Deleuze, 1992, p.202), assim como a fugidia liberação
de fumaça para cada fibra de madeira queimada. Assim, é como se para cada estado
de corpos dado, algo tivesse se guardado, e seguisse em sobrevoo àquilo que se
atualizou. Impossível de ser esgotada, em cada efetuação, toda a potência de certo
estado. Por isso, essa parte do acontecimento adquire caráter imaterial e incorporal,
no que é pura reserva em relação à efetuação; no que aponta para o que mais pode
um corpo, um estado de corpos, uma situação qualquer.
Só é possível, então, falar de uma vida enquanto toque no transcendental.
Vida impessoal, incapturável, que precisa ter seu tempo desenrolado. Havendo no
acontecimento uma parte que sua própria realização não basta para realizar, instaura2
Importante aqui distinguir esses dois termos, os quais reaparecerão ao longo do artigo. Para tal, valemo-nos
do trabalho de Pélbart (1989). A desrazão se refere a uma modalidade de experiência exterior à razão, e por
isso não contraditória a ela, mas com a qual uma comunicação não está excluída. A loucura, por sua vez, diz
respeito ao que foi trazido à intimidade objetivante do asilo. Saber esvaziado de seu conteúdo e desarmado de
seus poderes, que já não manifesta qualquer caráter inumano. Ele pode, assim, ser capturado. Nesse sentido,
a desrazão foi capturada como loucura.
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se uma duração, em que passado e futuro acompanham o presente. Um tempo próprio,
portanto, este do acontecimento: Aion3 infinitamente subdivisível, sempre já passado e
eternamente por vir. Tempo que se estende em linha reta, ilimitada nos dois sentidos,
percorrida constantemente por um instante aberto, de modo que não retorne senão o
tornar-se.
O que não se pode capturar, esta espécie de núcleo duro do acontecimento,
tomamos aqui como o que nos dá sinal e nos espera em direção ao que pode ser mais
potente. Convergir ao que ultrapassa a efetuação, aparece-nos enquanto abertura, mas
que só pode envolver destruição, no que concerne a formas já cimentadas de viver.
Acontecimento sempre fundado em algo, e muito grande para qualquer um. Impossível
desfazer-se dessa ambiguidade, desse crescimento em mão dupla, de maneira que
remontar o acontecimento envolveria, primeiro, não restringi-lo. Vislumbramos,
para a escrita a partir do acontecimento, a necessidade de uma linguagem hesitante e
fragmentada.
Linguagem que operaria como verbo no infinitivo, destacada das conjugações.
Que poderia dizer, simultaneamente, da efetuação em um corpo e do efeito incorporal
do acontecimento. Tomamos o exemplo escrever: envolve e nele está envolvido o ato
de escrita, os escreventes, os papéis rabiscados, ou seja, é o que se atualiza em cada um
desses elementos, e o que guarda ainda uma reserva em relação a cada um. O sentido
de um acontecimento é então o próprio acontecimento, ou seja, a expressão de algo que
vem à tona. O seu poder de gênese não respeita as formas estabelecidas, nem remete
o novo a alguma significação já dada. Mas coloca-se como algo que, a despeito de
todas as formas que encarna, e das quais depende, resta ainda como potencia de mais
efetuar e diferir.
Um acontecimento, assim, diz respeito mais ao devir do que aos estados. Ele
invoca o povo em um corpo, o múltiplo em cada um. Para Rajchman (1991, p.60), “o
acontecimento não chega nunca ao sujeito; é por isto que o sujeito se torna outro que aquele
que ele é”. Sabemos, assim, que quando vidas se esbarram, elas diferem em relação ao
que vinham sendo. Acontecer aponta às intensidades de cada ponto de um corpo criado
no contato. Nesse caso, contato entre as vidas escritas em arquivo e aquelas vidas leitoras/
pesquisadoras, que reescrevem a partir do que leem, não sem serem impulsionadas por
afetos provocados na leitura. Escrever uma vida, assim, não levará ao reconhecimento
de traços ou rostos, mas a um retraçar constante, em que caberá aos leitores posteriores,
ainda, um fechamento.
Toque indizível
Sempre o que passou, e ainda passará, a morte revela o impessoal da existência,
escapando a si mesma e aos homens. Nunca é experimentada agora. Em um texto
fino e forte, Deleuze (2002, p.12-13) assinala este momento em que “a vida do
3
Aion e Cronos são duas leituras do tempo. Em Cronos, o presente preenche o tempo: passado e futuro são
dimensões a ele relativas. No tempo Aion, passado e futuro insistem, o instante é instância que os percorre,
subdividindo o presente (cf. Deleuze, 2007, p.167-173).
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indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, mas singular, que desprende um puro
acontecimento, liberado dos acidentes da vida interior e da vida exterior”.
Na extremidade da morte de algumas das vidas com as quais nos ocupamos,
morte muitas vezes anunciada em diários de registro da oficina, há a abertura de
uma região de sentido. Aparecem aos poucos alguns personagens comovidos,
sejam trabalhadores, sejam internos do hospital, e retomam-se rituais cotidianos em
figurações de ausência que trazem à tona, mais do que uma individualidade, uma
certa força que parece persistir. É momento em que algo agarra as palavras, algo
que fez, com tais pessoas, uma passagem. Tomando da morte sua finura e peso, o
encontro com esses escritos aponta para a especificidade desse acontecimento que
nos toca, o de vidas que desaparecem deixando atrás de si o silêncio ou o grito,
mas nunca uma existência assentada e apaziguada.
Resta conosco um conjunto de traços, experimentações, derivações. Momento
sobre o qual ninguém se apodera, na proximidade e cercados da morte, quem
trava embate? O quê? É uma vida que toma ainda lugar, insistindo próxima ao
desaparecimento. Leva-nos a um campo o qual não tem a forma de uma consciência
sintética ou de uma identidade subjetiva. É porque há no que acontece algo mais
que toma lugar, que podemos ainda escrever essas vidas.
O que não é nem individual, nem pessoal, lembra Deleuze (2007), são as
emissões de singularidades. Os verdadeiros acontecimentos e as singularidades que
neles circulam são um momento de ser; o primeiro momento pré-individual, suposto
por todos os outros. Trata-se de alguma coisa que se destaca, com a propriedade
de capturar do pré-individual um pedaço de ser que é expressivo sendo pedaço, e
ainda não encerrado em um indivíduo. Os bebês são que provêm imagens dessas
singularidades, através de um sorriso, uma careta, um pedido que compõem com
o ar em que se colocam, sem estarem ligados a uma pessoa identificada.
Para a construção das individualidades, as singularidades serviriam de
princípio: cada indivíduo envolve um certo número de singularidades e exprime as
relações entre elas, fazendo-o em relação ao seu próprio corpo. Cria-se um corpo
com o mundo na individuação, valendo-se do que nele preexiste, sempre através
de uma atualização pela diferença.
Dramatização de forças a partir de uma espécie de ovo, reduto de instâncias
dinâmicas. Dele retira-se a matéria pré-individual, a fim de que se arme uma
individuação. Como condições da experiência, haveriam “intensidades puras
envolvidas numa profundidade, num spatium intensivo que preexiste a toda
qualidade assim como a todo extenso” (Deleuze, 2006, p.132). A individuação seria
intensiva, e a intensidade, diferença, de maneira que as diferenças de intensidade
entram em comunicação por um elemento precursor, indicador de caminho. Nessa
compreensão, o sujeito só pode ser larvar, ou seja, ainda um esboço, dormente de
possibilidades.
O núcleo duro do acontecimento é então uma porção irredutível de préindividual, que passa pela operação de individuação, sem ser efetiva ou totalmente
individuada. Desde o que toda vida é um processo de demolição, como já pontuamos,
e escreveu Fitzgerald (citado por Deleuze, 2007): em direção ao impessoal, à
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abertura, ao irredutível. Tratá-la diferente disso envolveria, necessariamente, um
cercamento; tratá-la desse modo desafia as formas de expressão da linguagem.
Experimentar com a linguagem
A escrita dessas vidas se situa no cruzamento entre linguagens de razão e desrazão.
Por um lado, há a escrita que se vale de um saber sobre o desvio identificado na
loucura, saber que procura afirmar sua posição através do exercício de determinadas
práticas. É o caso dos registros em que aparecem juízos sobre o valor deste ou daquele
comportamento, e que nos colocam frente ao desafio de não valorar, também nós,
seja o que é descrito, seja a posição desde a qual esse saber escreve. Por outro lado,
as produções dos internos fazem abalar os modos de enunciação de que fazem uso os
profissionais da saúde e também a pesquisa, de maneira a fazer passar, na escrita, algo
antes insuspeito, algo que toma lugar nas palavras a partir de um contato com a margem
do que possibilita os regimes de significação.
Podemos dizer, a esse respeito, que se trata de uma linguagem fazendo passagem
abaixo do sentido, quando signo, paixão e ação do corpo se confundem. As palavras
parecem ser capazes de atos diretos, de invasões sem mediação em relação aos corpos.
A vida, constantemente em risco. Toma lugar uma espécie de força subterrânea
incontrolável, diante da qual a palavra não recolhe ou exprime um efeito incorporal do
acontecimento, sendo que esse não se distingue de sua efetuação. Assim, são corpos
mergulhados à profundidade dos afetos, sem poder emergir através de alguma linha
que selecione esta ou aquela direção.
Procurando adentrar essa profundidade, vamos encontrar o reverso da organização
almejada pelos saberes sobre a loucura. São forças que abalam aquilo que se reconhece
como individualidade, provocando certa indistinção entre fazer uso da linguagem e
tomar carne pela palavra. Para muitos autores (Pélbart, 1989; Deleuze, 2007; Foucault,
2009), trata-se do que margeia e permite mesmo toda organização, um campo onde só há
as forças que tudo compõem. Dizendo de outra forma, em relação ao acontecimento: “O
pensamento nasce de uma paixão, no bordo da fissura. Mas se a sua fenda se aprofunda
e se agrava, se sua falha incorporal aí se vem encarnar, é então a superfície toda inteira,
e a possibilidade mesma de pensar, que se afunda no sem-fundo” (Rogozinsky, 1991,
p.76-77).
Quanto a essas produções, de todo modo, não se trata sempre de um espaço semfundo. Se por um lado são palavras e formas que invadem, e a impressão é de a vida
tornar-se um fio tênue, equilibrando-se nas folhas de desenho; por outro, é a própria
produção que parece lançar os corpos em algo que escapa à completa captura, ainda
que escape também com fragilidade. Muito particularmente, é o que pode ser percebido
em desenhos e escritas que colocam em questão práticas do próprio hospital, como
aquela que serve de denúncia ao embaralhamento entre nomes próprios e remédios
ingeridos4.
4
Aqui nos referimos aos trabalhos de Cenilda Ribeiro, interna falecida em 1999. Sua produção tematiza a vida
cotidiana do hospital e as práticas que ali tomam lugar. Cf. Hartmann (2011).
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Passamos a nos perguntar, então, que corpo tem sua potência de pensar efetuada
como um adoecer? Deleuze, sobre Nietzsche, diz que a doença lhe dá uma nova
causalidade, “um estilo em uma obra no lugar de uma mistura no corpo” (Deleuze,
2007, p.111). Nova causalidade, portanto, que inspira toda a obra e coinspira a vida. Ao
escrever com essas vidas, portanto, abre-se a nós o espaço de uma tomada de posição
em relação ao que lhes cabe, ao que significa seus trabalhos, a de que são capazes.
Espaço que se coloca em todo trabalho com vidas, e que não é exclusivo ao movimento
da pesquisa. De todo modo, é o perigo e a potência que envolve todo registro de uma
vida, na medida em que a escrita também se constitui como uma prática que tem efeitos
sobre os corpos dos quais escreve.
Sob outra perspectiva, perguntamo-nos ainda como escrever a partir da vertigem
em que se situam (e nos situam) as produções de internos de um hospital psiquiátrico.
Vertigem que é fonte de estranhamento, com o qual procuramos habitar o espaço
intervalar a que somos lançados. Espaço, em todo caso, topologicamente preenchido,
sem vazios de um ponto a outro, onde razão e desrazão não são extremos opostos, mas
condensações provisórias de forças. É assim que uma espécie de língua estrangeira
toma lugar, um tênue desligamento de que nos servimos para dizer tais vidas. Pois se
é possível habitar o rio do acontecimento, mergulhando em seu fluxo, é de onde se sai
com pedaços de vivência, fragmentos de estória. Impossível sobrevir sem esquecer e
transmutar.
Com Nietzsche (2005) e a inquietação pelas fissuras, invocamos ainda, em nosso
socorro, a potência da força a-histórica, impura e infiel ao montante historicista. Da
problematização do culto à história como possível engessamento do porvir, desponta
um movimento de cegueira e infidelidade como condição para um futuro vigoroso. É
o intempestivo: agir contra o tempo, e assim sobre o tempo, em favor de um tempo por
vir. Seria trabalhar a partir de acontecimentos que na história se atualizam, e que, eles
mesmos, fraturam também o tempo, em uma leitura que religa a história ao infinito.
Faz parte de nosso trabalho, ao escrever tais vidas, esquecer a afirmação pela
qual elas estão encerradas na infâmia e/ou na genialidade. Esquecer nesse sentido
nietzschiano, ou seja, o de deixar de afirmar algo que impera, de lançar-se em outra
direção, a fim de potencializar o que pode vir a ser. Assim, pretendemos nos desviar
do saber que se diz supra-histórico sobre a loucura, legitimado através de práticas
no hospital. Toma-se um ar à frente, em um movimento rápido que levanta poeira.
Anda-se em névoa, com a afirmação da vida através de algo singular; nem um abismo
indiferenciado, nem identidade reconhecida. Considerando, com Deleuze (2007),
cada vida como um lance de dados que faz parte de um mesmo lançar, fragmentado e
reformado em cada lance. A vida, assim, é digna de mais do que uma história encerrada.
Coloca-se, para nós, a necessidade de buscar novas formas para dizer novas vidas
que, em seus próprios modos de se fazerem, questionam toda significação já dada,
todo rebatimento em esquemas estabelecidos, todo modo de escrever e descrever
pela identificação e linearidade. Justamente ao fazerem mal-uso da linguagem, seja
valendo-se dela, seja através de atos que falam por si só, desafiando o que poderia,
com facilidade, ser dito dela.
90
Aletheia 33, set./dez. 2010
O biografema
A partir do corpus criado no contato com documentos como prontuários, diários
de registro, fotografias, desenhos e escritos, a experiência com os arquivos e ritmos
de vidas internas em uma espécie de interior faz suas trajetórias aparecerem fortes e
intrincadas. Cada incidente, nessas vidas, é justamente indizível como totalidade, e
escapa à possibilidade de integrar uma história encerrada de vida. Da mesma forma,
o acontecimento não é dizível, nem buscado em seu incorporal, se não provoca uma
linguagem a abalar-se em seu caráter explicativo.
Quando a pergunta é por ferramentas para contar uma vida, aparece Barthes, para
quem “os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo (...) cada peça se
basta, e no entanto ela nunca é mais do que o interstício de suas vizinhas” (Barthes, 2003,
p.108-110). Ganha valor a opacidade e a beatitude presentes em elementos singulares,
como um sorriso, uma flexão, o transcorrer de um dia, uma estação. O artigo indefinido
– um, uma, uns – é então uma espécie de índice, no caminho de uma vida que está em
toda parte, que é a potência completa.
Tratávamos de sublinhar a importância de uma linguagem inventada que avise
sempre do inexato, saboreando a distância entre as coisas e as palavras (Amarante, 2006).
Distância, justamente, encarnada e experimentada irredutivelmente na experiência da
desrazão. Uma língua junto a essas vidas, então, nunca será completamente pronunciável, e
sim, ruminada desde tal encontro irruptivo. Dá-se uma experiência do Fora5, estrangeiridade
como borda em que vida, obra e pensamento aparecem indiscerníveis. Riscar, resmungar,
chorar, correr essas vidas, são palavras-ações que emanam dos encontros, e para as quais
a escrita com essas vidas aponta.
No lugar, portanto, de fazer uma biografia dessas vidas, no sentido de uma escrita
que se pretende completa e explicativa, almejamos deixar fragmentos que sejam justos
ao que delas insiste. Já que a vida completa é inacessível e mesmo perigosa, pelo espaço
de uma interpretação que é dado a quem escreve. Além disso, o que seria mais árido
ao porvir do que fazer de vidas tão hesitantes, tão potentes, a pequena história de uma
perdição ou má-sorte, ou a monumental superação de uma dificuldade? Através de uma
língua hesitante, arejada, que possua frestas para a formação de outros rostos com novas
leituras, queremos que tais escritas possam ser mesmo infiéis a nós, justas apenas com
a potencialização da vida.
O biografema é justamente delineado por Barthes como escrita de vida que não
é redonda, interpretativa, fechada sobre si. Trata-se de fragmentos “cuja distinção e
mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos
epicuristas, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão” (Barthes, 2005, p.172).
Falar uma vida, portanto, que insiste como acontecimento. O sentido sendo o possível
expresso dos encontros. Sentido incapturável, muitas vezes, para quem escreve.
Na ambiguidade do acontecimento está sua face íntima que é, ao mesmo tempo,
impessoal. Experimentá-lo, portanto, envolve refazer para si um nascimento, a partir da
“intuição volitiva ou transmutação” (Deleuze, 2007, p.152) que se engendra. Ser filho
5
“Fora” enquanto espaço disforme, de forças não efetuadas, margem que tenciona o mundo formado.
Aletheia 33, set./dez. 2010
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de seus próprios acontecimentos: que mais do que viver como quem busca o que está
no que lhe acontece?
Vida, assim, não será um jogo em torno do que lhe falta. A desrazão, justamente,
deve reaparecer por sobre a forma da loucura, que quer encerrar as potencialidades de
existências submetidas aos mais duros regimes de significação. Essas vidas puderam
se lançar em espaços insuspeitados, em territórios que passaram a ser existenciais, a
despeito do empobrecimento em que consiste todo regime hospitalar. O esgotamento
e o vazio do enclausuramento não podem ser tomados de outro modo que não como
uma morte. Essa morte, todavia, deve ser encarada e povoada, na medida do possível,
a fim de impossibilitar que mais vidas sejam a ela submetidas. Aquelas que são
contadas, assim, apreendem-nos como os animais que povoam quem se ama. Tratamos
de ligar às nossas, as multiplicidades que elas encerram, fazendo penetrarem-se. Não
quaisquer, nem qualquer. Mas da vida aquilo uma, que insiste em singularidades. A
fim de tornar seus percursos menos aqueles caracterizados por infelicidades pessoais,
e mais como conjunto de potências singulares. Impossível, assim, escapar destas
palavras, a respeito do ator e a efetuação do acontecimento:
Esta efetuação cósmica, física, ele a duplica com uma outra, à sua maneira,
singularmente superficial, tanto mais nítida, cortante e pura por isso mesmo,
que vem delimitar a primeira, dela, libera uma linha abstrata e não guarda do
acontecimento senão o contorno e o esplendor (Deleuze 2007, p.153)
O viver, aqui, inseparável de uma força seletiva: no que acontece ele seleciona
o acontecimento puro. Liberar para cada coisa, portanto, sua “porção imaculada”, é
encarnar, viver essas vidas atravessando as salas, as fotografias, as horas. Perseguir
um rumor que se distende, e vir a cair no canto oposto. Em pedaços, levantar e tomar
ar, procurar-se. A viagem torna-se vertigem, e (re)torna casa.
Um amigo insinuante, a dizer “vê comigo, lê comigo” essas vidas e seus povos,
faz-se necessário (Bedin, 2008). O biografema pode se efetuar como uma companhia
tangível, que puxa linhas de alguém para abaixo do nariz de quem lê. Seu critério é a
paixão que abre o corpo, assim como um amigo ou amante ensina sem anunciar. As
vidas, cujo vislumbre em arquivo são sempre parciais, são meiamadas.
Leem-se e escrevem-se, portanto, as existências que são deslocadas a cada
encontro expressivo. Linhas de uma vida são lançadas desde o meio de um internamento,
que ainda assim é exterior. Que existências senão as que se debatem, ressuscitadas
desde as batalhas de expressão? Na esteira de um corpo em pedaços como as estrofes
de uma poesia que sustenta as palavras pesadas. Já que “o biografema nada mais é do
que uma anamnese factícia: aquela que eu atribuo ao autor que amo” (Barthes, 2003,
p.126), mistura-se prazer e esforço pela justeza de uma força.
Que dizer de desejar a ferida que se nasce para encarnar? Querer o indizível da
paixão que certa existência movimenta, até dizer o mínimo mais potente. A escrita
biografemática faz parte de um rumor, se afirma a dupla causalidade dos acontecimentos,
corporal e incorporal, como o que potencializa a vida, abala algo do entrave a uma
contraefetuação. Em que a doença não é apenas ausência. No ponto móvel e preciso em
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Aletheia 33, set./dez. 2010
que os acontecimentos se reúnem, em que se enseja operar transmutação. Transformarse dentro da incompletude de uma vida. Fazer aparecer o que só fica com as costas
voltadas. A ferida concernente às vidas, parte da fissura que cada um desenvolve ao
longo de sua existência, e que a cada um antecede, é o que nunca se possui.
Escrever a partir dessas considerações passou a ser um desafio do grupo de
pesquisa “Potência Clínica das Memórias da Loucura”, e da equipe do Acervo da
Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro. E ainda, uma espécie
de compromisso com o que estamos ajudando a fazer dessas vidas. O grupo tem
produzido diversos trabalhos, acadêmicos e não acadêmicos, a partir dessas vidas e suas
produções6.
Referências
Amarante, A. H. P. do (2006). Ética do acontecimento. Dissertação de Mestrado. Programa
de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre, RS.
Barthes, R. (2003). Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação
Liberdade.
Barthes, R. (2004). O efeito de real. Em: R. Barthes. Rumor da língua. São Paulo:
Martins Fontes.
Barthes, R. (2005). Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes.
Bedin, L. (2008). A vida em escrileitura: biografemas e o problema da biografia. Projeto
de Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
Deleuze, G. (1992). O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34.
Deleuze, G. (2002). A imanência: uma vida... Educação & Realidade, 27(2), 10-18.
Deleuze, G. (2006). O método da dramatização. Em: G. Deleuze (Org.), A ilha deserta:
e outros textos (pp.129-154). São Paulo: Iluminuras.
Deleuze, G. (2007). Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva.
Foucault, M. (2006). A vida dos homens infames. Em: Manoel Barros da Motta (Org.).
Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Foucault, M. (2009). História da Loucura: na idade clássica. São Paulo: Perspectiva.
Hartmann, S. (2011). Vida por um fio de escrita. Dissertação de mestrado. Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
Nietzsche, F. (2005). Segunda consideração intempestiva sobre a utilidade e os
inconvenientes da História para a vida. Em: F. Nietzsche. Escritos sobre história
(pp.67-178). São Paulo: Loyola.
Pélbart, P. P. (1989). Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São
Paulo: Editora Brasiliense.
Rajchman, J. (1991). Lógica do sentido, ética do acontecimento. Em: C. H. Escobar
6
Destacamos o trabalho realizado para a Exposição Eu Sou Você, incluindo o site eusouvoce.com.br e o
Catálogo Eu Sou Você, no prelo.
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93
(Org.), Dossier Deleuze (pp.56-61). Rio de Janeiro: Hólon Editorial.
Rogozinsky, J. (1991). A fissura do pensamento. Em: C. H. Escobar (Org.), Dossier
Deleuze (pp.73-77). Rio de Janeiro: Hólon Editorial.
_____________________________
Recebido em 17/09/2010
Aceito em 11/03/2011
Sara Hartmann: Psicóloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
Tania Mara Galli Fonseca: Psicóloga, professora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Social
e Institucional e de Informática Educativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto
Alegre, RS, Brasil.
Endereço para contato: [email protected]
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Aletheia 33, set./dez. 2010
Aletheia 33, p.95-108, set./dez. 2010
Priming semântico em crianças: efeitos da força de associação
semântica e frequência do alvo
Candice Steffen Holderbaum
Jerusa Fumagalli de Salles
Resumo: O priming semântico é um tipo de memória implícita que se caracteriza pelo efeito
facilitador de um estímulo precedente no processamento de um estímulo posterior, causado pela
relação semântica existente entre os dois. O objetivo deste estudo foi verificar relações entre
os efeitos de priming semântico em crianças de 3ª série do Ensino Fundamental e as variáveis
força de associação entre prime e alvo e frequência do alvo. Para isso, foram feitas correlações
entre estas variáveis. Os resultados mostraram que quanto maior a frequência de ocorrência da
palavra-alvo, mais rápidas e precisas eram as respostas das crianças na tarefa de decisão lexical.
Além disso, verificou-se uma fraca correlação negativa entre a força de associação prime-alvo e
as variáveis tempo de reação e precisão das respostas. Estes achados trazem implicações para a
construção e interpretação de tarefas/experimentos de avaliação de funções cognitivas com estímulos
linguísticos. Além disso, demonstram há necessidade de controlar e/ou manipular certas variáveis
psicolinguísticas dos estímulos para aumentar a qualidade dos experimentos.
Palavras-chave: Priming semântico; Força de associação; Frequência.
Semantic priming in children: Effects of prime-target association strength
and target frequency
Abstract: The semantic priming effect (SPE) can be understood as an improvement in performance
derived from the context, in which a target processing is facilitated by the preceding stimulus (prime)
because of a semantic association between them. This study aimed to verify if the association
strength between prime and target and the frequency of the target is related to semantic priming
effects found in third graders. For that, tests of correlations were done among these variables.
Data demonstrated negative correlation between frequency of the target and variables reaction
time and error percentage. Besides, it was also found a weak negative correlation between these
variables and the association strength. These findings bring implications to the construction and
interpretation of tasks and experiments that evaluate cognition with linguistic stimuli. Moreover,
they demonstrate the need to control or manipulate some psycholinguistic variables of the stimuli
in order to improve the quality of the experiments.
Keywords: Semantic priming; Association strength; Frequency.
Introdução
Diversos estudos têm relatado a influência de variáveis na existência e magnitude
do efeito de priming semântico em crianças e adultos (Busnello, Stein & Salles, 2008;
Nation & Snowling, 1999). O objetivo do presente estudo foi avaliar se as variáveis
frequência do alvo e força de associação semântica prime-alvo se correlacionavam ao
efeito de priming semântico encontrado em crianças estudantes da 3ª série do Ensino
Fundamental (Holderbaum, 2009; Holderbaum & Salles, no prelo).
Priming semântico
Aproximadamente quatro décadas se passaram desde que Meyer e Schvaneveldt
(1971) publicaram seu experimento sobre priming semântico. Deste período até a
presente data, diversos estudos foram feitos com o objetivo de avaliar o efeito de
priming semântico em crianças (Assink, Bergen, Teeseling & Knuijt, 2004; Betjemann &
Keenan, 2008; Hala, Pexman & Glenwright, 2007; Schvaneveldt, Ackerman & Semlear,
1977; Simpson & Lorsbach, 1983; Simpson & Lorsbach, 1987; Torkildsen, Syversen,
Simonsen, Moen & Lindgren, 2007), adultos (Basnight-Brown & Altarriba, 2007; Coney,
2002; Davenport & Potter, 2005; Frost & Bentin, 1992; Hutchison, 2007; McNamara,
1994; Nobre & McCarthy, 1995; Perea & Gotor, 1997; Perea & Rosa, 2002; Valdés,
Catena & Marí-Beffa, 2005) e idosos (Giffard, Laisney, Mézenge, Sayette, Eustache
& Desgranges, 2008; Hernandez, Costa, Juncadella, Sebastián-Gallés, & Reñé, 2008;
Rogers & Friedman, 2008).
O priming semântico ocorre quando um estímulo precedente (prime) facilita o
processamento de um estímulo posterior (alvo), devido a relação semântica existente entre
os dois (Salles, Jou & Stein, 2007). Essa facilitação é verificada atráves da diminuição do
tempo de reação e do aumento da precisão da resposta na tarefa (leitura ou decisão lexical)
na condição estímulos relacionados semanticamente, comparado a condição controle. O
cálculo desta facilitação, conhecida como magnitude do efeito de priming semântico, é
feito através da subtração dos valores encontrados na condição controle (estímulos não
relacionados semanticamente, prime não linguístico ou ausência de prime) e dos valores
da condição com prime relacionado.
Em um experimento típico de priming semântico, pares de estímulos linguísticos
são apresentados aos participantes. O primeiro estímulo do par (prime) em geral não
exige nenhuma resposta por parte do participante e pode estar em uma das três seguintes
condições: relacionado ao alvo (ex.: dia), não relacionado ao alvo (ex.: boi) ou neutro
(ex.: ####). O segundo estímulo é chamado de “alvo” (ex.: NOITE) e é sobre ele que é
realizada a resposta do experimento, na maioria das vezes nomeação ou decisão lexical
(Salles, Jou & Stein, 2007).
Na tarefa de nomeação, o participante é requisitado a ler o estímulo em voz alta,
enquanto na decisão lexical pede-se que o participante decida se o estímulo é uma palavra
real ou se é uma pseudopalavra. Em ambas as tarefas os participantes são instruídos a
responder o mais rápido possível. O intervalo de tempo entre a apresentação do prime e a
do alvo é chamado de Stimulus Onset Asynchrony (SOA). O SOA é uma das variáveis mais
importantes nos estudos sobre priming semântico, pois não só interfere nas características
do efeito, como também no processo subjacente a este efeito.
A seleção dos estímulos (alvos e/ou primes) utilizados nos experimentos tem um
papel determinante na qualidade dos resultados obtidos, uma vez que algumas variáveis
influenciam diretamente o acesso ao léxico (Parente & Salles, 2007; Salles & Parente,
2007), habilidade exigida na tarefa de decisão lexical usada neste estudo. Dentre as
características dos alvos que influenciam este processo destacar-se a familiaridade,
frequência de ocorrência na língua, concretude (Hillis, 2001; Janczura, 2007; Janczura,
Castilho, Rocha, Van Erven, & Huang, 2007; Parente & Salles, 2007), regularidade da
96
Aletheia 33, set./dez. 2010
relação grafema-fonema, extensão, quantidade de “vizinhança” estrutural (ortográfica)
ou semântica, ambiguidade semântica, e extensão.
Variável relacionada ao alvo: frequência de ocorrência
Considerando a frequência de ocorrência na língua, uma das variáveis investigadas
neste estudo, palavras com alta frequência são reconhecidas mais rápida e precisamente
do que as de baixa frequência (Parente & Salles, 2007). Isso pode ser explicado pelo fato
de que as primeiras possuem representações lexicais mais acessíveis do que as palavras
de baixa frequência (Hillis, 2001; Parente & Salles, 2007). Para o português brasileiro,
existem listas de frequência de ocorrência de palavras para crianças (Pinheiro, 1996)
e para adultos (Sardinha, 2003), que podem auxiliar na escolha de estímulos. Alguns
estudos inclusive já mostraram a relação entre frequência do alvo e o efeito de priming
semântico em outras tarefas de memória implícita (Busnello, Stein & Salles, 2008;
Oliveira & Janczura, 2004).
Busnello, Stein e Salles (2008) avaliaram o efeito de priming de identidade
subliminar (prime e o alvo são a mesma palavra, mas o primeiro é apresentado muito
rapidamente) em universitários brasileiros através de uma tarefa de decisão lexical e
demonstraram que as palavras com baixa frequência tiveram mais facilitação (maior
efeito de priming) do que palavras mais frequentes. Esses achados corroboram Oliveira
e Janczura (2004), que afirmaram que, em testes indiretos de memória, as palavras menos
frequentes são mais lembradas do que as mais frequentes. Porém, ainda faltam estudos
para avaliar esta variável no contexto do paradigma de priming semântico, em tarefa de
decisão lexical.
Variável relacionada aos pares associados: força de associação
No que se refere a variáveis relacionadas aos pares associados, a força de
associação é de extrema importância na avaliação do priming semântico. A força de
associação entre o prime e o alvo é obtida com o mesmo método utilizado para verificar
o número de associados semânticos (tamanho do conjunto). Estudos tradicionalmente
perguntam aos participantes qual a primeira palavra que vem a cabeça quando pensam em
determinada palavra. A força de associação é calculada analisando-se qual a porcentagem
dos participantes que evocou a mesma palavra para cada palavra-alvo. Esta relação é
considerada fraca quando há uma concordância de respostas menor do que 10%, média
quando a concordância fica entre 10% e 24% e forte quando é maior do que 25% (Coney,
2002; Janczura, 1996; Van Erven & Janczura, 2004).
Diversos estudos analisaram a relação entre força de associação prime e alvo e o
efeito de priming semântico em adultos (Anaki & Henik, 2003; Canãs, 1990; Coney, 2002;
De Groot, Thomassen, & Hudson, 1982; Perea & Rosa, 2002) e em crianças (Assink
& cols., 2004; Nation & Snowling, 1999). No caso desta relação em crianças, Assink
e cols. (2004) e Nation e Snowling (1999) encontraram resultados diferentes. Assink e
cols. (2004) avaliaram o efeito de priming semântico em uma tarefa de nomeação, em
crianças de 11 anos de idade (7ª série) que apresentavam dificuldades de leitura e duas
Aletheia 33, set./dez. 2010
97
amostras controles, pareadas por idade e por habilidade de leitura. A força de associação
foi uma das variáveis manipuladas neste estudo e apresentava-se em duas condições:
fraca e forte. Seus achados não mostraram efeito principal nem interações envolvendo
esta variável, ou seja, foi encontrado efeito de priming semântico tanto em pares com
fraca quanto com forte força de associação.
Ao contrário, Nation e Snowling (1999) encontraram evidências de relação entre
a força de associação e o efeito de priming semântico, através de uma tarefa de decisão
lexical auditiva, realizada por dois grupos de crianças, com e sem dificuldades de
leitura (média de idade de 10 anos). Os dois grupos de crianças apresentaram efeito de
priming semântico quando a associação entre prime e alvo era temática (ex.: praia-areia),
independente da força de associação. No entanto, as crianças com dificuldades de leitura
demonstraram efeito de priming semântico quando a relação entre prime e alvo era
categórica (ex.: cachorro-gato) somente para pares com forte força de associação (média
de 37,65%). As crianças sem dificuldades de leitura mantiveram o padrão de quando a
relação era temática, apresentando efeito de priming semântico tanto para pares com forte
como para pares com fraca força de associação.
Objetivo
Após a constatação de que crianças brasileiras mostraram efeitos de priming
semântico em tarefa de decisão lexical em SOAs de 500 e de 250ms (Holderbaum, 2009;
Holderbaum & Salles, no prelo), o presente estudo investigou alguns fatores que podem
estar relacionados a esta facilitação contextual nas crianças estudadas. Para isso, avaliouse qual a relação entre o efeito de priming semântico e duas variáveis relacionadas às
características dos estímulos usados no experimento: a força de associação prime-alvo
e a frequência do alvo.
Se estas relações forem estabelecidas é mais um indicativo de que os experimentos
envolvendo estímulos linguísticos precisam ser cuidadosamente delineados, evitando
vieses de interpretação. Conforme salienta Janczura (2005), a utilização de palavras
nas tarefas de avaliação dos processos cognitivo-linguísticos necessita de seleção
cuidadosa destes estímulos, considerando que esses atributos podem produzir, se não
apropriadamente controlados, efeitos indesejáveis de confusão nos resultados. Como já
está demonstrado que o SOA é um fator importante na determinação do efeito de priming
semântico em crianças (Holderbaum, 2009; Nievas & Justicia, 2004), outro objetivo deste
estudo é investigar se o papel das variáveis força de associação prime-alvo e frequência
do alvo se mantém tanto em SOAs curtos quanto longos.
Método
Delineamento
O estudo apresentou um delineamento correlacional. Analisou-se correlação entre
o efeito de priming semântico e as variáveis força de associação prime-alvo e frequência
do alvo na língua.
98
Aletheia 33, set./dez. 2010
Participantes
A amostra deste estudo foi composta por 57 crianças, sendo trinta e sete do
sexo masculino (65%) e 20 do sexo feminino (35%). Todas eram estudantes da 3ª
série do Ensino Fundamental de um colégio particular de Porto Alegre-RS. A média
de idade dos participantes foi 8,39 anos (desvio-padrão = 0,49). Os participantes
tinham o português como língua materna, nunca tinham sido reprovados pela
escola e não apresentavam dificuldades de leitura segundo o relato da professora.
Nenhum participante apresentou diagnóstico de doença neurológica, psiquiátrica ou
dificuldades visuais não corrigidas.
Instrumentos
1. Questionário de dados sociodemográficos e de saúde geral: onde constavam
informações sobre idade; escolaridade dos pais; queixa de dificuldades visuais ou
auditivas não corrigidas, repetência escolar e histórico de dificuldades de leitura,
histórico de problemas neurológicos adquiridos e/ou em tratamento com neurologista,
entre outras. O objetivo deste instrumento foi atender aos critérios de inclusão na
pesquisa, sendo as informações obtidas com as professoras dos estudantes.
2. Avaliação do efeito de priming semântico:
O experimento consistiu na apresentação de 78 pares de estímulos (para
exemplos, ver Tabela 1), metade destes pares era composta por palavra (prime)
– palavra (alvo) e a outra metade por palavra (prime) – pseudopalavra (alvo). As
39 palavras utilizadas como alvos foram selecionadas de uma lista de estímulos
normatizados para crianças de 3ª série do Ensino Fundamental (Salles, Machado &
Holderbaum, 2009). Estas mesmas palavras serviram como base para a criação das
pseudopalavras usadas como estímulo alvo no experimento. As pseudopalavras foram
formadas através da troca de duas letras do estímulo inicial (palavras alvo), mantendo
uma estrutura similar e a pronunciabilidade (ex.: NOITE e NEITO).
Os primes que precediam as pseudopalavras foram selecionados das palavras
evocadas por apenas uma criança (respostas idiossincráticas) no estudo de Salles e
cols. (2009). Portanto, estas palavras não foram as mesmas usadas na formação dos
pares palavra (prime) – palavra (alvo). Já os primes que antecediam as palavras alvo
eram divididos em duas condições: semanticamente relacionado ou não relacionado
ao alvo.
Os pares semanticamente relacionados foram determinados por um estudo prévio
(Salles & cols., 2009), no qual alunos de 3ª série do Ensino Fundamental responderam
qual era a palavra que lhes vinha à mente quando pensavam em cada uma das 50
palavras alvo pré-determinadas. A palavra selecionada para ser apresentada como
prime relacionado ao alvo foi a mais evocada pelas crianças. Foi estabelecido um
critério de força de associação mínima de 25%, ou seja, mais de 25% das crianças
da amostra deveria ter evocado a mesma palavra.
Os primes não relacionados foram escolhidos entre os dados deste mesmo estudo
(Salles & cols., 2009) seguindo o mesmo critério dos primes das pseudopalavras.
Aletheia 33, set./dez. 2010
99
Cuidados extras foram tomados para garantir que estes primes tivessem extensão
semelhante ao prime do contexto relacionado e que não houvesse relação semântica
ou estrutural com a palavra alvo.
Tabela 1 – Exemplos de pares de estímulos.
ALVO
Prime relacionado
Prime não relacionado
ABERTO
fechado
segundo
FÁCIL
difícil
piscina
SAPO
pular
pintar
NOITE
dia
boi
FACA
garfo
livro
Cinco pares foram formados (três palavra-palavra e dois palavra-pseudopalavra)
para serem utilizados no treino dos participantes. Foram utilizadas palavras facilmente
lidas por crianças de 3ª série do Ensino Fundamental. Nenhum dos estímulos do treino
aparecia novamente no experimento. Através destes procedimentos, foi esperado que
todas as palavras apresentadas na tarefa fizessem parte do léxico das crianças que estavam
sendo avaliadas.
Procedimentos
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (número do protocolo 25000.089325/200658). Após o consentimento dos pais, cada criança foi avaliada individualmente em
uma única sessão com cerca de 15 minutos de duração através da tarefa de decisão
lexical em uma sala dentro da própria escola. As avaliações aconteceram dentro
de um período de uma semana. O pesquisador leu para cada criança a instrução
apresentada na tela do computador: “Você precisa prestar bastante atenção em todos
os estímulos que vão aparecer na tela do computador. Tente ler silenciosamente a
primeira palavra (apresentada em letras minúsculas). Depois vai aparecer uma Cruz
(+) que sinaliza que o próximo estímulo será apresentado. Você vai decidir, o mais
rápido e corretamente possível, se este segundo estímulo (apresentado em letras
maiúsculas) é uma palavra real (que existe), apertando a tecla “SIM”, ou uma palavra
que não existe, apertando a tecla “NÃO”. Atenção!! A primeira palavra aparecerá
bem rápido. Se não der tempo de ler, não tem problema. Continue a tarefa. Pressione
qualquer tecla para continuar.”
Para garantir a compreensão, o pesquisador retomava resumidamente a instrução
antes de dar início à tarefa. Os participantes, então, realizavam a tarefa de decisão
lexical sobre os alvos (segundo estímulo de cada par), o mais rápido e acuradamente
possível. As crianças foram divididas aleatoriamente, de forma que aproximadamente
metade dos participantes viu os estímulos apresentados com um SOA de 250ms e a
outra metade com um SOA de 500ms.
100
Aletheia 33, set./dez. 2010
Os alvos foram apresentados em letras maiúsculas, enquanto que os primes
apareceram na tela do computador em letras minúsculas. A apresentação dos pares
prime-alvo, semanticamente relacionados e não relacionados, foi contrabalanceada
intragrupos (duas versões de cada experimento). Por exemplo, se na versão 1 o
alvo foi precedido por um prime relacionado (ex.: maçã/FRUTA), na versão 2 este
mesmo alvo foi precedido por um prime não relacionado (ex.: arma/FRUTA). Assim,
nenhum participante viu o mesmo estímulo duas vezes. A ordem de apresentação
dos pares foi feita de forma randômica entre os participantes. Houve o cuidado
de variar a tecla de respostas para as respostas sim e não. Para metade da amostra
o dígito 1 foi a resposta “SIM” e o digito 3 a resposta “NÃO”. Para o restante da
amostra, foi o inverso.
Análise dos dados
Em um primeiro momento, foi feito o cálculo e a descrição das médias de
tempo de reação e de porcentagens de erros na decisão lexical para cada palavra
alvo, divididos nas condições de prime relacionado e não relacionado, em ambos os
SOAs (250ms e 500ms). O cálculo da média do TR foi feito considerando somente
respostas corretas. Além disso, TRs menores que 100ms e maiores que 4000 foram
considerados erros e excluídos das análises. Este critério foi adaptado de Hala e
cols. (2007), que excluíram latências menores que 200ms e maiores que 2000ms. A
magnitude do efeito foi calculada através da subtração dos valores (TR e % de erros)
da condição com prime não relacionado e os da condição prime relacionado.
Para verificar a presença de correlação entre as variáveis (frequência do
alvo, força de associação entre prime e alvo, tempo de reação e porcentagem de
erros nas condições com prime relacionado em ambos os SOAs) foi feito o teste
de correlações de Spearman. Este teste foi escolhido devido à distribuição não
normal dos dados.
Resultados
Na Tabela 2 se encontram os valores de força de associação prime-alvo,
frequência de ocorrência do alvo, e magnitude do efeito para velocidade (TR) e
precisão (% de erros) para cada uma das palavras-alvo do experimento.
Aletheia 33, set./dez. 2010
101
Tabela 2 – Dados de cada palavra-alvo do experimento: Força de associação prime-alvo (For); Frequência do alvo
(Freq); e Magnitude do efeito (MagniEf) para Tempo de Reação e porcentagem de erros (%) , conforme SOA.
SOA 250ms
SOA 500ms
MagniEf
MagniEf
alvos
For
req
TR
%
TR
%
aberto
alegria
antes
areia
bola
brasa
dente
dentro
erva
faca
fácil
80
42
76
62
33
59
38
86
35
34
80
20
1
228
45
146
14
12
46
1
23
67
-88
385
144
-51
-181
412
-79
137
98
-17
182
-1
7
-8
9
7
-1
0
-9
0
0
-8
-16
99
214
437
333
370
353
282
359
526
70
7
0
8
19
6
7
14
0
12
18
-12
febre
feio
49
61
9
46
210
213
0
0
57
304
1
0
final
60
120
93
0
163
0
forte
fralda
59
40
151
1
5
-241
0
14
437
264
24
-15
frio
fruta
38
30
81
20
-17
162
-7
0
370
61
12
-6
isca
leve
longe
mãe
60
61
52
81
1
32
122
344
349
200
231
108
9
-24
0
16
249
347
-108
-101
9
-12
18
6
magro
meia
mês
natal
noite
62
25
31
44
61
19
70
133
64
256
68
-20
823
-145
62
0
16
6
8
0
522
608
299
335
414
6
-40
14
12
0
ontem
64
118
-15
-8
-447
8
rádio
rei
50
78
40
129
123
184
8
0
240
258
0
6
rico
69
29
259
-8
51
7
sal
43
17
167
0
148
0
sapo
35
114
-122
0
-329
0
sede
51
29
59
8
380
0
sujo
71
4
83
0
232
0,5
sul
56
143
156
0
-104
0
toalha
31
67
60
0
272
0
tosse
vazio
29
68
4
59
-189
-109
-5
0
767
4
28
12
102
Aletheia 33, set./dez. 2010
Os resultados da análise de correlações entre, de um lado, velocidade (os TR)
e precisão (as porcentagens de erros) na tarefa de decisão lexical no contexto de
primes relacionados, e as magnitudes de efeito (valor referente à subtração entre a
condição com prime não relacionado e a com prime relacionado), e de outro lado,
as características dos estímulos (variáveis força de associação entre prime e alvo e
frequência de ocorrência do alvo) indicaram que: 1) a força de associação primealvo se correlacionou fraca e negativamente com a magnitude do efeito de priming
semântico em termos de precisão (porcentagem de erros) quando o SOA era de 250ms
(ρ=- 0,334; p=0,038) e 2) com a magnitude do efeito de priming semântico em termos
de velocidade (TR) quando o SOA foi de 500ms (ρ=- 0,332; p=0,039). Então, quanto
maior a força de associação prime-alvo menor foi o efeito de priming encontrado
(tanto no SOA curto, em termos de medida de precisão de resposta à decisão lexical,
quanto no SOA mais longo, 500ms, considerando a medida de velocidade de resposta
a decisão lexical).
Por sua vez, a frequência de ocorrência do alvo na língua apresentou uma
correlação negativa moderada com o efeito de priming semântico em termos de
velocidade (média de TR na tarefa de decisão lexical), quando o SOA era de 250ms
(ρ=- 0,434; p=0,006), e uma correlação negativa fraca com a precisão (porcentagem
de erros) na tarefa de priming quando o SOA era de 500ms (ρ=- 0,322; p=0,046).
Depreende-se que no SOA curto, quanto maior a frequência das palavras-alvo mais
rápidas (TRs menores) eram as respostas na tarefa de decisão lexical. No SOA mais
longo, quanto maior a frequência do alvo na língua menor a porcentagem de erros,
ou seja, mais precisas foram as decisões lexicais.
Discussão
O presente estudo teve dois objetivos principais. O primeiro, de averiguar
a existência de correlações entre as variáveis força de associação e frequência do
alvo e o efeito de priming semântico encontrado em crianças de 3ª série do Ensino
Fundamental. O segundo objetivo era verificar se estas correlações variavam entre um
SOA curto e um longo. Os resultados mostraram a existência de algumas correlações
e que estas aconteciam diferentemente de um SOA para outro.
Mais especificamente, os resultados mostraram uma fraca correlação negativa
entre a força de associação prime-alvo e a magnitude do efeito de priming semântico
em termos de precisão (porcentagem de erros) quando o SOA era de 250ms e a
magnitude do efeito em termos de velocidade de respostas (TR) quando o SOA era
de 500ms. Pares mais fortemente associados tendem a produzir menor facilitação
contextual. Dito de outra forma, a magnitude do efeito de priming semântico foi
maior quando os estímulos eram fortes, mas não muito fortes.
Assink e cols. (2004) e Nation e Snowling (1999), que apresentaram a variável
força de associação em seus estudos de priming semântico com crianças, utilizaram
uma ANOVA para comparar a presença ou ausência de efeito em palavras com fraca e
com forte força de associação. Porém, destaca-se que a fraca correlação encontrada e a
Aletheia 33, set./dez. 2010
103
ausência de correlação entre a variável força de associação e as demais variáveis pode
estar associada ao fato de que todas as palavras-alvo do experimento apresentavam
uma força de associação considerada alta, ou seja, maior do que 20% de ocorrência
(Coney, 2002; Janczura, 1996, Van Erven & Janczura, 2004).
Em relação à frequência de ocorrência do alvo, foram observadas correlações
desta variável com a velocidade de respostas (média de TR) quando o SOA era de
250ms e com a precisão de respostas (porcentagem de erros) quando o SOA era
de 500ms. Ou seja, quanto maior a frequência de ocorrência da palavra-alvo, mais
rápidas e precisas eram as respostas das crianças na tarefa de decisão lexical. Este
achado corrobora a hipótese de que palavras mais frequentes têm o seu significado
acessado com mais facilidade do que palavras de baixa frequência (Hillis, 2001;
Parente & Salles, 2007). Alguns estudos já encontraram indícios de que a frequência
de ocorrência do alvo de fato influencia tarefas de memória implícita (Busnello &
cols., 2008; Oliveira & Janczura, 2004).
Uma variável pouco falada ao longo deste estudo também merece ser
destacada: a ambiguidade semântica, a qual parece dificultar a decisão lexical ou
o reconhecimento de palavras (Rodd, Gaskell & Marslen-Wilson, 2002). Durante
a análise dos dados, foi percebido que uma palavra-alvo havia gerado um número
muito grande de erros, chegando a ultrapassar os 50% quando o SOA foi de 500ms.
Considerando as características desta palavra, após a verificação de que nenhum
erro podia ser creditado ao próprio experimento, constatou-se que a única diferença
entre esta palavra, MEIA, e os outros alvos era sua ambiguidade semântica. Por ser a
única palavra ambígua da lista, supomos que esta disparidade de resultados seja, pelo
menos em parte, consequência desta característica, uma vez que o acesso lexical de
palavras homógrafas (ambíguas) é dificultado pela existência de mais de um sentido
(Nievas & Justicia, 2003).
Considerações finais
Os achados apresentados neste artigo demonstram a existência de algumas
correlações entre o efeito de priming semântico e variáveis relacionadas ao
alvo e ao par associado. Por este motivo é necessário considerar, na construção
de experimentos com estímulos linguísticos e na interpretação dos achados, as
características dos estímulos, neste caso, em termos de frequência na língua e de
força de associação semântica. O processamento semântico em tarefas indiretas de
memória (priming), tanto por mecanismos automáticos (quando o SOA de 250ms)
quanto controlados (quando o SOA de 500ms) parece relacionar-se em algum grau
a tais características.
Dentre as limitações deste estudo, destaca-se o pequeno número de estímulosalvo que fossem palavras reais (39). Essa medida foi tomada no experimento
para evitar efeito de fadiga ou desatenção durante a avaliação. Planeja-se, para
experimentos futuros, aumentar o número de palavras-alvo. Além disso, o fato
de todos os pares associados apresentarem uma forte força de associação pode ter
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Aletheia 33, set./dez. 2010
impedido a visualização de interferências decorrentes de pares com uma fraca força
de associação. Por isso, seria importante a realização de estudos posteriores que
manipulem esta variável em amostras de crianças.
Sugere-se ainda que novos estudos sejam feitos para a criação de normas atuais
de frequência de ocorrência na língua e que novos estudos sejam feitos utilizando
pares com forte e fraca força de associação. Recomenda-se também que seja analisado
o desempenho dos participantes ao longo dos experimentos para verificar possíveis
processos de aprendizado da tarefa que diminuiriam o TR e aumentariam a acurácia
das respostas. Ressalta-se que sejam realizados trabalhos que visem compreender
o papel de variáveis como tamanho do conjunto do prime e frequência do alvo em
amostras infantis e adultas para um melhor entendimento sobre como estas interferem
no efeito de priming semântico em tarefas linguísticas. Por fim, estudos como o aqui
relatado precisam ser realizados considerando outras amostras, como a amostra de
universitários apresentada em Holderbaum (2009) e Holderbaum e Salles (no prelo),
por exemplo.
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_____________________________
Recebido em 18/10/2010
Aceito em 05/10/2011
Candice Steffen Holderbaum: Psicóloga. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia,
UFRGS.
Jerusa Fumagalli de Salles: Fonoaudióloga, Doutora em Psicologia, UFRGS. Profa. Adjunta do Instituto de
Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Endereço para contato: [email protected]
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Aletheia 33, p.109-122, set./dez. 2010
Comunicação silenciosa mãe-bebê na visão winnicottiana:
reflexões teórico-clínicas
Josiane Cristina Coradi Prado Telles
Maíra Bonafé Sei
Sérgio Luiz Saboya Arruda
Resumo: Objetivou-se discutir a comunicação silenciosa entre mãe e bebê, a partir do pensamento
de Winnicott. Fez-se uma pesquisa qualitativa, baseada no método clínico e referencial psicanalítico,
por meio do estudo de caso de uma criança, com 8 anos de idade e dificuldades no desenvolvimento
da fala, sem causa orgânica, atendida em psicoterapia de orientação psicodinâmica, em que aspectos
teóricos são ilustrados pelo atendimento clínico realizado. No caso relatado, foram levantadas
hipóteses de a mãe haver falhado em propiciar ao filho um ambiente facilitador durante os
primeiros meses de vida, assim como houve falhas do pai e do ambiente por não terem propiciado
o suporte emocional satisfatório para a genitora. A dificuldade de expressão verbal da criança
estava relacionada com a manutenção de uma comunicação silenciosa primitiva, que significaria
a garantia da sobrevivência psíquica, diante de um ambiente que não havia se configurado, até
então, como suficientemente bom.
Palavras-chave: comunicação não verbal; relações mãe-filho; desenvolvimento infantil.
Mother-Baby Silent Communication under Winnicott’s View:
Theoretical-clinical reflections
Abstract: The aim of this paper was to discuss the silent communication between mother and baby
from Winnicott`s point of view. This qualitative research, based on a clinical and psychoanalytic
method, considered a case study of an eight-year-old child with difficulties in speech development,
without organic cause, assisted during psychodynamic psychotherapy, which theoretical aspects
were illustrated by the clinical treatment carried out. In the case reported, hypotheses were raised
concerning the mother having failed in providing her child with a facilitating environment during
their first months of life. The father also failed, and there were failures in the environment that
also did not provide a good emotional support for the mother. The difficulty in the child’s verbal
expression was related to the maintenance of a primary silent communication, which would mean
the warranty of psychic survival in the face of an environment that had not been configured until
then as being good enough.
Keywords: nonverbal communication; mother-child relationship; child development.
Introdução
Este artigo teve a sua origem no atendimento psicoterápico, realizado em um
ambulatório de psicoterapia de crianças de um hospital público, de um menino de 8
anos de idade, cuja queixa principal era: ele “fala pouco”, “quase não fala”. A história
clínica desta criança continha um antecedente precoce marcante: a mãe teve muita
dificuldade de ordem emocional para estabelecer um vínculo com o filho nos primeiros
meses, falhando em lhe propiciar um “ambiente suficientemente bom” para o seu
desenvolvimento.
A história de vida da criança e a forma como o material clínico foi expresso em
algumas sessões da psicoterapia sugeriram, tal como será relatado no capítulo de resultados
e discussão, que aspectos emocionais presentes na relação e na comunicação inicial
entre a mãe e o bebê tiveram papel decisivo no seu desenvolvimento e na capacidade de
se comunicar. Isto foi ao encontro de ideias descritas por D. W. Winnicott (1956/1982,
1963a/1983a), tais como: nos primeiros meses de vida, o bebê é totalmente dependente da
mãe, havendo uma linguagem não verbal que se estabelece como meio de comunicação
entre ambos. Esta comunicação é sensorial. A mãe pega o bebê no colo, amamenta ou
dá a mamadeira. Nesta relação inicial, o bebê e a mãe são uma unidade. A maturação
emocional tem início em uma comunicação silenciosa que é, a princípio, apenas sentida,
ou seja, é não verbal, anterior à comunicação pela fala (Winnicott, 1963b/1983b).
No presente artigo, tomando-se como referência o pensamento de Winnicott,
objetiva-se discutir: a) a interação mãe-bebê nos primeiros meses de vida; b) a teoria
da comunicação da criança. A reflexão sobre estes temas é ilustrada e complementada
por breves relatos da psicoterapia de orientação psicodinâmica de uma criança atendida
semanalmente em um ambulatório de um serviço público.
A interação mãe-bebê nos primeiros meses de vida
A partir da perspectiva winnicottiana, a relação primitiva mãe-bebê é um tema
central para se entender o desenvolvimento emocional do ser humano (Winnicott,
1956/1982). Por meio desta visão, apenas gradualmente é que a questão do bebê como
ser independente tornar-se-á importante.
Winnicott (1956/1982) apontou que, no início do desenvolvimento, o ambiente
que circunda a criança, representado principalmente pela mãe, pode se configurar de
maneira a suprir as necessidades da criança, quando é denominado suficientemente bom,
propiciando ao bebê alcançar as satisfações de suas necessidades físicas e emocionais.
Há situações, no entanto, em que este ambiente falha, o que é sentido como uma intrusão
no processo de continuidade de ser da criança, distorcendo o desenvolvimento do bebê.
Neste sentido, reconhece-se a importância de se estudar as funções da mãe em relação
ao bebê nessa fase primitiva.
A preocupação materna primária é um estado psicológico em que a mãe está mais
sensível às necessidades emocionais e físicas do bebê. É um estado natural das mulheres no
período da gravidez e algumas semanas após o nascimento do bebê. A mãe que desenvolve
a preocupação materna primária pode facilitar ao bebê uma vivência mais tranquila nos
primeiros momentos de sua vida. Isto ajudaria a amenizar a ameaça de aniquilação,
identificada por Winnicott como sendo uma das ansiedades mais primitivas.
Nesse estado psicológico, a mãe pode se colocar no lugar do bebê, proporcionando
o que ele precisa para se sentir seguro. É importante que a mãe desenvolva o estado de
preocupação materna primária, para poder se identificar com o mesmo.
A provisão ambiental suficientemente boa contribui para que o bebê possa existir,
possa dominar as pulsões, construindo um self capaz de superar os obstáculos próprios
do viver (Winnicott, 1956/1982). Considera-se importante, então, que, nos seus primeiros
momentos, o bebê seja amparado por uma mãe, que lhe forneça um ambiente satisfatório
110
Aletheia 33, set./dez. 2010
(Winnicott, 1967b/1999b). Este meio propicia um alto grau de adaptação às suas
necessidades individuais, de maneira que o bebê possa alcançar um desenvolvimento
em sintonia com as tendências herdadas, gerando a autonomia do indivíduo (Winnicott,
1967b/1999b).
Quanto ao desenvolvimento da criança, pode-se inferir que, para que ocorra de
maneira saudável, é importante que a mesma possa desenvolver uma personalidade
de forma integrada, pois a integração leva à configuração do bebê como uma unidade
(Winnicott, 1967b/1999b). Essa integração depende de um olhar atento da mãe às
necessidades da criança, o que garantiria capacitar o filho a encontrar objetos de forma
criativa.
Neste sentido, Winnicott (1971/1975) estabeleceu uma relação entre o brincar, o ser
criativo e o viver saudável, defendendo que, por meio do brincar, é possível a comunicação.
Entendeu que o brincar configura-se como algo universal, que facilita o crescimento, a
saúde, os relacionamentos grupais, além da comunicação consigo próprio e com os demais
indivíduos. Pontuou também que a área do brincar encontra-se entre o subjetivo e o que
é objetivamente percebido, área esta denominada de espaço potencial.
Quanto ao desenvolvimento emocional, a mãe é considerada a principal responsável
por iniciar o filho no uso criativo do mundo, em conjunto com o meio que circunda a
criança. Quando isto falha, a criança perde contato com os objetos e, também, perde a
capacidade de encontrar qualquer coisa criativamente (Winnicott, 1967a/1999a). Assim,
em oposição à percepção criativa dos fatos e da vida em geral, há um estado de submissão
à realidade externa que aponta para um senso de inutilidade da vida, de que esta não vale
a pena ser vivida (Winnicott, 1971/1975).
No que concerne à interação mãe-bebê e à capacidade criativa do bebê, Granato
e Aiello-Vaisberg (2005) salientaram a importância do espaço de confiança construído
entre mãe e bebê. O holding oferecido pela mãe contribui para o exercício do potencial
criativo e, posteriormente, para o viver adaptado, autêntico e saudável do bebê.
O ser humano caminha da dependência rumo à independência (Winnicott,
1963b/1983b), e a criança vivencia, ao nascer, um período de dependência absoluta da
mãe, para sobreviver. Esse primeiro contato do bebê com a mãe passa pelo sensorial,
a partir de um contato corporal intenso. Ela contempla sua face, olha nos seus olhos,
segura-o no colo, amamenta-o no peito, propiciando-lhe um holding em que o mesmo
vive a sensação de ser segurado e amparado. Tudo isso faz parte de uma comunicação que
vem antes do verbal e que influenciará o desenvolvimento emocional futuro da criança,
inclusive no que se refere ao desenvolvimento da comunicação verbal.
Teoria da comunicação da criança
No texto “Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos”,
Winnicott (1963a/1983a) estudou tanto a comunicação, como a falta dela, a partir da
relação primitiva pré-verbal entre mãe e bebê. Afirmou estar interessado em reapresentar
algumas de suas formulações teóricas sobre os estágios iniciais do desenvolvimento
emocional do bebê. Este psicanalista tomou como pressuposto que a comunicação e a
capacidade de se comunicar estão intimamente ligadas às relações objetais. Reconheceu
Aletheia 33, set./dez. 2010
111
que a relação com os objetos não é um ponto simples no amadurecimento, em cujo
processo é muito importante a qualidade do ambiente favorável.
Se há um ambiente facilitador e não invasivo em que a privação e a perda não são
predominantes, então será possível que ocorra, no indivíduo, uma mudança da natureza
do objeto. Quando o ambiente facilitador se instaura, o processo de amadurecimento
do indivíduo se desenvolve no sentido de este passar a perceber o objeto não mais
apenas subjetivamente, mas como um objeto distinto de si. De um fenômeno de ordem
subjetiva, o objeto passa a ser objetivamente percebido (Winnicott, 1963a/1983a). Este
processo pode levar meses ou mesmo anos, visto que para que o bebê passe a perceber
o objeto subjetivo como objetivo é preciso que ele consiga absorver, sem distorções,
as privações e perdas.
O que garante o desenvolvimento emocional e o equilíbrio diante das privações e
perdas é o ambiente favorável, aquele em que as privações e perdas não predominam,
apesar de existirem, propiciando ao bebê a experiência da onipotência. Ao vivenciar a
ilusão de onipotência possibilitada pelo ambiente suficientemente bom, o bebê cria e
recria o objeto, em um processo gradual no seu psiquismo, que lhe serve de apoio na
memória (Winnicott, 1963a/1983a).
A constituição do que seja o objeto para o indivíduo depende de um processo
paradoxal de procura pelo objeto, que é necessário e que, ao mesmo tempo, decorre
da criação subjetiva desse objeto. Ou seja, a percepção objetiva do objeto depende,
anteriormente, de uma percepção subjetiva positiva. A percepção objetiva do objeto é a
que permitirá ao indivíduo lidar com a privação e com a perda. Winnicott (1963a/1983a)
considerou que a alteração da percepção do objeto de subjetivo para objetivamente
percebido ocorre mais por meio de frustrações do que por satisfações.
Portanto, para o desenvolvimento equilibrado do bebê, é importante que o mesmo
possa internalizar e reter a ideia do objeto como sendo potencialmente satisfatório. Por
outro lado, o aspecto frustrante do comportamento do objeto ajuda o bebê a perceber
a existência de um mundo que se discrimina do seu eu, ou seja, aquilo que é não eu
(Winnicott, 1963a/1983). Esse processo é fundamental para a constituição do verdadeiro
self do indivíduo.
Diante da privação, o bebê pode vir até a odiar o objeto, mas isso só será proveitoso
para o seu desenvolvimento se, acompanhado desse sentimento, vier a percepção de que
esse seu proceder é falho. Só assim o odiar o objeto não será convertido em uma recusa
a ele. Segundo Winnicott (1963a/1983a), a recusa caracteriza um estágio intermediário
no desenvolvimento normal; é parte do processo de criação do objeto, ou seja, é parte
do processo de internalização do objeto bom.
A partir destas reflexões sobre as relações objetais do bebê, Winnicott
(1963a/1983a) passou a trabalhar a questão da comunicação, que vem à tona justamente
no processo da passagem da percepção subjetiva do objeto para a percepção objetiva. A
comunicação é desnecessária quando o objeto ainda é subjetivo; todavia, no momento
em que a percepção do objeto passa a ser tida como objetiva, a comunicação torna-se
de crucial importância.
O bebê é colocado em uma situação paradoxal, pelo fato de desenvolver dois
tipos de relações objetais com a mãe. Um tipo de relação se dá com a mãe-ambiente,
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que é humana, e o outro tipo se dá com a mãe-objeto, que é uma coisa. A comunicação
entre o bebê e a mãe se dá pela relação dupla com estes dois tipos de mãe. A carência
da mãe-objeto pode ser suprida pela percepção difusa da mãe-ambiente. O bebê a
sente quando a mesma consegue se colocar na pele da criança e se apresentar como
um ambiente seguro diante de suas privações ou faltas. É nesse sentido que se pode
pensar, a partir de Winnicott (1963a/1983a), na interação inicial mãe-bebê como sendo
constitutiva de uma linguagem não verbal, de uma comunicação primitiva.
A forma de a mãe se comunicar silenciosamente com o bebê se faz pura e
simplesmente pela garantia que ela oferece a sua presença enquanto mãe-ambiente.
Igualmente, a forma de o bebê se comunicar com a mãe se resume no fato de ele
permanecer vivo, de mostrar para a mãe que o seu seio e o seu alimento foram suficientes
para garantir-lhe a sobrevivência.
A perturbação no estabelecimento da comunicação nesta fase primitiva da relação
mãe-bebê pode ocorrer quando não existe o ambiente facilitador. A ausência deste
ambiente leva ao que Winnicott (1963a/1983a) chamou de opostos da comunicação,
a saber, a não comunicação simples, e o seu oposto: a não comunicação que é ativa
ou reativa.
Estes opostos da comunicação estariam na base de patologias como, por exemplo,
o autismo e a esquizofrenia infantil. Contudo, estes opostos não servem apenas para
pensar os casos patológicos, podendo-se atentar para a existência de uma zona silenciosa
em todo ser humano. Portanto, os opostos de comunicação constituem-se como
condições não apenas para o entendimento das patologias, mas para o entendimento
do desenvolvimento das faculdades criativas e simbólicas do homem, tal como a
linguagem verbal e a própria arte.
Para que ocorra o surgimento da linguagem verbal, é preciso que a criança
passe pela experiência da não comunicação simples. Ou seja, é da não completude da
comunicação silenciosa que surge a necessidade da comunicação verbal. Em termos
mais simplistas, é preciso que o silêncio seja elaborado para que dele possa surgir a
comunicação não silenciosa.
Quanto ao outro oposto da comunicação silenciosa, “a não comunicação ativa
ou reativa”, Winnicott (1963a/1983a, p.171) pensou em raízes de desdobramentos
negativos e positivos. Os desdobramentos negativos teriam a ver com as patologias
de negação da comunicação, tal como o autismo, em que a comunicação verbal não
se desenvolveu de forma satisfatória. No entanto, Winnicott (1963a/1983a) também
considerou que a negação da comunicação está na base de um desdobramento positivo
que tomaria corpo nas expressões artísticas e culturais. Assim, afirmou que, no artista,
pode-se perceber um dilema entre a necessidade de comunicar-se e a necessidade
oposta de não ser decifrado.
A partir desse raciocínio aplicado à ideia de artista, este psicanalista desenvolveu
sua argumentação no sentido de demonstrar que todo indivíduo guarda em si uma
zona de quietude que deve permanecer intocável. A razão dessa luta do indivíduo pelo
silêncio, pela garantia à intangibilidade dessa zona silenciosa está ligada a um medo de
aniquilação, ao medo primitivo de ser descoberto e devorado pelo outro. Esta poderia
ser, também, a razão do silêncio do paciente durante a análise.
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A garantia do silêncio é o asseguramento da manutenção do estado primitivo da
comunicação silenciosa entre mãe e bebê; o que, em outros termos, corresponde à garantia
da sobrevivência inicial de todo ser humano. Para Winnicott (1963a/1983a), durante o
desenvolvimento do bebê, o viver estabelece-se a partir do não viver, o existir substitui
o não viver, a comunicação origina-se a partir do silêncio.
Assim, ao final de seu texto, Winnicott (1963a/1983a) fundamentou a situação
paradoxal dos opostos da comunicação. De um lado, a negação da comunicação
silenciosa primitiva com a mãe segue o seu curso típico do desenvolvimento quando
passa a promover o advento da comunicação pela linguagem verbal. Por outro lado,
a manutenção do silêncio e de uma zona de quietude intocável também deve ter o seu
lugar no desenvolvimento do indivíduo, com papel fundamental na constituição do self
maduro. Negar a comunicação verbal, portanto, em certos momentos, pode significar a
garantia de estar vivo.
Apontamentos sobre a psicoterapia a partir do referencial winnicottiano
As intervenções terapêuticas do caso que será relatado pautaram-se no referencial
winnicottiano. Winnicott (1971/1975) enfatizou a importância do brincar como algo
que deve ser propiciado pela psicoterapia. O setting lúdico é fundamental para as
manifestações criativas do paciente na análise. Acerca deste tema, Fulgencio (2008)
reafirmou a necessidade de um setting lúdico que propicie um brincar espontâneo e
criativo do paciente, sem considerá-lo unicamente como um meio de expressão de
pressões instintuais.
Para o atendimento de crianças, Avellar (2004) sinalizou que, por vezes, a
interpretação verbal não se mostra como a estratégia mais eficaz para a comunicação entre
analista e paciente. É pertinente que as atitudes lúdicas acompanhem a interpretação, de
maneira a se facilitar o entendimento da criança fornecendo um setting de acordo com o
que o paciente necessita (Avellar, 2004).
Dias (2008) defendeu que, na clínica winnicottiana, a interpretação nem sempre
se configura como a característica central da análise e, em situações de falhas em etapas
primitivas da vida, busca-se estabelecer a confiança no ambiente. O terapeuta não seria
aquele que decifra elementos inconscientes, mas aquele que, pela sua presença, propicia
uma experiência de comunicação e de contato com o paciente. Essa comunicação é
verbal, todavia, apoia-se em uma comunicação profunda e silenciosa, qual seja a da
confiabilidade.
Ao se considerar tanto o valor da criatividade para o viver saudável como o
aspecto doentio da submissão (Winnicott, 1971/1975), entendeu-se que a interpretação
devesse ser algo criado/encontrado pelo paciente. Assim, o terapeuta absteve-se de
realizar interpretações precoces, permitindo que o próprio paciente as formulasse. O
psicoterapeuta trabalha pela espera, pela não ação, procurando respeitar o ritmo da
criança (Franco, 2003).
Em consonância com Forlenza-Neto (2008), considerou-se que o terapeuta devesse
privilegiar a criatividade em seus variados níveis, de maneira que não houvesse uma
paralisação do criar em decorrência da análise. A técnica winnicottiana recolocou a questão
114
Aletheia 33, set./dez. 2010
do lugar do analista, bem como a constituição do sujeito psíquico em sua relação com
um ambiente facilitador e criativo.
No que concerne à questão da comunicação na relação analítica, Coelho Jr. e Barone
(2007) afirmaram que a privacidade do paciente deve ser respeitada, pois a autenticidade
e a vitalidade no setting analítico são advindas do equilíbrio entre a comunicação e a não
comunicação. Defenderam que a presença confiável, humana e não invasiva do analista
propicia ao paciente a comunicação de suas experiências significativas, bem como permite
a manutenção de um núcleo do self privado.
O tema do silêncio é abordado por Peres (2009), que apontou que este pode se
constituir como uma via para demonstração de afetos, gestos e também do ato da fala.
Esta autora relativizou o sentido de defesa, muitas vezes, atribuído ao silêncio no contexto
analítico, acreditando que, no lugar de interpretar, o analista necessita respeitar esse vazio
de palavras, e deve esperar que o paciente possa descobrir criativamente.
Considerando-se que a queixa principal da criança atendida no presente estudo,
como será discutido no capítulo de resultados, centrava-se no desenvolvimento da fala e
em psicodinamismos da relação mãe-bebê, é interessante mencionar algumas afirmações
de Aberastury (1979/1992). Esta autora defende que, ao realizar uma entrevista com os
pais, é pertinente questionar como o bebê era acalmado ao chorar, como a mãe reagia
diante da rejeição do filho quando era alimentado, alcançando um entendimento sobre
as experiências iniciais da criança e a relação mãe-filho estabelecida (Aberastury,
1979/1992).
No que se refere à anamnese com os pais, Aberastury (1979/1992) afirmou que o
resultado da observação de bebês e da análise de crianças com transtornos relacionados
à palavra mostrava a importância da entrevista para que se pudesse compreender o grau
de adaptação do filho à realidade, assim como avaliar o vínculo que se estabelecia entre
criança e os pais. Portanto, a chave para o desenvolvimento adequado da criança está
no primeiro ano de vida e no entender como se deu a adaptação da mesma à realidade.
Igualmente, a forma como se estabeleceu o vínculo inicial com os pais deve ser
investigada nos casos em que o desenvolvimento da capacidade comunicação se mostrar
problemático.
Atrasos no campo da linguagem e a inibição no desenvolvimento desta podem
apontar para obstáculos quanto à adaptação ao meio externo. De certo modo, Aberastury
(1979/1992) indicou o caminho pelo qual se deve iniciar a investigação sobre a questão
da comunicação, já salientada por Winnicott (1963a/1983a), como tendo origem em uma
fase da vida da criança em que a interação mãe-bebê se dá por meio de uma linguagem
pré-verbal. Esse primeiro caminho de investigação seria, portanto, obtido da anamnese
com os pais.
Método
Participantes
Um menino de oito anos de idade, com queixa relacionada ao desenvolvimento
da fala, sem causa orgânica, paciente que foi atendido em psicoterapia em um hospital
Aletheia 33, set./dez. 2010
115
público durante. Os dados sobre a história e desenvolvimento do filho, sobre a queixa e
o quadro clínico foram fornecidos pela mãe.
Delineamento
Trata-se de um estudo qualitativo, que utilizou o referencial psicodinâmico e o
método clínico, e que procurou analisar e aprofundar os temas e objetivos propostos,
ilustrando-os a partir de material advindo da prática clínica (Calil & Arruda, 2004). No
que concerne ao método qualitativo, Turato (2005) pontuou que há uma “busca proposital
de indivíduos que vivenciam o problema em foco” (p.511). Além disto, na visão deste
pesquisador, o desenho do projeto não se pauta em recursos preestabelecidos, devendo
haver maior abertura e flexibilidade da parte do pesquisador, quanto aos procedimentos
e aos recursos utilizados para o empreendimento da investigação.
Realizou-se um estudo de caso por meio do qual se efetuou uma articulação
teórico-clínica (Aguirre & Arruda, 2006; Sei, 2008), a saber, entre a teoria winnicottiana
da comunicação e o relato da psicoterapia de orientação psicodinâmica do participante
em questão. Neste sentido, Safra (1993) discutiu o uso do material clínico na pesquisa
e o justificou ao sinalizar que o ser humano compartilha angústias em comum com os
demais pares, mas também apresenta elementos singulares que podem contribuir para
um enriquecimento de modelos e para uma ampliação do conhecimento.
Considerações éticas
O presente estudo respeitou as resoluções 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde e 016/200 do Conselho Federal de Psicologia, havendo sido aprovado por um
Comitê de Ética em Pesquisa de uma instituição universitária. Foi aplicado um Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido, assinado pelo representante legal da criança
participante.
Instrumentos e procedimentos
Por se tratar de um ensaio teórico-clínico, inicialmente foi feita uma leitura crítica
de alguns textos fundamentais de Winnicott, com ênfase na teoria da comunicação da
criança e na relação mãe-bebê. Em seguida, foram acrescentados o pensamento de alguns
autores que estudaram estes temas, bem como foram adicionados alguns pensamentos
que orientaram a prática psicoterápica do caso clínico relatado.
Quanto à revisão bibliográfica, a compreensão da teoria da comunicação foi pautada
principalmente nos textos de D. W. Winnicott. Em relação às considerações acerca do
atendimento a partir deste referencial, agregaram-se contribuições de outros psicanalistas,
privilegiando-se material publicado nos últimos dez anos. A busca por textos acadêmicos
que articulassem Winnicott e a questão da comunicação foi realizada por meio da base de
dados Psique, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, e da Biblioteca Virtual
de Saúde, área Psicologia, com uso das palavras-chave comunicação e Winnicott.
O atendimento da criança e dos familiares foi realizado em um hospital
público, estendendo-se por quase dois anos. Iniciou-se com o processo de avaliação
psicodiagnóstica e psiquiátrica, realizado conjuntamente por psicólogos, um psiquiatra
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Aletheia 33, set./dez. 2010
de criança e uma assistente social, no qual foram entrevistados os responsáveis e
a criança, bem como foi feita a hora de jogo diagnóstica (Aberastury, 1979/1992;
Arzeno, 1995) e foi aplicado o HTP (Buck, 2003). Em seguida, ocorreu a psicoterapia
da criança, com sessões semanais que duravam cerca de 45 minutos. Houve
relativamente poucas faltas, uma ausência a cada quatro ou oito semanas, quase
sempre justificada por impossibilidade de a criança ser trazida pelos responsáveis. Eles
residiam em bairro relativamente próximo do hospital se possuíssem carro próprio.
Todavia, por haver um vazio urbano, não havia transporte direto, sendo obrigados
a irem ao centro da cidade e de lá utilizarem outra linha de ônibus. Devido a isso,
cada viagem de ida e volta durava aproximadamente 3 horas só de condução, fora
o tempo de atendimento.
Durante o processo de psicoterapia da criança, também foram realizadas algumas
entrevistas com a mãe, normalmente no fim de cada semestre letivo, ou por solicitação
da mesma, quando se perguntava sobre o desenvolvimento do paciente. O processo
terapêutico foi supervisionado por um profissional da área, de maneira a se ampliar
a compreensão acerca do caso, sempre que a terapeuta solicitasse, o que ocorria com
periodicidade ora semanal, ora quinzenal, ora mensal.
Para esta pesquisa, foram utilizados dados provenientes de todos estes contextos,
incluindo as entrevistas com a mãe, conduzidas pela terapeuta, o psicodiagnóstico e
o relato das sessões de psicoterapia com a criança, transcritas após o término destes
procedimentos. Os dados clínicos foram analisados a partir do referencial da psicanálise
winnicottiana, estabelecendo-se uma relação entre a teoria escolhida e aspectos observados
por meio da prática desenvolvida.
Resultados
Entrevistas com Sara, a mãe de Pedro
O atendimento foi iniciado com uma primeira entrevista com Sara, mãe de Pedro,
que tinha 8 anos de idade no início do atendimento. Neste encontro, ao ser convidada a
falar sobre o motivo de haver trazido o filho para a psicoterapia, Sara respondia sempre no
passado. A psicóloga ficou intrigada com esta forma de narrar e pôde entendê-la melhor,
quando a mãe se mostrou resistente em trazer o filho para psicoterapia e só resolveu tentar
essa modalidade de atendimento por insistência do médico da criança.
Sara relatou que Pedro não conversava e não reagia quando alguém falava com ele:
não conversava com as crianças e, na escola, agredia a professora e se agredia, quando
fosse contrariado, ou quando as pessoas não entendessem o que desejava. Comentou
que o filho sempre brincava sozinho. Contou também que, em casa, ele xingava os
familiares e costumava mentir. A esta informação seguiu-se o seguinte comentário: “ele
é terrível, quando ele fala essas coisas, eu falo pra ele que não sou mãe dele, mas depois
me arrependo”. Ainda relatou que, com cinco anos de idade, Pedro fez um tratamento
psicológico que “não resolveu nada”.
Acerca da história de vida da criança, Sara informou que teve “uma gravidez muito
difícil”. Nessa época, brigava muito com o pai de Pedro, que bebia e jogava. Quando o
Aletheia 33, set./dez. 2010
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filho tinha 6 meses de vida, ela separou-se do marido. Disse, ainda, não ter amamentado
Pedro, pois ele não “pegava o peito”.
Durante o puerpério, o marido não a ajudava e a deixava sozinha com o bebê.
Disse, também, que, muitas vezes, a criança chorava e ela “não tinha coragem de pegar
Pedro no berço”. Contou ainda que, quando o filho era bebê, não conseguia se referir a
ele como “meu filho” e, então, dizia “vem com a tia”.
Pedro residia com a mãe, o padrasto e uma irmã de parte de mãe, dois anos mais
jovem do que ele. A família morava em casa alugada, próxima dos genitores do padrasto.
Este se relacionava bem com o enteado, dando-lhe carinho e atenção, tratando-o de forma
semelhante àquela com que cuidava da própria filha.
A hora de jogo e recorte de sessões
Na sessão de hora de jogo diagnóstica (Aberastury, 1979/1992; Arzeno, 1995),
a psicóloga chamou Pedro para a sala e perguntou se sabia o motivo de estar ali. Ele
respondeu que era porque não conversava com ninguém, disse: “sou mudo”.
A caixa lúdica estava aberta sobre a mesa. A psicóloga explicou-lhe que poderia
utilizar os materiais da caixa (jogos, brinquedos, material gráfico), como quisesse.
Inicialmente ele não fez movimento algum. Ficou imóvel por segundos. Depois começou
a tirar os objetos da caixa e perguntou se poderia montar o quebra-cabeça. Em seguida,
tirou o jogo de “pega-varetas” e seu olhar para a psicóloga foi entendido como um pedido
de brincar. Após este movimento, ele e a terapeuta jogaram varetas até o final da hora
de jogo.
Nas cinco sessões que se seguiram, Pedro escolhia o pega-varetas, que era jogado
com as mesmas regras: quando alguém mexia na vareta, automaticamente mudava a vez do
jogador. Pedro sempre ficava muito atento aos movimentos da psicóloga. Esta costumava
falar quando a vareta mexia e quando contava o número de varetas acumuladas por cada
um. No entanto, ele brincava em silêncio durante todo o jogo, não falava nada quando
alguma vareta mexia. Buscava-se respeitar este movimento de silêncio do paciente e
aguardar o ritmo do paciente e as maneiras escolhidas para se comunicar com a psicóloga
(Coelho Jr. & Barone, 2007; Peres, 2009).
Quando contava suas varetas em silêncio, a psicóloga lhe perguntava: “está
contando quantas pegou?” Ele olhava para a terapeuta e discretamente fazia que sim
com a cabeça.
Por fim, em uma sessão realizada no segundo mês da terapia, ao terminar a contagem,
Pedro falou o número 17. A psicóloga contou em voz alta e disse 20. De maneira quase
inaudível, Pedro disse: você “ganhou”. Ao longo das sessões, o padrão de Pedro se repetia:
brincava sem falar, a contagem parcial das varetas era silenciosa, mas dizia o número
de varetas acumuladas e quem ganhava. Apesar de brincar e contar silenciosamente,
mostrava muita empolgação tanto ao brincar, como ao contar. Entendeu-se que a forma
sem qualquer som ou ruído com a qual Pedro brincava e ouvia a terapeuta devia ser
respeitada. Era importante que a psicóloga aceitasse essa comunicação silenciosa, tal
como a mãe faz inicialmente com o bebê, de forma a protegê-lo e ampará-lo. Isto era
muito angustiante para Pedro e para terapeuta, mas acreditava-se que essa comunicação,
a princípio, não verbal, ou seja, apenas sentida, seria necessária até quando viesse a ser
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Aletheia 33, set./dez. 2010
possível para Pedro comunicar-se pela fala, mesma que isto tenha começado a ocorrer de
maneira tímida, quando se limitava a dizer em voz baixa o número de varetas acumuladas
e quem ganhou.
Tanto na hora de jogo, como nas sessões utilizadas para ilustrar o atendimento,
Pedro mostrava, muitas vezes, que necessitava de um aval da psicóloga para utilizar
os objetos da sua caixa. Ela procurava propiciar-lhe um ambiente facilitador e criativo
(Fulgencio, 2008; Winnicott, 1971/1979) em que fosse acolhido, em que se sentisse
protegido. Buscava-se oferecer um ambiente suficientemente bom, em consonância com
as necessidades individuais para um desenvolvimento saudável da criança (Sei, 2008).
Suas brincadeiras não provocavam qualquer ruído ou som, ele falava pouco, com
estabelecimento de um vínculo marcado pelo silêncio. Em várias sessões, pedia para que
a psicóloga desenhasse algo para ele. Pedia régua para desenhar e sempre repetia que não
sabia fazer, demonstrando dificuldade em criar coisas.
Em relação à dificuldade de criar, Winnicott (1970/1999c) comenta que a criação
depende de a pessoa “ser” para depois “fazer”. Parece que “ser” dependeria de um ego
fortalecido, de um ambiente facilitador que permitisse à criança “existir” em um ambiente
com mais liberdade e menos dependência. .
Considerações finais
Pedro foi encaminhado ao atendimento psicológico por apresentar queixas
relacionadas com o desenvolvimento da comunicação verbal, havendo inicialmente
uma impossibilidade para falar no ambiente externo e escolar e uma dificuldade para
falar durante a maior parte da terapia. Confrontando as informações das entrevistas com
a mãe com o material clínico proveniente das sessões de psicoterapia, pode-se levantar
a hipótese de que os problemas de desenvolvimento relativos à comunicação verbal de
Pedro poderiam estar relacionados com uma falha no estabelecimento de um ambiente
facilitador e acolhedor nos primeiros meses de vida desta criança. Pelos relatos da mãe,
é possível supor que o processo de construção de um self verdadeiro, de construção
da experiência de ilusão da onipotência de seu filho, enquanto bebê, deva ter sido não
satisfatório.
Desse modo, a comunicação silenciosa que, para Winnicott (1963a/1983a), é
garantia de segurança de sobrevivência psíquica tanto para o filho quanto para a mãe,
parece não ter sido estabelecida de modo completo ou satisfatório. Pelo relato da mãe,
pôde-se perceber que ela tinha dificuldades em aceitar o filho, falhando em cuidá-lo, em
atender às suas necessidades básicas de bebê. Por exemplo, ela disse não conseguir chamálo de “meu filho”, e sequer conseguia pegá-lo no berço, ou segurá-lo quando chorava.
Ou seja, a mãe não podia exercer adequadamente a função de holding, propiciando ao
bebê um ambiente acolhedor, protetor e satisfatório. Da mesma forma, o pai biológico
e os profissionais da saúde que deveriam ajudar a mãe, bem como os demais familiares
também não puderam desempenhar de modo satisfatório o seu papel de apoio à mãe e
ao bebê. Portanto, não apenas a mãe, mas todo o ambiente falhou.
Recuperar o momento do estabelecimento da comunicação silenciosa entre mãe e
bebê, sabe-se ser tarefa complexa e difícil, que necessitaria de um período de psicoterapia
Aletheia 33, set./dez. 2010
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superior ao realizado com Pedro. Todavia, criar hipóteses de como essa comunicação
tenha se dado é algo factível, ao se considerar os depoimentos da mãe e a confrontação
com as atividades lúdicas do filho durante a psicoterapia, podendo ter havido falhas
quer da parte da mãe, quer do pai, quer de outras pessoas do ambiente. A insegurança
de Pedro ao pronunciar palavras, a sua estratégia de apoiar-se em uma linguagem não
verbal com a psicóloga e a sua inicial e transitória falta de criatividade são aspectos que
podem revelar possíveis perturbações no processo de amadurecimento desta criança.
Isto pode estar associado com o modo como se deram suas primeiras relações objetais
e com as implicações destas relações objetais no estabelecimento de sua comunicação
silenciosa com a mãe, o que parecia estar sendo transferido e atualizado na relação com
a terapeuta.
Segundo Winnicott (1963a/1983a), o medo de ser decifrado, ou de ter a sua zona
intocável invadida associa-se a um sentimento de ameaça primitiva de aniquilação. Assim,
a manutenção do silêncio de Pedro pode estar relacionada com a busca da segurança da
comunicação silenciosa que pauta a relação mãe-bebê nos primeiros meses de vida. Em
consonância com as ideias apresentadas por Winnicott (1963a/1983a; 171/1975) e por
Coelho Jr. e Barone (2007), Forlenza-Neto (2008), Peres (2009), pensa-se, então, ser
importante o respeito aos momentos de silêncio do paciente, ao seu ritmo, à individualidade
e aos momentos de isolamento do outro na relação analítica, algo realizado ao longo do
processo de Pedro. Esta escolha pôde ser respeitada e ao longo do processo o paciente
pôde passar a se comunicar com a psicóloga também por meio da linguagem verbal e não
apenas por meio de seus silêncios e brincadeiras, algo que parece ter sido propiciado pelo
holding oferecido. É pertinente supor que a dificuldade de expressão verbal de Pedro pode
estar relacionada com uma defesa pautada pela busca da manutenção de uma comunicação
silenciosa primitiva, que significaria a garantia da sobrevivência psíquica diante de um
ambiente que não havia se configurado, até então, como suficientemente bom.
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_____________________________
Recebido em 27/09/2010
Aceito em 05/04/2011
Josiane Cristina Coradi Prado Telles: Psicóloga; VI Curso de Especialização em Psicoterapias na Infância
(DPMP/ FCM/ UNICAMP).
Maíra Bonafé Sei: Psicóloga; Doutora em Psicologia Clínica-IP-USP, VI Curso de Especialização em
Psicoterapias na Infância (DPMP/ FCM/ UNICAMP).
Sérgio Luiz Saboya Arruda: Professor Doutor, Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria, Faculdade
de Ciências Médicas, UNICAMP.
Endereço para contato: [email protected]
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Aletheia 33, set./dez. 2010
Aletheia 33, p.123-137, set./dez. 2010
O abuso sexual no contexto psicanalítico: das fantasias
edípicas do incesto ao traumatismo
Bibiana Godoi Malgarim
Silvia Pereira da Cruz Benetti
Resumo: O objetivo deste artigo é discutir a questão do abuso sexual, destacando a
contribuição psicanalítica na compreensão do impacto do abuso sobre o desenvolvimento
psíquico do indivíduo. Nas últimas décadas, observa-se um crescente interesse das pesquisas
na identificação de diferentes aspectos do problema, incluindo questões epidemiológicas,
características, e consequências do abuso sexual. Entretanto, apesar da extensa contribuição
de diferentes áreas, há uma escassez de estudos baseados na compreensão psicanalítica sobre
o abuso sexual. Ainda assim, a discussão sobre o abuso sexual é um tema que encontra berço
dentro da teoria psicanalítica, desde seu início, com as histéricas e, posteriormente, com o
desenvolvimento do conceito chave do desenvolvimento da personalidade, o Complexo de
Édipo.
Palavras-chaves: Psicanálise; Abuso Sexual; Trauma.
Sexual abuse in the psychoanalytical context: From oedipical phantasies
to incest and trauma
Abstract: The objective of this article is to discuss the topic of sexual abuse, highlighting the
contribution of psychoanalysis to the understanding of the impact of this event upon the individual
psychic development. In the last decades, it is observed a growing interest on epidemiological
questions, characteristics and consequences of the act on the individual development. However,
in spite of the extent contribution of different areas, there are fewer studies based on the
psychoanalytical comprehension. Still, the discussion about sexual abuse is a theme originated
within psychoanalytic theory, since its beginning with the hysterics and later with the key concept
of personality development, the Oedipal Complex.
Keywords: Psychoanalysis; Sexual Abuse; Trauma.
Introdução
A questão dos maus-tratos na infância, dentre eles o abuso sexual, em função da
frequência de casos e das consequências negativas tanto para o sujeito vitimado quanto
para a sua família, foi considerada como um grave problema de saúde pública (OMS,
1999). Assim sendo, o abuso sexual é uma temática complexa que perpassa diversas
dimensões, desde situações específicas, envolvendo perpetradores e vítimas, a questões
familiares, sociais e culturais (Amazarray & Koller, 1998; Avery, Hutchinson, &
Whitaker, 2002). Além disso, há consequências sérias que são resultantes das experiências
traumáticas de tal evento e que afetam diversos aspectos do desenvolvimento cognitivo e
emocional de crianças e adolescentes vítimas de tal violência (Pfeiffer & Salvagni, 2005;
Prado & Féres-Carneiro, 2005).
O levantamento de revisões bibliográficas sistemáticas realizadas por estudiosos
da área sobre o tema, abuso sexual, indica um crescente interesse das pesquisas na
identificação de diferentes aspectos do problema, incluindo questões epidemiológicas,
características, fatores associados e consequências do abuso sexual no desenvolvimento
individual (Macdonald, Higgins, & Ramchandani, 2006). Verifica-se, entretanto, que,
apesar da extensa contribuição de distintas áreas, há uma escassez de estudos baseados
na compreensão psicanalítica sobre o abuso sexual (Hachet, 2006; Mess, 2001).
Dessa maneira, embora existam estudos relativos às consequências psicológicas do
abuso, assim como à abordagem de aspectos epidemiológicos, a temática, no que
diz respeito às alterações traumáticas que o abuso pode gerar em um sujeito sob o
vértice da compreensão psicanalítica, não é recorrente. Esta constatação, isto é, a
ausência de pesquisas que abordem o tema sob este viés, pode resultar, em parte, de
uma característica da própria psicanálise, que é oferecer um entendimento singular
a cada sujeito.
Abuso sexual
O fenômeno do abuso sexual é universal, atingindo todas as classes sociais e
idades, incubando, na vítima, a predisposição para perpetuar o ciclo de violência ao
qual foi submetida (Pfeiffer & Salvagni, 2005). Na década de 90, pesquisadores já
apontavam para o crescente interesse pela temática do abuso sexual infantil, embora
fossem igualmente constatadas certas dificuldades metodológicas e a fragmentação
dos estudos (Amazarray & Koller, 1998) Considerando estes e outros aspectos, o
abuso sexual de crianças ainda pode ser observado na atualidade como um tópico
complexo e difícil, tanto na investigação, quanto na sua compreensão para profissionais
e pesquisadores.
Em função da complexidade de situações envolvendo episódios de abuso
sexual, houve a necessidade de operacionalizar uma definição de abuso que fosse
clara e abrangente, em grande parte devido a questões legais que permeiam o tema. A
definição de abuso sexual, segundo a Organização Mundial da Saúde (1999), refere-se
ao envolvimento da criança em atividade sexual para a qual ela não tem condições,
capacidade ou está desenvolvida para compreender e consentir e, em termos amplos,
fere as leis ou tabus sociais de uma sociedade. Além desses aspectos, a OMS destaca o
aspecto relacional entre a criança e o adulto ou mesmo outra criança que, pela idade ou
desenvolvimento situam-se em uma posição de responsabilidade, confiança ou poder,
e têm intenção de satisfazer suas próprias necessidades. Tais situações podem incluir
atos coercivos de indução em atividades sexuais ilegais, prostituição e exploração
pornográfica (OMS, 1999). Nesse sentido, fundamentalmente, o abuso sexual consiste
no envolvimento da criança em atividades de manipulação dos órgãos genitais infantis
ou do agressor, abusos verbais, masturbação, ato sexual genital ou anal, estupro,
sodomia, exibicionismo, pornografia, e ainda exibicionismo, voyeurismo, exposição
a filmes, imagens ou situações de pornografia (Amazarray & Koller, 1998; Pfeiffer &
Salvagni, 2005).
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As características epidemiológicas indicam que o maior número de casos ocorre
na população feminina e tem origem intrafamiliar, sendo a faixa etária com maior
incidência entre cinco e 10 anos de idade (Amazarray & Koller, 1998; Habigzang e
cols., 2005). Apesar dos diferentes aspectos envolvidos, há consenso na compreensão
do abuso sexual como uma situação traumática e que, necessariamente, envolve uma
questão de poder, ou seja, um indivíduo que impõe o seu desejo a outro de faixa etária
inferior (Araújo, 2002; Habigzang, Koller, Azevedo & Machado, 2005; Pfeiffer &
Salvagni, 2005).
Habigzang e cols. (2005), através de pesquisa realizada no estado do Rio
Grande do Sul pela análise de documentos do Ministério Público (denúncias feitas
entre 1992 e 1998), traçaram o perfil mais comum da vítima de abuso sexual. Esta
se caracteriza por ser de uma menina em 80,9% dos casos, na faixa etária entre
cinco e 10 anos (36,2% dos casos, sendo que 10,6% correspondem à idade de dois
a cinco anos e 19,1% entre 10-12 anos). O cenário do abuso foi a casa da própria
vítima (66,7% dos casos) e, em 83% dos casos levantados pelos autores, o abuso
aconteceu dentro da própria família, ou seja, do tipo incestuoso. Contudo, outro
dado importante refere-se à idade da denúncia que, geralmente, ocorria somente por
volta dos 12 e 18 anos, indicando que o abuso sexual incestuoso ocorria por anos e
acabava acobertado pelo silêncio e pelo segredo familiar. Outro ponto fundamental
a ser considerado é a questão do contexto no qual ocorre o abuso, ou seja, intra ou
extrafamiliar. Este último entendido como a violência sexual que envolve indivíduos
os quais não possuem laços sanguíneos e não necessariamente com desconhecidos
da criança ou do adolescente, visto que, muitas vezes, nesses casos o abusador pode
ser alguém de confiança como um professor, um médico, etc. Em geral, os casos
de abuso sexual ocorrem com maior frequência em meninas e se caracterizam por
situações de incesto na família (Finkelhor, 1994).
Em sua origem, a palavra incesto remete ao que é impuro, sujo e não casto.
Segundo Matias (2006), uma definição pertinente para esse ato seria “qualquer relação
de caráter sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente, entre um adolescente e
uma criança, ou ainda entre adolescentes; quando existe um laço familiar, direto ou não,
ou mesmo uma mera relação de responsabilidade” (Matias, 2006, p.296). O incesto em
nossa cultura é a forma mais comum de abuso e se evidencia justamente pelo grau de
parentesco ou cuidado que um indivíduo tem em relação à vítima (Flores & Caminha,
citado por Amazarray & Koller, 1998). Pfeiffer e Salvagni (2005) também concordam
que o incesto é a prática de violência sexual mais comum, ressaltando que essa agressão
dá-se de forma insidiosa e num ambiente favorável a ela. Para os autores, esse tipo
de violência sexual, pautada pelo fato dos envolvidos serem fundamentalmente uma
criança e um responsável, parente ou cuidador, acarreta que a vítima, inicialmente,
entenda essa aproximação como um movimento afetuoso, para, em seguida, ser levada
a sentimentos de insegurança e dúvida. No entanto, quando a criança começa a entender
a realidade da situação abusiva cai numa situação de silenciar frente à culpa, ao medo,
à vergonha e à confusão.
Araújo (2002) considera que, nos casos de violência sexual intrafamiliar, podese observar uma disfunção em pelo menos três níveis: o poder exercido pelo grande
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(forte) sobre o pequeno (fraco), a confiança que o pequeno (dependente) tem no grande
(protetor) e o uso perverso da sexualidade, na qual um se apodera do corpo do outro
e o usa segundo seu desejo. Sendo o abuso sexual um problema complexo e difícil
de ser apreendido em sua totalidade, torna-se extremamente complicado, tanto para
a criança, quanto para a família, o processo de reconhecimento e a denúncia desse
tipo de violência que ocorre em seu interior. Comumente, constata-se que famílias
abusivas tendem a reproduzir a cultura do silêncio, em que o abuso sexual acaba
sendo mantido por todos, de maneira cruel e em segredo, passando várias gerações
sem vir a ser descoberto.
De fato, as famílias abusivas tendem a manter seu equilíbrio doméstico em
torno do silêncio e do segredo. Em situações especiais, quando o abuso incestuoso é
revelado, mães podem sentir-se enciumadas, culpabilizando as filhas pela situação.
Prova disso seria a dificuldade dessas mães em reconhecerem o incesto, visto que tal
ação ocasionaria entrar em contato com sentimentos de fracasso frente aos papéis de
mãe e esposa. Salienta-se, ainda, que o abuso sexual compõe-se de um conjunto de
rupturas de relacionamentos, sendo sempre situado em uma família com funcionamento
patológico, construído a partir da história de cada membro, inclusive do agressor. Dessa
maneira, o histórico familiar pode determinar uma permissividade ao ato, em virtude
da própria desvalorização da infância e da adolescência que estes sujeitos possuem
(Pfeiffer & Salvagni, 2005).
As consequências dos maus-tratos são devastadoras, ocasionando sequelas
físicas e psicológicas, afetando, também, o desenvolvimento cognitivo das vítimas
(Benetti, 2002). Além disso, os efeitos do abuso e a respectiva severidade variam
de acordo com alguns pontos, tais como a idade da vítima, a duração do abuso, o
grau de violência, a diferença de idade entre perpetrador e vítima, o relacionamento
entre eles, a ausência ou não de fi guras parentais protetoras e, fi nalmente, o
grau do segredo e de ameaças que a vítima sofreu (Amazarray & Koller, 1998).
Neste sentido, em 1985, Finkelhor e Browne (1985) organizaram um modelo
compreensivo das consequências e do impacto do abuso sexual a partir de fatores
característicos das experiências traumáticas. Estes fatores determinantes definem o
que os autores denominaram a dinâmica traumática e são baseados nas experiências
de sexualidade traumática, traição, submissão ao poder e estigma. Ainda que
estes elementos possam estar presentes na experiência de diversas situações
traumáticas, a conjunção dos fatores nas situações de abuso sexual determina uma
especificidade do abuso sexual no impacto do desenvolvimento geral das vítimas.
As experiências de sexualidade traumática dizem respeito aos sentimentos e às
atitudes resultantes das vivências sexuais inapropriadas ao momento evolutivo
do sujeito e das relações interpessoais disfuncionais que se estabelecem com o
abusador. Portanto, dependendo do tipo da experiência sexual vivida pela criança,
seja colocada numa posição passiva, seja envolvida em sedução e prazer, além
da força e do poder exercidos pelo abusador, serão determinadas diferentes
consequências no desenvolvimento emocional e cognitivo do abusado. Já a traição
envolve a constatação, por parte da vítima, de que alguém que deveria ser objeto
de amor coloca-se numa relação de exploração da mesma. Muitas vezes, o senso
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Aletheia 33, set./dez. 2010
de traição ocorre igualmente em relação a outros adultos, em quem a criança confia
e que não conseguem exercer uma ação protetora, tal como a mãe ou irmãos mais
velhos. Assim, a experiência de submissão ao poder do adulto gera uma experiência
ainda mais traumática e invasiva, pois a vítima não consegue visualizar meios
de reverter a situação do abuso na qual está envolvida. Por último, há o estigma
gerado por ter sido vítima e as crenças de por qual razão o abusador a escolheu,
além das percepções dos demais acerca do papel da criança no evento. Finkelhor e
Browne (1985) colocam estes fatores como critérios que podem ser utilizados para
o diagnóstico do impacto do abuso no desenvolvimento infantil e adolescente, já
que fornecem dimensões de análise complementares do fenômeno.
Em crianças de zero a seis anos, as manifestações mais comuns resultantes
da vitimização por abuso sexual caracterizam-se pela presença de ansiedade,
pelos pesadelos, pelo transtorno de estresse pós-traumático e pelo comportamento
sexual inapropriado; de sete a doze anos, os sintomas mais comuns abarcam o
medo, os distúrbios neuróticos, a agressão, os pesadelos, os problemas escolares, a
hiperatividade e o comportamento regressivo; e, finalmente, em adolescentes de treze
a dezoito anos, observa-se a depressão, o isolamento, o comportamento suicida, a
autoagressão, as queixas somáticas, os atos ilegais, as fugas, o abuso de substâncias
lícitas ou ilícitas e o comportamento sexual inadequado (Amazarray & Koller, 1998;
Furniss, 1993).
Observa-se que as definições e os estudos relativos ao impacto do abuso sexual no
desenvolvimento individual apresentam em comum a noção de que a complexidade das
situações envolvidas nos episódios inclui determinantes internos e externos à criança,
os quais, por sua vez, derivam em particularidades associadas a cada situação. É nesta
perspectiva de análise das especificidades de cada caso que a compreensão baseada na
teoria psicanalítica do trauma encontra um terreno fértil para um maior entendimento
do trauma na estruturação psíquica do sujeito.
O abuso sexual e a psicanálise
As tradicionais concepções sobre maus-tratos definem os eventos a partir
das categorias de abuso físico, negligência, abuso sexual e abuso emocional.
Esta classificação tem contribuído extensamente para os objetivos dos estudos
epidemiológicos e classificatórios, de forma a estabelecer a gravidade da situação
dos maus-tratos infantis, bem como dos fatores determinantes e as consequências
destas violências no desenvolvimento infantil e adolescente. No entanto, este modelo
classificatório não consegue abranger as formas sutis de abuso e suas possíveis
manifestações nas vítimas. Dessa forma, compreensões fundadas na teoria de
desenvolvimento psicanalítica, baseadas em interpretações subjetivas e psíquicas,
podem contribuir com aspectos fundamentais para o entendimento da dinâmica do
abuso sexual sob uma ótica mais específica. Expresso de outra forma, considera-se que
a abordagem psicanalítica, em função da particularidade atribuída as consequências
das vivências traumáticas para cada indivíduo, traz a tona elementos importantes para
a compreensão do impacto do trauma na estruturação psíquica (Young-Bruehl, 2004).
Aletheia 33, set./dez. 2010
127
Desse modo, para dar conta da especificidade das vivências individuais acerca do
trauma, a perspectiva psicanalítica questiona como a experiência relacionou-se aos
aspectos internos do sujeito, no sentido de verificar, independente da intensidade e da
frequência do evento, como a situação foi percebida pelo indivíduo. Aquilo que seria
considerado traumático derivaria tanto da experiência, quanto da reação do sujeito ao
evento e em relação ao momento e às circunstâncias do fato (Dupont, 1998).
Na década de 70, segundo Young-Bruehl (2004), quando a questão do abuso
sexual firmou-se como um grave problema de maus-tratos infantis, a psicanálise não
participou diretamente dos estudos iniciais, por ser considerada como uma teoria
mais intrapsíquica, contribuindo, dessa maneira, pouco para a compreensão e o
tratamento do abuso. Entretanto, a questão do abuso sexual e do respectivo impacto
no desenvolvimento da personalidade do sujeito, independentemente de pertencer
à fantasia ou ao real, ocuparam um lugar de destaque na psicanálise clássica. Essa
afirmação decorre da própria teoria freudiana da sedução, segundo a qual a criança
era necessariamente seduzida de forma passiva por um adulto (o pai, no caso). No
entanto, com o desenvolvimento dos estudos freudianos da época, acabou-se por
duvidar da veracidade de tais cenas de sedução apresentadas pelos pacientes, entrando,
assim, em jogo a realidade interna – fantasia inconsciente – a qual se diferenciaria
da externa, abrindo lugar para a teoria do Complexo de Édipo (Costa, 2007; Prado &
Féres-Carneiro, 2005). Contudo, é no princípio da própria teoria psicanalítica que se
verifica a questão do abuso sexual perpassando as formulações e as primeiras teorias
freudianas (Costa, 2007; Cromberg, 2001; Faiman, 2004).
Inicialmente, Freud introduz a Teoria da Sedução, na qual acreditava no discurso
histérico, para, posteriormente, perceber que as mesmas histéricas anteriormente
queixosas a respeito de um possível abuso por parte de seus pais, traziam, de fato, as
suas fantasias, o que acabava por abrir um novo caminho, a Teoria Edípica (Intebi,
2008).
Freud (1924/1996) considerava o complexo de Édipo como fenômeno central
do período sexual da primeira infância. É no Complexo de Édipo que se observa
o desenvolvimento de efusivas e apaixonadas disputas, quando a criança rivaliza
com o genitor do mesmo sexo, ao mesmo tempo em que transfere desejos amorosos
e hostis de forma intensa para ambos os genitores, situação que estabelece uma
tríade de relações importantes para o seu desenvolvimento psicológico. Através da
superação das questões edípicas, há possibilidade de integrar o psiquismo de maneira
organizada e, assim, acessar uma sexualidade genital de forma satisfatória. Entretanto,
as linguagens dos atores dessa trama são diferenciadas; a ternura da criança e a paixão
do adulto podem ser confundidas, tomando rumos diversos, visto que a situação
edípica não diz respeito exclusivamente à vítima, mas a ela e a seus pais. Estes,
por sua vez, mobilizados na sua tragédia edípica pessoal, trazem também à tona os
seus conflitos mal elaborados – essa situação confirma a transmissão geracional dos
conflitos, segredos e fixações tecendo as tramas familiares (Nasio, 2007).
Segundo a teoria freudiana clássica, o Édipo ofereceria ao sujeito, basicamente,
duas possibilidades em termos de satisfação, ou seja, na busca pela identificação
com os pais, a criança deverá tomar ou uma postura ativa, ou uma passiva. No caso
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Aletheia 33, set./dez. 2010
masculino, o menino poderia se colocar no lugar do pai, à maneira masculina, e ter
relações com a mãe da mesma forma como o pai – Édipo Positivo, ou assumir o lugar
da mãe e ser amado pelo pai, caso em que a mãe se tornaria supérflua – Édipo Negativo
(Freud, 1924/1996). A identificação com o pai e a autoridade deste é introjetada no
ego, formando o núcleo do superego, o qual assume a severidade do pai e perpetua
a proibição contra o incesto, defendendo o ego do retorno da catexia libidinal. Este
processo, para Freud (1924/1996), era mais que uma repressão, era uma abolição
do complexo porque, caso o ego não consiga muito mais que uma repressão do
complexo, este persistirá em estado inconsciente no id, manifestando-se, mais tarde,
o seu efeito patogênico.
Freud (1925/1996) também considerava que tão importante quanto entender
o período edípico até a sua dissolução é entender a fase que o precede. No caso dos
meninos, ocorrerá uma identificação afetuosa com o pai que se encontra livre de
qualquer rivalidade em relação à mãe, além da atividade masturbatória que é própria
deste período. Na fase pré-edípica das meninas, mesmo que a mãe se constitua como o
objeto original, tal qual é para o menino, o curso se diferencia. Para elas, a zona genital
é descoberta por uma ocasião que não necessariamente esteja vinculada a qualquer
conteúdo psíquico. O fato que as leva a adentrarem a Fase Fálica é a descoberta do
pênis em algum companheiro do sexo oposto, tornando-as “vítimas” da inveja do
pênis. Logo que isto ocorra, a menina inconscientemente toma a decisão de que não
o tendo, o quer (Freud, 1925/1996). A partir deste momento, um caminho por vezes
tortuoso tende a ser traçado; ou se apega vivamente à possibilidade de reivindicar
um pênis para si e, com isso, identifica-se com o pai, ou, essa torrente emocional é
absorvida pela formação reativa.
De qualquer forma, existe uma longa busca para a menina na tentativa de explicar
a sua “falta”, que pode ser demonstrada como uma aliança ao homem no que diz
respeito ao desprezo pelo seu sexo inferior, podendo haver um deslocamento no qual
o traço característico é o ciúme, ou, ainda, um afrouxamento da relação afetuosa com
seu objeto materno. No caso dessa última situação, a menina julgará a mãe como
responsável por sua falta (Freud, 1925/1996).
Outro fato notório, conforme Freud (1925/1996), pertinente à Fase Fálica, é que,
tão logo a menina é tomada pela inveja do pênis, ocorre uma verdadeira corrente de
sentimentos contra a masturbação que certamente é um precursor da repressão que,
mais tarde, poderá dar espaço ao desenvolvimento de sua feminilidade. Logo que
tudo isto se desenrole, o complexo de Édipo passa a mostrar-se com o deslizamento
da libido para uma nova posição, em que a menina abandona o seu desejo de um
pênis e coloca, no lugar, o desejo de um filho, tendo o pai como objeto de amor. Neste
contexto, a mãe acaba por tornar-se o objeto de seu ciúme.
O mais notável neste desenrolar do desenvolvimento psíquico é que, para
as meninas, o complexo de Édipo é uma formação secundária, devido ao fato do
complexo de castração o preceder e o preparar. Assim, o último introduz o Édipo e o
seu desfecho não ocorre da mesma forma como nos meninos, visto que a castração já
teve seu efeito (Freud, 1925/1996). O que contribui para o término do Édipo na menina
não é propriamente uma destruição, mas um abandono gradual ou uma utilização
Aletheia 33, set./dez. 2010
129
maciça da repressão. Dessa forma, o que se observa, na menina, como resultado
da crise edipiana, é que seu “superego nunca é tão inexorável, tão impessoal, tão
independente de suas origens emocionais como exigimos que o seja nos homens.”
(Freud, 1925/1996, p.286), tendo assim, a sociedade que lhe impõem regras mais
rígidas numa tentativa de contenção.
Seria pertinente acrescentar que a menina só atinge seu status normal na evolução
edipiana positiva, após ter superado um período anterior regido pelo complexo negativo.
No momento do Édipo negativo, a menina acredita que seu pai não é muito mais do
que um rival que lhe causa problemas, muito embora sua hostilidade não alcance
a intensidade que se dá quando se trata de um menino. Entretanto, ao término do
desenvolvimento da menina, o pai deve ter se tornado seu novo objeto amoroso. Para
Freud (1931/1996), a menina, que já percebera o fato de sua castração (efeito diferente
do menino), tende ou a reconhecer a superioridade masculina e rebelar-se contra o seu
estado, abandonando sua atividade fálica (sexualidade em geral), ou a se aferrar em
uma atitude autoafirmativa de sua masculinidade, ou, ainda, toma um caminho indireto
no qual atingirá uma atitude feminina ideal, tomando o pai como objeto. Contudo,
independentemente do caminho a ser tomado, o Édipo, na menina, não é destruído e
muito frequentemente nem sequer é superado pela mulher.
Ao término do Édipo masculino, constata-se não simplesmente uma repressão,
mas uma destruição pelo choque da ameaça de castração. As catexias libidinais do
menino são abandonadas, dessexualizadas e, em parte, sublimadas. Assim, seus
objetos são incorporados ao ego formando o núcleo do superego e fornecendo
a essa nova estrutura características peculiares. Nesse caso, o Édipo não existe
mais nem inconscientemente. Quem se faz presente de forma soberana, agora, é o
superego. O menino pode, então, seguir rumo à latência, identificado com o pai e
com as referências do feminino tomadas da mãe (Freud, 1925/1996). No caso da
menina, ela não entende a falta de um pênis como sendo uma característica sexual,
explica-a presumindo que, em alguma época anterior, possuíra um órgão igualmente
grande e depois o perdera por castração. Contudo, não estende esse raciocínio a
outras mulheres adultas, pois as entende como possuidoras de grandes e completos
órgãos genitais (masculinos). Em virtude disto, a menina aceita a castração como
um fato consumado; ao passo que o menino, teme a possibilidade de sua ocorrência.
Portanto, no Édipo feminino, observa-se um caminho diferenciado. Logo, ao início
do Édipo, fica claramente excluído para a menina o receio de ser castrada, posto que
essa situação já teria ocorrido, segundo sua fantasia. Entretanto, surge um motivo
poderoso para o estabelecimento de um superego, visto que essas mudanças podem
acontecer como resultado da criação e da intimidação oriunda do exterior, as quais
a ameaçam com uma perda de amor. Dessa forma, seu Complexo de Édipo culmina
em um desejo, mantido por muito tempo, de receber do pai um bebê como presente
(tentativa de compensação). Este desejo, aliado ao de ter um pênis, fica fortemente
catexizado no inconsciente e auxilia na preparação da menina ao seu papel feminino
e materno posterior (Freud, 1924/1996).
A questão edípica assume, na teoria psicanalítica, portanto, um lugar incontestável
em importância para a estruturação psíquica e o estabelecimento de identificações
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Aletheia 33, set./dez. 2010
femininas e masculinas que determinarão as características da passagem para a
genitalidade. Entretanto, cabe refletir sobre qual o impacto na estruturação psíquica das
situações nas quais o incesto transcende a esfera da fantasia edípica para a realidade
da criança?
Somente a partir dos estudos de Ferenczi (1933/1992), retoma-se a questão
traumática considerando as experiências reais da criança, introduzindo a perspectiva
do impacto das vivências sexuais precoces na sua organização psíquica. Ferenczi
(1933/1992) afirma, em desacordo com Freud, que nem todo relato de abuso sexual é
de cunho fantasioso e vai além, identificando a importância das forças externas como
forças traumáticas. Acrescenta, ainda, que a negação por parte do adulto da ocorrência
do abuso torna mais traumático o evento.
Trauma e desenvolvimento psíquico
Se em todo sujeito, no período da infância, existe uma fantasia inconsciente de
cunho erótico, voltada ao genitor do sexo oposto, devendo ser recalcada e resolvida no
desenrolar do Édipo, a psicanálise vem dizer que a concretização desses desejos, sejam eles
agressivos ou sexuais, tornar-se-ia, para a criança, uma experiência bizarra e não prazerosa,
causando, além de sofrimento, o sentimento de não existência como unidade psíquica
independente (Faiman, 2004). Além disso, há o que Bollas (citado por Faiman, 2004)
chama de “transparência psíquica” (p.31), ou seja, a experiência incestuosa desencadeia a
sensação de que a realidade pode ser invadida pelos desejos do psiquismo, sem barreiras
de contenção para os mesmos. Portanto, a partir destes elementos compreensivos do
processo edípico, é possível identificar que vivências concretas de experiências sexuais
abusivas, nesta fase de desenvolvimento, são situações extremamente traumáticas e
com consequências importantes no processo de desenvolvimento psíquico do sujeito.
Seguindo essa linha, busca-se, então, compreender o processo do trauma, assim como
sua repercussão no psiquismo da vítima.
Central à noção de abuso sexual, sob a compreensão psicanalítica, está o
conceito de trauma. De acordo com Laplanche e Pontalis (1998), o trauma pode ser
definido como “acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade,
pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada,
pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização
psíquica.” (p.522). Sob o ponto de vista econômico, o trauma caracterizar-se-á por
ser um excesso de excitações que transborda a capacidade do sujeito de tolerar e
elaborar psiquicamente.
Uma importante síntese sobre o desenvolvimento da definição de trauma, sob
o ponto de vista freudiano, é o trabalho de Prado e Féres-Carneiro (2005). Segundo
os autores, concomitante ao próprio desenvolvimento da teoria psicanalítica, está o
desenvolvimento da noção de trauma. Inicialmente, este conceito se encontra de forma
embrionária de acordo com a Teoria da Sedução, para, posteriormente, ser descrito
como algo relativo “à urgência e pressão das pulsões sexuais e à luta que o ego trava
contra elas, e os conflitos e as vivências traumáticas passam a ser examinados e
compreendidos a partir das fantasias inconscientes e da realidade psíquica interna”
Aletheia 33, set./dez. 2010
131
(p.13). Finalmente, em um terceiro momento da teoria freudiana, o trauma adquire
uma nova dimensão, e a essência da situação traumática estaria diretamente ligada à
experiência de desamparo por parte do ego diante de um excesso de excitação.
Além disso, Prado e Féres-Carneiro (2005) trazem algumas distinções
fundamentais, tais como: traumatismo, traumático e trauma. O primeiro referese ao conteúdo que surge em um tratamento psicanalítico, ou seja, algo que é
representável e simbolizável. O traumático reflete o caráter econômico que esse
conceito abrange, isto é, em virtude do aparelho psíquico estar desprovido de um
aparato que suporte o excesso de excitação e o desvie, ocorre um funcionamento
pautado pelo trauma. Logo, mesmo que os efeitos do trauma sejam parcialmente
representáveis e simbolizáveis, eles nunca o serão de todo, ficando o sujeito marcado
por um funcionamento traumático. Exemplo disso seria o de mulheres vítimas de
abuso sexual na infância, as quais certamente foram submetidas ao silêncio e, dessa
maneira, foi-lhes retirada a possibilidade de elaboração da experiência. Logo, o
termo trauma, segundo as autoras, vem enfatizar o estrago produzido na capacidade
de simbolizar e transformar, favorecendo o que chamam de zonas mortas do
psiquismo, cujos fantasmas assombrarão gerações futuras, afetando suas escolhas
amorosas e possibilidades de fruição da sexualidade. Estas situações associam-se a
fantasias e podem ficar encapsuladas, configurando-se como um “corpo estranho”,
acarretando em incremento de ferida narcísica à personalidade.
É notório que toda individualidade surge a partir de um outro sujeito, a mãe
em geral, e é a partir dessa referência que se oferecerá ao bebê o tipo de experiência
predominante, ou seja, as primeiras marcas psíquicas. Entretanto, quando as
experiências predominantes são de cunho traumático, envolvendo um alto grau de
angústia, o ego pode não conseguir dar conta destas experiências, de forma que
as experiências traumáticas invadirão os processos normais do desenvolvimento.
Como consequência dessa situação, há uma “destruição completa ou parcial do
aparelho mental em desenvolvimento ou já desenvolvido e do senso de identidade,
culminando na deformação da mente (Albornoz & Nunes, 2004).
Em uma situação de abuso sexual, em que há um indivíduo mais velho
impondo-se a outro de idade inferior, sobra para a criança / adolescente em geral
a tentativa de elaborar essa invasão de uma sexualidade adulta em seu mundo
ainda imaturo. Logo, segundo Albornoz e Nunes (2004), o abusador joga-a para
uma vivência traumática, difícil de ser simbolizável, na qual o valor do trauma
ocorrerá a posteriori.
Para Cyrulnik (2005), a questão do trauma deve estar alinhada com a qualidade
e a intensidade do laço afetivo que um sujeito tinha com o infrator, ou seja, para
o autor, a situação será tão traumática quanto o sujeito estiver ligado ou engajado
afetivamente com quem inflige castigos, abusos, etc. Neste sentido, só se pode tratar
de traumatismo se houver uma violação, isto é, se a surpresa catastrófica submerge
o sujeito e derruba-o, lançando-o em uma torrente rumo a um lugar que ele não
desejava ir. Para o autor, de acordo com o que ocorre, é rompida a bolha protetora, na
qual o sujeito se guardava. Desorganiza-se o seu mundo e observa-se uma confusão
em que o sujeito, não completamente consciente do que lhe acontece, percebe-se
132
Aletheia 33, set./dez. 2010
desamparado. A vida psíquica, após o trauma, será preenchida por fragmentos de
lembranças com as quais o sujeito construirá o seu passado. Neste aspecto, o autor
remete a uma imagem de construção com tijolos, em que coloca a seguinte questão:
com que tijolos extraídos do real o sujeito construíra seu imaginário? Para ele, é na
escolha destes tijolos que cada um se tornará único, e acrescentando um ou outro
a sua construção, transformará a representação que possui dela.
As consequências de experiências traumáticas estarão presentes nos aspectos
cognitivos, afetivos e relacionais. Na perspectiva psicanalítica, os aspectos
relacionados à representação simbólica do abuso e as respostas dissociativas do
funcionamento psíquico formam a base para a compreensão das reações frente às
experiências abusivas. No caso do abuso sexual infantil, as memórias traumáticas
estarão associadas às fantasias sexuais agressivas desse período e, quanto mais
precocemente ocorrer o abuso, mais sintomática será a resposta do sujeito em função
da incapacidade do ego de organizar a experiência traumática. A incapacidade de
contenção afetiva, o significado e a estruturação da experiência colocam-no numa
organização caótica, a qual, por sua vez, ocasiona vivências de isolamento pessoal
e sintomas de ansiedade e pânico. Portanto, resta à criança uma forma elaborada
de funcionamento que consiste em isolar as experiências intrusivas, dissociandoas de outras vivências psíquicas. Estas experiências dissociativas não se limitam
ao isolamento da memória do abuso, mas também atingem aspectos do self. Desse
modo, considerando-se estes aspectos do funcionamento, observa-se que constituem
a base para o possível desenvolvimento de personalidade borderline, situação
caracterizada pela alta modulação afetiva, pela ansiedade difusa, pelas dificuldades
relacionais, pela depressão e/ou agressividade (Davies & Frawley, 1994).
A experiência traumática do abuso sexual associa-se, portanto, a dificuldades
graves nas relações primárias ou vinculares, às experiências concretas de vivências
altamente ansiogênicas, ao estabelecimento de um funcionamento psíquico
desorganizado, resultando em falhas estruturais importantes no aparelho psíquico.
Guiter (2000) assinala que crianças vítimas de experiências incestuosas lidam
internamente com sentimentos de onipotência e, ao mesmo tempo, sentimentos de
ódio, raiva e ambivalência que geram um funcionamento psíquico marcado pelo
temor da ameaça constante à estrutura psíquica (borderline), entraves importantes
para o desenvolvimento psíquico. Contudo, o que impediria esse progresso
estrutural? Bergeret (1998, 2006), teórico que segue uma linha psicanalítica
estrutural, traz a ideia do trauma como algo avassalador para a organização
adaptada, muitas vezes, ocorrendo durante a fase edípica e também associado às
Organizações Limítrofes.
Nas Organizações Limítrofes, encontra-se o que Bergeret (1998, 2006)
denominou de “trauma precoce”, o qual desempenha uma função desorganizadora
da evolução do sujeito, lançando-o para uma fase denominada pseudolatência. Essa
ruptura de desenvolvimento dar-se-ia em virtude de um acontecimento externo
grave, que excederia a capacidade egoica do jovem sujeito de dar-lhe conta, ou seja,
ocorre uma falha ambiental. O caso dos limítrofes é clássico e ilustra, com perfeição,
o enlace do trauma e do Complexo de Édipo, até mesmo porque o trauma dar-se-ia
Aletheia 33, set./dez. 2010
133
em um primeiro momento da fase edípica, sem possibilitar a formação completa e
sustentadora do superego e ideal de ego, ou seja, estar-se-ia tratando de um futuro
adulto com sérias restrições egoicas e uma personalidade instável.
Uma situação traumática pode encontrar terreno fértil quando se depara com
um sujeito frágil ou incapaz, em função da sua natural imaturidade de dar-se conta
de situações extremas e potencialmente desorganizadoras, como, por exemplo, nos
casos em que uma criança é submetida a uma situação de abuso sexual. Neste sentido,
existem implicações diversas nessas organizações, sendo uma delas as características
das relações objetais que se estabelecem. No caso dos limítrofes, pelo fato do trauma
precoce ocorrer logo ao início da fase edípica, o objeto passa a ser instável, sucedendo
uma introjeção falha, assim como o próprio período edípico o foi. Portanto, a relação
com o objeto permanece centrada na dependência anaclítica do outro, ou seja, o que
se estabelece é uma relação de grande dependência.
Além disso, nesses casos, não há uma regência exclusiva do polo materno, como
salienta Bergeret (1998). Existe, também, a presença da figura paterna, ainda que ela
não seja entendida como sexuada devido à imaturidade do ego do sujeito. Este último
luta contra um estado depressivo que o ameaça constantemente, sendo que, na verdade,
a angústia ocorre pelo receio de perder o objeto, daí, então, a relação de dependência
depressiva. Ainda assim, após a chamada pseudolatência,haveria uma possibilidade de
reaver esse desenvolvimento na transição para a fase da adolescência. Contudo, como
afirma o próprio Bergeret (1998, 2006), essa retomada não ocorre de forma fortuita,
deve haver algum fator externo (análise profunda e competente ou uma experiência
amorosa extremamente satisfatória), que possibilite orientar essa personalidade para
novos caminhos.
Considerações finais
Considerando o percurso da psicanálise, desde o seu início até o seu amadurecimento
teórico, há uma clara articulação da questão edípica com o conceito de trauma. Em um
primeiro momento, entendia-se o trauma como algo exclusivamente concreto e externo,
de cunho sexual: a situação traumática externa e “real” regia a vida psíquica do sujeito,
principalmente os afetados pelo sofrimento, como as inesquecíveis histéricas freudianas.
Em um segundo momento da teoria freudiana, instala-se a teoria do Complexo de
Édipo, conceito fundamental dentro da estruturação da personalidade. A partir desse
novo entendimento, agrega-se ao trauma real e externo outro componente: o mundo
subjetivo, recalcado e fantasioso de cada sujeito, necessário para a elaboração de processos
maturacionais pertinentes a esse momento – antes entendido de maneira equivocada –
dá-se, então, o nome de Complexo de Édipo.
Passa-se, a partir daí, a entender que o êxito nessa etapa da vida é o que
garante galgar uma estrutura estável e adaptada, sendo que o contrário acabaria
por impedir o acesso a essa estabilidade (Bergeret, 1998, 2006). O Édipo possui
fundamental papel na organização psíquica do sujeito. Para tanto, faz-se necessário
condições para uma triangulação e organização superegoica satisfatória de forma
134
Aletheia 33, set./dez. 2010
que meninos e meninas possam alcançar, sem maiores dificuldades, seus pares
quando adultos, apropriando-se de sua sexualidade e de seu corpo sem estranheza,
reconhecendo-se, finalmente, como seres autênticos e distintos dos demais. A título
de exemplo, utiliza-se a Organização Limítrofe com a finalidade de compreender
essa articulação entre trauma e Complexo de Édipo. Dentro das Organizações
Limítrofes, encontra-se o que Bergeret (1998, 2006) chamou de “trauma precoce”,
o qual desempenha uma função desorganizadora da evolução do sujeito, lançando-o
para uma fase denominada “Pseudolatência”. Essa ruptura de desenvolvimento darse-ia em virtude de um acontecimento externo grave que excederia a capacidade
egoica da criança de dar conta, ou seja, ocorre uma falha ambiental. Nesse sentido,
a vivência traumática do abuso sexual na infância ilustra a situação do enlace do
trauma ao Complexo de Édipo que, como resultado, teria a impossibilidade de
formação completa e sustentadora do superego e ideal de ego. Ao contrário, quando
ultrapassado, ou seja, quando a fantasia invade o real, encontra-se espaço fértil
para instalar-se a desorganização através do trauma.
Em suma, com base nas compreensões discutidas verifica-se que tanto no campo
teórico como no de intervenção clínica, a contribuição da psicanálise constitui-se como
uma importante ferramenta terapêutica para o trabalho clínico nas situações envolvendo
abuso sexual. Portanto, o desenvolvimento teórico da psicanálise em suas distintas
vertentes de desenvolvimento é um recurso essencial na avaliação dos processos
psíquicos ao nível imediato de atendimento como para o desenvolvimento de estratégias
de prevenção envolvendo ações que se orientem pela perspectiva da singularidade das
experiências traumáticas. Desta forma, atentando e oferecendo aquilo de mais significativo
da ação terapêutica psicanalítica, aspecto que compreende a escuta e o oferecimento de
interpretações subjetivas específicas ao mundo interno do sujeito.
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_____________________________
Recebido em 27/07/2010
Aceito em 15/08/2011
Bibiana Godoi Malgarim: Mestre em Psicologia Clínica (UNISINOS), Professora do Curso de Psicologia
da ESADE, Porto Alegre.
Silvia Pereira da Cruz Benetti: Doutora em Psicologia (Syracurse University, USA), Professora do Curso de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS.
Endereço para contato: [email protected]
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137
Aletheia 33, p.138-150, set./dez. 2010
Transtorno obsessivo-compulsivo nas diferentes faixas etárias
Cema Cardona Gomes
Thiago Osório Comis
Rosa Maria Martins de Almeida
Resumo: O transtorno obsessivo-compulsivo submete o portador a um ciclo de pensamentos
e comportamentos em busca de uma satisfação momentânea. Os sintomas são semelhantes,
independente da faixa etária, e as repercussões se dão nos principais setores da vida dos
acometidos por transtorno. Por isso, o tratamento é importante, auxiliando na amenização dos
efeitos causados pelo TOC. Assim, o presente artigo, por meio de revisão teórica, teve por
objetivo discutir sobre o transtorno e verificar se dentro das faixas etárias evolutivas existe
diferenças nas características, repercussões e forma de tratamento, a partir da abordagem da
terapia cognitivo-comportamental. Pôde-se concluir que o TOC apresenta algumas diferenças
entre as faixas etárias, principalmente, relacionadas ao tipo de repercussões e a forma de
tratamento do transtorno.
Palavras-chave: faixas etárias; transtorno obsessivo-compulsivo; terapia cognitivocomportamental.
Obsessive-compulsive disorder in the different age groups
Abstract: The obsessive-compulsive disorder subjects the bearer to a cycle of thoughts and
behaviors in search of a momentary satisfaction. The symptoms are similar, regardless of
age, and the repercussions are given in the main sectors of life of affected by it. Therefore,
treatment is important, assisting in alleviating the effects caused by OCD. Thus, this article
by reviewing theoretical, aimed to discuss the disorder and verify that within age groups
there is evolutionary differences in the characteristics, effects and manner of treatment,
using the approach of cognitive behavioral therapy. It might be concluded that OCD presents
some differences among age groups, mainly related to the type of impact and how to treat
the disorder.
Keywords: age; obsessive compulsive disorder; behavior-cognitive therapy.
Introdução
O Transtorno Obsessivo-Compulsivo, TOC, passou a ser estudado e divulgado a
partir da década de 80, embora exista e se manifeste há muitos anos (Kaplan, Sadock
& Grebb, 2003). Atualmente, é um transtorno que tem se mostrado comum, sendo
estimado que, no Brasil, existam cerca de três a quatro milhões de indivíduos portadores
(Kapczinski, Quevedo & Izquierdo, 2004).
As principais características do TOC são as obsessões e as compulsões, onde
as obsessões são pensamentos, ideias ou sensações intrusivas, de cunho negativo
e que causam muita angústia. Já as compulsões são comportamentos conscientes,
padronizados e recorrentes, como as contagens, verificações e/ou evitações, que têm
como função aliviar a tensão causada pelas obsessões (APA, 2003). Para o indivíduo
com o distúrbio, um simples pensamento de tragédia desencadeia uma série de
comportamentos que visam garantir que tal não ocorra. Assim, por ter um senso
de responsabilidade aumentado e distorcido, o indivíduo se sente angustiado por
perceber que é incapaz de assegurar, a todo o momento, a segurança (Siev, Huppert
& Chambless, 2010).
Os sintomas do transtorno podem se manifestar em qualquer idade e independem
de classe social, porém tendem a acometer mais o sexo masculino, quando manifestado
na infância, e quando manifestado na fase adulta acomete mais o sexo feminino,
portanto, tende a ocorrer em homens mais cedo do que em mulheres (Campos, 2001).
Sendo assim, a relação entre faixa etária e prognóstico é importante, pois quanto mais
cedo o paciente apresentar os sintomas mais difícil pode ser o quadro, bem como as
consequências por ele causadas (Cordioli, 2004).
Normalmente, as pessoas com TOC acabam tendo repercussões, pois essas
acontecem em todas as faixas etárias e se concentram, principalmente, na vida familiar,
social e produtiva dos acometidos por esse transtorno (Guedes, 2001). Nas crianças e
nos adolescentes as maiores implicações são no desempenho escolar e, nos adultos,
podem ocorrer perdas de emprego e separações conjugais (Barlow, 1999).
Até o momento ainda não foram esclarecidas as causas do TOC, entretanto, há
evidências de que fatores de natureza biológica, psicológica e até mesmo ambiental
possam fazer parte do seu surgimento (Kapczinski, Quevedo & Izquierdo, 2004). O
TOC também é encontrado em pelo menos 50% dos pacientes que têm o transtorno de
Tourette (transtorno neurológico caracterizado por tiques motores e vocais ao mesmo
tempo). Além disto, está relacionado ao mesmo gene responsável pela expressão dos
tiques, tais como: movimentos motores ou vocalizações súbitas, rápidas, recorrentes,
estereotipadas e não rítmicas, em resposta a sensações subjetivas de desconforto
(Rolak, 2001). Dos pacientes com TOC até 15% têm transtorno de Tourette, e
dos pacientes com transtorno de Tourette 20% a 60% têm sintomas obsessivos e
compulsivos, sendo esta uma das comorbidades mais comuns em todas as faixas
etárias (Gonzales, 1999).
A terapia cognitivo-comportamental (TCC) tem como objetivo fazer o indivíduo
perceber as aprendizagens errôneas e as crenças distorcidas que adquiriu ao longo
da vida (Cordioli, 2004) e esse tratamento psicoterápico tem se mostrado mais
eficaz para lidar com o TOC, que por meio da exposição e prevenção de resposta se
baseia na relação entre obsessão e o aumento da ansiedade e compulsão e o alívio
da ansiedade. A TCC faz uma exposição repetida do indivíduo ao estímulo aversivo,
não deixando que ele execute a compulsão. Assim, por meio da habituação, faz com
que a pessoa perceba que os rituais não são necessários para reduzir a ansiedade ou
para evitar algum desastre (Rangé, 2003).
O tratamento combinado, ou seja, o uso de psicofármacos em conjunto com a
terapia também se mostra eficaz, pois quando o medicamento é retirado do paciente a
terapia serve como auxílio para que os sintomas não voltem. Porém, a medicação se
faz necessária somente em casos mais graves, auxiliando o paciente a baixar o nível
elevado de ansiedade e de sofrimento causados pelo transtorno (Prazeres, Marques,
Souza & Fontenelle, 2007).
Aletheia 33, set./dez. 2010
139
Transtorno obsessivo-compulsivo: caracterização geral
O TOC tem por característica ser um quadro em que se apresentam obsessões e/ou
compulsões repetitivas causadoras de grande ansiedade. Geralmente, o TOC é crônico e
suas causas podem envolver fatores de ordem biológica e psicossocial. Algumas vezes,
também pode apresentar diferentes formas em relação aos subtipos, etiologia, apresentação
clínica, curso, prognóstico e resposta a tratamentos (Knapp, 2004).
Tanto o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (APA, 2003)
quanto o Código Internacional de Doenças (OMS, 2003) utilizam os mesmos critérios
diagnósticos para todas as faixas etárias (Rangé, 2003). Portanto, o diagnóstico do
TOC é clínico, não existindo nenhum exame laboratorial ou radiológico da doença
(Kaplan, Sadock & Greeb, 2003). A necessidade para preencher critérios de TOC é que
os pensamentos sejam percebidos pelo paciente como de procedência interna (Caballo,
1999). Esse aspecto é um diagnóstico diferencial importante do TOC com a esquizofrenia,
pois quadros como o da esquizofrenia referem que os pensamentos foram colocados na
cabeça por um agente externo (Ito, 1998). Entretanto, segundo Buckley, Miller, Lehrer e
Castle (2009) 23% dos esquizofrênicos apresentam o transtorno obsessivo-compulsivo
como comorbidade.
Porém, Leckman e cols. (2010) acreditam ser importante rever a nosologia do
TOC, avaliando se mudanças nos critérios diagnósticos, bem como nos subtipos e
especificadores da doença, poderiam melhorar a eficácia diagnóstica e sua utilidade clínica.
Desta forma, os autores avaliaram os critérios diagnósticos já existentes e realizaram uma
busca, nas bases de dados, sobre o assunto. Assim, estabeleceram algumas considerações
para o DSM-V, que são: definição mais clara e simplificada das obsessões e compulsões
(critério A), a exclusão da exigência de que as pessoas reconheçam que as suas obsessões
e compulsões são excessivas ou irracionais (critério B), a reconsideração do critério de
significância clínica (critério C) e uma listagem de transtornos adicionais para auxiliar
no diagnóstico diferencial (critério D). Além disto, uma reconsideração em relação ao
critério de exclusão médica (critério E), um maior esclarecimento do que se entende por
condição médica geral e uma revisão nos especificadores do transtorno, são algumas das
recomendações dos autores.
Em relação aos sintomas do TOC, as obsessões podem apresentar-se como
pensamentos, ideias, impulsos, imagens ou cenas que invadem a consciência de forma
repetitiva, persistente e estereotipada. Estas podem variar devido a cultura, pois o conteúdo
das obsessões, normalmente, reflete as preocupações com o meio em que o indivíduo está
inserido. As obsessões são subjetivas e tendem a ficar fixadas na consciência, não sendo
fácil removê-las (APA, 2003). Desta forma, não basta um simples aconselhamento nem
a decisão do sujeito de não ter mais os pensamentos. Necessita-se de um tratamento feito
por profissionais capacitados para que o indivíduo consiga administrar seus sintomas
(Rangé, 2003), pois indivíduos que ainda não estão sob acompanhamento se utilizam das
compulsões como método de diminuir ou neutralizar o desconforto, o que acaba por virar
um ciclo de obsessões e compulsões diárias (Kaplan, Sadock & Greeb, 2003).
As compulsões podem ser as mais diversas e incluem as verificações, contagens,
limpezas excessivas, repetições de atitudes, necessidade exagerada de colocar objetos em
140
Aletheia 33, set./dez. 2010
ordem, dentre outros. Entretanto, além das compulsões com comportamentos manifestos
existem as compulsões via atos mentais, que se apresentam como pensamentos
compulsivos não manifestos, tais como: rezar, contar e/ou tentar anular as obsessões
com palavras ou frases (Kapczinski, Quevedo & Izquierdo, 2004). Identificar a dimensão
dos sintomas obsessivos e compulsivos do transtorno é importante para que tratamentos
clínicos possam se tornar mais eficazes (Matsunaga, Hayashida, Kiriike, Maebayashi
& Stein, 2010).
Um fator que pode agravar o transtorno é o fato de existirem comorbidades, ou
seja, outro transtorno associado ao TOC. Estas podem se apresentar em qualquer faixa
etária como mais um transtorno de ansiedade ou, até mesmo, do espectro obsessivocompulsivo. Fazem parte do espectro: a tricotilomania (arrancar os próprios cabelos e
pelos constantemente), a dermatotilexomania (cutucar excessivamente a pele), os tiques,
a síndrome de Tourette (tiques motores e vocais), o transtorno dismórfico corporal
(percepção errônea e exagerada sobre sua aparência física) e o comprar compulsivo
(Miranda & Bordin, 2001; Tavares, Lobo, Fuentes & Black, 2008).
Além desses, é comum encontrarmos outros transtornos associados, como os
transtornos do humor (depressão), o abuso e dependência de substâncias e os transtornos
alimentares, como a anorexia e a bulimia. As comorbidades prejudicam o curso e a
qualidade de vida de quem tem o transtorno, além disso, interferem na evolução, no
prognóstico e também na procura por atendimento especializado (Corchs & cols.,
2008). Em relação ao tempo de instalação dos transtornos comórbidos foi constatado
que os transtornos de ansiedade, principalmente, as fobias, antecedem a instalação do
TOC, os transtornos do humor acompanham ou mais frequentemente sucedem o TOC
e os transtornos de abuso e dependência de substâncias sucedem o TOC (Miranda &
Bordin, 2001).
O transtorno obsessivo-compulsivo nas diferentes faixas etárias
O TOC, em relação à faixa etária, pode se apresentar de diferentes formas e é mais
prevalente em algumas idades, sendo mais comum o aparecimento dos primeiros sintomas
no final da adolescência. Algumas vezes, pode iniciar na infância, mas dificilmente após
os 40 anos, ou seja, na meia idade. A prevalência do TOC, em relação à faixa etária, é
de 0,7% na infância e adolescência e, nesta fase, tende a se manifestar mais no sexo
masculino do que no feminino. Pode ser mais grave em meninos, quando inicia antes
dos 10 anos e em meninas com aparecimento após essa idade (Kapczinski, Quevedo &
Izquierdo, 2004).
Já nos adultos a prevalência é de 0,3% a 2,2% e tende a se manifestar mais nas
mulheres do que nos homens, tendo as mulheres, muitas vezes, somente as obsessões
(Torres & Lima, 2005). Além disto, nessa fase, a incidência do transtorno é maior em
pessoas com conflitos conjugais, divorciados, separados e desempregados, podendo o
estresse ser considerado um agravante para o TOC (Prazeres & cols., 2007).
Quando o transtorno se manifesta na infância e na adolescência as repercussões,
geralmente, acontecem mais a nível escolar, ocasionando um declínio no rendimento
devido a diminuição da capacidade de concentração e da atividade social, podendo levar
Aletheia 33, set./dez. 2010
141
o indivíduo a se distanciar de amigos e familiares (Bèdard, Joyal, Godbout & Chantal,
2009; Prazeres & cols., 2007). Segundo Lewin, Caporino, Murphy, Geffken e Storch
(2010) os sintomas responsáveis pelo comprometimento funcional, nestas faixas etárias,
são a baixa percepção, o excessivo senso de responsabilidade, a indecisão, a lentidão
generalizada e um sentido de responsabilidade excessivo.
Estes sintomas, geralmente, são observados em casa, pois os indivíduos sentem
vergonha de fazer os rituais na frente de estranhos. Portanto, é importante que os
pais fiquem atentos a certas alterações de comportamentos, tais como: problemas
dermatológicos ocasionados por inúmeras lavagens do corpo; utilização de tempo
maior que o normal para a realização de tarefas rotineiras; gasto excessivo de sabão;
arrumação excessiva de brinquedos ou outros objetos; buracos nos cadernos e livros
ocasionados por apagar seguidamente e medo exagerado de que algo de ruim possa
acontecer a alguém da família. Esses sintomas podem ser pistas importantes para
detectar o TOC (Rangé, 2003).
Ainda assim, é importante salientar que, na infância, existem certos rituais,
repetições e superstições que são comuns e característicos desta fase. Crianças de dois
a quatro anos de idade, principalmente, costumam apresentar uma intensificação de
comportamentos repetitivos. Os rituais mais comuns nestas fases acontecem, geralmente,
na hora de dormir, comer e de tomar banho. As crianças costumam pedir a repetição de
histórias, gostam dos alimentos organizados no prato, só tomam banho se estiverem com
um determinado brinquedo, dentre outros. A partir dos seis anos, os rituais se manifestam
nas brincadeiras em grupos, onde os jogos passam a ter regras rígidas e as coleções dos
mais variados objetos aparecem com frequência, além das superstições que também são
comuns desta fase (Campos & Mercadante, 2000).
Porém, esses rituais e superstições não são TOC, pois não interferem no
funcionamento da criança e dão a ela uma sensação de controle sobre a imprevisibilidade
dos eventos da sua vida. Entretanto, mesmo que não tenham a mesma frequência e
intensidade dos sintomas obsessivo-compulsivos, estes comportamentos podem ser
confundidos com o transtorno. Desta forma, é importante reconhecer, quando esses rituais
e superstições tornam-se patológicos, ou seja, quando as crianças passam a precisar de
ajuda. Para fazer essa diferenciação deve-se considerar a faixa etária, a duração dos
comportamentos, a intensidade e a interferência ou não dos sintomas nas atividades e
no desenvolvimento da criança (Campos & Mercadante, 2000). A identificação precoce
do TOC é essencial para um bom funcionamento psicossocial e uma melhor qualidade
de vida (Sturm, 2008).
Quando um adulto tem TOC, as repercussões podem se tornar mais prejudiciais, pois
estes, muitas vezes, têm que trabalhar para sustentar uma família e possuem obrigações e
responsabilidades que dependem do seu bem-estar mental. Sendo assim, devido ao tempo
que os sintomas ocupam na vida do portador podem ocorrer demissões de empregos,
separações e até mesmo dificuldades de sair de casa (Cordioli, 2004). Além do impacto
na profissão do paciente, a família também sofre com os sintomas do TOC, pois chega a
alterar rotinas e exigir adaptações aos sintomas. Os portadores do transtorno, normalmente,
obrigam os demais membros da família a fazer o mesmo que eles, chegando a impedir o
uso de sofás, camas, roupas, toalhas, louças e talheres, bem como o acesso a determinados
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locais da casa. Assim, os cuidados excessivos, as exigências e os medos exagerados nem
sempre são compreendidos ou tolerados pelos demais, provocando discussões e atritos,
fazendo com que a qualidade de vida da família diminua (Torresan, Smaira, Cerqueira
& Torres, 2008).
Devido a proporção que estes sintomas ganham na vida de uma pessoa, algumas
destas podem ficar totalmente impossibilitadas de sair de casa, ou perder a crítica em
relação a si mesmos, diminuindo a probabilidade de aceitarem tratamento. A cronicidade
do transtorno também favorece uma situação em que os familiares acabam se adaptando
aos sintomas e exigências do paciente no dia a dia para evitar conflitos e por percebem
que isso traz um alívio, pelo menos imediato, a eles (Torres & Prince, 2004). Mas, pelo
fato de não conhecerem como os sintomas se estruturam e não saberem como lidar com
esses, não percebem que isto reforça, cada vez mais, esses comportamentos. Portanto,
a busca de ajuda especializada é de extrema importância (Niederauer, Braga, Souza,
Meyer & Cordioli, 2007).
Tratamento cognitivo-comportamental para o TOC
O TOC, há tempos atrás, dispunha de poucos recursos efetivos para o seu tratamento,
porém, atualmente, já dispõe de um bom repertório e cerca de 70% dos pacientes tratados
conseguem reduzir ou até mesmo eliminar seus sintomas por completo (Cordioli, 2004). A
terapia cognitivo-comportamental e/ou a farmacoterapia são as formas que se mostraram
mais eficazes para trabalhar com o TOC (Cordioli, 2004; Dobson, 2006; Knapp, 2004;
Mitsi, Da Silveira, & Costa, 2004; Muris & Broeren, 2010; Rangé, 2003).
Entretanto, são comuns revisões de caráter cientifico apontarem para a necessidade
de adequação entre as características do paciente e as características do tratamento, na
tentativa de evitar o mito comum da uniformidade entre os indivíduos. Portanto, embora
na literatura não esteja explicito que existem diferenças significativas do tratamento
cognitivo-comportamental em crianças, adolescentes e adultos, algumas considerações
devem ser levantadas (Dobson, 2006).
Nas crianças e adolescentes, as técnicas utilizadas por terapeutas cognitivocomportamentais podem parecer sem significação, devido a dificuldade da criança e/
ou adolescente de compreender o sentido e objetivo da técnica. Além disto, crianças
muito pequenas podem ficar intimidadas pelos procedimentos utilizados pelo terapeuta
cognitivo-comportamental, sendo importante que o profissional proporcione informações
adequadas aos pais e filhos sobre o propósito e o uso adequados de uma técnica (Dobson,
2006).
Porém, para todas as faixas etárias, a terapia permanece focada no problema, ativa
e orientada ao objetivo (Friedburg & McClure, 2004). A diferença aparece em relação
à procura de ajuda. Quando se atende uma criança, não é essa quem busca a ajuda, mas
algum responsável, pelo fato desta estar criando problemas para algum sistema, seja
este família, escola ou outro. Desta forma, o terapeuta acaba dependendo da vontade e
interesse dos pais de levar a criança ao atendimento e que estes também não interrompam
o tratamento, pois, nesta faixa etária, é muito importante a participação e o apoio da
família (Asbahr, 2004). Um estudo feito por Merlo, Lehmkuhl, Geffken e Storch (2010)
Aletheia 33, set./dez. 2010
143
identificou que a acomodação da família pode ser um obstáculo ou um preditor de uma
não adesão ao tratamento, bem como de resultados negativos no tratamento.
Segundo Knapp (2004), a terapia cognitivo-comportamental para o transtorno
obsessivo-compulsivo é um tratamento, geralmente, breve e segue as seguintes etapas:
avaliação do paciente e indicação do tratamento; motivação do paciente; informações
psicoeducativas e estabelecimento da relação terapêutica; treinamento na identificação
dos sintomas; listagem e hierarquização dos sintomas pelo grau de aflição associada;
sessões de terapia; técnicas comportamentais de exposição e prevenção de resposta;
modelação; estratégias especiais para o tratamento de obsessões; técnicas cognitivas
para a correção de pensamentos e crenças disfuncionais; prevenção de recaída, alta e
terapia de manutenção.
De acordo com as etapas citadas acima, primeiro é feito a avaliação do paciente,
realizada através de uma entrevista semiestruturada que tem por objetivo identificar os
sintomas obsessivo-compulsivos e as manifestações do TOC (obsessões, rituais, rituais
mentais, dentre outros). Após essa avaliação o terapeuta julga a capacidade do paciente
de suportar a ansiedade e se certifica de que ele está disposto a fazer o tratamento
corretamente, pois a colaboração do paciente é de extrema importância no processo,
assim como, a da família. Por este motivo, são fornecidas informações a respeito do
transtorno para ambos (Knapp, 2004).
O paciente, de posse dessas informações, tem maior facilidade na hora de
identificar seus sintomas e perceber quando um comportamento é normal e quando
ele faz parte do transtorno. Assim, no momento em que o paciente consegue fazer esse
reconhecimento, inicia a construção de uma lista contendo as situações ansiogênicas,
colocando em primeiro lugar as que causam menos ansiedade até chegar às situações
de maior ansiedade. Essa lista é chamada de diário e é elaborada pelo próprio paciente.
Nela também vão estar presentes a situação em que os sintomas ocorrem (obsessões e
compulsões) e a duração destes, sendo este diário muito útil na fase inicial e servindo
como um guia para o planejamento e a avaliação do progresso do tratamento (Rangé,
2003).
Após essa primeira etapa se utiliza a técnica de exposição e prevenção de resposta
fazendo com que o indivíduo mantenha a obsessão (pensamento) e permaneça com
essa ideia no consciente, sem executar a compulsão. Desta forma, o paciente se habitua
às suas obsessões e percebe que a ansiedade passa, sem que seja preciso executar a
compulsão (Rangé, 2003). O terapeuta também pode ajudar o paciente fazendo uma
demonstração, por exemplo, se o paciente acredita que vai ser contaminado quando tocar
na maçaneta da porta e, por isso, tem que ir rapidamente lavar as mãos, o terapeuta irá
tocar na maçaneta da porta e não lavará suas mãos, para que, pelo método da observação
o paciente possa constatar que ele não será contaminado e que sua obsessão não condiz
com a realidade (Knapp, 2004).
Segundo a terapia cognitivo-comportamental, essas obsessões podem ocorrer
devido a crenças disfuncionais, que são pensamentos absolutistas a respeito de nós
mesmos, a respeito dos outros e/ou do mundo (Greenberger & Padesky, 2007). Segundo
Knapp (2004) essas crenças podem ser corrigidas através do questionamento socrático,
dos quais fazem parte algumas questões como: 1) Que evidências eu tenho de que o que
144
Aletheia 33, set./dez. 2010
passa pela minha cabeça ou os meus medos tem algum fundamento? E que evidências
são contrárias? 2) Existe uma explicação alternativa para isso? 3) Meus medos têm como
base alguma prova real, ou ocorrem porque eu tenho TOC? O que é mais provável?
4) O que fulano diria sobre meus medos? 5) Como a maioria das pessoas se comporta
em situações semelhantes? 6) Qual é a crença errônea?
Após a realização de todas essas etapas e com a maioria dos sintomas do paciente
eliminados, o tratamento chega à fase final, na qual as sessões passam a ser menos
frequentes, numa periodicidade quinzenal e, sequencialmente, é dada alta. Nesta fase
também é explicado que pode haver momentos onde os sintomas reincidam e que isso
tende a ocorrer por distração ou falha nas estratégias de autocontrole. Porém, nesta
etapa, o paciente já tem ferramentas para lidar com esta questão (Knapp, 2004).
A terapia cognitivo-comportamental para indivíduos com TOC também pode
ser realizada em grupo, Fenger, Mortensen, Rasmussen e Lau (2007) desenvolveram
um manual para o tratamento cognitivo-comportamental em grupo de pacientes
com TOC, onde 24 indivíduos de uma população clínica participaram. Os autores
verificaram que houve uma melhora significativa nos indivíduos que fizeram parte
da terapia em grupo, porém ressaltam a importância de estudos longitudinais para a
observação da resposta ao tratamento a longo prazo.
Quando o tratamento necessita de uma intervenção medicamentosa, essa é feita
com antidepressivos, pois são inibidores da recaptação de serotonina (IRS) e possuem
uma ação antiobsessiva. Os mais indicados são: Fluvoxamina (Luvox), Sertralina
(Zoloft, Tolrest), Fluoxetina (Prozac, Psiquial, Verotina, Deprax, etc.), Paroxetina
(Aropax, Pondera), Clomipramina (Anafranil) e Citalopran (Cipramil) (Cordioli,
2005). Para o uso em crianças, as medicações mais indicadas são a clomipramina, a
fluvoxamina e a sertralina. No caso da clomipramina, deve haver um monitoramento
cardíaco criterioso e devem-se evitar interações com determinados antibióticos
(Campos & Mercadante, 2000).
As medicações devem ser mantidas por, pelo menos, três meses em dose máxima
para avaliação de sua eficácia. Após seis meses, caso os sintomas estejam controlados,
faz-se uma redução da dosagem e, após dezoito meses, tenta-se a suspensão. A
medicação deve ser retirada lentamente, reduzindo 25% a cada dois meses. Frente à
comorbidade com o transtorno de tiques ou à má resposta aos IRS, deve-se considerar
a potencialização com neurolépticos (Campos & Mercadante, 2000).
Cordioli (2004) ressaltou que o uso das medicações é necessário quando: os
sintomas obsessivo-compulsivos são muito graves; predominam obsessões; existem
comorbidades; sintomas graves de ansiedade ou depressão estão presentes; as
convicções sobre as obsessões e a necessidade de realizar rituais são muito fortes
ou muito rígidas; houve insucesso em tentativas de realizar TCC anteriormente; o
paciente não adere aos exercícios. Embora o uso de medicação, em alguns casos,
seja de extrema importância, é recomendável que este seja feito concomitante à
terapia cognitivo-comportamental, pois esta também melhora os sintomas obsessivocompulsivos e diminui o risco de recaída após a retirada da medicação, devendo ser
considerada como tratamento de primeira escolha (Campos, 2001).
Aletheia 33, set./dez. 2010
145
Considerações finais
Este estudo, de caráter teórico, levantou informações a respeito do transtorno
obsessivo-compulsivo, apresentando suas características – psicogênicas e biológicas –
suas repercussões, manifestações e formas de tratamento nas diferentes faixas etárias.
Também foi investigado se as peculiaridades sintomáticas, correspondentes às diferentes
faixas etárias, repercutem no tipo de tratamento a ser realizado, no que se refere aos
procedimentos psicoterapêuticos, conforme os pressupostos da abordagem da terapia
cognitivo-comportamental.
Isto proporciona que familiares de portadores do TOC e a comunidade em geral
compreendam mais sobre o transtorno, aprendam a lidar com os sintomas e consigam
evitar os problemas decorrentes da doença. Além disto, um maior entendimento também
pode auxiliar na procura de ajuda especializada. Os indivíduos com TOC, muitas vezes,
deixam de buscar auxílio especializado e um melhor esclarecimento de tal transtorno
pode favorecer a tomada de decisão, evitando que esse se prolongue e evolua de forma
a prejudicar a qualidade de vida.
O TOC é uma doença extremamente aprisionadora, que submete seu portador a
uma série de pensamentos catastróficos e impulsos angustiantes na busca de uma não
concretização destes pensamentos. Só que esta é uma busca sem fim, pois quanto mais
a pessoa tem estes pensamentos e comportamentos mais eles tendem a aumentar, o que
gera ansiedade e um grande sofrimento psicossocial. Além disto, o TOC é uma doença
cujo(s) determinante(s) e origem(s) ainda não foram totalmente especificados, tende
à cronicidade e se apresenta de forma diferente em cada pessoa, o que pode acabar
mascarando e confundindo a manifestação de sua sintomatologia e, consequentemente,
dificultando o seu diagnóstico (Torres & Smaira, 2001).
Em relação aos sintomas do transtorno, foi verificado que estes mantêm um padrão e,
independente da idade, se manifestam dentro de quatro grandes categorias: compulsões de
limpeza, verificações, obsessões puras (pensamentos repetitivos, disruptivos e de conteúdo
sexual agressivo) e lentidão obsessiva primária (necessidade de externalizar com precisão
tudo o que é feito, o que toma um tempo considerável). Além disto, constatou-se que,
em todas as faixas etárias, estes sintomas geram repercussões na capacidade produtiva,
na vida familiar e no convívio social, ou seja, nas instâncias principais da vida de um
indivíduo (Rangé, 2003).
Assim, devido ao fato do TOC ser uma doença que mantém um padrão, tanto em
seus critérios diagnósticos, quanto na manifestação de seus sintomas, provavelmente
tenha se mantido também um padrão na forma de tratamento. O que se observa em
relação a isto, é que a terapia cognitivo-comportamental mantém a mesma forma de
procedimento para todas as idades, o que sugere que ainda não tenham sido desenvolvidos
modos diferenciados para atender adultos e crianças. Estas ainda não têm a capacidade
egodistônica desenvolvida, tendo maiores dificuldades em relatar e descrever seus
sintomas (Da Matta, 2007), sugerindo um largo campo de investigação em relação a
tratamentos que poderão ajudar de forma mais eficaz esta população.
A terapia cognitivo-comportamental é composta de passos que requerem participação
ativa e um grau de compreensão dos sintomas, acredita-se que esta proporcione um melhor
146
Aletheia 33, set./dez. 2010
aproveitamento por parte dos adultos devido a capacidade de compreensão que, em
princípio, estes devem possuir. Em relação aos adultos, pôde-se perceber que o tratamento
se mostra bastante qualificado, obtendo bons resultados na cura e amenização de sintomas,
podendo ser inferido que portadores de TOC, em idade madura, aumentam as chances
de um melhor desempenho no processo de tratamento.
Entretanto, as crianças também poderiam ser beneficiadas com esta forma de
psicoterapia, desde que fossem efetivadas num “setting” adequado. Isto implicaria em
formas de atendimento diferenciadas para elas, proporcionando condições para que
também consigam ter um aproveitamento melhor do tratamento cognitivo-comportamental.
Este tratamento poderia conter formas lúdicas de abordagem, procedimento que pode
facilitar o envolvimento da criança com as outras técnicas e metas da terapia cognitivocomportamental. Desta forma, a criança consegue se comunicar de forma melhor e o
terapeuta pode ter uma maior compreensão dos sintomas. Assim, métodos mais precisos
para o diagnóstico, tratamentos mais eficazes e instrumentos mais adequados para
monitorar o progresso durante o tratamento desta faixa etária ainda são necessários
(Berman & Abramowitz, 2010).
Outra sugestão providencial decorrente deste levantamento teórico é a possibilidade
deste conhecimento poder contribuir para a realização de maior divulgação em relação
ao TOC para a população geral. A partir de maiores esclarecimentos sobre esta patologia
poderão ser evitadas maiores implicações do transtorno na vida do portador e dos que
convivem com ele, pois estes saberão como lidar melhor com estes indivíduos e seus
respectivos sintomas. Além disto, um melhor esclarecimento sobre estas sintomatologias
também serve para evitar que elas se agravem. Vale ressaltar que esta é uma doença que
não se instala aos poucos e que tende a piorar com o tempo, desta forma, quanto mais
cedo for buscado um auxílio especializado melhores serão as chances de sucesso no
tratamento.
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____________________________________
Recebido em 24/04/2010
Aceito em 22/11/2010
Cema Cardona Gomes: Mestre em Psicologia – UNISINOS- RS.
Thiago Osório Comis: Graduando em Psicologia – UNIFRA (Santa Maria-RS).
Rosa Maria Martins de Almeida: Pós-Doutora – Tufts University (USA).
Endereço para contato: [email protected] ou [email protected]
150
Aletheia 33, set./dez. 2010
Aletheia 33, p.151-165, set./dez. 2010
Revisão da literatura brasileira sobre a problemática
do desenvolvimento de crianças assistidas por clínicas-escola
Cristine Boaz
Maria Lúcia Tiellet Nunes
Resumo: O objetivo do estudo é revisar a literatura brasileira sobre a problemática de
desenvolvimento de crianças assistidas em clínicas-escola de 1980 a 2008, para avaliar mudanças
nos problemas desenvolvimentais em relação ao sexo da criança. Os artigos são oriundos das
bases eletrônicas Bvs, Indexpsi, Lilacs, Pepsic e Scielo, a partir dos descritores clínicas-escola,
crianças, desenvolvimento infantil, o que resultou em 22 artigos, divididos em três grupos, de
acordo com a análise de dados realizada. Foi possível identificar o perfil mais frequente entre os
sexos: mais meninos do que meninas apresentam problemas de aprendizagem e comportamento
do tipo externalizante. Entretanto, não há dados inferenciais que permitam afirmar diferenças entre
os problemas desenvolvimentais em relação a sexo, o que, por sua vez, impossibilita concluir se
os problemas desenvolvimentais por sexo mudaram ao longo do tempo.
Palavras-chave: clínica-escola, crianças, problemática do desenvolvimento.
Literature review about children’s development problems in school clinics
in Brazil
Abstract: The objective of the study is to review the Brazilian literature about children’s
development problems in out patient clinics from 1980 to 2008, in order to verify if changes about
developmental problems regarding the sex of the child occurred. The articles reviewed were from
electronic data bases such as Bvs, Indexpsi, Lilacs, Pepsic e Scielo, using the key-words out patient
clinics, children and child development, and summed 22 divided in three groups, according to data
analyses performed. It was possible to identify the most frequent profile: boys, more than girls,
present learning difficulties and externalizing problems. However, there are not inferential data
to discriminate development problems regarding the sex of the child, which does not enables to
conclude if such problems varied along time.
Keywords: school-clinics, children, development problems.
Introdução
Clínicas-escola são os locais de atendimento clínico de cursos de Psicologia;
atendem à população de baixa e média renda e possuem três funções: ensino, pesquisa
e extensão (Löhr & Silvares, 2006). Seus serviços são exigidos por lei para os cursos
de Psicologia no Brasil, conforme Lei nº 4.119 de 1962, que regulamenta a profissão do
psicólogo no Brasil e dispõe sobre os cursos de Psicologia no país (Brasil, 1962).
1
1
Já existe a expressão serviço-escola, pois os atendimentos nas denominadas clínicas-escola se ampliaram
para além da psicoterapia mais tradicional, entretanto, essa expressão ainda não pertence aos descritores da
Biblioteca Virtual de Saúde. O artigo se dedica a analisar artigos brasileiros em função das peculiaridades desse
tipo de atendimento, exigido por lei nos cursos de psicologia do Brasil. Além disso, considera-se importante
conhecer a realidade dos cursos de formação em psicologia no Brasil e quais as características das crianças
que buscam auxílio psicológico nestes locais.
As clínicas-escola estão cada vez mais preocupadas em caracterizar a sua
clientela, com o intuito de direcionar as suas modalidades de atendimento às diferentes
problemáticas apresentadas pela clientela. Sendo assim, torna-se necessário verificar
o que está adequado nos serviços de atendimento e o que deve ser aprimorado para
atender os pacientes de forma mais eficaz (Romaro & Capião, 2003). Com relação
a isto, Peres (1997) refere que as clínicas-escola devem buscar conhecer o perfil
sociodemográfico dos seus pacientes. Nunes, Campezatto, Cruxên e Savalhia (2006)
salientam a importância da realização de pesquisas que esclareçam a relação entre
prática, ensino e pesquisa, a fim de tornar a clínica-escola um local de aprendizagem
da teoria e da prática psicológica, atendendo, assim, ao seu papel social. Segundo
Romaro e Capitão (2003), Ferreira (1998) e Güntert e cols. (2000), dentre outros,
estas instituições devem se propor a auxiliar o estagiário na sua formação e a permitir
à Universidade que cumpra uma prestação de serviços à comunidade, pois as taxas
de problemas mentais são altas, conforme segue.
A World Health Organization (2001), em seu relatório, apresenta as
perturbações mentais mais frequentes em crianças: Transtorno de Déficit de Atenção
e Hiperatividade, Transtornos de Conduta e Depressão. Na América Latina, quase
17 milhões de crianças de cinco a sete anos de idade apresentam tais distúrbios
mentais, que necessitam de tratamento. No Brasil, vem sendo documentando o perfil
predominante de atendimento em clínicas-escola: Campezatto e Nunes (2007), De
Moura, Marinho-Casanova, Meurer e Campana (2008), em estudos mais recentes,
constatam que prevalecem os meninos sobre as meninas, com seis a 10 anos de idade,
tendo a escola como principal fonte de encaminhamento; os problemas mais frequentes
são problemas de aprendizagem e comportamento externalizante. Entende-se que as
problemáticas mais recorrentes entre a clientela infantil é um tema de interesse geral,
pois possuem probabilidade relativamente alta de persistirem até a idade adulta e
de gerar sofrimento e prejuízos significativos. Esta condição indica a necessidade
de intervenções efetivas iniciadas na infância para reduzir o sofrimento infantil e
atenuar comprometimentos futuros.
Levando em conta estas considerações, torna-se importante caracterizar a
população assistida por clínicas-escola para nortear os serviços oferecidos e adequálos às necessidades da clientela. Por isso, o objetivo deste estudo é pesquisar artigos
que estudam os problemas desenvolvimentais apresentados por meninos e por meninas
assistidos em clínicas-escola no Brasil nas últimas três décadas. Uma caracterização
mais completa sobre a clientela, que apresente as diferenças entre meninos e meninas,
conforme o presente estudo propõe, pode permitir que os serviços atendam de
forma mais específica e estruturada meninos e meninas e possam vir a desenvolver
estratégias preventivas para essa população. Como será visto nos artigos revisados,
são poucos os estudos que relacionam os problemas à variável sexo, o que se tornaria
necessário para melhor atendimento de meninos e de meninas. Além disso, revisões de
literatura são convenientes, pois analisam estudos realizados, sinalizam o que precisa
ser melhor e mais investigado e indicam similaridades e diferenças nos resultados
obtidos entre os estudos.
152
Aletheia 33, set./dez. 2010
Método
A busca por artigos nacionais a respeito de problemas desenvolvimentais em
crianças em clínicas-escola foi realizada nos periódicos científicos publicados em
bases eletrônicas, tais como Bvs, Indexpsi, Lilacs, Pepsic e Scielo, utilizando os
descritores: “clínica-escola”, “problemáticas do desenvolvimento” e “crianças”, em
buscas sucessivas de maio a outubro de 2009. Os artigos publicados em periódicos
não indexados foram buscados nas das hemerotecas da PUCRS e da UFRGS.
As referências dos artigos resultantes das pesquisas eletrônicas e manuais foram
buscadas para ampliar o número de artigos a examinar. O critério de inclusão dos
artigos foi conter informações sobre clínicas-escola, atendimento a crianças, e que
apresentassem dados estatísticos referente aos problemas desenvolvimentais de
meninos e de meninas.
Foram excluídas referências de textos de anais de eventos científicos, porque
não continham, em geral, as informações necessárias, assim como dissertações e teses,
pela dificuldade de acesso, em especial, das mais antigas, e artigos que não incluíam
a variável sexo em seus estudos. De dissertações e teses, assim como de anais de
eventos científicos, foram realizadas buscas no currículo Lattes dos autores, a fim de
verificar se havia publicações sobre o assunto na forma de artigos.
A busca resultou em 22 artigos a serem examinados, após a aplicação dos
critérios de inclusão/exclusão; esses artigos foram, então, subdivididos em três
grupos, de acordo com a análise de conteúdo realizada: artigos que estudaram os
problemas desenvolvimentais, mas que não os diferenciaram por sexo; artigos que
trabalharam a variável sexo, mas somente usando porcentagens; artigo que trabalhou a
variável sexo através de cálculo inferencial. Cada artigo foi discutido separadamente,
contendo as variáveis estudadas. Serão contemplados os artigos publicados desde
1980 até 2008.
Resultados e Discussão
Dos 22 artigos estudados, 13 não diferenciaram os problemas desenvolvimentais
por sexo, mas apresentaram as porcentagens de meninos e de meninas participantes
nos levantamentos de dados; oito diferenciaram os problemas desenvolvimentais por
sexo e citaram as porcentagens dos problemas desenvolvimentais mais comuns em
meninos e em meninas, porém, não realizaram análises inferenciais. Por fim, apenas
um artigo utilizou a estatística descritiva inferencial, discriminando os problemas
desenvolvimentais que mais aparecem em meninos e em meninas. Assim, de acordo
com esses achados, os artigos foram agrupados em: grupo 1 – artigos que não
diferenciaram os problemas desenvolvimentais por sexo; grupo 2 – formado pelos
que trabalharam somente com porcentagem; e grupo 3 – composto pelo que utilizou
estatística descritiva inferencial para examinar os problemas desenvolvimentais em
relação à variável sexo. A partir destes três agrupamentos, foram realizadas três
tabelas resumo com as principais contribuições de cada artigo revisado. As tabelas
se encontram anexadas.
Aletheia 33, set./dez. 2010
153
Grupo 1 – artigos que não diferenciam os problemas desenvolvimentais por sexo
Ancona-Lopez (1983a, 1983b) caracterizou a clientela que procurou o serviço de
Psicologia em uma clínica-escola de São Paulo, SP. Constatou que 68,3% eram meninos
e 31,7% eram meninas, sendo a faixa etária mais frequente de seis a 10 anos (32,3 %) e
o principal problema desenvolvimental era relacionado a problema cognitivo (30,6 %),
ou seja, dificuldades escolares.
No artigo de Terzis e Carvalho (1986), realizado em Campinas, SP, as meninas
(56,9%) se apresentaram com mais frequência do que os meninos (42,1%, sendo 1% sem
informação sobre o sexo). O problema desenvolvimental mais frequente foi relacionado
a problemas de aprendizagem.
Em 1994, Yoshida, Gatti e Xavier realizaram estudo em uma clínica-escola de São
Paulo, SP, e, em seus achados, constaram que a busca de atendimento infantil era mais
frequente em meninos do que em meninas (66,9%, sendo 33,1% meninas). A demanda
maior da população foi de crianças com idades entre cinco a nove anos (58%) e os
problemas desenvolvimentais mais frequentes foram mau desempenho escolar (30,4%)
e comportamento agressivo (16,0%).
No final da década de 1990, conforme estudo realizado por Romaro e Capião
(2003), houve uma predominância de atendimento de meninos (65,3%) sobre meninas
(34,7%), na faixa etária dos cinco aos 14 anos, na clínica-escola da Universidade
de São Francisco, em São Paulo-SP, durante o período de 1995 a 2000. Dentre as
crianças, a maioria apresentava problemas desenvolvimentais múltiplos, sendo os
cinco mais predominantes os referentes a dificuldades escolares (19%), dificuldades no
relacionamento interpessoal (12,4%), comportamento agressivo (10,6%), dificuldades
nas relações familiares (10,3%) e distúrbios relacionados ao sono, alimentação ou
controle dos esfíncteres (9,5%).
Com referência à transição da década de 90 aos anos de 2000, Perfeito e Melo
(2004) realizaram um levantamento, a partir dos dados de atendimentos infantis que
ocorreram entre os anos de 1996 e 2002 em uma universidade de Uberlândia-MG, de
características epidemiológicas e clínicas surgidas em triagem. Os resultados apontaram
que 59,5% da amostra era composta por meninos, enquanto que 40,5% era por meninas.
Os problemas desenvolvimentais mais frequentes eram relacionados a dificuldades
escolares (49,5%), seguidas de nervosismo e agressividade (16,5%) e problemas de
comportamento (10,7%).
Sobre a última década, Bernardes-da-Rosa, Garcia, Domingos e Silvares (2000)
buscaram caracterizar o atendimento de crianças com dificuldades escolares em
Campinas-SP. Identificaram 60% de meninos e 40% de meninas, na faixa etária de
sete a 12 anos, sendo 88% dos problemas desenvolvimentais referentes a distúrbios
específicos do desenvolvimento e habilidades escolares.
Scortegagna e Levandowski (2004) analisaram os encaminhamentos realizados
por escolas municipais de Caxias do Sul-RS, de crianças com problemas escolares, ao
Serviço de Psicologia do Programa VinculAÇÃO. Os encaminhamentos analisados
foram os da lista de espera dos anos 2002 e 2003. Os problemas desenvolvimentais mais
frequentes foram classificados nas seguintes categorias: problemas de aprendizagem
(36%), de comportamento (31%) e emocionais (29%). A maior ocorrência de problemas
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Aletheia 33, set./dez. 2010
desenvolvimentais foi com relação a meninos (69,3%), correspondendo a mais do que
o dobro de encaminhamentos sobre as meninas (30,7%).
Massola e Silvares (2005) referiram que, apesar de meninos e meninas não terem
demonstrado diferenças significativas de comportamento, segundo levantamentos
obtidos do Child Behavior Check-List – CBCL, os professores tendiam a encaminhar
um número consideravelmente maior de meninos (69%, sendo 31% meninas) para
atendimento psicológico, o que sugeriu um viés sobre a percepção dos pais e dos
professores sobre alunos de diferentes sexos. Os professores identificavam corretamente
quem apresentava necessidade de atenção especial, mas havia uma tendência a valorizar
mais as competências das meninas e a lembrar com maior facilidade os distúrbios dos
meninos. Os autores apenas apresentaram a porcentagem de meninos e de meninas que
apresentaram indicação para atendimento psicológico, não identificando os problemas
desenvolvimentais.
Melo e Perfeito (2006) realizaram um levantamento referente aos atendimentos
realizados na clínica-escola de uma universidade de Uberlândia, MG, entre os anos de
2000 e 2002. Constataram que 62,6% da amostra era composta por meninos, enquanto
que 37,4% eram meninas. Os problemas desenvolvimentais mais frequentes foram:
comportamental (60,4%), emocional/afetiva (51%), escolares (24%), somáticas (23%)
e dificuldade de relacionamento e problemas cognitivos (ambas 14%).
Rocha e Ferreira (2006) publicaram um estudo de Belém-PA e referiram que as
buscas por atendimento eram mais frequentes em meninos (68%, meninas: 32%). Os
problemas desenvolvimentais mais comuns foram dificuldades em habilidades sociais
(77,4%) e dificuldades escolares (56,4%).
Campezatto e Nunes (2007) realizaram um levantamento das características
sociodemográficas e clínicas da população que buscou atendimento em 2004 nas dez
clínicas-escola da Região Metropolitana de Porto Alegre. Seus achados foram similares
aos de outros estudos realizados no Brasil: a maioria era do sexo masculino (13,52% da
população atendida, enquanto que a frequência de meninas foi de 8,54% da população
atendida), com idades de seis a 10 anos (17,21% da população atendida) e encaminhadas
pela escola por problemas de comportamento ou dificuldade de aprendizagem,
correspondendo a 14,06% dos encaminhamentos da população.
No mesmo ano, Savalhia e Nunes também investigaram os motivos de consulta em
crianças de nove clínicas-escola do Rio Grande do Sul. Em seus resultados, a quantidade
de atendimentos a meninos (22,2,% da população que buscou atendimento nas clínicasescola) foi quase o dobro do número de meninas (12,1% da população que buscou
atendimento nas clínicas-escola). Os problemas desenvolvimentais mais frequentes foram
dificuldades no comportamento (29,5% dos casos atendidos) e dificuldades em processos
cognitivos (19,1% dos casos atendidos).
De Moura, Marinho-Casanova, Meurer e Campana (2008) realizaram um estudo
de caracterização da clientela infantil pré-escolar que foi encaminhada à clínica-escola
de psicologia de uma universidade pública no Paraná no período de agosto de 2004 a
maio de 2006. O levantamento foi feito através uma ficha de identificação da criança e
o CBCL (Child Behavior Checklist), versões de 1½ a 5 anos e 4 a 18 anos. Participaram
da pesquisa 103 mães com filhos em idade pré-escolar (2 a 6 anos). Dos filhos das
Aletheia 33, set./dez. 2010
155
participantes, 74% eram meninos e 26% eram meninas. A maior parte das crianças (91%,
estando inclusos os 9% de casos limítrofes) foi avaliada como clínicas. O predomínio
de perfis foi de comportamentos externalizantes (11%) sobre internalizantes (9%)
e 71% obteve escore clínico para os dois perfis: externalizante e internalizante. Na
versão 1½ a 5 anos, as categorias que tiveram os escores mais altos na avaliação foram:
“comportamento agressivo” 69,5%; “ansiedade e depressão” 66%, e “emocionalmente
reativo” 65,6%. O escore mais baixo foi na categoria “problemas somáticos”, a qual
obteve pontuação ao perfil não clínico. Na versão 4 a 18 anos, o escore mais alto também
foi referente à categoria “Comportamento Agressivo” (71,4%) e o mais baixo também
se referiu à categoria “problemas somáticos” (58,8%). O estudo não discriminou os
problemas desenvolvimentais por sexo, apenas referiu que os meninos apresentaram
problemas desenvolvimentais predominantemente do tipo externalizante, mas não citou
a porcentagem.
Os artigos examinados referiram as porcentagens de meninas e de meninos que
buscaram atendimento psicológico em clínicas-escola, mas não deixaram claro se os
problemas desenvolvimentais referidos eram mais frequentes em meninas ou em meninos,
apenas citaram quais foram os problemas desenvolvimentais mais frequentes.
Grupo 2 – artigos com registro dos problemas desenvolvimentais por sexo, apenas em
porcentagem
Sales (1989) realizou um estudo em uma clínica psicológica de Varginha-MG, a
fim de verificar o perfil da clientela. Encontrou 68,4% da população de meninos e 31,6%
de meninas. Os problemas desenvolvimentais que mais apareceram em meninos foram:
agressividade (17%), problemas neuromotores e de escolarização (ambos 11%). Nas
meninas, os problemas desenvolvimentais mais frequentes foram: angústia/depressão
(19%), problemas psicossomáticas (11%) e problemas familiares (10%).
Na década seguinte, Mello, Cervo e Rossi (1991) fizeram um levantamento do
perfil da clientela de uma clínica-escola de Porto Alegre-RS. A maioria era meninos
(64,9%; meninas: 35,1%). Os problemas desenvolvimentais mais comuns de meninos
eram: dificuldades na conduta (46,5%) e dificuldades escolares (44,3%). O estudo não
especificou a porcentagem dos problemas desenvolvimentais em meninas.
Graminha e Martins (1993) estudaram as características da população em um
serviço de atendimento infantil de Ribeirão Preto-SP. Dentre a clientela, 66,5% eram
meninos e 33,5% eram meninas. O problema desenvolvimental mais relatado, tanto
em meninos quanto em meninas, foi referente a dificuldades de aprendizagem, estando
presente em 36% das meninas e em 42% dos meninos.
Barbosa e Silvares (1994) realizaram um estudo em uma clínica-escola de
Fortaleza, CE, sobre a caracterização da clientela infantil atendida entre os anos de 1988
a 1990. Encontram que 64,3% de meninos buscam atendimento em relação a 35,7% de
meninas. Os problemas desenvolvimentais mais frequentes, tanto em meninas quanto
em meninos, foram: habilidades escolares (frequência relativa: 33,5% em meninos e
26,1% em meninas), distúrbios de comportamentos explícitos (frequência relativa:
43,5% em meninos e 43,1% em meninas) e distúrbios de comportamento não explícitos
(frequência relativa: 9,8% em meninos e 12,1% em meninas). Pode-se perceber que os
156
Aletheia 33, set./dez. 2010
problemas desenvolvimentais referentes a habilidades escolares foram mais comuns
nos meninos. Os problemas de comportamentos explícitos obtiveram frequências
semelhantes entre os sexos e os distúrbios de comportamentos não explícitos foram
mais frequentes nas meninas, assim como problemas relacionados a distúrbios orgânicos
(7,2%, sendo 3,8% em meninos).
Silvares (1996) realizou um levantamento bibliográfico em 19 artigos, não citando
a porcentagem dos problemas desenvolvimentais em meninos e meninas, porém, referiu
que os problemas desenvolvimentais mais frequentes nos meninos foram relacionados a
distúrbios da aprendizagem e do tipo externalizante/explícito.
Ainda em 1996, um estudo realizado por Borges sobre as características da
clientela infantil de uma clínica-escola de São Marcos, SP, apontou que a busca mais
frequente de atendimento foi de meninos (66,3%, sendo 33,6% meninas). A maioria das
crianças atendidas estava na faixa etária entre oito a nove anos (28,6%) e os problemas
desenvolvimentais mais frequentes, tanto de meninos quanto de meninas, foram distúrbios
de aprendizagem (meninos: 39,5%; meninas: 42,5%) e nervosismo (meninos: 25,9%;
meninas; 15,5%).
Sobre a última década, o artigo de Gatti e Beres (2004), sobre pacientes de um
serviço de atendimento de São Paulo, SP, mostrou que 57,1% da demanda de atendimento
eram de meninos e 42,9% de meninas. Os problemas desenvolvimentais mais frequentes
foram problemas de aprendizagem (40,8%), sendo 55% em meninos e 45% em meninas,
e agressividade (26,5%), sendo 61,5% em meninos e 38,5% em meninas.
Grupo 3 – estudo inferencial sobre problemas desenvolvimentais versus sexo
Marturano, Toller e Elias (2005) investigaram, em crianças encaminhadas para
atendimento psicológico em razão de baixo desempenho escolar, diferenças de sexo na
ocorrência de eventos de vida adversos e na associação desses eventos com problemas de
comportamento. Perceberam que as meninas apresentaram mais sintomas de ansiedade e
depressão (média para meninas: 6,86, DP ± 3,980; meninos: 1,8, DP ±3,357) e problemas
somáticos (média para meninas: 8,86, DP ± 4,977; meninos: 5,96, DP ±4,038) do que os
meninos (p = 0,01), resultados que contribuíram à maior média das meninas na escala
de internalização do CBCL (média para meninas: 19,55, DP ± 9,62; meninos: 12,57,
DP ±6,85). Não foram encontradas diferenças significativas de sexo nos escores de
externalização (média para meninos: 19,15, DP ±9,01; meninas: 23,41, DP ±20,66; p =
1,00) ou no escore de funcionamento global (média para meninos: 52,43, DP ±21,91;
meninas: 62,79, DP ±25,78; p = 0,29).
Considerações finais
Através da presente revisão da literatura, foi possível verificar o que a maioria
dos estudos realizados nas últimas três décadas sobre a clientela infantil de clínicasescola encontraram. Parece que tem havido um perfil predominante, em termos de
encaminhamentos: mais meninos do que meninas e os problemas desenvolvimentais
mais citados foram problemas de aprendizagem e comportamento externalizante.
Não houve uma discriminação clara entre os problemas desenvolvimentais mais
Aletheia 33, set./dez. 2010
157
comuns em meninos e em meninas, o que não possibilitou concluir se os problemas
desenvolvimentais por sexo mudaram, já que não há estudos suficientes os que realizam
a discriminação por sexo com base em dados estatísticos inferenciais.
Conforme a literatura, o que mais apareceu em cada década, em termos de
diferenciação dos problemas desenvolvimentais por sexo, foi que, na década de 80,
os meninos apresentaram mais problemas relacionadas a problemas de aprendizagem
e comportamento agressivo. As meninas também apresentaram problemas com
aprendizagem, mas, também, comportamento tímido. Na década de 90, os meninos
apresentaram problemas desenvolvimentais semelhantes às dos anos 80, enquanto que
as meninas apresentaram problemas desenvolvimentais mais parecidos às dos meninos:
dificuldade de aprendizagem, agressividade e nervosismo.
Na última década, os problemas desenvolvimentais mais apresentados por meninos
foram agressividade e brigas, enquanto que as meninas apresentaram mais sintomas
do tipo internalizantes, como ansiedade, depressão e problemas somáticos. Entretanto,
parece estar havendo uma tendência em que a frequência dos sintomas do tipo
externalizante estão se igualando entre os sexos, assim como a ocorrência simultânea
de comportamentos do tipo externalizante e internalizante em meninas e meninos.
Porém, essas considerações apenas podem ser feitas levando em conta o que
alguns artigos evidenciaram. A maioria dos estudos citou somente a porcentagem da
procura de atendimento psicológico de meninos e de meninas, mas não discriminou
quais foram os problemas desenvolvimentais mais frequentes em meninos e em meninas.
Apenas nove (40,9%) artigos estudados realizaram essa discriminação, sendo mais
frequentes nas duas últimas décadas e, dentre estes, apenas um utilizou análise estatística
inferencial. Este apontou diferenças significativas apenas nos problemas referentes a
ansiedade/depressão e somáticos, sendo estes mais frequentes em meninas do que em
meninos e contribuíram à maior média das meninas na escala de internalização do
CBCL (Marturano, Toller & Elias, 2005). Sobre os demais artigos, entretanto, não há
informação estatística suficiente para se chegar a conclusões.
Outra questão a ser considerada é que os problemas desenvolvimentais foram
classificados de acordo com o que a pessoa que encaminhou a criança percebia que
deveria receber atenção especial. Porém, deve-se levar em conta os motivos latentes
possivelmente associados aos problemas desenvolvimentais, como apontou o estudo de
Marturano, Toller e Elias (2005) ao referir que, muitas vezes, o problema escolar vem
acompanhado de dificuldades emocionais. Na década passada, Castro e Nunes (1999)
já haviam discutido que, quando se trata de crianças escolares, é preciso discriminar
os encaminhamentos que são ou não de ordem psicológica. Além disso, a maioria
dos estudos citou os problemas desenvolvimentais mais comumente apresentados
pela população infantil, porém, não realizou uma definição dos mesmos, não sendo
possível ter muita clareza sobre o que cada autor quis se referir com cada problema
desenvolvimental, o que impossibilita fazer agrupamentos e comparações.
Considerando os resultados deste artigo, torna-se relevante a realização de
estudos que discriminem os problemas desenvolvimentais por sexo, através de análises
estatísticas inferenciais, que permitam a comprovação de hipóteses, a fim de direcionar
os serviços oferecidos de acordo com a demanda da clientela e de possibilitar a
158
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prevenção de sofrimento e prejuízos futuros. Até o momento, os achados apontam que
os problemas desenvolvimentais, em termos de frequência, não mudaram nas últimas
três décadas. Porém, os dados apresentados não sendo inferenciais não permitem
conclusões sobre a ocorrência ou não de mudanças nos comportamentos apresentados
em relação à variável sexo da criança.
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_____________________________
Recebido em 16/07/2010
Aceito em 18/03/2011
Cristine Boaz: Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica (PUCRS), psicoterapeuta (ESIPP).
Maria Lúcia Tiellet Nunes: Psicóloga, doutora em Psicologia Clínica (Universidade Livre de Berlim),
professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Endereço para contato: [email protected]
OBS.: o artigo deriva de dissertação de mestrado defendida no PPGPsicologia da PUCRS pela primeira autora
sob a orientação da segunda; a primeira autora obteve bolsa CAPES.
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Autor(es)
Terzis e Carvalho
Yoshida, Gatti e
Xavier
Romaro e Capião
Perfeito e Melo
Bernardes-da-Rosa,
Garcia, Domingos e
Silvares
Scortegagna e
Levandowski
1986
1994
2003
2004
2000
2004
1983 (a) e (b) – mesmos Ancona-Lopez
dados, mas as discussões são
diferentes
Ano
30,7%
40%
40,5%
34,7%
33,1
56,9
31,7
% de meninas
participantes
69,3%
60%
59,5%
65,3%
66,9
42,1
68,3
% de meninos
participantes
Tabela 1 – Artigos que não diferenciam os problemas desenvolvimentais por sexo.
Problemas de aprendizagem
(36%), de comportamento
(31%) e emocionais (29%).
Distúrbios específicos
do desenvolvimento e
habilidades escolares (88%).
Dificuldades escolares
(49,5%), nervosismo e
agressividade (16,5%) e
problemas de comportamento.
Dificuldades escolares
(19%), dificuldades no
relacionamento interpessoal
(12,4%), comportamento
agressivo (10,6%),
dificuldades nas relações
familiares (10,3%) e
distúrbios do sono,
alimentação ou controle
esfincteriano (9,5%)
Desempenho escolar (30,4%)
e comportamento agressivo
(16%)
Problemas de aprendizagem
(sem %)
Problemas cognitivos (30,6%)
% dos problemas
desenvolvimentais sem
distinção de sexo
-----------
------------
------------
------------
------------
------------
-----------
------------
------------
-----------
------------
------------
% dos problemas
desenvolvimentais
mais comuns nos
meninos
------------
-----------
% dos problemas
desenvolvimentais
mais comuns nas
meninas
-----------
-----------
-----------
-----------
-----------
-----------
-----------
Tratamento
inferencial
Aletheia 33, set./dez. 2010
163
Massola e Silvares
Melo e Perfeito
Rocha e Ferreira
Campezatto e Nunes
Savalhia e Nunes
2006
2006
2007
2007
Autor(es)
2005
Ano
12,1% da
população
atendida
8,54% da
pupolação
atendida
32%
37,4%
31%
% de meninas
participantes
22,2% da
população
atendida
13,52% da
população
atendida
68%
62,6%
69%
% de meninos
participantes
Dificuldade de
comportamento (29,5%) e
dificuldades nos processos
cognitivos (19,1%).
Problemas de comportamento
ou dificuldade de
aprendizagem (14% dos
encaminhamentos da
população).
Habilidades sociais (77,4%)
e dificuldades escolares
(56,4%).
Comportamental (60,4%),
emocional /afetiva (51%),
escolares (24%), somáticas
(23%), dificuldade de
relacionamento e problemas
cognitivos (ambas 14%).
------------
% dos problemas
desenvolvimentais sem
distinção de sexo
-----------
------------
------------
------------
------------
------------
------------
------------
------------
% dos problemas
desenvolvimentais
mais comuns nos
meninos
------------
% dos problemas
desenvolvimentais
mais comuns nas
meninas
----------
-----------
-----------
-----------
-----------
Tratamento
inferencial
164
Aletheia 33, set./dez. 2010
33,5%
35,7%
---------
33,6%
42,9%
26%
1993 Graminha e
Martins
1994 Barbosa e Silvares
1996 Silvares
1996 Borges
2004 Gatti e Beres
2008 De Moura,
MarinhoCasanova, Meurer
e Campana
35,1%
1991 Mello, Cervo e
Rossi
74%
57,1%
66,3%
---------
64,3%
66,5%
64,9%
68,4%
% de
% de meninos
meninas
participantes
participantes
31,6%
Autor(es)
1989 Sales
Ano
% dos problemas
desenvolvimentais mais
comuns nos meninos
Distúrbios de aprendizagem Distúrbios de aprendizagem
(42,5%) e nervosismo (15,5%).
(39,5%) e nervosismo
(25,9%).
------------
Distúrbios da aprendizagem e
do tipo externalizante.
Na versão 1¹/² a 5 anos do CBCL: -----------comportamento agressivo (69,5%), ansiedade
e depressão (66%), emocionalmente
reativo (65,6%). Na versão 4 a 18 anos:
comportamento agressivo (71,4%).
Meninos apresentam queixas
predominantemente do tipo
externalizante, mas não cita a
porcentagem.
---------
---------
----------
---------
----------
Habilidades escolares (26,1%),
distúrbios de comporta-mentos
explícitos (43,1%) e distúrbios de
comporta-mentos não explícitos
(12,1%).
Habilidades escolares (26,1%),
distúrbios de comporta-mentos
explícitos (43,5%) e distúrbios
de comporta-mentos não
explícitos (9,8%).
----------
----------
Dificuldades na conduta
(46,5%) e dificuldades escolares
(44,3%).
----------
Tratamento
inferencial
Dificulda-des de aprendizagem Dificulda-des de aprendizagem
(36%)
(42%).
------------
Angústia/
Agressividade (17%), problemas
d e p r e s s ã o ( 1 9 % ) , q u e i x a s neuromotores e de escolarização
psicossomáticas (11%) e problemas (ambos 11%).
familiares (10%).
% dos problemas
desenvolvimentais mais comuns
nas meninas
Problemas de aprendizagem (40,8%) e Problemas de aprendizagem (45%) Problemas de aprendizagem
agressividade (26,5%).
e agressividade (38,5%).
(55%) e agressividade
(61,5%).
------------------
------------------
------------------
Dificuldades de aprendizagem
------------------
------------------
% dos problemas desenvolvimentais
sem distinção de sexo
Tabela 2 – Artigos com registro dos problemas desenvolvimentais por sexo, apenas em porcentagem.
Aletheia 33, set./dez. 2010
165
2005
Ano
Marturano, Toller e Elias
Autor(es)
---------
% de
meninas
participantes
------------
% de meninos
participantes
-------------------
% dos problemas
desenvolvimentais sem
distinção de sexo
Tabela 3 – Estudos inferenciais sobre problemas desenvolvimentais versus sexo.
Ansiedade/depressão (6,86%)
e queixas somáticas (8,86%).
% dos problemas
desenvolvimentais mais
comuns nas meninas
------------
% dos problemas
desenvolvimentais mais
comuns nos meninos
p = 0,01
Trata-mento
inferencial
Aletheia 33, p.166-176, set./dez. 2010
Vivências de um serviço de psicologia junto a um núcleo
de assistência judiciária
Sabrina Daiana Cúnico
Caroline de Oliveira Mozzaquatro
Dorian Mônica Arpini
Milena Leite Silva
Resumo: O estudo apresenta o resultado da experiência em mediação familiar desenvolvida
em um Núcleo de Práticas Judiciárias numa instituição pública de ensino, através de projeto de
extensão. O objetivo deste trabalho é compartilhar as vivências do serviço de psicologia inserido
em um espaço eminentemente jurídico. A compreensão dos aspectos subjetivos envolvidos nos
conflitos familiares, a saber, separação/divórcio, guarda, visitação e pensão alimentícia foi o foco
de atenção das mediações familiares realizadas, as quais visaram minimizar o sofrimento e buscar o
entendimento entre as partes envolvidas. Os resultados obtidos apontam a importância da inserção
da psicologia junto aos conflitos de família, assim como a discussão sobre as diferentes modalidades
de guarda. Destaca-se a preocupação com relação ao exercício da parentalidade quando termina
a conjugalidade. Por fim, salienta-se o empoderamento das partes na resolução de seus conflitos,
um dos propósitos da mediação familiar.
Palavras-chaves: Família; Relações familiares; Psicologia.
Experiences of a Department of Psychology at a Legal Aid Practice
Abstract: This study presents the results of the practice of family mediation developed in a
Center for Judicial Practice of a public university, through an extension project. The objective is
to share the experience of a psychological service implemented into an eminently legal space. The
understanding of the subjective aspects involved in family disputes, namely, separation / divorce,
custody, visitation and alimony were the focus of mediations conducted, which aimed to minimize
the suffering and seek the understanding between the parties involved. The results indicate the
importance of integrating psychology with the conflicts of family, as well as discussion about the
different forms of custody. We highlight the concerns related to the exercise of parenting when the
marital relationship ends. Finally, we stress the empowerment of the parties in resolving their
conflicts, one of the purposes of family mediation.
Keywords: Family; Family relations; Psychology.
Introdução
A prática da Psicologia Jurídica somente foi reconhecida como uma
especialidade em Psicologia no ano de 2001, embora sua atuação seja anterior a este
período, tendo iniciado com o trabalho pericial na chamada Psicologia do Testemunho.
Atualmente, várias frentes de atuação vêm sendo abertas, e a psicologia está em
franca expansão, sendo importante, para a formação dos profissionais, a inserção da
disciplina Psicologia Jurídica nos currículos dos cursos de Psicologia e também do
Direito (Müller, Beiras & Cruz, 2007).
Neste atual cenário, novas possibilidades de articulação entre a Psicologia e o Direito
estão sendo construídas, dentre elas o resgate de uma prática milenar de resolução de
conflitos, chamada mediação. Tal resgate, especificamente na mediação familiar, vem
para auxiliar nas frequentes dissoluções matrimoniais que chegam ao judiciário, e que
trazem como consequência diferentes organizações familiares, quais sejam: famílias
monoparentais, reconstituídas ou recompostas, entre tantas agregações de laços hoje
consolidadas (Brandão, 2005).
Os litígios, em geral, se relacionam a questões de separação de patrimônio, portanto,
objetivas e passíveis de divisão, o que, quando resolvido, acarretaria a satisfação entre
as partes do ponto de vista do Direito (Müller, Beiras & Cruz, 2007). Todavia, questões
subjetivas estão envolvidas no processo e o caráter objetivo apenas dissimula as situações
dolorosas envolvidas no processo de rompimento emocional. Müller e colegas (2007)
pontuam que os operadores do Direito não desenvolveram competências ao longo de
sua formação para lidar com os aspectos psicológicos envolvidos no processo, deixando
os atores do processo em segundo plano – com seus medos e angústias – frente à lógica
binária do judiciário de culpado/inocente.
Nesse sentindo, tais autores afirmam que a mediação familiar surge no judiciário
como um instrumento de trabalho que tende ao holismo, visto que além de perceber e
considerar os aspectos objetivos presentes no conflito, também atenta para os aspectos
afetivos e inconscientes. Dessa forma, a mediação procura chegar numa resolução aditiva,
que soma e agrega, evitando a judicialização das relações afetivas (Navarro, 2007).
Sousa e Samis (2008) afirmam que a mediação familiar “colabora no sentido de
um melhor encaminhamento dos processos judiciais por meio dos acordos estabelecidos,
evitando, com isso, o litígio e, consequentemente, um maior desgaste emocional para as
partes envolvidas” (p.133).
A Mediação Familiar pode ainda ser definida como um acompanhamento das
partes envolvidas no conflito por um terceiro, neutro, imparcial e devidamente treinado
(Barbosa, 2003; Navarro, 2007), o qual proporciona espaço para o componente emocional
do litígio. Taylor (1997), no entanto, afirma que a neutralidade do mediador dependerá
do contexto da mediação e do conflito mediado por ele. Desta forma, é fundamental
que os mediadores tenham conhecimento de seus preconceitos e reações pessoais a
fim de saberem lidar com suas questões no momento da mediação, preservando a sua
imparcialidade no processo.
Os mediadores familiares buscam compreender as configurações vinculares
existentes entre os sujeitos, ou seja, as relações que estabeleceram ao longo do tempo e
foram se somando até culminar no processo judicial, sem ter com isso, o objetivo de achar
quem é o culpado ou quem é o inocente (Silva, 2009). Assim, o mediador é o profissional
que ajuda os pares a desfazerem o clima de antagonismo e desmistificar a ideia de que
sempre haverá na disputa um vencedor e um perdedor (Chaves & Maciel, 2005).
Em busca dessas premissas que caracterizam a atuação do mediador, muitas vezes
será necessário ao profissional que se abstenha de práticas que muitas vezes são definidoras
de sua formação profissional. Por exemplo, o psicólogo não deve interpretar o discurso
das partes envolvidas assim como ao advogado, que está exercendo a função de mediador,
é vedada a defesa de um dos pares (Vicente & Biasoto, 2003).
Aletheia 33, set./dez. 2010
167
Sabe-se que a maioria dos casos familiares conflituosos que chega à justiça traz,
além do aspecto jurídico, questões emocionais sérias que envolvem rejeições, abandono,
ausência de projeto de vida, entre outras (Brito, 1993), as quais justificam a presença da
Psicologia no contexto judicial. Assim, legislar sobre essas novas organizações familiares
é importante, mas não suficiente.
A experiência que dá origem a este artigo resulta desta articulação entre a Psicologia
e o Direito, e da compreensão das questões levantadas. A prática objetivou auxiliar famílias
no enfrentamento das situações que envolvessem conflitos, como: separação/divórcio,
guarda de filhos, pensão alimentícia, bem como situações de violência intrafamiliar.
Buscou-se também, através da prática da mediação familiar, abrir espaço para a
comunicação, muitas vezes já obstruída em função do conflito. Além disso, objetivou-se
que as partes assumissem sua responsabilização com relação ao problema e visualizassem
as possibilidades de resolvê-lo por meio de acordo – possibilitado através de espaços de
diálogo – que sofrimento familiar fosse atenuado, permitindo aos pais melhores condições
ao exercício da parentalidade.
Caracterização do local
O projeto foi realizado em um Núcleo de Práticas Judiciárias, Órgão Suplementar
do Centro de Ciências Sociais e Humanas, de uma instituição federal de ensino superior.
Tal órgão concentra prioritariamente suas atividades de prática jurídica nas seguintes áreas
do Direito: Direito Processual Civil; Direito de Família; Direito do Trabalho; atendendo
a população com renda mensal de até três salários mínimos.
Histórico do projeto
O projeto de extensão teve início no ano de 2005, organizado em dois plantões
semanais nos quais os acadêmicos do curso de Psicologia ficavam à disposição do serviço
para auxiliar nas situações que tivessem envolvidos conflitos de família. Nessas situações
muitas vezes houve a participação conjunta na sala de atendimento dos acadêmicos do
curso de Direito com os da Psicologia, quando evidenciada a necessidade. Posteriormente
eram agendadas entrevistas individuais com o Serviço de Psicologia e as partes envolvidas,
que poderia incluir o casal e filhos, ou apenas uma das partes, dependendo da problemática
com o objetivo de melhor compreender a demanda emocional presente.
Somente no ano de 2007 o projeto ampliou suas atividades, trabalhando além do
plantão semanal com a proposta da mediação familiar. Esta proposta se mantém até o ano
vigente, devido aos bons resultados alcançados com a prática. O relato dessa experiência
consiste no foco deste trabalho.
A prática da psicologia no núcleo de práticas judiciárias
A metodologia do trabalho se dá através de uma triagem permanente, realizada
por um profissional do Serviço Social, o qual é responsável pelo encaminhamento
168
Aletheia 33, set./dez. 2010
de todos os casos referentes ao Direito de Família para o serviço de Psicologia. Em
seguida, faz-se o agendamento de uma entrevista inicial pelo serviço de Psicologia com
as partes envolvidas, separadamente, onde uma primeira escuta é reservada às partes que
comparecem ao atendimento.
Após ouvir ambas as partes, cada qual com sua versão, um encontro é agendado
e dá-se início à busca pelo diálogo, dentro das intenções buscadas pela via da mediação
familiar. Conta-se aqui, no momento da mediação familiar, com a presença de um dos
estagiários do curso de Psicologia, uma assistente social e um acadêmico estagiário do
curso de Direito, sob a orientação de professores da Psicologia e do Direito.1
Ressalta-se que sempre que se faz necessário, possibilita-se um novo encontro
somente com as estagiárias do Serviço de Psicologia, de maneira que se possa atuar em
busca do esclarecimento de cada um dos envolvidos, bem como, dentro do possível,
minimizar a angústia e o desgaste psíquico envolvidos num processo de tal ordem. O
modo de acompanhamento dos casos é delimitado conforme a necessidade específica,
podendo-se realizar tantos encontros quantos se mostrarem necessários, tendo em vista
o auxílio à problemática trazida ao Serviço.
Todos os casos atendidos são registrados em um prontuário do Serviço de Psicologia,
para fins de acompanhamento e de constituição de um arquivo-fonte para posterior
consulta. Destaca-se que para uma melhor compreensão das situações atendidas, são
realizadas reuniões da equipe envolvida visando a complementaridade de informações
e a tomada de decisões.
É importante que se ressalte que esta pesquisa está respaldada nas Diretrizes e
Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo Seres Humanos (Resolução 196/96
do Conselho Nacional de Saúde) e na Resolução n° 016/2000 do Conselho Federal de
Psicologia.
Resultados e Discussão
Com vistas a compartilhar a experiência vivenciada pelo serviço de psicologia optouse em descrever três situações trabalhadas, a saber: situação 1: o resgate da parentalidade,
situação 2: a guarda compartilhada e a situação 3: a guarda exclusiva.
Situação 1: o resgate da parentalidade2
No decorrer do ano de 2010, os pedidos mais frequentes foram relacionados à pensão
alimentícia, tanto no que se refere à estipulação de um valor legal quanto à revisão do
valor já pago pelo outro genitor. Em algumas situações, no entanto, observou-se que a
demanda inicial, no caso o valor da pensão, servia apenas como um pretexto para outras
demandas subjacentes, como por exemplo, o desejo de um maior contato entre pai e filho,
1
No momento da mediação familiar se encontram presentes na sala um acadêmico do curso de Direito, um
acadêmico do curso de Psicologia e a Assistente Social, funcionária da instituição. Os professores orientadores
não estão presentes, sendo a discussão do caso realizada em outro momento.
2
A parentalidade é entendida conforme aponta Solis-Ponton (2004) como o estudo dos vínculos de parentesco
e dos processos psicológicos envolvidos nestas relações.
Aletheia 33, set./dez. 2010
169
a intenção de atingir o ex-cônjuge em função de novas relações conjugais ou da chegada
de um novo filho desse ex-companheiro, entre outras, mas que não poderia ser feito pela
via do diálogo fora do âmbito judiciário.
Um relato que ilustra a situação acima descrita é o caso de Maria3. Maria procurou
o Núcleo a fim de solicitar a revisão do valor pago por João ao único filho do casal. Ao
longo dos 02 atendimentos com o serviço de Psicologia, Maria revelou que seu maior
desejo – em função dos pedidos constantes do filho – era de que João se aproximasse
da criança e exercesse de fato a função de pai. Ao melhor compreender a demanda
apresentada por Maria, o serviço de Psicologia trabalhou individualmente com João
questões pertinentes ao exercício da parentalidade, valendo-se do espaço proposto pela
mediação familiar.
Inicialmente, João mostrou-se muito resistente ao participar de uma mediação
com a ex-companheira, mas por fim, compareceu na data marcada. Neste encontro,
Maria, com o auxílio do estagiário da Psicologia, conseguiu expressar que a revisão
do valor da pensão alimentícia era o que menos a preocupava, sua real intenção era
despertar neste pai o desejo de exercer um papel mais participativo em relação ao
filho. João por fim, vencendo resistências, se propõe a procurar o filho e aproximarse dele.
Na mediação feita com Maria e João estava claro que com o fim da relação conjugal,
João afastou-se do filho na tentativa de afastar-se também de Maria. Estudo realizado por
Corso & Corso (2011) evidenciou que muitos casais após a separação anulam a experiência
familiar anterior, agindo como se pudessem fundar a primeira família novamente. Como
consequência, se excluem da vida dos filhos, frutos da antiga relação, desligando-se
afetivamente também destes, que se tornam a lembrança de um passado que prefeririam
esquecer. Neste caso específico, os dois genitores fundaram uma nova família, tornando
evidente o fato de que o passado conjugal de ambos continuaria anulado se não fosse o
pedido do filho pela presença do pai.
Uma dissolução familiar não ocorre por acaso e não pode ser considerada como
resultado de um único acontecimento, pelo contrário, ela resulta de um somatório de
conflitos já existentes (Lima, 2008). No entanto, é importante que os pais compreendam
que, após o rompimento da relação, o que se reconfigura é o estado referente à
conjugalidade e não à parentalidade (Brito, 2005), fato que foi amplamente discutido
com João ao longo dos atendimentos.
Paralelo a isso, aquele genitor que não detém a guarda da criança pode se
sentir destituído da sua função e entender que ocupa um papel inferior na educação e
desenvolvimento dos filhos, tendo dificuldades de interagir com eles (Brandão, 2005).
Este sentimento de inferioridade também pode ter colaborado para o afastamento de
João em relação a seu filho. Em estudo realizado com mães e pais separados no Rio de
Janeiro, Pereira, Silva e Gomes (2008) referem à insatisfação de ambos, guardião e não
guardião no exercício dos papéis. Além disso, o privilégio concedido à maternidade na
guarda dos filhos pode ter gerado dificuldades no exercício da paternidade, afastando o
pai do convívio e da influência sobre os filhos após a separação (Brito, 2005).
3
O nome de todos os participantes é fictício, tendo em vista a não identificação dos mesmos.
170
Aletheia 33, set./dez. 2010
Durante um dos atendimentos com a Psicologia, Maria afirmou que sua vontade
de procurar João partiu de um desejo intenso do filho do casal de aproximar-se do pai.
Entende–se que o divórcio visa romper o vínculo matrimonial, mas não se propõe a cortar
os laços familiares (Chaves & Maciel, 2005), fato que muitas vezes não é reconhecido
pelos pais e precisa ser lembrado pelas crianças. Ao casal, cabe a autonomia para decidir
o tempo de duração da relação que estabeleceram, porém com relação à filiação, não
deveria existir a dissolução dessa relação (Brito, 2008).
Ainda assim, entende-se que, neste caso, a mediação familiar deixou de ser um
instrumento apenas jurídico, e cumpriu seu papel como facilitadora do diálogo entre as
partes. Sem essa possibilidade de resolução, esses pais, afastados completamente um do
outro, não teriam a oportunidade de falar sobre seu filho e buscar o resgate da função
parental, já que para eles a dissolução da união conjugal, até o momento, significou
também o fim dos laços parentais do pai em relação ao filho.
Nesse sentido Palma (2001) aponta para as importantes transformações no Direito de
Família decorrentes das novas configurações familiares. Estas mudanças tem propiciado
espaços onde as relações familiares podem ser repensadas, superando os lugares
historicamente atribuídos no contexto familiar. Ao se colocar no centro das decisões o
filho, abre-se espaço para a participação comum de ambos os pais e com isso percebe-se
uma revalorização da paternidade e da parentalidade (Filho, 2003).
Situação 2: a guarda compartilhada4
O segundo caso diz respeito à um pai, Fábio, que procurou o Núcleo de Assistência
Judiciária, pois, requeria a guarda de seu filho de 04 anos. Através da triagem inicial feita
pela assistente social, o caso foi encaminhado ao serviço de Psicologia. Foram feitas 03
entrevistas individuais, as quais identificaram dificuldades de Fábio na relação com a exmulher, mas um vínculo muito forte com a criança. Ao longo dos atendimentos, Fábio relatou
que a mãe da criança, por sua vez, havia procurado auxílio em outra instituição de assistência
judiciária a fim de legitimar a guarda que já vinha exercendo. Ao ter conhecimento desta
informação, o serviço de Psicologia entrou em contato com a equipe desta outra instituição
a fim de propor uma mediação conjunta. Apenas uma sessão de mediação familiar foi
realizada neste caso, e nela estiveram presentes uma estagiária da Psicologia, a assistente
social do serviço e estagiários do Direito de ambas as instituições.
Neste contexto, onde os pais demonstravam real interesse no bem estar da criança,
iniciou-se o diálogo em prol da guarda compartilhada. A primeira reação de ambos os
pais foi de recusa, pois nenhum deles achava saudável que a criança tivesse dois lares e
se locomovesse com seus pertences de uma casa para a outra periodicamente. Identificouse, então, que estes pais desconheciam os pressupostos da guarda compartilhada e
confundiam-na com a chamada guarda alternada.
Cabe ressaltar que a guarda compartilhada em nada se parece com a guarda alternada.
Enquanto esta pressupõe uma igualdade estrita de horas que cada genitor passa com a
criança, a outra estabelece uma igualdade de direito sob as decisões determinantes para
a vida dos filhos (Brito, 2003).
4
Sobre a guarda compartilhada e unilateral/exclusiva ver Lei n.11.698 de 13 de junho de 2008.
Aletheia 33, set./dez. 2010
171
De acordo com Lima (2008), há uma ausência de sincronia no que se refere à
abordagem de papéis dos cônjuges no casamento e depois, na separação. Enquanto que
no casamento a lei garante a igualdade de direitos a ambos, com a separação, a guarda
passa a ser exercida apenas por um dos parceiros, enquanto ao outro cabe a função de
fiscalizador. É neste contexto que a guarda compartilhada ou conjunta se apresenta como
uma forma adequada para a manutenção da filiação, mesmo quando se dá o término da
união matrimonial. A guarda compartilhada reafirma o princípio da coparentalidade, ou
seja, rompe com a ideia de um genitor principal – guardião, que detém todos os direitos
sob a criança – e um genitor secundário – o visitante que, como o próprio nome já diz,
visita seus filhos estando excluído do processo de educação destes (Brito, 2003).
Destaca-se ainda que esta modalidade de guarda pode ser uma medida facilitadora
ao levar-se em conta o desenvolvimento dos papéis parentais, uma vez que ela pressupõe
a presença ativa de ambos os genitores, pai e mãe, e assegura à criança a manutenção de
vínculos estáveis com eles (Brito, 2005). Nos raros casos em que a guarda compartilhada
não é recomendável, concorda-se com Perdriolle e Hocquet, citados por Brito (2005),
quando estes afirmam que dar a guarda para o genitor que se mostra mais aberto às visitas
do outro genitor é uma tentativa de manter o lugar dos dois genitores na educação de
seus filhos.
É importante mencionar que, embora tenha acontecido um desfecho favorável do
caso, no sentido da concretização da guarda compartilhada, durante boa parte da mediação,
principalmente nos momentos iniciais, ambas as partes tinham total desconhecimento
da possibilidade de uma guarda conjunta. A pré-concepção de guarda unilateral para a
mãe, que já vinha sendo exercida de forma informal – possivelmente originada de uma
justiça que por longa data atribuiu a guarda dos filhos somente à mãe – precisou ser
desconstruída para que as partes entendessem e aceitassem os preceitos norteadores da
guarda compartilhada.
Além disso, observou-se, neste caso, que o casal apresentou-se à mediação com uma
postura passiva em relação ao impasse da guarda, mostrando claramente que esperava que
a definição do conflito fosse atribuição do mediador, da mesma forma que se espera uma
resolução pelo juiz num processo judicial. Contribuindo com o tema, Müller e cols. (2007)
diferenciam a mediação da arbitragem, pois quem soluciona e decide sobre a situação
de conflito, na primeira, são as partes envolvidas de forma autônoma. Ao mediador cabe
facilitar o discurso, para que se estabeleça uma comunicação funcional entre as partes, e
estas se responsabilizem pessoalmente pelas suas decisões.
Diante do que foi exposto, conclui-se que o ponto mais significativo desta mediação
foi a apropriação de ambos na resolução de seu conflito, visto que estes resolveram de
forma autônoma o impasse inicial sobre a guarda do filho, concluindo que o melhor para
o bem estar da criança seria a modalidade de guarda compartilhada.
Situação 3: a guarda unilateral para o pai
Viviane buscou o Núcleo de Assistência Judiciária com o objetivo de trocar o registro
de nascimento de dois dos seus três filhos, visto que estavam registrados no nome de
Jorge, seu ex-marido, e não no do pai biológico, seu atual companheiro. Além do exame
de DNA, ela requeria a guarda da primogênita, filha biológica de Jorge.
172
Aletheia 33, set./dez. 2010
Devido a complexidade do caso, duas mediações foram realizadas, uma para
resolver a demanda da troca de registro e a outra para tratar da guarda da menina. Na
primeira, estiveram presentes Viviane, seu atual marido e Jorge, ficando acordado que
após o teste de DNA, se fosse comprovado que Jorge não era o pai dos filhos menores,
ele não se oporia a troca do registro de nascimento das crianças.
A outra mediação envolveu apenas o ex-casal, Viviane e Jorge, em função da
demanda apresentada ser referente à guarda da filha de ambos. Durante essa mediação,
Jorge expôs o desejo de ter a guarda unilateral de sua filha, visto que ambos moravam
juntos desde a separação há 04 anos e ainda pelo fato de ser esse também o desejo da
menina.
No início, Viviane tentou valer-se da ideia de que os filhos sempre estão mais
cuidados quando ficam com a mãe, mito que povoa o imaginário popular (Badinter,
1985). Porém, após os argumentos de Jorge de que a menina, com 12 anos, já teria
idade para escolher com qual dos pais gostaria de morar, Viviane acabou cedendo. Ela
então aceitou, não sem certo estranhamento, que o pai da menina ficasse com a função
de cuidador, sendo detentor unilateral da guarda. Tal decisão só foi possível após um
pensamento em conjunto dos pais em proporcionar um maior bem-estar para a filha,
além do forte laço afetivo que esta e Jorge tinham.
O pedido feito por Jorge de estabelecer a guarda da filha para si parece exemplificar
a ideia de Lago e Bandeira (2009) que postulam que a sociedade está buscando, por meio
dos pedidos de guarda compartilhada ou de guarda unilateral para o pai, romper com
uma visão já tradicional de que só a mãe é capacitada para cuidar dos filhos, mostrando
que o pai também pode exercer as funções de cuidado que os filhos exigem.
As atividades e cuidados que eram normalmente atribuídos à mãe, depois da
separação conjugal se tornam responsabilidade do pai também hoje em dia. Eles
passam a resolver questões de alimentação, higiene, vestimentas, questões do cotidiano
das quais acreditavam não estarem aptos para administrar – delegando anteriormente
as funções à mãe – e se imbuindo delas. Além disso, os filhos podem perder com a
separação dos pais a possibilidade de compartilhar com ambos as tarefas do dia a dia,
entretanto podem ganhar em qualidade de comunicação com cada um de seus pais,
possibilitando assim uma intimidade diferente da que possuíam quando eram uma
família nuclear (Corso & Corso, 2011).
Porém nota-se, pela experiência no Núcleo de Assistência Judiciária, que
existem poucos pedidos de guarda exclusiva do pai, dado corroborado pela pesquisa
de Bottoli (2010), a qual refere que por mais que a relação dos pais esteja vivenciando
importantes mudanças na contemporaneidade, a questão da guarda ainda está muito
ligada à mãe. Segundo a autora, é necessário pensar a guarda como uma questão
social, compreendendo a forma como a legislação tratou dessa problemática, uma vez
que a guarda dos filhos foi por muito tempo entendida como um direito natural das
mulheres.
Dessa forma, na busca por estudos atuais sobre a modalidade de guarda exclusiva
para o pai, observou-se que, além da escassez de material, há uma visão estigmatizada
de que a guarda exclusiva é “naturalmente” da mãe. Diante desse fato, pode-se pensar
que a possibilidade de ingresso do pai na vida dos filhos só se tornaria possível através
Aletheia 33, set./dez. 2010
173
da modalidade da guarda compartilhada. Todavia, mesmo que a modalidade de guarda
predominante no Brasil ainda seja a guarda exclusiva materna (Brito, 2003), pode-se
encontrar casos como o de Jorge, que decidiu solicitar a guarda unilateral da filha,
entendendo estar em condições de assumir o papel de cuidador, sendo o responsável
legal da filha. Este caso abre espaço para repensarmos concepções estigmatizadas na
qual a guarda somente seria dada ao pai quando a mãe teria perdido as condições de
tê-la e não como uma possibilidade a ser dialogada e mediada por ambos os pais.
Considerações finais
A mediação familiar foi o instrumento utilizado nos atendimentos dos casos,
por ser um método onde a responsabilização pela ação está nas mãos das partes
envolvidas, proporcionando a autonomia destas. Dessa forma, a prática da mediação
familiar se distancia da lógica binária fortemente enraizada no Direito, na qual se
tem um culpado e um inocente em um processo judicial. Na mediação familiar esta
lógica não está presente, já que ambos decidem através do diálogo a resolução do seu
conflito, de maneira que, dentro do possível, os participantes fiquem atendidos em
suas demandas.
A experiência tem evidenciado que a figura do mediador é essencial, visto que as
partes procuram o serviço com a lógica adversarial calcadas em seu entendimento, sendo
necessária a superação desta perspectiva de resolução de conflitos e, nesse sentido, o
mediador vai buscar a desconstrução dessa concepção, tirando o sentido de que numa
ação judicial o confronto será sempre necessário. Assim, abre-se a oportunidade para o
diálogo, onde as questões objetivas do processo podem ser resolvidas, e, além disso, as
questões emocionais também ganham um espaço, já que o mediador deve estar atento
para todos os aspectos envolvidos no conflito.
Pode-se perceber que a mediação familiar foi um método eficaz na resolução dos
03 casos apresentados, uma vez que se esgotaram as possibilidades de diálogo até que
as conflitivas fossem resolvidas e, mais importante, que fossem compreendidas pelas
partes envolvidas. Como os sujeitos chegam com compreensões muitas vezes distorcidas,
impregnadas pelo imaginário social, na mediação se abre a possibilidade de problematizar
tais construções, permitindo que as partes encontrem a solução que melhor respondam as
suas demandas, ampliando as possibilidades de pensar e avaliar a situação.
Por fim, entende-se que o presente trabalho contribuiu para os estudos acerca da
prática da mediação familiar, e de como esta pode auxiliar na resolução de conflitos
familiares, sobretudo naquelas temáticas que envolvem a família contemporânea,
como a guarda de filhos e a parentalidade. Entende-se, contudo, que este artigo não
tem a intenção de abarcar a complexidade da temática proposta e que outros estudos e
relatos de experiência são necessários para que se possa melhor compreender a prática
da Psicologia nesse contexto jurídico.
Destaca-se ainda a importância da prática interdisciplinar construída nesta
experiência, evidenciando que diferentes olhares, com especificidades distintas e
convergentes ampliam a compreensão dos fenômenos vivenciados, superando as visões
unidisciplinares historicamente construídas.
174
Aletheia 33, set./dez. 2010
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_____________________________
Recebido em 14/04/2011
Aceito em 04/08/2011
Sabrina Daiana Cúnico: Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria, Bolsista
FIEX/UFSM.
Caroline de Oliveira Mozzaquatro: Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa
Maria, Bolsista IC. FAPERGS.
Dorian Mônica Arpini: Psicóloga, Prof.ª Dr.ª do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria.
Milena Leite Silva: Psicóloga, Professora do Curso de Psicologia da Faculdade Integrada de Santa Maria,
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria.
Endereço para contato: [email protected]
176
Aletheia 33, set./dez. 2010
Aletheia 33, p.177-178, set./dez. 2010
O caminho da avaliação neuropsicológica1
Ana Lúcia Fedalto
Amer Cavalheiro Hamdan
De que maneira a memória de uma pessoa é afetada por uma lesão cerebral decorrente,
por exemplo, de um acidente automobilístico ou de uma doença neurodegenerativa? Quais
são as capacidades cognitivas preservadas? Quais são as capacidades alteradas? Essas e
outras perguntas constituem o campo da neuropsicologia, ciência que estuda as relações
entre o cérebro e o comportamento, em particular as disfunções cognitivas decorrentes
de lesões cerebrais.
A avaliação neuropsicológica é um processo de investigação utilizado por
especialistas com o objetivo de compreender o funcionamento cognitivo-cerebral. A
investigação é realizada mediante a aplicação de uma bateria de testes psicométricos que
permitem observar uma determinada função cognitiva e sua manifestação comportamental.
O caráter abrangente dessa investigação exige uma formação especializada. Para o
profissional interessado nesses assuntos, qual o caminho a buscar? A recente publicação
do livro Avaliação Neuropsicológica oferece um caminho seguro a seguir.
O livro foi escrito por 104 autores de diferentes especialidades (psicólogos,
psiquiatras, neurologistas, fonoaudiólogos, terapeuta ocupacional e pedagogos) e revela o
caráter interdisciplinar da avaliação neuropsicológica. Cinco grandes temas são abordados
em 49 capítulos, contribuindo de maneira significativa para uma melhor compreensão
sobre a avaliação neuropsicológica no Brasil.
O primeiro grande tema tratado no livro, psicometria, é uma introdução ao conceito
de neuropsicometria, analisa conceitos como: modelo clássico e análise de Rasch
(capítulo 01); os modelos monotético e idiográfico (capítulo 02) e as ferramentas para a
elaboração de instrumentos de medida (capítulo 03). O segundo grande tema, princípios
gerais e domínios específicos, aborda as questões gerais e os princípios da avaliação
neuropsicológica (capítulo 04) e análise de áreas específicas de investigação, tais como:
o neuropsicólogo e seu paciente, inteligência geral, linguagem, memória, atenção, exame
das funções executivas, praxia e visuoconstrução, matemática, dificuldade específica de
aprendizagem da leitura e escrita, comportamento motor, cognição social, reconhecimento
de emoções, teoria da mente, habilidades sociais, e a avaliação da personalidade e sua
contribuição à avaliação neuropsicológica (capítulos 5 a 18).
O terceiro tema, ciclo vital, investiga a aplicação da avaliação neuropsicológica em
diferentes períodos do desenvolvimento humano: idade pré-escolar, infância, adultez e
no idosos (capítulos 19 a 23). O quarto tema, contribuições da avaliação para contextos
específicos, analisa questões relacionadas à aplicação e a novas abordagens da avaliação
neuropsicológica, tais como: psiquiatria e neurologia infantil, clínica neurológica de
adultos e idosos, neurocirurgia, pesquisas em biologia molecular e em neurobiologia das
Malloy-Diniz, L., Fuentes, D., Mattos, P., Abreu, N. e cols. (2010). Avaliação Neuropsicológica. Porto
Alegre: Artmed.
1
funções cognitivas, práticas forenses, práticas esportivas e sua utilização na educação
(capítulos 24 a 32).
O último grande tema, estudos no contexto brasileiro, é uma exposição sobre a
utilização de diferentes testes neuropsicológicos no Brasil, destacando-se os seguintes
testes: Teste de Atenção visual (TAVIS-3); Teste de Aprendizagem Auditivo Verbal de
Rey (RAVLT); Teste da Torre de Londres (TOL); Teste da Torre de Hanói; Teste da
Figura Complexa de Rey; Teste Bender (versão B-SPG); Nepsy II; Iowa Gambling
Task e Children Gambling Task; Token Test; Bateria Memo, Questionário de Memória
Retrospectiva e Prospectiva (PRMQ); Avaliação da Habilidade de Codificação Fonológica
e Ortográfica; Avaliação Neuropsicológica de Processamento Lexical para Crianças;
Escala de Avaliação de Demência (DRS); Matching Familiar Figures (MFFT-20);
Teste de Organização Visual Hooper e Teste de Avaliação da Habilidade Visuoespacial
(TAHLVES).
O leitor poderá facilmente observar, que os temas tratados neste livro são variados
e abrangentes, descrevendo desde questões básicas até questões avançadas. Como toda
obra desta magnitude, o especialista em avaliação neuropsicológica poderá se queixar
de que alguns assuntos específicos não foram devidamente aprofundados. Porém, essas
limitações são superadas pelas excelentes revisões temáticas.
Avaliação Neuropsicológica é uma obra de referência e contribui de maneira
significativa para a formação profissional e para o desenvolvimento de pesquisas em
neuropsicologia no Brasil. É indicado para pesquisadores, estudantes, professores de
graduação e pós-graduação, e a todos os profissionais da área da saúde no tema da
avaliação neuropsicológica.
____________________________________
Recebido em 28/03/2011
Aceito em 15/08/2011
Ana Lúcia Fedalto: Psicóloga. Mestranda no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Paraná-UFPR.
Amer Cavalheiro Hamdan: Psicólogo. Doutor em Psicobiologia. Professor Adjunto do Departamento de
Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná-UFPR.
Endereço para contato: [email protected]
178
Aletheia 33, set./dez. 2010
Aletheia 33, p.179-189, set./dez. 2010
Promover la convivencia escolar: una propuesta
de intervención comunitaria
María Clara Rodríguez
Patricia Vaca
Resumen: Se describe una propuesta de intervención comunitaria en convivencia escolar, a partir
de los resultados obtenidos en una investigación previa (Rodríguez, Vaca, Hewitt & Martínez, 2009)
que buscaba caracterizar las formas de interacción en un contexto escolar. Si bien el punto de partida
lo constituyó la presencia de intimidación en los espacios escolares, el acercamiento a la comunidad
nos permitió concluir, que más allá de la intimidación entre pares, existía en la escuela una forma
de relación excluyente entre sus integrantes. La propuesta dirigida a los padres, profesores, alumnos
y directivos de la escuela participante, se fundamentó en el logro de cuatro objetivos. El primero
relacionado con el análisis crítico del Manual de Convivencia, como documento Marco, que orienta
el quehacer educativo. El segundo se dirigió al diseño y desarrollo de un programa psicoeducativo
que promoviera el trabajo en equipo, la gestión del conflicto, los roles y las interacciones en la
cotidianidad. Los dos últimos relacionados con la asesoría psicológica individual y/o familiar a
los miembros de la comunidad y la necesidad de trabajo en red. Actualmente se implementa la
propuesta como parte de una tercera fase de investigación.
Palabras clave: convivencia, escola, intervención comunitaria.
Promover a convivência na escola: uma proposta de intervenção
comunitária
Resumo: O artigo descreve uma proposta de intervenção comunitária em convivência escolar
baseado nos resultados obtidos numa pesquisa prévia (Rodríguez, Vaca, Hewitt & Martínez, 2009)
que procurava caracterizar as formas de interação no contexto escolar. O ponto de partida foi a
presença de intimidação nos espaços escolares, a aproximação à comunidade permitiu concluir
que além da intimidação entre pares, existe na escola uma forma de relacionamento excludente
entre seus integrantes. A proposta foi direcionada a pais, professores, alunos e equipe diretiva da
escola participante e fundamentou-se em quatro objetivos. O primeiro esteve relacionado à análise
crítica do Manual de Convivência, como um documento referência que direciona o fazer educativo.
O segundo direcionou-se ao delineamento e desenvolvimento de um programa psicoeducativo
que promove o trabalho em equipe, a gestão do conflito, os papéis e as interações do cotidiano.
Os dois últimos estiveram ligados à assessoria psicológica individual e/ou familiar aos membros
da comunidade e a necessidade do trabalho em rede. Atualmente a implementação da proposta
constitui uma terceira fase da pesquisa.
Palavras-chave: convivência, escola, intervenção comunitária.
Protecting coexistence in the school: A proposal of community
intervention
Abstract: This article describes a proposal for a community intervention in school coexistence, from
the results of a participative action research, which looked for the characteristic ways of interaction
in a school context (Rodríguez, Vaca, Hewitt & Martínez, 2009). While the starting point was the
Aletheia 33, set./dez. 2010
179
presence of bullying in school spaces, the community approach allowed us to conclude that, beyond
bullying among peers, it existed a form of exclusion relationship between the members of the school.
The proposal is aimed at parents, teachers, students and principals of the participating school, and
it were based on achieving four objectives. The first objective was related to the critical analysis of
Coexistence Guide, a framework document that guides the educational task. The second objective
addressed the design and development of a psycho educational program to promote teamwork,
conflict management, roles and interactions in daily life. Finally it was considered important to
include individual counseling and / or family to community members who request it and the need
for net working. Currently the proposal is implemented as part of a third phase of research.
Keywords: Coexistence, School, Community Intervention.
Introducción
El estudio de la convivencia en la escuela ha sido un tema de mucho interés para
las comunidades científicas y los grupos de trabajo interesados en el desarrollo tanto
individual como comunitario. Lo anterior, por cuanto desde ese escenario se promueven
formas de interacción y se configuran y construyen referentes sobre los cuales los niños
y jóvenes se vinculan y/o vincularán posteriormente en otros en espacios públicos.
El aula es entonces, considerada como un contexto privilegiado para la construcción
de convivencia, desde el cual es posible promover la discusión, el dialogo y la reflexión
así como reconocer los acuerdos, las diferencias, las formas de alcanzar el consenso y
aceptar el disenso. Es decir es una posibilidad para el ejercicio de la democracia; solo de
esta manera se puede aprender a convivir mejor (Ianni, 2003).
Algunos estudios realizados a nivel nacional (Jaramillo, Díaz, Ortiz, Niño & Tavera,
2006; Jaramillo, Tavera & Velandia, 2008; Ramírez, Quintero, Aguilar & Villamizar,
2008; Zabaraín & Sánchez, 2009) muestran cómo en las escuelas se detectan diversas
problemáticas que se expresan en formas de interacción excluyentes entre los diferentes
actores que ella convoca. Sin embargo, se observa que los jóvenes perciben que respetan
en su mayoría al “otro”, ajustan su comportamiento a las reglas de grupo, pero no valoran
o no entienden las opiniones contrarias a las suyas (Chaux, Lleras & Velásquez, 2004).
Lo que sí es claro, es que existe una discrepancia entre las conductas que los profesores
clasifican como intimidación, frente a las que clasifican los niños. Es posible que los
niños clasifiquen la agresión física como intimidación, pero no por ejemplo la exclusión
social. Arango (2001) señala como estas interacciones quiebran el orden natural de los
vínculos interpersonales y de las relaciones sociales.
Existe el reconocimiento, hoy en día de que las personas que se relacionan con
los jóvenes y los niños, deben estar preparadas para asumir el compromiso de cambio
y transformación de esas formas de interacción desde el mismo escenario en el cual
se expresan. Este camino sin duda, conducirá, no solamente a hacer de la escuela un
espacio de socialización democrático, sino también permitirá la prevención de conductas
y problemas que se traducen de manera predecible en la desescolarización con todas las
implicaciones que ésta conlleva en la vida de los niños, la familia y la sociedad. Las cifras
derivadas del Ministerio de Educación Nacional (Centro Virtual de Noticias, 2010) de
nuestro país registran un 6% de deserción.
La visibilidad de esta situación ha señalado, la necesidad para las ciencias
180
Aletheia 33, set./dez. 2010
sociales, de pensar en propuestas que se orienten a potencializar la comunidad
educativa incluyendo a todos sus actores, de tal manera que se promueva en ella la
formación de ciudadanos responsables y a la vez se minimicen los factores de riesgo
que se relacionan con el abandono del contexto escolar por parte de los jóvenes y los
niños. Son muchas las investigaciones (Espindola & León, 2002; Cepeda, Pacheco,
García & Piraquive, 2008) que han centrado su interés en reconocer las implicaciones
que para una sociedad tiene el hecho de que sus jóvenes abandonen la escuela. Si bien
son muchos los factores externos e internos que pueden contribuir en este sentido, no
podemos desestimar los costos económicos y sociales. Estos últimos son más difíciles
de cuantificar, aunque registramos estadísticas cada vez más alarmantes en relación
con el trabajo infantil, la temprana iniciación en el uso y abuso de las drogas y la
delincuencia, solo por mencionar algunas.
En ese mismo sentido, en la investigación realizada en los contextos internacionales
(Orpinas & Horne, 2008; Olweus, 2.000) se identifican líneas de trabajo que se dirigen
hacia la promoción de pautas de interacción positiva en las escuelas y de programas
educación parental, como pilares fundamentales en el diseño e implementación de
programas de prevención en violencia y promoción del desarrollo saludable.
Este último aspecto reconoce la necesidad de incluir en los programas el apoyo a la
familia, traducido en un acompañamiento flexible y creativo sustentado en la necesidad
de mantener a los padres y en general a toda la comunidad informados permanentemente
sobre la forma de acceder a la resolución de problemáticas relacionadas con sus
hijos y con el entorno. La literatura señala cómo en estas propuestas de trabajo se
han aprovechado, los avances y el acceso a las nuevas tecnologías, por ejemplo,
en la creación de redes, como una estrategia de prevención de las pautas violentas
(Mertensmeyer & Fine, 2000). Este caso registra con optimismo, cómo el trabajo con
padres dentro de una perspectiva amplia en la que se vinculan todos los actores de una
comunidad, puede llevar a retroalimentar las políticas públicas y a disponer de todas
las condiciones necesarias y suficientes para que la tolerancia frente a la violencia se
minimice. Solo el trabajo en red podrá a futuro hacer realidad este propósito.
Es así como en diversos contextos existe un interés cada vez mayor por el
desarrollo en las escuelas de propuestas que se dirijan a la construcción de convivencia
al interior de ella. Bar- Tal (2004) señala cómo la convivencia puede ser entendida
como una representación mental, existente entre los miembros de una sociedad
caracterizada por reconocer los derechos de los otros y con el compromiso de que,
los desacuerdos propios de los grupos humanos sean resueltos de forma no violenta;
haciendo del conflicto una posibilidad para el encuentro, como lo propone Zubiría y
Zubiría (2009) al reconocerlo; “como una oportunidad para avanzar en el desarrollo”
p. 1. Sin duda alguna, dadas las diferentes creencias etnocéntricas y los fuertes
conflictos que existen en el mundo actual, la convivencia, en la diferencia, se reconoce
como un reto para este siglo (Coleman, 2000); de ahí la importancia de desarrollar
propuestas, que desde la escuela, como espacio fundamental de socialización y que
convoca además a diferentes actores de la comunidad, eduque para la convivencia;
planeamiento que como se mencionó anteriormente ha cobrado fuerza en diferentes
Aletheia 33, set./dez. 2010
181
lugares del mundo.
El rastreo de algunas de las propuestas que se han realizado para educar en
la convivencia permite concluir que existe en ellas una amplia riqueza tanto en sus
propósitos como en los caminos que han escogido para lograrlo. De manera general
los programas de educación para la convivencia convergen en la necesidad de trabajar
tanto con los niños y jóvenes, como con los profesores, y padres. Particularmente,
algunos trabajos muestran cómo los profesores manifiestan la necesidad de formación
y acompañamiento para el desarrollo de competencias que les permitan resolver
los problemas que actualmente emergen en la cotidianidad del contexto educativo
(Orpinas, Home & Multisite Violence Prevention Proyect 2004).
Las propuestas que se han focalizado en los niños, enfatizan en la necesidad
de construir en ellos competencias ciudadanas entendidas como “el conjunto de
capacidades y habilidades cognitivas, emocionales y comunicativas que orientan moral
y políticamente nuestra acción ciudadana” (Ruiz & Chaux, 2005, p. 21). Es importante
señalar, que estas competencias deben ser integradas al currículo, planteamiento
desarrollado desde los años 80 en algunos países de Europa (Romagnoli & Holloway,
citado en Educar Chile, 2010). Experiencias como las realizadas por Lazovski (2007),
se dirigen también a promover la tolerancia y la convivencia entre niños judíos y árabes,
a través de una estrategia en la cual los niños enseñan a otros niños, estrategia que
fue evaluada positivamente por los profesores, quienes señalaron mayor expresión de
sentimientos y aceptación de opiniones diferentes entre los niños, lo que se tradujo en
mejores relaciones interpersonales, conservando, sin embargo una clara conciencia de
su identidad judía o árabe.
Otras propuestas han mostrado la utilidad de involucrar diferentes sectores de
la comunidad en el desarrollo de los programas de educación para la convivencia.
Hertz-Lazarowitz (2004) contribuyó a trasformar las relaciones hostiles que existían
entre los miembros de una comunidad educativa, a través de estrategias de trabajo
cooperativo entre estudiantes, profesores, padres y líderes comunitarios y políticos,
logrando trasmitir el sentido real de la convivencia; transformación que trascendió el
espacio escolar permeando la política educativa de esa comunidad.
El objetivo de este artículo es describir una propuesta de intervención
comunitaria en convivencia, fruto de dos años de trabajo conjunto con padres,
profesores, directivos y estudiantes en una institución educativa dentro de la zona
de influencia de la Universidad. Aunque nos enfocaremos solo en el programa, es
importante resaltar que este está soportado en un trabajo previo de investigación
(Rodríguez, Vaca, Hewitt & Martínez, 2009), en el cual a partir de la caracterización
de la interacción entre diferentes actores de una comunidad educativa, utilizando
métodos combinados, se logró identificar los significados que subyacen a las prácticas
en el contexto escolar y desde allí construir conjuntamente con la comunidad un
camino viable y prometedor para visibilizar formas de interacción que favorezcan
la convivencia y prevenir a futuro la deserción de jóvenes estudiantes. Empezamos
planteando una fundamentación teórica sobre convivencia y posteriormente se
presenta la propuesta sustentada tanto en el marco teórico como en los resultados
182
Aletheia 33, set./dez. 2010
previos de investigación. Describiremos entonces los objetivos, los beneficiarios y
cada uno de los componentes que lo hacen singular, en la medida en que corresponde
a una experiencia concreta en un contexto particular.
Promover la convivencia en la escuela: una propuesta de intervención
comunitaria
La propuesta de intervención se construyó de manera participativa con los padres,
profesores, alumnos y directivos de la institución educativa participante, una vez se
devolvieron los resultados y se acordaron las condiciones a través de un consentimiento
informado. Como se mencionó anteriormente surgió de las demandas específicas del
contexto, en ese sentido el trabajo que se propuso es pertinente y particular para esta
institución educativa, pues responde a las necesidades identificadas y jerarquizadas con
los miembros de la comunidad.
Se partió de una conceptualización de Convivencia entendida como el conjunto de
significados y practicas existentes en una comunidad para interactuar y relacionarse a partir
de la cooperación, el buen trato, la inclusión de los demás y la erradicación de la agresión
como forma de solucionar la diferencia (Organización de Estados Iberoamericanos &
AECID, 2010). Esta comprensión de la Convivencia se fundamenta en el planeamiento
realizado por la UNESCO (2001), en relación con los objetivos de la Educación para
la Paz, que se dirigen fundamentalmente a la promoción de valores universales y
comportamientos en los que se basa una cultura de paz, destacándose la necesidad de
trabajar en aspectos como la capacidad de resolver conflictos, el reconocer y aceptar la
diversidad y el fortalecimiento de sentimientos de solidaridad y equidad, entre otros.
Objetivos de la propuesta
De esta manera se estableció le necesidad de trabajar en el logro de cuatro objetivos
específicos que son:
1. Analizar críticamente el Manual de Convivencia existente en la Institución
participante.
2. Diseñar un programa psicoeducativo orientado al desarrollo de competencias
comunicativas, emocionales y cognitivas que favorezcan la construcción de interacciones
incluyentes.
3. Brindar asesoría psicológica individual y/o familiar a los participantes
4. Favorecer el trabajo en redes intra y extramurales.
Cada uno de estos objetivos se convirtió en un uno de los componentes que conforma
la propuesta de trabajo, como se expone en el Figura 1.
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Figura 1 – Propuesta de intervención comunitaria para promover la convivencia en la escuela.
Componentes de la propuesta
Análisis crítico del Manual de convivencia
El Manual de convivencia es el documento que guía el quehacer de las instituciones
educativas, contiene el conjunto de valores, principios derechos y deberes que regulan
las interacciones al interior de la institución. Este componente tiene como objetivo
analizar tanto el contenido como la práctica del Manual de convivencia. Responde
al reconocimiento por parte de la de la comunidad educativa de la existencia de
incongruencias en la utilización del mismo. Se espera como resultado de este trabajo de
reflexión y análisis colectivo, el compromiso por parte de la comunidad de respetar de
manera consistente los acuerdos establecidos en él.
Programa psicoeducativo
Este componente se orienta a la construcción de competencias dirigidas a promover
formas de relación que favorecen interacciones positivas entre los miembros de la
Institución. Fue divido en 4 módulos que desarrollan temáticas identificadas por la
comunidad como fuente de dificultad relacional entre ellos.
184
Aletheia 33, set./dez. 2010
Módulos
1. Trabajo en equipo: Tiene el objetivo de promover competencias para el trabajo
colaborativo, en el cual la interdependencia se convierte en condición necesaria para
el logro de objetivos comunes.
2. El Modulo de Roles y Contexto Escolar, busca identificar y reconocer los
diferentes roles que existen en la comunidad educativa, las funciones que se esperan
de su ejercicio, las expectativas que generan y la posición legítimamente reconocida
de los mismos.
3. Gestión del conflicto: Busca reconocer el conflicto como inherente a la vida
social, como una realidad que puede tomar diferentes matices, dependiendo de la
aproximación creativa o no que se haga frente a ella. Se reconoce el conflicto como
una posibilidad de encuentro creativo, cuestionando la connotación negativa asignada
por la comunidad.
4. Interacciones y Cotidianidad: Se orienta a reconocer y promover el valor
de los acuerdos en relación con el cumplimiento de normas, respeto a la diversidad
y existencia de consensos frente a las sanciones e incentivos en el contexto escolar.
Resalta la necesidad de coherencia y consistencia en el cumplimiento de los aspectos
mencionados.
La propuesta se está trabajando a través de metodologías participativas.
(Construyendo Paz en las Escuelas, 2010) (Montero, 2008), desde los planeamientos
de Coll (1988) relacionados con la concepción del aprendizaje como un proceso de
construcción de sentido que ocurre en un contexto relacional.
Asesoría psicológica individual y/o familiar
El centro de Servicios de Psicología de la Universidad de la Sabana tiene como
objetivo contribuir a la proyección social que realiza la Facultad de Psicología en su
entorno próximo. De la experiencia de trabajo con la comunidad surgió la necesidad de
ampliar los objetivos de la propuesta de tal manera que responda a los requerimientos
individuales y familiares desde una aproximación clínica.
Es así como se han realizado procesos de asesoría, tanto a los alumnos de la
institución participante como a sus familias. Los procesos de detección y remisión para
las asesorías están a cargo de los docentes, quienes previamente fueron preparados
para convertirse en agentes promotores de salud mental.
Adicionalmente, con la intención de hacer del aula un escenario para optimizar
los procesos de socialización del niño, se ha apoyado a los profesores en relación con
el desarrollo de estrategias orientadas a favorecer la participación y el comportamiento
apropiado de los estudiantes en el aula, reconociendo y legitimando el rol del profesor
como gestor de convivencia en los contextos escolares. En este sentido la propuesta,
resalta la necesidad de trabajar de manera interdependiente y sincrónica lo que se
traduce en pertinencia y coherencia de las acciones realizadas, contribuyendo de ésta
manera a minimizar los riesgos de deserción escolar.
Aletheia 33, set./dez. 2010
185
Trabajo en redes intra y extramurales.
Se concibe el trabajo en red como una garantía de viabilidad y sostenibilidad de la
propuesta de trabajo; en este sentido la construcción de redes tanto al interior del contexto
educativo como fuera de él, se convierte en una herramienta fundamental para aunar
esfuerzos y trabajar conjuntamente (Elkaîm, citado por Rangel, 2008). Desde allí es posible
que las personas se reconozcan como sujetos activos con posibilidad de transformar su
entorno, a través de su participación en procesos de planeación, organización y toma de
decisiones frente a situaciones que les atañen. Se espera que este trabajo se traduzca en
una comunidad autónoma y con posibilidades de autorregulación.
La conformación de redes al interior de la escuela, tales como la Red de Lideres
que promueve la negociación pacífica del conflicto y la Red de Padres, que se orienta
al soporte entre ellos, para potenciar el desarrollo de sus hijo, son ejemplo del objetivo
de este componente. De igual manera se fomenta el trabajo con redes extramurales, que
permitan optimizar el uso de los recursos que existen en la comunidad.
Discusión
El reto de las sociedades actuales es la convivencia en la diferencia, sin duda,
formamos parte de un mundo plural en el que la diversidad se expresa de diferentes
maneras. El hacer de la escuela un escenario para el ejercicio de la democracia a partir
de la participación, el respeto a la diversidad y el abordaje creativo del conflicto, aspectos
fundamentales en la construcción de la convivencia, contribuye indudablemente a la
construcción de una sociedad incluyente. La escuela como espacio de socialización
por excelencia permite que sea considerada como un lugar privilegiado en el cual es
posible pensar en la construcción de otros mudos posibles, es decir es un lugar para la
transformación cultural.
El convocar a diferentes actores de la comunidad alrededor de una necesidad
manifestada y sentida en la escuela y más allá de ella en la sociedad, nos permitió
reconocerla como una puerta de entrada a una dinámica mucho más compleja que la
expresada inicialmente por los participantes. Es así como, en los encuentros iniciales con
los docentes y directivos, la intimidación ocupaba un papel protagónico en el escenario
de trabajo, de tal manera que una primera aproximación se caracterizó por la necesidad
de cuantificarla, caracterizarla así como comprenderla a partir de su significado en las
transacciones cotidianas en la escuela, lo que nos llevó a reconocer la importancia de
ir más allá y pensar en una propuesta de intervención, que desde integral se dirigiera a
todos los actores que convergen en el espacio escolar. En este sentido compartimos el
planteamiento de considerar este contexto que como espacio de reproducción cultural
nos posible acceder a las problemáticas y preocupaciones que tienen una sociedad como
la nuestra.
Diferentes investigadores (Arango, 2001; Gázquez, Cangas, Pérez & Aeién, 2009)
interesados en el tema de la convivencia, han coincidido en afirmar que en la escuela
se evidencian las condiciones que pueden convertirse en riesgo y /o amenaza para la
permanencia y los procesos formativos a los que los jóvenes tienen derecho. De igual
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Aletheia 33, set./dez. 2010
manera coinciden en afirmar que un ambiente escolar caracterizado por el Buen Trato es
un factor protector para su permanencia de los niños y jóvenes en el proceso de formación.
Además, hay un acuerdo, también en afirmar que estas últimas condiciones contribuyen a
la formación de ciudadanos con competencias para enfrentarse a los retos que le plantea
este nuevo milenio. Es en este sentido, que reiteramos que toda propuesta que busque
minimizar las condiciones adversas y promover la permanencia de los estudiantes en la
escuela, será bienvenida e irá en la línea de los “Objetivos de Desarrollo del Milenio”
que son explícitos en afirmar la importancia de evitar que los niños abandonen la escuela
antes de terminar el ciclo básico (Espíndola & León, 2008).
Es importante destacar como lo afirma Whitted y Dupper (2005) la necesidad de
hacer seguimiento a este tipo de iniciativas, de tal manera que se garantice la vinculación
a todas las esferas que conforman la ecología del niño. La experiencia realizada hasta
ahora nos permite señalar cómo la participación activa e interesada de los profesores, es
un insumo fundamental en el éxito de propuestas de este tipo. Por último, no debemos
olvidar que el trabajo con padres requiere de constancia, generación de compromiso
por parte de ellos y la responsabilidad social de los empleadores, quienes en muchas
ocasiones obstaculizan su presencia para el desarrollo de los procesos que se esperan sea
el resultado de una propuesta de este tipo.
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junio de 2011.
_____________________________
Recebido em 21/09/2011
Aceito em 10/10/2011
María Clara Rodríguez: Psicóloga; Magister en Investigación; Miembro del grupo de investigación “Contexto
y Crisis”; Profesora Asociada Facultad de Psicología; Universidad de La Sabana, Colombia.
Patricia Vaca: Psicóloga; Magister en Psicología Social; Miembro del grupo de investigación “Contexto y
Crisis”; Profesora Asistente Facultad de Psicología; Universidad de La Sabana, Colombia.
Endereço para contacto: [email protected], macrobe @hotmail.com
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Instruções aos autores
Política editorial
A Aletheia é uma revista quadrimestral editada pelo curso de Psicologia da
Universidade Luterana do Brasil destinada à publicação de trabalhos de pesquisadores
envolvidos em estudos produzidos na área da Psicologia ou ciências afins. Serão aceitos
somente trabalhos não publicados que se enquadrem nas categorias de relato de pesquisa,
artigos de revisão ou atualização, relatos de experiência profissional, comunicações
breves e resenhas.
Relatos de pesquisa: investigação baseada em dados empíricos, utilizando
metodologia e análise científica.
Artigos de revisão/atualização: revisões sistemáticas e atuais sobre temas
relevantes para a linha editorial da revista.
Relatos de experiência profissional: estudos de caso contendo discussão de
implicações conceituais ou terapêuticas; descrição de procedimentos ou estratégias de
intervenção de interesse para a atuação profissional dos psicólogos.
Comunicações breves: relatos breves de experiências profissionais ou comunicações
preliminares de resultados de pesquisa.
Resenhas: revisão crítica de livros recém-publicados, orientando o leitor quanto a
suas características e seus usos potenciais.
Aspectos éticos: todos os artigos envolvendo pesquisa com seres humanos
devem declarar que os sujeitos do estudo assinaram um termo de consentimento livre
e esclarecido, de acordo com as diretrizes nacionais e internacionais de pesquisa. No
caso de pesquisa com animais, os autores devem atestar que o estudo foi realizado de
acordo com as recomendações éticas para esse tipo de pesquisa. Os autores também são
solicitados a declarar, na seção “Método”, que o protocolo da pesquisa foi previamente
aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do local de origem do projeto.
Conflitos de interesse: os autores devem declarar todos os possíveis conflitos de
interesse (profissionais, financeiros, benefícios diretos ou indiretos), se for o caso. A falha
em declarar conflitos de interesse pode levar à recusa ou cancelamento da publicação.
Normas editoriais
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2. O artigo passará pela apreciação dos Editores.
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do Conselho Editorial, que poderá fazer uso de consultores ad hoc de reconhecida
competência na área de conhecimento. A Comissão Editorial e os consultores ad hoc
analisam o manuscrito, sugerem modificações e recomendam ou não a sua publicação.
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4. Os artigos poderão receber: a) aceitação integral; b) aceitação com reformulações;
c) recusa integral. Em qualquer dessas situações, o autor será devidamente comunicado.
Os originais, em nenhuma das possibilidades, serão devolvidos.
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será(ão) informado(s) sobre as modificações a serem realizadas.
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de 15 dias após o recebimento da notificação), os autores deverão incluir uma carta
ao Editor esclarecendo as alterações feitas e aquelas que não julgaram pertinentes e a
justificativa. No texto, as modificações feitas deverão estar destacadas com a ferramenta
Word “pincel amarelo”. O encaminhamento com as modificações realizadas pode ser
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artigos.
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indicadas pelos consultores e as modificações encaminhadas pelo autor.
9. Os artigos poderão ser escritos em outra língua além do português (espanhol e
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trabalho publicado. O arquivo eletrônico com a publicação em PDF será disponibilizado
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12. A matéria editada pela Aletheia poderá ser impressa total ou parcialmente,
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1) Os artigos inéditos deverão ser encaminhados em disquete ou CD e uma via
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desde a folha de rosto personalizada. A folha deverá ser A4, com formatação de margens
superior e inferior (no mínimo 2,5 cm), esquerda e direita (no mínimo 3 cm). A revista
adota as normas do Manual de Publicação da American Psychological Association - APA
(4ª edição, 2001).
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191
2) O número máximo de laudas deve atender a seguinte orientação: relatos de
pesquisa (25 laudas); artigos de revisão/atualização (20 laudas); relatos de experiência
profissional (15 laudas), comunicações breves (5 laudas) e resenhas (máximo de 5
laudas).
3) Encaminhamento: toda correspondência deve ser encaminhada à revista Aletheia,
aos cuidados do Editor Responsável.
4) Todo manuscrito encaminhado à revista deverá ser acompanhado de uma carta
de autorização, assinada por todos os autores, onde deve constar:
a) a intenção de submissão do trabalho à publicação;
b) a autorização para reformulação da linguagem, se necessário;
c) a transferência de direitos autorais para a revista Aletheia.
5) O artigo deve conter:
a) folha de rosto identificada: título do artigo em língua portuguesa; nome dos
autores; formação, titulação e afiliação institucional dos autores; resumo em português
de 10 a 12 linhas; palavras-chave, no máximo 3; título do artigo em língua inglesa;
abstract compatível com o texto do Resumo; key-words; endereço para correspondência,
incluindo CEP, telefone e e-mail.
b) folha de rosto não identificada: título do artigo em língua portuguesa; resumo em
português, de 10 a 12 linhas, 3 palavras-chave, título do artigo em língua inglesa, resumo
(Abstract) em inglês, compatível com o texto do Resumo; key-words.
c) corpo do texto.
d) sugere-se que os artigos referentes a relatos de pesquisa apresentem a seguinte
seqüência: Título; Introdução; Método (população/amostra, instrumentos, Procedimentos
de coleta e Análise de dados – incluir nessa seção afirmação de aprovação do estudo em
Comitê de Ética em Pesquisa de acordo com Resolução 196/96 do Conselho Nacional
de Saúde – Ministério da Saúde); Resultados; Discussão, Referências (títulos em letra
minúscula e em seções separadas). Usar as denominações tabelas e figuras (não usar a
expressão quadros e gráficos). Colocar tabelas e figuras incorporadas ao texto. Tabelas:
incluindo título e notas de acordo com normas da APA. Formato Word – ‘Simples 1’.
Na publicação impressa, a tabela não poderá exceder 11,5 cm de largura x 17,5 cm de
comprimento. O comprimento da tabela não deve exceder 55 linhas, incluindo título e
rodapé(s). Para assegurar qualidade de reprodução, as figuras contendo desenhos deverão
ser encaminhadas em qualidade para fotografia (resolução mínima de 300 dpi). A versão
publicada não poderá exceder a largura de 11,5 cm para figuras. Anexos: apenas quando
contiverem informação original importante, ou destaque indispensável para a compreensão
de alguma seção do trabalho. Recomenda-se evitar anexos.
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pela revista (APA, 4ª edição) não serão avaliados.
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Normas para citações
- As notas não bibliográficas deverão ser colocadas ao pé das páginas, ordenadas
por algarismos arábicos que deverão aparecer imediatamente após o segmento de texto
ao qual se refere a nota.
- As citações dos autores deverão ser feitas de acordo com as normas da APA (4ª
edição).
- No caso da citação integral de um texto: deve ser delimitada por aspas, e a citação
do autor seguida do ano e do número da página citada. Uma citação literal com 40 ou mais
palavras deve ser apresentada em bloco próprio em itálico e sem aspas, começando em
nova linha, com recuo de 5 espaços da margem, na mesma posição de um novo parágrafo.
A fonte será a mesma utilizada no restante do texto (Times New Roman, 12).
• Citação de um autor: autor, sobrenome em letra minúscula, seguida pelo ano da
publicação. Exemplo: Rodrigues (2000).
• Citações de dois autores: cite os dois autores sempre que forem referidos no
texto. Exemplo: (Carvalho & Santos, 2000) – quando os sobrenomes forem citados entre
parênteses, devem estar ligados por &. Quando forem citados fora de parênteses, devem
ser ligados pela letra e.
• Citação de três a cinco autores: citar todos os autores na primeira referência,
seguidos da data do artigo entre parênteses. A partir da segunda referência, utilize o
sobrenome do primeiro autor, seguido de e cols. Exemplo: Silva, Foguel, Martins e Pires
(2000), a partir da segunda referência, Silva e cols. (2000).
• Artigo de seis ou mais autores: cite apenas o sobrenome do primeiro autor, seguido
de e cols. (ANO). Na seção referências, todos os autores deverão ser citados.
• Citação de obras antigas, clássicas e reeditadas: citar a data da publicação original,
seguida da data da edição consultada. Exemplo: (Kant 1871/1980).
• Autores com a mesma idéia: seguir a ordem alfabética de seus sobrenomes e não
a ordem cronológica. Exemplo: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999; Souza,
2005).
• Publicações diferentes com a mesma data: acrescentar letras minúsculas, após o
ano de publicação. Exemplo: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c.
• Citação cuja idéia é extraída de outra ou citação indireta: utilizar a expressão
citado por. Ex: Lopes, citado por Martins (2000),...
Na seção Referências, incluir apenas a fonte consultada (Martins).
• Transcrição literal de um texto ou citação direta: sobrenome do autor, data, página.
Exemplo: (Carvalho, 2000, p.45) ou Carvalho (2000, p.45).
Normas para referências
As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do artigo.
Sua disposição deve ser em ordem alfabética do último sobrenome do autor e em
minúsculo.
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Trabalho apresentado em evento científico com resumo em anais
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Obra antiga e reeditada em data muito posterior
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Aletheia 33, set./dez. 2010
Autoria institucional
American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª ed.).Washington:
Autor.
Endereço para envio de artigos
Universidade Luterana do Brasil
Curso de Psicologia
Revista Aletheia
Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José
Sala 121 - Prédio 01
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related sciences. Only unpublished papers will be accepted into these categories: original
articles, review/update articles, professional experiences reports, brief communications
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practitioners’ interest.
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communications of original character.
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to psychology.
Ethical aspects: All the articles involving research with human subjects must state
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to the national and international ethical regulations. In case of research with animals,
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for the animals involved in the research. The authors are also requested to state in the
“Methods” section that the research protocol was previously approved by a Research
Ethics Board.
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interest (professionals, financials, direct or indirect benefits), if the case. The failure to
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1. Only unpublished articles will be accepted.
2. The articles will be evaluated by the Editors.
3. After initial evaluation, the Editors will send the submitted papers to the
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of recognized expertise in the knowledge area. The Editorial Board and ad hoc
consultants will analyze the manuscript, suggest modifications, and recommend or
not its publication.
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4. The papers may be: a) fully accepted; b) accepted with modifications; c) fully
refused. In any of the situations the author will be properly communicated. The originals
will not be returned in any case.
5. The authors will received a copy of the consultants’ analysis and will be informed
about recommended modifications.
6. When the modified version of the manuscript is sent (this may happen up
to 15 days after receiving the notification), the authors must include a letter to the
Editors, elucidating the changes that have been made and justifying the ones they
did not judge relevant to make. All modifications must be highlighted with Word’s
tool “yellow brush”. The modified version of the article may be sent by e-mail
([email protected]).
7. The Editors have the right to make small modifications in the text.
8. The final decision of publication of a manuscript will always be of the Editor
and of the editorial board in charge. They will take into consideration the original text,
the consultant’s recommendations and the modified version of the article.
9. Articles may be submitted in other languages besides Portuguese (Spanish and
English)
10. Regardless the number of authors, two copies of the journal per published article
will be offered. The electronic version of the printed article (PDF file) can be accessed
in Aletheia homepage www.ulbra.br/psicologia/aletheia.
11. The opinions emitted in the articles are full responsibility of author(s), and its
acceptance does not mean that Aletheia supports it.
12. Total or partial reproduction can be made only after permission of the Editor.
Aletheia owns the copyrights and will not transfer them to authors.
Preparation of manuscripts
1) The unpublished articles must be sent in diskettes or CD and also one printed
copy, typed in double space, Times New Roman letter, size 12, numbered since the title
page. The sheet must be A4, with inferior and superior margins of 2,5 cm, and right and
left margins of 3 cm. The journal follows the rules of Manual of Publication of American
Psychological Association - APA (5th edition, 2001).
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2) The maximum number of pages should be as follow: Original articles (25 pages);
Review articles/Uptade articles (20 pages); Professional experiences reports (15 pages);
Brief communications (5 pages); Book review (5 pages).
3) Submissions: All correspondence should be addressed to Aletheia in behalf of
the Editor in charge.
4) Every manuscript sent to the Journal must be accompanied by an authorization
letter, signed by all of the authors, stating:
a) The intention of submission the article to publication;
b) Authorization for modification of language if necessary;
c) Transference of copyrights for Aletheia Journal.
5) The manuscript should contain:
a) Title page: article title in Portuguese ; authors’ name; authors’ essential title and
institutional affiliation; abstract in Portuguese from 10 to 12 lines; key words, at least
3; article title in English; abstract compatible with the text of Portuguese abstract ; key
words; Correspondence address, including Zip Code, telephone and e-mail.
b) Non identified title page: article title in Portuguese; abstract in Portuguese from
10 to 12 lines; key words, at least 3; article title in English; abstract compatible with the
text of Portuguese abstract ; key words;
* If article was not written in Portuguese, it must contain the same information in
its original language.
c) Body of the text.
d) Original articles may have the following sequence: Title, Introduction,
Method (population/sample; instruments; procedures; and data analysis. In this
section the study approval in a Ethics Research Committee should be stated), Results,
Discussion, Conclusion or Final Considerations, References (in small letters and in
separate section). Use the denomination “table” and “figure” (and not graphs or other
terms). Place tables and figures embedded in the text. Tables: including title and
notes in accordance with APA’s standards . Word format - ‘Simple 1’. In the printed
version the table may not exceed 11.5 cm wide x 17.5 cm in length. The length of
the table should not exceed 55 lines, including title and footer(s). To ensure quality,
the reproduction of pictures containing drawings should have photograph quality
(minimum resolution of 300 dpi). The printed version can not exceed 11.5 cm width
for pictures. Appendixes: only when they contain new and important information,
or are essential to highlight and make more understandable any section of the paper.
The use of appendixes should be avoided.
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6) Papers with incomplete documentation or that do not attend the norms adopted
by Aletheia (APA, 4th edition) will not be appraised.
Citations norms
- The non bibliographical notes must be put in the lower margin of pages, arranged
by Arabic numerals that must appear immediately after the segment of text to which the
note refers to.
- The authors’ citations must be done in agreement with norms of APA (4th edition).
- In the case of full citation of a text: it must be delimited by quotation mark and the
author’s citation followed by the year and number of page mentioned. A literal citation
with 40 or more words must be presented in proper block and in italic without quotation
mark, starting a new line, with pullback of 5 spaces of margin, in the same position of
a new paragraph. The letter will be the same used in the remaining of text (Times New
Roman, 12).
• Citation of an author: author, last name in small letter, followed by the year of
publication. Example: Rodrigues (2000).
• Citation of two authors: cite both authors always that they are referred in the text.
Example: (Carvalho & Santos, 2000) – when the last names are cited between parentheses:
they must be connected by &. When they are cited outside the parenthesis they must be
connected by the letter e.
• Citation from three to five authors: cite all the authors in the first reference, followed
by the date of article between parentheses. Starting from the second reference, use the last
name of the first author, followed by e cols. Example: Silva, Foguel, Martins and Pires
(2000), starting from the second reference, Silva and cols. (2000).
• Article of six or more authors: cite just the last name of the first author, followed
by e cols (YEAR). In the references all the authors must be cited.
• Citation of old, classic and reedited works: cite the date of original publication,
followed by the date of edition consulted. Example: (Kant 1871/1980).
• Authors with the same idea: follow the alphabetical order of their last names
and not the chronological order. Example: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999;
Souza, 2005).
Different publications with the same date: Increase capital letter, after the year of
publication. Example: Carvalho (1997, 2000a, 2000b, 2000c).
• Citation whose idea is extracted from other or indirect citation: Use the expression
cited by. Ex: Lopes, cited by Martins (2000),...
In the Bibliographical References, include just the source consulted (Martins).
• Literal transcription of a text or direct citation: last name of author, date, page.
Example: (Carvalho, 2000, p.45) or Carvalho (2000, p.45).
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References norms
The bibliographical references must be presented at the end of article. Its disposition
must be in alphabetical order of the last name of author in small letter.
Book
Mendes, A.P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas.
Silva, P.L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Chapter of book
Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertility and late pregnancy. Em P. Papp
(Org.), Couples in danger,, new guideline for therapists (pp. 119-144). Porto Alegre:
Artmed.
Article of scientific journal
Dimenstein, M. (1998). The psychologist in the Basic Units of Health:
Challenges for the formation and professional performance. Studies of Psychology,
3(1), 95-121.
Articles in electronic means
Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Collective Health: a “new public health”
or open field for new paradigms? Magazine of Public Health, 32 (4) Available: <http://
www.scielo.br> Accessed: 02/11/2000.
Article of scientific journal in press
Albuquerque, P. (no prelo). Gender and work. Aletheia.
Work presented in congress
Silva, O. & Dias, M. (1999). Unemployment and its repercussions in the family.
Em Annals of XX Meeting of Social Psychology, pp. 128-137, Gramado, RS.
Thesis or published dissertation
Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children.
Master dissertation or doctorate thesis. Program of Graduate Studies in Psychology of
Development, Federal University of Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS
Thesis or non-published dissertation
Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children.
Master dissertation non-published or doctorate thesis (non-published). Program of
Graduate Studies in Psychology of Development, Federal University of Rio Grande do
Sul. Porto Alegre, RS
Old work reedited in posterior date
Segal, A. (2001). Some aspects of analysis of a schizophrenic person. Porto Alegre:
Universal. (Original published in 1950)
200
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Institutional Authorship
American Psychological Association (1994). Publication manual (4th edition).
Washington: Author
Address for submissions
Universidade Luterana do Brasil
Curso de Psicologia
Revista Aletheia
Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José
CEP: 92425-900
Sala 121 - Prédio 01
Canoas – RS – Brasil
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Instrucciones a los autores
Política editorial
Aletheia es una revista cuadrimestral editada por el Curso de Psicología de la
Universidad Luterana de Brasil, destinada a la publicación de trabajos de investigadores,
implicados en estudios producidos en el área de la Psicología o ciencias afines. Serán
aceptados solamente trabajos no publicados que se encuadren en las categorías de relato
de investigación, artículo de revisión o actualización, relatos experiencia profesional,
comunicaciones breves y reseñas.
Relatos de investigación: investigación basada en datos empíricos, utilizando
metodología y análisis científica.
Artículos de revisión/actualización: revisiones sistemáticas y actuales sobre
temas relevantes para la línea editorial de la revista.
Relatos de experiencia profesional: estudios de caso, contiendo discusión de
implicaciones conceptuales o terapéuticas; descripción de procedimientos o estrategias
de intervención de interés para la actuación profesional de la psicología.
Comunicaciones breves: relatos breves de experiencias profesionales o
comunicaciones preliminares de resultados de investigación.
Reseñas: revisión crítica de libros recién publicados, orientando el lector cuanto
a sus características y usos potenciales.
Aspectos éticos: Todos los artículos implicando investigación con seres
humanos deben declarar que los participantes del estudio firmaron algún Término
de Consentimiento Libre y Esclarecido, de acuerdo con las directrices brasileñas e
internacionales de investigación. En el caso de investigación con animales los autores
deben atestar que el estudio ha sido realizado de acuerdo con las recomendaciones
éticas para este tipo de investigación. Los autores también son solicitados a declarar,
en la sección “Método”, que el protocolo de la investigación ha sido previamente
aprobado por algún Comité de Ética en Investigación del local de origen del
proyecto.
Conflictos de interés: los autores deben declarar todos los posibles conflictos
de interés (profesionales, financieros, beneficios directos o indirectos), si es el caso.
El fallo en declarar conflictos de interés puede llevar a la recusa o cancelación de
la publicación.
Normas editoriales
1. Serán aceptados solamente trabajos inéditos.
2. El artículo pasará por la apreciación de los Editores.
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Aletheia 33, set./dez. 2010
3. Seguido de una evaluación inicial, los Editores enviarán para apreciación del
Consejo Editorial, que podrá hacer uso de consultores ad hoc de reconocida competencia
en el área de conocimiento. La Comisión Editorial y los Consultores ad hoc analizan el
artículo, sugieren modificaciones y recomiendan o no su publicación.
4. Los artículos podrán recibir: a) aceptación integral; b) aceptación con
reformulaciones; c) recusa integral. En cualquier de estas situaciones el autor será
debidamente comunicado. Los originales, en ninguna de las posibilidades, serán
devueltos.
5. El autor del artículo recibirá copia de los pareceres de los consultores. Será
informado sobre las modificaciones que necesiten ser realizadas.
6. En el envío de la versión modificada del artículo (en el límite máximo de 15
días después del recibimiento de la notificación), los autores deberán incluir una carta
al Editor, esclareciendo las alteraciones hechas y aquellas que no juzgaran pertinentes
y la justificativa. En el texto, las modificaciones hechas deberán estar destacadas con
la herramienta Word “pincel amarillo”. El envío del archivo con las modificaciones
realizadas puede ser realizado por e-mail ([email protected]).
7. Los Editores se reservan el derecho de hacer pequeñas alteraciones en el
texto de los artículos.
8. La decisión final sobre la publicación de un manuscrito siempre será del Editor
Responsable y del Consejo Editorial, que hará una evaluación del texto original, de
las sugerencias indicadas por los consultores y las modificaciones enviadas por el
autor.
9. Los artículos podrán ser escritos en otra lengua además del portugués (español
e inglés).
10. Independientemente del número de autores, serán ofrecidos dos ejemplares
por trabajo publicado. El archivo electrónico con la publicación en PDF estará
disponible en el site www.ulbra.br/psicologia/aletheia.
11. Las opiniones emitidas en los artículos son de entera responsabilidad de los
autores, su aceptación no significa que la Revista Aletheia o el Curso de Psicología
de la ULBRA le soportan.
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203
12. La materia editada por la Aletheia podrá ser impresa total o parcialmente,
des de que obtenida la autorización del Editor Responsable. Los derechos autorales
obtenidos por la publicación del artículo no serán repasados para el autor del
artículo.
Presentación de los originales
1) Los artículos inéditos deberán ser enviados en disquete o CD y una vía impresa,
digitada en espacio doble, fuente Times New Roman, tamaño 12 y paginado desde
la hoja de rostro personalizada. La hoja deberá ser A4, con formatación de márgenes
superior e inferior (mínimo de 2,5 cm), izquierda y derecha (mínimo de 3 cm). La
revista adopta las normas del Manual de Publicación de la American Psychological
Association - APA (4ª edición, 2001).
2) El número máximo de laudas debe atender a la siguiente orientación: Relatos
de investigación (25 laudas); Artículos de revisión/actualización (20 laudas); Relatos
de experiencia profesional (15 laudas), Comunicaciones breves (5 laudas) y Reseñas
de libros (máximo de 5 laudas).
3) Dirección: Toda correspondencia debe ser dirigida a la Revista Aletheia, a la
atención del Editor Responsable.
4) Todo manuscrito dirigido a la Revista deberá acompañar una carta de
autorización, firmada por todos los autores, donde deberá constar:
a) la intención de sumisión del trabajo a la publicación;
b) la autorización para reformulación del lenguaje, si necesario;
c) la transferencia de derechos autorales para la Revista Aletheia.
5) El artículo debe contener:
a) Hoja de portada identificada: título del artículo en lengua portuguesa; nombre
de los autores; formación, titulación y afiliación institucional de los autores; resumen
en portugués de 10 a 12 líneas; palabras-clave, en el máximo de 3; título del artículo
en lengua inglesa; abstract compatible con el texto del resumen; keywords; dirección
para correspondencia, incluyendo CEP, teléfono y e-mail.
b) Hoja de portada no identificada: título del artículo en lengua portuguesa o
castellana; resumen en portugués o castellano, de 10 a 12 líneas, 3 palabras-clave,
título del artículo en lengua inglesa, resumen (abstract) en inglés, compatible con el
texto del Resumen en lengua original; keywords.
c) Cuerpo del texto.
204
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d) Sugiérase que los artículos referentes a Relatos de Investigación presenten la
siguiente secuencia: Título; Introducción; Método (populación/muestra, instrumentos,
procedimientos de recogida y análisis de los datos, (incluir en esta sección afirmación
de aprobación del estudio en Comité de Ética en Investigación de acuerdo con la
Resolución 196/96 del Consejo Nacional de Salud – Ministerio de Salud o declaración de
haber atendido a los criterios de dicha resolución); Resultados; Discusión, Referencias
(títulos en letra minúscula y en secciones separadas). Utilizar las denominaciones
tablas y figuras (no utilizar la expresión cuadros y gráficas). Dejar las tablas y figuras
incorporadas al texto. Tablas: incluyendo título y notas de acuerdo con las normas de la
APA. Formato Word – ‘Sencillo 1’. En la publicación impresa la tabla no podrá exceder
11,5 cm de ancho x 17,5 cm de largo. El largo de la tabla no debe pasar de 55 líneas,
incluyendo título y notas al pié. Para garantizar cualidad de reproducción, las figuras
que contengan dibujos deberán ser dirigidas en cualidad para fotografía (resolución
mínima de 300 dpi). La versión publicada no podrá ultrapasar el ancho de 11,5 cm
para figuras. Anexos: solo cuando tengan información original importante, o destaque
indispensable para la comprensión de alguna sección del trabajo. Recomendase evitar
anexos.
6) Trabajos con documentación incompleta o no atendiendo las normas adoptadas
por la revista (APA, 4ª edición) no serán evaluados.
Normas para citaciones
- Las notas no bibliográficas deberán ser puestas al pié de las páginas, ordenadas
por números arábicos que deberán figurar inmediatamente después del segmento de
texto al cual se refiere a la nota.
- Las citaciones de los autores deberán ser hechas de acuerdo con las normas
de la APA (4ª edición).
- En el caso de la cita integral de un texto: debe ser delimitada por comillas
y la citación del autor, seguida del año y del número de la página citada. Una cita
literal con 40 o más palabras debe ser presentada en bloque propio y en cursiva y sin
comillas, empezando en nueva línea, con una retirada de espacio de 5 espacios del
margen, en la misma posición de un nuevo párrafo. La fuente será la misma utilizada
en el restante del texto (Times New Roman, 12).
• Citación de un autor: autor, apellido en letra minúscula, seguida por el año
de publicación. Ejemplo: Rodrigues (2000).
• Citaciones de dos autores: cite los dos autores siempre que sean referidos en el
texto. Ejemplo: (Carvalho & Santos, 2000) - cuando los apellidos sean citados entre
paréntesis: deben estar separados por &. Cuando sean citados fuera del paréntesis
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205
deben ser vinculados pela letra e, en publicaciones en portugués y por la letra y para
publicaciones en castellano.
• Citación de tres a cinco autores: citar todos los autores en la primera referencia,
seguidos de la fecha del artículo entre paréntesis. A partir de la segunda referencia,
utilice el apellido del primero autor, seguido de y cols. Ejemplo: Silva, Foguel, Martins
y Pires (2000), a partir de la segunda referencia: Silva y cols. (2000)
• Artículo de seis o más autores: cite solamente el apellido del primero autor,
seguido de y cols. (AÑO). En la sección Referencias, todos los autores deberán ser
citados.
• Citación de obras antiguas, clásicas y reeditadas: citar la fecha de la publicación
original, seguida de la fecha de la edición consultada. Ejemplo: (Kant 1871/1980).
• Autores con la misma idea: seguir el orden alfabético de sus apellidos y no
el orden cronológico. Ejemplo: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999; Souza,
2005).
• Publicaciones distintas con la misma fecha: Añadir letras minúsculas, luego
el año de publicación. Ejemplo: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c.
• Citación cuya idea es extraída de otra o citación indirecta: Utilizar la expresión
citado por. Ej.: Lopes, citado por Martins (2000),...
En la sección Referencias, añadir solamente la fuente consultada (Martins).
• Transcripción literal de un texto o citación directa: apellido del autor, fecha,
página. Ejemplo: (Carvalho, 2000, p.45) o Carvalho (2000, p.45).
Normas para referencias
Las referencias bibliográficas deberán ser presentadas en el final del artículo.
Su disposición debe ser en orden alfabético del último apellido del autor (cuando
presente más de uno) y en minúscula. En el caso de autores hispánicos, se puede
utilizar la normativa de la APA, y presentar los dos apellidos a la vez, separados por
un guión. Ej.: Martínez-Cruz.
Libro
Mendes, A. P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes
Médicas.
Silva, P. L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento
familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.
Capítulo de libro
Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertilidade e gravidez tardia. Em: P.
Papp (Org.), Casais em perigo, novas diretrizes para terapeutas (pp. 119-144). Porto
Alegre: Artmed.
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Aletheia 33, set./dez. 2010
Artículo de publicación periódica científica
Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios
para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia, 3(1), 95-121.
Artículos en medios electrónicos
Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde
pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32 (4)
Disponível: <http://www.scielo.br> Acessado: 02/2000.
Artículo de revista científica en prensa
Albuquerque, P. (en prensa). Trabalho e gênero. Aletheia.
Trabajo presentado en evento científico con resumen en anales
Corte, M. L. (2005). Adolescência e maternidade. [Resumo]. Em: Sociedade
Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações científicas. XXV Reunião
Anual de Psicologia (p. 176). Ribeirão Preto: SBP.
Tesis o monografía publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de
Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
Tesis o monografía no-publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de
Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
Obra antigua y reeditada en fecha muy posterior
Segal, A. (2001). Alguns aspectos da análise de um esquizofrênico. Porto Alegre:
Universal. (Original publicado em 1950).
Autoría institucional
American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª ed.).
Washington:Autor
Aletheia 33, set./dez. 2010
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Dirección para el envío de artículos
Universidade Luterana do Brasil
Curso de Psicologia
Revista Aletheia
Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José
Sala 121 - Prédio 01
Canoas/RS – Brasil
CEP: 92425-900
E-mail: [email protected]
208
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