– Qual o quê... Quem não sabe ler só bota segredo no coração...
Lininha preparou-se para ler. A moça, atenta à carta, mexia também em ingredientes
sobre a mesa (galhinhos de coentro, salsa, gengibre e cebola, uma xícara de leite de
coco, uma tigela de fubá, um vidrinho de azeite de dendê e miolo de pão dormido). E
como Lina a olhasse com interesse:
– É para eu fazer um vatapá pros moços. Diabo é que Dr. Edgar só gosta de
vatapá frio... Tá doido...
– “Cidade de Caravelas, 9 de dezembro de 1958. Querida Rosa: Hoje com o meu
coração todo apaixonado por causa de você...”
– De quem é a carta?
Lina olhou no finzinho e disse:
– É de um tal José Marcelino de Paulo.
– Ah! É o Zezé; bichinho malandro...
– “... por causa de você peguei da pena para lhe dar as notícias que acabei de
receber a vossa estimada carta, no dia 8 de dezembro, Rosa. Fiquei muito contente de
saber que você está gozando saúde aí em Ponta d’Areia, Rosa. Agora passo a lhe dar
as minhas notícias, que eu não estou bom, não, Rosa, eu tenho é muita paixão no meu
coração por causa de você, Rosa...”
– Ih, o fogo está chamegando na chapa. É sinal que estão arengando de mim...
Continua, dona, este Zezé sempre foi assim, por fora muita farofa...
– “... e uma saudade de você que não acaba; quantos mais dias passa, mais
saudade de você, Rosa, eu tenho e eu ando até meio fora do sentido, por causa de
você, Rosa, eu não paro aqui em Caravelas, só fico no meu rancho do carvão, sozinho e
Deus, mais só pensando tanto que saí gritando, aqui no meio deste mato, falando, Rosa,
ó Rosa, onde você está, Rosa, me leva para onde você está, pelo amor de Deus, para
ser um alívio no meu coração, Rosa. Tudo que eu vou comer eu sei que você gosta, me
lembro de você e não como, Rosa. Eu estou na maior paixão do mundo, Rosa. Eu só
passo na sua casa para olhar os seus trens, que você deixou, se está direito. Rosa, vou
lhe contar que eu machuquei muito a mão.”
– Aposto que é mentira, só pra me engambelar...
Enquanto ouvia, com certo enlevo de mulher querida, mexia, eficientemente, o fubá
com água, ao fogo brando. Como Lina parasse um pouco para observá-la, comentou:
– Isto é para não embolar a massa...
– Diz ele mais aqui: “Rosa, agora vamos mudar de assunto. Vira”.
A moça olhou o verso da folha, mas ali nada havia escrito. A segunda folha dizia:
– “Rosa, você fica sabendo que eu tenho muito amor a você, Rosa. Eu quero
é voltar a morar com você, para nunca mais deixar, porque já vi que não aguento
ficar separado de você, Rosa. Rosa, você me disse que ajeitar, de novo, meu lugar na
Petrolífera com o Dr. Edgar, ainda não teve jeito, não? Rosa, Rosa, quero que você vem
embora para nós ficar junto, para me dar sossego no meu coração. Rosa, não tem nada
que me consola aqui a não ser você, Rosa. Eu fiquei muito aborrecido quando eu soube
que você mandou escrever também para Chiquinho Vilaça, e não se lembrou do pobre
Zezé que anda deixado no mundo e desprezado conforme eu vivo, Rosa. Terminando
esta carta, queira aceitar um abraço e um aperto de mão do seu querido José Marcelino
de Paulo”.
Depois da assinatura, Lina ainda leu os seguintes pós-escritos, enquanto a
destinatária, pachorrentamente, continuava a acrescentar água à panela, esperando que
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– Qual o quê... Quem não sabe ler só bota segredo no coração