mistérios xp*** 4/20/06 18:51 Page 9 I COUIZA, 1 DE JUNHO DE 1885 O sacerdote recebeu a carta do bispo numa manhã fresca e soalheira de Primavera: monsenhor Billard mandava-o para Rennes-le-Château. Juntou os seus trapos, pregou pela última vez aos seus pastores de cordeiros, atravessou a aldeia de Clat e fez-se ao caminho sem mais delongas. Quando atravessava o rio, as mulheres esconderam os seus rostos assustadiços atrás das persianas. A mais velha pôs-se a cantar: Salimonda, Salimonda, traz o machado e a caneca, qu’esta alimária tem duas cabeças. Jeanne Rasigonde, traz a caneca e o punhal, que vai correr sangue. Não entendia porque é que inspirava terror a estas mulheres morenas, meias espanholas e meias sarracenas. O que é que ele tinha dado a esses brutos? E eles, o que é que lhe tinham dado? Ao longo de três anos, tinha aprendido a caçar e a pescar na sua companhia, e também a pecar. Três anos! Mil novecentos e cinco dias com aqueles maus cristãos, supersticiosos, idiotas, republicanos fanáticos de Ferry e Gambetta, que veneravam Mariana em vez de Maria. Ter-se-ia tornado tão 9 mistérios xp*** 4/20/06 18:51 Page 10 bruto como eles se não fosse a sábia decisão do bispo. Teria acabado por aprovar as iniciativas do Estado laico. «Para o diabo que os leve mais a sua maldita república», pensou afastando de si as imagens de Ferry, Waldeck-Rousseau, Buisson, Zévort, Sée, todos eles inimigos e perseguidores da Igreja. Percorreu a rua principal de Couiza como um autómato, levando ao ombro os dois sacos de viagem remendados com couro e cordel. Quem o via passar comparava-o a um lutador de feira. Os homens adivinhavam a sua poderosa musculatura sob a sotaina. As raparigas achavam-no belo e decidido. Os seus olhos eram tão pretos que mordiam a língua para não murmurar: «Estrela, estrela, faz com que sonhe com ele.» Encaminhou-se pelos saguões e as cabanas cheias de murmúrios, sombras equívocas, risadas peregrinas. Sentia nas costas o peso dos falatórios e os olhares desconfiados dos aldeões. O silêncio que se fazia à sua passagem era pesado, deliberado. Ignoravam que se dirigia para a sua nova paróquia, no alto das colinas, para uma nova prisão. Por entre as brumas, acudiu-lhe à memória um caminho de cabras que costumava apanhar noutra época. Era uma recordação feliz. Tinha sido uma criança feliz. Era o chefe do grupo que conduzia os valentes de Montazel ao assalto da montanha de Rennes. Atravessando os prados, emboscados atrás das giestas e do mato, as crianças da aldeia inimiga aguardavam o combate. Quantos golpes e contragolpes! Quantos ardis desmascarados! Tinha nascido para as armas, para a glória, para as damas. Mas os pais tinham-no encaminhado para a Igreja. Com pena sua, tinha-se convertido num soldado de Deus, ao serviço das tropas de Leão XIII. Amava Cristo e os santos, mas lamentava não os conseguir honrar como era o seu dever. «Nunca tive vocação.» Recordou uma vez mais a sua adolescência, as preces da mãe, as procissões, as peregrinações, aquele tom com que os seus costumavam dizer que ele era «a sua saúde no outro mundo». Na sua memória também perduravam os castigos dos seus superiores no seminário de Carcassonne. Depois de o terem nomeado cura de Alet, tinha passado noites inteiras a mortificar-se. Toda uma vida desperdiçada. Os anos vindouros já lhe pareciam estéreis. Pelo caminho aproximaram-se uns almocreves que subiam aos cumes para irem buscar gelo. – Arre! Arre! – vinham a gritar. 10 mistérios xp*** 4/20/06 18:51 Page 11 – Afaste-se, cura! – gritou um, fazendo assobiar o chicote. – Não queira ir tão cedo para o paraíso. – Sempre era um parasita a menos neste mundo – disse outro. Os restantes riram-se. O sacerdote recuou contra o parapeito da ponte sobre o Aude. As rodas da carroça passaram a roçar-lhe atrás dos cavalos fatigados. As risadas dos homens tornaram-se mais ferozes quando o viram petrificado com os seus sacos. A sotaina levantou-se revelando as socas rotas e empoeiradas. – Selvagens! – gritou-lhes. Nesse momento, um homem barrigudo saltou da carroça. A sua boca era uma ferida sangrenta no meio de um rosto curtido pelo sol. – Tenha cuidado, cura! – disparou-lhe. – Não se esqueça de que estamos na República e o rei não virá salvá-lo. – Não me esqueço, meu filho. Fecha mas é essa boca e não me venhas com conversas da comuna. – Ah! Ele vê mal! – disse o outro com sarcasmo. Ameaçou-o com o punho – Quer que lhe feche o outro olho com um murro? O sacerdote deixou cair os sacos. Tinha o corpo de um atleta. Nunca se tinha sentido tão sereno, tão bem-disposto. Agarrou o punho no ar e apertou-o entre os dedos, franzindo apenas os lábios com o esforço. Esfregou as falanges e os nós, uns contra os outros, impassível. O seu adversário ficou pálido e tentou dar-lhe um golpe baixo com o joelho. – Estás cheio de vícios, meu filho. Vais ter de pedir perdão a Nosso Senhor. – Antes morto! – Ámen. O montanhês abriu muito os olhos. Que queria dizer o cura? Ámen, porquê? O sacerdote agarrou-o pelo pescoço antes que tivesse tempo de gritar e empoleirou-se no parapeito, levando-o de rastos. Os outros tentaram intervir. – Mais um passo e deixo-o cair – avisou o sacerdote. – Vai partir as pernas, se é que não parte o pescoço. Vamos lá ver, filho. Pede perdão. O homem estava paralisado de terror. Olhou com olhos de pânico para os seus companheiros, que começaram a recuar. O sacerdote sorriu, segurando-o no ar em cima da corrente. Os olhos brilhavam-lhe com a determinação de quem cumpre as suas ameaças. – Peço perdão a Nosso Senhor – balbuciou o almocreve. 11 mistérios xp*** 4/20/06 18:51 Page 12 – Mas mudei de opinião – disse o cura. – Agora quero que rezes à Virgem. – Não sei rezar. – Tenho a certeza que te ensinaram a catequese. Reza da mesma maneira como repetes as canções da revolução. – Não me recordo da oração! – Estás a ver a água gelada do Aude lá em baixo? Vê lá se te lembras, porque estou a ficar com o braço cansado. – Deus te salve, Maria, cheia… cheia de garbo… – De graça! – Cheia de graça… O almocreve lembrou-se da oração toda. Também se lembrou do mea culpa, que teve de recitar três vezes. Ainda chegou a cantar o De profundis antes do sacerdote o deixar cair no chão. Os outros precipitaram-se encolerizados sobre o cura para vingarem o seu camarada. – Será melhor nem tentarem – disse o abade com os braços na cintura, sem manifestar o menor temor. – Não, filhos da montanha. Deus está do meu lado. Quem se meter comigo terá o que merece. Os homens ficaram petrificados. Algo nas palavras do cura indicava que não falava por falar. Era um temerário que se gabava da sua força, mas já não sentiam vontade nenhuma de se confrontarem com ele. Tinham o nome de Deus gravado com letras de fogo nos seus cérebros toscos. O seu companheiro levantou-se a cambalear e foram-se embora em silêncio. Os cavalos tinham continuado a andar sozinhos, a caminho de Quillan. Correram atrás deles, porque a lei proibia que as carroças andassem sem condutor. – Boa viagem, filhos – gritou o cura levantando a bagagem. – Vão com Deus. Passada a tensão, arrependeu-se de ter perdido a cabeça. Uma vez mais, não tinha obedecido aos mandamentos. Os demónios, que eram astutos e temíveis, tinham-no feito cair em tentação. À saída de Couiza, prometeu a si mesmo estar mais atento e velar melhor pela sua alma. Começou a recitar o padre-nosso pelo caminho de cabras que levava a Rennes-le-Château. Continuou a rezar pela encosta. A tília e a lavanda perfumavam o longo barranco que se perdia entre as giestas e os penhascos. Tinha- 12 mistérios xp*** 4/20/06 18:52 Page 13 -se esquecido da luz gloriosa que brilhava naquele céu limpo, a beleza daquelas paisagens agrestes, fustigadas pelos ventos, a chuva e o sol. A ferocidade da natureza inspirava-lhe um entusiasmo quase fervoroso. Rezou oito padres-nossos, deu por terminada a penitência e entregou-se aos deleites do olhar, do olfacto, do ouvido. Estava de volta a Razès, ao seu querido Languedoque, a essa terra ruiva que palpitava para ele. Pouco depois desembocou nas encostas do Causse, que estavam devastadas, como sempre, pelos rebanhos. Uns cordeiros franquearam o Pulo do Lobo, rumo ao riacho de Coumeilles. Os chocalhos e os latidos dos cães voltaram a recordar-lhe os três anos de fastio que tinha passado em Clat. O rosto ensombrou-se-lhe. Será que não se lhe iria deparar o mesmo na sua própria terra? Tinha trinta e três anos e ansiava conquistar o mundo. Mas nem trinta francos levava no bolso. Nem sequer conseguiria pagar uma viagem de três dias a Paris. Na última curva, vislumbrou a sua paróquia por entre uns carvalhos. As casas eram todas brancas, de telhado ocre, e amontoavam-se à volta do castelo dos Hautpoul de Blanchefort. A aldeia ficava no alto da colina, encarrapitada entre a terra e o céu, como as fortalezas dos cátaros1. A sua história era ainda mais antiga. Os celtas tinham ali morado, e depois os romanos. Mais tarde, os visigodos tinham estabelecido a sua capital em Rennes. Não restava nada de pé dessa época remota. Ia tomar posse de um império que tinha desaparecido da memória dos seus moradores. 1 Cátaros (do grego katharos, que significa puro) ou albigenses (derivado da cidade de Albi). Heresia surgida no final do século XI no sudoeste de França, no Languedoque (da língua occitâna da região – «Língua do Oc»; Oc= Sim, em oposição à «Langue d’Oui», do norte da França), rejeitava os sacramentos católicos e questionava a hierarquia da espiritualidade. O papa Inocêncio III declarou-os heréticos, dando origem à Cruzada Albigense (1209-1229) e à Inquisição (tornada oficial em 1233). A tomada de Béziers (1209) foi um verdadeiro massacre, pela impossibilidade de distinguir cátaros e católicos, tendo o legado papal, Arnold de Citeaux, dito: «Matem a todos. Deus saberá reconhecer os seus.» A sua última fortaleza, Montségur, caiu em 1244. A cruzada teve também interesses políticos – porque a região onde se praticava o catarismo era conhecida pela sua tolerância religiosa, convivendo judeus, pagãos e até mesmo católicos – e o Languedoque acabaria por ser anexado à França, em 1229, pelo Tratado de Meaux. Ver, Os Cátaros, Jesus Mestre i Godes, trad. Jorge Fallorca, Pergaminho, 1999. (N. T.) 13 mistérios xp*** 4/20/06 18:52 Page 14 – Logo veremos! – exclamou, desafiando a pequena aldeia, onde trezentas almas aguardavam atentas. Porque, sem dúvida, todos deviam estar ao corrente da sua chegada. As crianças que brincavam nos arrabaldes das aldeias eram também as suas sentinelas. Apressou o passo até ao cimo da encosta. Uma anciã vestida de preto desfiava o rosário encostada a um dos muros de pedra que bordejavam a entrada de Rennes. – Bom dia, padre! – cumprimentou-o com voz alegre. – Bom dia, filha. – Já estávamos ansiosos por o ver. Dizem que é destas bandas, dos Saunière de Montazel. – Exactamente. Chamo-me Bérenger Saunière e sou de Montazel. O meu pai era o mordomo do marquês de Cazemajou. – Conheci-o de nome. Que bom que o bispo o tenha mandado para aqui. Assim vai ser tudo muito mais fácil. Não gostamos de forasteiros. Vai ser mais fácil… sobretudo para as mulheres. – A anciã ficou a olhar para ele. – Se o senhor quiser, esta tarde irei com muito gosto limpar-lhe o altar. Bérenger concordou com um sorriso. «Uma atenção não custa nada, mas compra muito – disse para consigo. – Vou ter de pôr esta mulher do meu lado e confessá-la quanto antes, para ficar ao corrente da vida dos meus paroquianos.» – O meu nome é Aglaé Dabanes. – Até logo à tarde, Aglaé. – As chaves da sacristia estão com Alexandrine Marro. Vive na ruela ao pé do castelo. Os postigos da casa dela estão pintados de verde. Tem um banco de madeira diante da porta e nas tardes de Verão está sempre ali. – Obrigado. Pôs-se a andar pela rua principal. Atrás das cortinas das janelas havia movimentos imperceptíveis. Nos estábulos, sombras furtivas como em Couiza. Estavam a observá-lo, a avaliar a sua maneira de andar. Era um exame, bem sabia. Se não lhes caía em graça, nessa noite os rapazes da aldeia viriam pô-lo no seu lugar. Um porco ocioso começou a segui-lo. Estava calor. Os mugidos, o bater de asas que entrecortavam o silêncio, o cheiro a fumo, as fendas que desenhavam linhas intrincadas na terra, as portas fechadas com tranca: era isso a sua paróquia. 14 mistérios xp*** 4/20/06 18:52 Page 15 A cólera voltou a apanhá-lo. «Já é a segunda vez que peco por orgulho – disse para consigo –, sou um sacerdote indigno. Só estou aqui para dar testemunho de Cristo e da verdade.» Repetiu a última frase dez vezes, para a gravar no coração. Diante de um poço, estavam umas meninas morenas a embalar as suas bonecas de trapo. Olharam pelo canto do olho o homem vestido de preto que vinha a rezar entre dentes. Tinha um aspecto tão triste, que uma perguntou-lhe se vinha dar a extrema-unção a alguém. – Não, filha – Bérenger sorriu deliciado. – Sou o novo pároco. A menina fez uma vénia e beijou-lhe a sotaina. Voltou para ao pé das suas companheiras, que disfarçavam o riso atrás das bonecas. A aldeia taciturna recuperou a vida, como se a menina tivesse tocado uma varinha mágica. Os anciãos cumprimentavam-no nos seus jardinzinhos. Uns miúdos aproximaram-se afogueados, rodearam-no, deram-lhe as boas-vindas e foram-se embora a correr em direcção ao castelo. Bérenger respirou mais tranquilo. Tinham-no aceitado. À sua esquerda, na casa dos postigos verdes, estava uma mulher sentada no banco de madeira. Tanto podia ter quarenta, como setenta anos. Sob as rugas, os seus olhos eram vivazes e implacáveis como os dos abutres. Parecia um personagem amarelecido de um quadro de Brueghel. – Estava à sua espera – disse, levantando-se com brusquidão. Bérenger olhou-a nos olhos. Não o tinha cumprimentado e ele detestava que lhe faltassem ao respeito. A mulher hesitou incrédula ao aperceber-se do seu olhar. Limpou as mãos ao vestido, como para manter a compostura. – Tem sede? – Não – disse ele, sem lhe tirar os olhos de cima. – Deve estar cansado. – Sim, Alexandrine. Tenho pressa de ir descansar. – Foi a Aglaé que lhe disse o meu nome? – Sim, foi ela que mo disse. Não sou o Diabo. – Deus nos livre! – disse a velhota persignando-se. Nas costas de Bérenger, o porco soltou um grunhido. Umas galinhas que atravessavam a rua esvoaçaram espantadas. – Basta pronunciar o nome dele para que o Diabo se manifeste – disse Bérenger, ameaçando-a com o dedo indicador. – Espero-a amanhã de manhã no confessionário. 15 mistérios xp*** 4/20/06 18:52 Page 16 – Sim, padre – disse Alexandrine respeitosa. – Tome, padre, aqui estão as chaves. A pequena é a da sacristia e a grande a da porta principal da igreja. A de cobre comunica a igreja e a sacristia… por dentro… Boa sorte! – Sorte, filha? Que queres dizer com isso? – É preciso ser corajoso para viver ali. O abade Pons renunciou. Era o seu antecessor. Bérenger pegou no molho de chaves e pôs os seus dois sacos ao ombro. O coração começou a palpitar-lhe à medida que se aproximava da igreja de Santa Maria Madalena. Quando dobrou a esquina, a igreja e o campanário apareceram-lhe diante dos olhos. Ali estava a casa do Senhor. A sua própria casa, a partir desse dia. Ia finalmente conhecê-la. Ouvira dizer que tinha mil anos de antiguidade e as paredes porosas e gretadas não revelavam menos. Havia fendas inclusive na abóbada. Quanto ao telhado, era um autêntico crivo: o vento tinha levado as telhas quase todas. Sentiu um nó na garganta ao contemplar o casarão atrás da sacristia, as janelas sem portas e os vidros partidos. Uma vez na igreja, ficou pasmado com a deterioração à sua volta. Num ataque de ira, atirou os sacos pela nave fora. Uma voz visceral, quase um gemido, brotou das suas entranhas: – O que é que fizeram da tua casa, Senhor? – gritou, apertando os punhos. O silêncio era tão profundo que não se atreveu a dar mais um passo, para não revolver o pó e a areia que cobriam o chão. Os bancos estavam sem fundo, o confessionário era um ninho de bolor e humidade. Nunca antes na sua vida se tinha sentido tão indignado na sua vida de sacerdote, nem sequer quando louvavam a República na sua presença. Não só como sacerdote, sentia-se também burlado como homem. Ao cabo de anos de misérias, de fadigas, de frustrações, ao cabo de tantos sacrifícios, mandavam-no pregar ali! Naquele ninho de ratos! Os seus superiores não podiam ter-lhe infligido um castigo pior. Que tinham a censurar-lhe? Que era monárquico? Que era brilhante, demasiado inteligente? O quê, então? Que seria da Igreja quando já não houvesse curas como ele para manter os laicos do governo à margem? 16 mistérios xp*** 4/20/06 18:52 Page 17 À volta da imagem quebrada de Santa Maria Madalena, um punhado de roedores mordiscavam as toalhas das jarras. As jarras também estavam partidas, vazias, todas as jarras da igreja. – Fora daqui, bestas do demónio! Deu um salto e pegou num candelabro vazio. As ratazanas levantaram-se nas patas da frente, arreganhando os dentes pontiagudos. A cacetada atirou a jarra por terra e o candelabro abateu duas das maiores. Bérenger levantou a arma para voltar à carga e deixou-a cair. As outras ratazanas tinham desaparecido. Encaminhou-se para o altar, passando as mãos pelas fendas das paredes, acariciou os relevos de mármore manchados e as pinturas destruídas pelas chuvas. Estava a tomar posse daquelas ruínas que o cobriam de vergonha. A Virgem e Santo António viram-no passar com os olhos carcomidos pelo tempo. Julgou distinguir rastos de sangue nos arranhões que sulcavam os rostos de pedra. Por entre os buracos do telhado, o sol descia em longos raios poeirentos, mas a luz só iluminava feridas. Parecia ter-se salvo apenas o altar-mor. Bérenger aproximou-se da pedra de granito, que repousava sobre dois estranhos pilares talhados com cruzes e hieróglifos. Uma minúscula lamparina brilhava no sacrário. Uniu as mãos e caiu de joelhos diante do santíssimo sacramento. O templo estava vivo! Apesar da destruição, do caos, das trevas, o templo estava vivo. Pediu perdão pela sua falta de humildade: – Deixei-me levar, condenei o próximo… Quem sou eu para os julgar ou para os odiar? O seu rosto corou de vergonha, quando compreendeu quão vã tinha sido a sua exaltação. – Se as minhas palavras ou os meus actos te ofendem, condena-me tu a mim, Senhor. Não mereço ser teu servo. Nem sequer sou digno de pronunciar o teu Santo Nome nos desfiladeiros de Causse. Meu Deus, tem piedade de mim. 17