ANEXOS DO CADERNO FACULDADE DE DIREITO O ALMIRANTE HENRIQUE BOITEUX NO SEU CENTENÁRIO NATALÍCIO Meus Senhores, O primeiro Boiteux que chegou a águas e terras de Santa Catarina, foi o suíço-francês Lucas Boiteux, nascido no Cantão de Neuchâtel, em 1798. Era homem de vida acidentada. Fora aluno da Universidade de Bonn, na Alemanha. Não concluíra curso, mas adquirira boa cultura clássica, conhecendo grego e latim; e, além de francês, falava alemão, italiano e inglês e, sucessivamente, aprendera espanhol e português. As convulsões políticas e sociais da época levaram-no à Áustria, à Itália e à França, tendo sido secretário particular do Grão-duque de Toscana. Veio para o Brasil em 1825, dedicando-se, no Rio de Janeiro, a atividades comerciais, primeiro como guarda-livros e, depois, associado a um compatriota, com casa de importação e exportação. Consorciou-se com a Sra. Marie Magdaleine Anastasie , filha do casal francês Antoine Justin Bouquet e Marie Adelaide Charlotte Badeuil, senhora educada em colégio parisiense. Atraído pelo convite de um irmão da esposa estabelecido em Valparaíso, resolveu mudar-se para o Chile; e, dissolvida a sociedade comercial, comprou uma barca, carregou-a com gêneros do país, principalmente cereais, açúcar e aguardente, e fez-se de vela para os mares do sul, sem se atemorizar com as distâncias nem com as procelas e os riscos do Estreito de Magalhães. Mas, na altura desta nossa Ilha de Santa Catarina, violento temporal obrigou a barca a arribar. Este contratempo acarretou complicações de direito marítimo, e Lucas Boiteux viu-as prolongarem-se interminavelmente, apesar dos bons ofícios do seu compatriota Dr. Henrique Schutel, médico residente na nossa então Cidade do Desterro. Se Lucas Boiteux fosse lido nas letras portuguesas, como o era nas gregas e latinas, bem poderia, ante os emaranhamentos do foro náutico, repetir os versos de Camões: “No mar, tanta tormenta e tanto dano, Tantas vezes a morte apercebida, Na terra, tanta guerra e tanto engano, Tanta necessidade aborrecida.” Casa para morar arrumou-a ele na terra firme, na Caieira, nas proximidades da Ilha de Anhatomirim , onde estava fundeada a barca; aí nasceu-lhe o primeiro filho, que ele, embora calvinista, batizou na religião católica, que era a de sua mulher, dandolhe o nome de Eugênio e por padrinho o abastado lavrador Lino Cabral, conhecido por Lino das Palmas, que lhe tinha dispensado amiga hospitalidade. Mas, as complicações forenses, um dia, tiveram fim; e a barca, que elas haviam ajudado a aliviar do seu carregamento, pôde levantar âncoras e velejar de novo para os perigosos mares austrais. Mas outro temporal, nas águas de Santa Marta, forçou -a a nova arribada na Ilha Santa Catarina, desta vez na Baía do Sul e com a desistência da viagem, Lucas Boiteux poderia repetir outros versos camonianos: “Ocultos os juízos de Deus são ! ” Valeu-lhe ainda o Dr. Henrique Schutel, que, associado a Carlos Demaria, tinha fundado a Colônia Nova Itália, mais tarde Dom Afonso, em terras devolutas do distrito de São João Batista do Alto Tijucas, naquele tempo do Município de Porto Belo. Foi investido no cargo de administrador da nascente colônia e nela se radicou, construindo logo, à margem do Rio Tijucas, boa casa morada. Ali, a 11 de fevereiro de 1838, nasceu o segundo filho, que se chamou Henrique, nome que tomou de seu padrinho, o prestimoso Dr. Schutel. Em 1844, adoeceu Lucas Boiteux gravemente e veio procurar recursos na Cidade do Desterro, mas baldadamente, porque aqui faleceu a 29 de março do mesmo ano. A viúva permaneceu na propriedade rural, acompanhada de seus quatro filhos: Eugênio e Henrique, e duas meninas, nascidas depois deles, Maria Luísa e Maria Adelaide. Dez anos mais tarde, resolveu mudar-se para a Capital da Província, vendendo as terras e bens que possuía na Colônia, inclusive escravos. E ressurgiu a senhora que educada em Paris: primeiramente, no atelier de modas e casa de armarinho, que montou, auxiliada pelos dois filhos; e depois, em 1959, liquidadas as atividades comerciais, como professora de língua francesa, que dava aulas na sua residência, na Rua do Passeio, que é a atual Esteves Júnior. Seu filho Henrique Carlos Boiteux, com um sócio, sucedeu-lhe na atividade comercial; mas, convencido das possibilidades que, pela próspera agricultura, apresentava o recém-criado município de Tijucas, terra do seu nascimento, resolveu para lá mudar-se, estabelecendo-se na sede. Antes, a 19 de maio de 1860, contraíra casamento com Dª. Maria Carolina Jacques, filha do abastado comerciante e armador Alexandre Martins Jacques e de D ª. Luísa Maria de Sousa Lobo. O casal foi abençoado com muitos filhos: Hipólito Eugênio, Henrique Adolfo, Adelaide Josefina, José Artur, Alfredo Rafael, Maria Luísa, Etelvina Ambrosina, Eulália Isolina e Lucas Alexandre. Destes, morreram em tenra idade Adelaide Josefina e Alfredo Rafael. O suíço-francês Lucas Boiteux, o ex-secretário particular do Grão-duque de Toscana, que se aparelhara para ser grande comerciante no Chile, tornara-se tronco de ilustre e prestante família catarinense. Basta citar-lhe três nomes: Henrique Adolfo Boiteux, José Artur Boiteux e Lucas Alexandre Boiteux. "Ocultos os juízos de Deus são!" Meus Senhores, O segundo filho do fecundo casal foi Henrique Adolfo, que viu a luz em Tijucas a 17 de setembro de 1862 e foi batizado na Matriz de Nossa Senhora do Desterro a 9 de abril do ano seguinte. Aqui, na Capital da Província, foi aluno do Ateneu Provincial e fez exames preparatórios, tendo também freqüentado as aulas gratuitas de dois beneméritos professores: a de matemáticas do Comandante Antônio Ximenes de Araújo Pitada e a de desenho do pintor Manoel Francisco das Oliveiras. Foi também do grupo dos rapazes literatos que, na luta sempre renovada entre as gerações, haviam de ser campeões, grupo a que pertencia o poeta Cruz e Sousa. Matriculou-se na Escola Naval e foi aluno distinto, terminando o curso em 1883. Foi um dos oficiais escolhidos para as duas viagens que o cruzador Almirante Barroso fez à volta do mundo, interrompida a segunda por memorável naufrágio, cujas peripécias ele registrou em livro. Foi marinheiro completo e apaixonado da sua carreira e a sua folha de serviços à Pátria, na Marinha, foi matéria destinada a outro trabalho que, lamentavelmente, nos falhou. Citaremos, entretanto, escritos demonstradores de que, na profissão, era o Comandante Henrique Boiteux versado tanto em náutica como na parte bélica. Elaborou o “Manual do marinheiro-artilheiro”, “Evoluções de Artilharia de desembarque”, "Descrição e uso de um escafandro fotográfico", de sua invenção, "Descrição de uma régua citográfica", que foi adotada oficialmente, e "Instrução náutica para entrada da Baía de Guaratuba", e traduziu o "Código Internacional de sinais". Foi Diretor da Biblioteca, Museu e Arquivo da Marinha, Diretor da Escola Naval e Sub-chefe do Estado Maior da Armada, e organizou o "Catálogo Geral da Biblioteca da Marinha". Reformado depois de atingir o posto de almirante, não buscou, ócios nem outros ganhos, pois continuou a estudar, a viajar e a escrever sobre história, com elementos rebuscados em arquivos e colhidos na tradição oral. Sua especialidade foi a biografia e, neste sector, são de assinalar "Santa Catarina na Marinha", em que exaltou vinte e sete conterrâneos de todas as categorias, desde almirantes a modestos pilotos; “Santa Catarina no Exército”, em que, em dois grossos volumes, reuniu as vidas de trinta e nove militares; "Os nossos Almirantes", em figuram cento e sete servidores da nossa Marinha de Guerra; “Santa Catarina na Igreja", em que, em artigos estampados no "Jornal o Comércio", do Rio de Janeiro, aparecem o Irmão Joaquim Francisco do Livramento, que é para ele "0 São Francisco Brasiliense "; Dom Jacinto Vera, que foi Bispo de Montevidéu e que morreu em odor de santidade; e o Padre Mestre João de Santa Bárbara, que ensinou e trabalhou na Província do Rio Grande do Sul; e "Santa Catarina nas Artes", em que é figura central o desterrense Sebastião Vieira Fernandes, seu companheiro na aula de desenho de Manoel Francisco das Oliveiras e discípulo de Victor Meirelles. Muito escreveu e publicou sobre Anita Garibaldi , cuja qualidade de esposa legítima de Giuseppe Garibaldi deixou provada, publicando termo de casamento realizado em Montevidéu. Biografou o Conselheiro Manoel José de Sousa França, lagunense, que foi alta figura política geral, como representante da Província do Rio de Janeiro. Seu mais extenso trabalho biográfico é o que tem por título "Um Indígete brasiliense - o Marquês de Tamandaré", o patrono da Marinha. Escreveu também sobre a República Catarinense, ou seja a que, durante a Guerra dos Farrapos, foi proclamada em Laguna - Cidade Juliana; e escreveu sobre os "Barrigas-Verdes", assim entendidos os heróicos e sofredores soldados do nosso velho Regimento de Linha. Mereceram-lhe atenção os Municípios de Tijucas e Porto Belo, sobre os quais elaborou um estudo corográfico. Escreveu também sobre as nossas madeiras de construção; e vem aqui a propósito contar que o Almirante Boiteux venerava a árvore a que se vincula o nome da nossa Pátria - o Pau Brasil, e, por isso, em várias das suas visitas periódicas ao nosso Estado, trouxe mudas e as plantou em praças e jardins, mas as arvorezinhas mostraramse tão rebeldes como as suas irmãs que, ao abrir-se, no Rio de Janeiro, a Avenida Rio Branco, nela foram patrioticamente plantadas. Paciente, interessante e valioso trabalho de Henrique Boiteux é a série de vinte e quatro quadros murais, em que, dia a dia, através dos meses do ano, são enumerados os mais notáveis eventos navais, quadros que a ilustre assembléia tem à sua vista, neste recinto. A enumeração dos escritos de Henrique Boiteux está incompleta, porque ainda não se fez o merecido levantamento, que dos livros e folhetos deve passar à imprensa periódica, para a qual enviava colaborações sobre coisas práticas, sobre abusos por extirpar, sobre melhorias que vira em outras terras e que desejava existissem em Santa Catarina. Assim é que, já septuagenário, tendo ido à Suécia, que era o único país da Europa que lhe faltava conhecer, de lá escreveu para jornais nossos, fazendo sugestões sobre coisas que observara e que a nós poderiam ser proveitosas. Enfim, Henrique Boiteux deixou variada e abundante bagagem literária, que o coloca entre os mais produtivos escritores de Santa Catarina. Meus Senhores, Henrique Boiteux, talvez por influência do pai, que era figura de prestígio social e eleitoral na Comarca de Tijucas, principalmente na Vila de Nova Trento, militou na política, nos começos da República, sendo eleito deputado à Assembléia Constituinte Estadual de 1891. A sereia da terra, que é a política, tão perigosa quanto as sereias do mar, não o seduziu, porém; e ele, dentro em pouco, soltou as amarras que o prendiam a um partido; e afundou-se nas suas obrigações de marinheiro, nas cogitações de pensador e escritor e na sua visão de patriota, fora e acima de partidos, patriota de alto mar. Henrique Boiteux casou-se em 1899 com a Sra. Josefina Vincent Boiteux, de nacionalidade francesa, e enviuvou em 1927. A confortável casa em que os consortes, no Rio de Janeiro, viveram felizes, embora sem filhos, e que representava as economias de muitos anos de labuta, ele a vendeu para, com o seu preço, em piedosa homenagem à morta querida, construir o Pavilhão Josefina Vincent Boiteux, que ampliou a ação misericordiosa do nosso Hospital de Caridade do Senhor Bom Jesus dos Passos. Meus Senhores, Muito ainda fica por dizer em louvor do homem excelente que foi Henrique Boiteux e que se extinguiu, em plena lucidez, no Rio de Janeiro, a 29 de abril de 1945, com oitenta e dois anos completos. Em fevereiro e março desse ano de 1945, ainda aqui estivera, indo, como lhe era habitual, a Tijucas, a terra do nascimento, e a Nova Trento, onde depois se radicara seu pai, a quem sucedera seu irmão Hipólito. Desta vez, foi também ao planalto, certamente entusiasmado pelas macieiras viçosas e carregadas que vira em fotografias vindas de São Joaquim. Quis vê-las e foi vê-las, ao natural, para, no ocaso da vida, ter mais um encanto na terra pátria, bela e fecunda. Desta vez, como sempre, alegrou-me com a sua visita; e, no dia do meu aniversário, compareceu em nossa casa e, gentil e perfeito cavalheiro, levou um ramalhete de flores para ofertar a Minha Mulher. Meus Senhores, Henrique Boiteux, biógrafo por excelência, merece o galardão de condigna biografia, da qual estas minhas palavras, mais de amigo que de Presidente de uma associação que ele dignificou, mal poderão ser apagado prólogo. A homenagem de patrono de casa de ensino - casas de que era assíduo visitante - já lhe prestou o Governo do Estado no Grupo Escolar de Araquari. Efígie de bronze ele já a tem, e dela é guardião o nosso Instituto, e ela decora o recinto desta festividade. Foi a espontânea homenagem, que tem o valor de símbolo, de um jovem catarinense - o escultor Moacyr Fernandes de Figueiredo, que se deslumbrou e comoveu com a bondade, a sabedoria , o poder de entusiasmo, o atuante amor à terra natal e a confiança no Brasil e nos Brasileiros, de um velho, que poderia ser seu avó e em quem ele, artista iluminado, reconheceu uma nobre figura humana digna de ser perenizada em bronze. __________________ (Discurso lido a 17 de setembro de 1962, em sessão conjunta do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e da Academia Catarinense de Letras, realizada na Casa de Santa Catarina) JOSÉ ARTUR BOITEUX PATRIARCA DO ENSINO SUPERIOR EM SANTA CATARINA UM PRIMITIVO RETRATO MORAL Bem configurado retrato moral de José Artur Boiteux já encontra em escritos que ele, aos 17 anos de idade, publicou no semanário "0 Caixeiro", que circulava na Cidade do Desterro. Aí já se exibe a preocupação de toda a sua vida: glorificar a terra catarinense nas pessoas de seus filhos. De 27 de agosto a 29 de outubro de 1882, estampou ele, no citado periódico, uma série de comentários biográficos, já em si demonstradores do seu sentimento de conjunto para os fatos históricos da unidade geográfica que lhe servira de berço. "Glórias pátrias - O ano de 1869" é o título dos escritos. "Triste, bem triste, foi o ano de 1869 para os Catarinenses. Os filhos mais eminentes de então, da bela Exiliópolis tombaram no frio vácuo da tumba nesse ano". O primeiro panegírico é de Fernando Machado, herói da Guerra do Paraguai, "o anjo da Vitória, guia inseparável das vencedoras coortes brasileiras"; o segundo é de Jacinto Machado de Bittencourt, outro herói da mesma Guerra; o terceiro memora um florão do púlpito e das letras, o Padre Joaquim Gomes de Oliveira Paiva; o quarto e o quinto rendem homenagens a médicos, o Dr. Cristóvão José dos Santos e o Dr. Cláudio Luís Costa; e o sexto e último enaltece João Francisco de Sousa Coutinho, cidadão cheio de serviços à administração pública e laureado cultor da Música. OS PRIMEIROS ESTUDOS José Artur Boiteux nascera na Vila de Tijucas a 9 de dezembro de 1865, sendo filho do abonado comerciante Tenente-coronel Henrique Carlos Boiteux. Teve a felicidade de encontrar bons mestres e a sua viva inteligência não perdeu ocasião para bem lhes aproveitar o saber e a experiência. Um deles foi, na Vila natal, o belga Félix Vaes. Veio depois para a Capital, onde residia a família de sua mãe, Dona Maria Carolina Jaques, filha do sólido comerciante e armador Alexandre Martins Jaques e de Dona Luísa Maria de Sousa Lobo. Aqui freqüentou o Colégio da Conceição e o Ateneu Provincial; e, neste estabelecimento público, em dezembro de 1879, com 14 anos feitos, avantajando-se ao seu inteligente irmão Henrique, três anos mais velho e que só alcançou menção honrosa, foi um dos três alunos premiados. Foi ainda aluno do conceituado colégio de José Maria Branco, também Professor do Ateneu, onde lecionavam o Padre José Leite Mendes de Almeida e Custódio Teixeira Raposo, aquele a Língua Latina e este Geografia e História. O Professor José Maria Branco que era português, assim como o era o Padre Mendes de Almeida, deixou-lhe perenes recordações. "Foi, - diz o antigo aluno, - uma das organizações pedagógicas mais interessantes que tenho conhecido". Sabia a Língua Vernácula a fundo; e, - mestre à antiga, de excepcional rigorismo, aplicava palmatoadas às dúzias nos que preferiam brincar a ter relações com os livros. Mas, entre eles, nunca se enfileirou o estudante tijuquense. O VATICÍNIO DE CRUZ E SOUSA José Boiteux entusiasmou, desde logo, o rapaz de fulgurante inteligência que era João da Cruz e Sousa, quatro anos mais velho do que ele; e, andando nos seus quinze anos, dele mereceu versos verdadeiramente proféticos, pois que neles, em dez estâncias, brilha como futuro líder cultural. "Avante, sempre, nesta luz serena, Empunha a pena, sem temor, com fé!... Eleva às turbas as idéias d'ouro, Que um tesouro tua fronte, é!... ............................................ "0 livro augusto do porvir descerra, Sê desta terra precursor da luz!!!" OS "NOVOS", OS CAIXEIROS E AS LETRAS José Boiteux, que possuía recursos e vagares para se entregar aos estudos e a coisas de espírito, brilhava no grupo dos "Novos” entre os quais dominavam os empregados do comércio, que são Comerciários de hoje e que então eram os Caixeiros. Era a classe dos filhos de comerciantes e seus futuros sucessores, que não precisavam aprender ofícios mecânicos; era também o cobiçado refúgio dos que, não podendo tentar função pública civil ou militar, não tendo vocação para os riscos do mar, nem tendo meios para estudo, desejavam qualquer margem para ocupações intelectuais. Com os Caixeiros, que se vestiam bem, que constituíam classe bem organizada e faziam movimentos assemelháveis aos dos atuais Universitários, confraternizavam os estudantes de preparatórios. Deste grupo dos "Novos" já fazia parte José Boiteux, quando, eles chefiados pelo Caixeiro Manuel dos Santos Lostada e por João da Cruz e Sousa e Virgílio Várzea, se abalançaram a estampar um periódico literário, intitulado "Colombo", que saiu regularmente de 7de maio a 24 de setembro de 1881 e em que também colaboraram Juvêncio de Araújo Figueiredo, Horácio de Carvalho, João Adolfo Ferreira de Melo, José Rodrigues Prates e Henrique Boiteux. Aí estampou José Boiteux o seu primeiro artigo. A informação dele mesmo: "Roma" intitulava-se, e tinha por epígrafe, "Roma, aquela robusta e áspera Roma dos tempos heróicos e das grandes façanhas, já não existia", que a pena de ouro de Rebelo da Silva engastara numa das suas páginas modelares". Neste mesmo ano de 1881, houve outra iniciativa literária; mas desta vez, de moços e homens maduros. Promoveu-a o Comandante Antônio Ximenes de Araújo Pitada, Capitão-de-mar-e-guerra reformado. Chamava-se "Grêmio Literário Catarinense Oliveira Paiva” e tinha como Presidente o fundador e como Vice-presidente o Professor Venceslau Bueno de Gouvea, então na casa dos 38 anos. Os outros membros da Diretoria eram todos moços: os irmãos Boiteux eram os Secretários, Henrique o Primeiro e José o Segundo; Manuel dos Santos Lostada era o Tesoureiro; João Praxedes Marques Aleixo, o Procurador; e João da Cruz e Sousa, o Orador. Não vingou a associação; não sabemos, porém, se por causa dos moços ou por causa dos velhos. A classe caixeiral conseguiu, entretanto, conforme sabemos, ter o seu órgão de publicidade, pois foi por ele que começaram estas nossas palavras. Chamava-se "0 Caixeiro" e era de feição literária, tendo-se publicado nos anos de 1882 e 1883. Um dos seus principais redatores foi José Boiteux, encoberto nas iniciais J. A. B. ou como Silvino Pons. Foi nesse jornalzinho que, consoante dissemos, deu as seguras mostras do que viria a ser. Voltemos, pois, a esses escritos, assinalando que cada um tem a sua dedicatória. O RETRATO MORAL, NOVAMENTE O primeiro escrito é oferecido ao jovem Severo Lima, que vem a ser o Caixeiro Manuel dos Santos Lostada, que se oculta nesse pseudônimo; o segundo é oferecido a Heraclitus, que outro não é senão João da Cruz e Sousa; o terceiro é dedicado ao Sr. Manuel Bernardino Augusto Varela, o quarto ao jovem João Praxedes Marques Aleixo, o quinto ao reverendíssimo Padre José Leite Mendes de Almeida e o último ao jovem José Custódio de Bessa. Assinalemos que, ao lado de dois homens maduros, há quatro jovens agraciados. Quanto a João da Cruz e Sousa, é supérfluo dar qualquer esclarecimento. Quanto a João Praxedes Marques Aleixo e a José Custódio de Bessa, ficaremos nas informações do escritor: eram jovens, e outras não temos, no momento, para acrescentar; mas algo de valioso podemos dizer do quarto jovem, ou seja Manuel dos Santos Lostada, a quem foi endereçado o primeiro escrito. Do grupo dos "Novos" que haviam fundado o "Colombo", era ele o mais velho, pois nascera a 8 de março de 1860, sendo João da Cruz e Sousa nascido a 24 de novembro de 1861 e Virgílio Várzea a 6 de janeiro de 1863. Era da Enseada de Brito, de modesta família do sítio; nenhuns estudos regulares fizera e, na ocasião, era caixeiro de venda. A seu respeito, proximamente será perguntado: "Quem é o menino Lostada? Ainda há poucos dias que, na qualidade de caixeiro do Cidadão Marciano de Carvalho, vendia copos de cachaça no balcão!!! Apenas aprendeu a ler pouco, a escrever pouco, a contar pouco, conhece a gramática portuguesa senão de nome". Pois bem . Esse menoscabado autodidata põe-no o jovem Boiteux ombro a ombro com o Padre Mestre José Leite Mendes de Almeida, conceituado latinista, e com o conspícuo Manuel Bernardino Augusto Varela, que fora quem lhe infundira profunda admiração no muito que lhe relatara acerca do Padre Oliveira Paiva e quem lhe tinha ministrado conhecimentos gerais sobre os homens ilustres de Santa Catarina. Demonstrava não distinguir os homens pela idade, nem pelos diplomas, cursos e honrarias, mas pelo comportamento e pela vontade, principalmente pela boa vontade. Interessavam-lhe os queriam bem a Santa Catarina e a coisas de progresso. O ser moço ou ser velho, o ser daqui ou de fora eram acidentes sem importância. Mais ainda. Nos seus elogios aos homens do passado, está clara a confiança na gente dos novos tempos, porquanto, a propósito dos dois médicos chorados, lembra os nomes dos contemporâneos Dr. Schutel, Luís Delfino e Lacerda Coutinho; e, a propósito do Maestro João Francisco de Sousa Coutinho, cita o jovem conterrâneo João Adolfo Ferreira de Melo, discípulo do aplaudido Brasilício de Sousa. É o que fará mais tarde, sempre animador de inteligências, cobridor de capacidades, congregador de forças dispersas. A AUSÊNCIA DA TERRA NATAL E A LUTA DAS GERAÇÕES Finalmente, aprovado nos preparatórios necessários, a 28 de fevereiro de 1883, seguiu José Artur Boiteux para o Rio de Janeiro, a fim de cursar Medicina. O semanário "0 Caixeiro" lamentou a ausência do "amigo leal, caráter distinto, talento superior à sua idade" e a cuja "reconhecida inteligência, devia grande número de artigos importantíssimos". Semanas depois, ficava o Desterro, por algum tempo, privado outra figura moça, que era o genial João da Cruz e Sousa, o qual, na qualidade de ponto, acompanhou a Companhia Dramática Julieta Santos ao Sul e ao Norte do Brasil. Pouco depois, explodiu a fatal luta de idéias entre as gerações, e em que digladiaram, entre os moços, Cruz e Sousa, mesmo distante, Lostada e Várzea, e, entre os velhos, o douto Eduardo Nunes Pires. É fato estranho ao nosso relato; mas, pelo que estamos vendo, parece que José Boiteux, se aqui estivesse, não seria extremista. Ele admirava e louvava os velhos; mas estava certo de que neles não se havia esgotado a glória de Santa Catarina, porque havia moços que estavam continuando. Mais ainda. Alheios à borrasca, encontramos o seu provecto amigo Manuel Bernardino Augusto Varela, assim como Venceslau Bueno de Gouvea, mestre de Português e Latim, e o Comandante Pitada, que ensinava Matemática gratuitamente aos moços. A luta das gerações é fatal; mas é no trato de velhos, de gente de meia idade e de moços que se aperfeiçoam as obras duradouras. José Boiteux chegou à velhice convivendo com os moços. OS ESTUDOS SUPERIORES O tão prometedor curso de Medicina que José Boiteux foi fazer Rio de Janeiro, abandonou-o ele por motivos que desconhecemos - talvez por se julgar mais talhado para as Ciências Jurídicas, e transferiu-se para São Paulo, a fim de matricular-se na Faculdade de Direito; mas também não levou o curso a termo. Fortes causas hão de ter intervindo neste desligamento dos estudos regulares num moço, como ele, cheio de curiosidade intelectual, preparado, talentoso, sem preguiça, metódico, de bons costumes e boas maneiras, sociável, bem relacionado e com aspirações de subir. Entre as suas ocupações para granjear a vida, sei que teve a de revisor tipográfico, bem conforme à sua meticulosidade, e em que confessava muito haver aprendido. Fato é que chegou a República, da qual fora adepto declarado e atuante, e ele, que já tinha idade para ser bacharel, estava ainda muito longe de ser bacharelando. Mais tarde, vê-lo-emos Desembargador; mas isto é outra história, que será rapidamente lembrada. VOLTA A SANTA CATARINA Com o advento do novo regime, voltou Boiteux a Santa Catarina, tendo sido Oficial de Gabinete de Lauro Müller. Ocupou ainda outros cargos, entre eles o de Lente interino de História e Geografia, militando sempre na imprensa. Aqui constituiu família, casando-se com sua prima-irmã Dona Jocelina Jaques, em 1893. Longe de nós está a pretensão de biografar José Boiteux. O que desejamos é ressaltar-lhe a preocupação fecunda pelo que pertencia a Santa Catarina. Assim, lembraremos que, em 1896, no Governo de Hercílio Luz, de que foi Secretário Geral, a 7 de setembro, conseguiu fundar o nosso Instituto Histórico e Geográfico. Havia no Rio de Janeiro, o patriarcal Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; em vários estados, já havia associações congêneres; por que não haveria de ter também a sua o Estado de Santa Catarina? Outro seu serviço de máxima relevância foi ir a Portugal, a fim de trazer de seus arquivos elementos para a defesa dos direitos que sustentávamos contra o Estado do Paraná. A VIDA NO RIO DE JANEIRO Boiteux, que foi de 1900 a 1902 representante de Santa Catarina na Câmara dos Deputados, ficou depois no Rio de Janeiro, onde exerceu funções públicas federais. Foi ali que, em 1907, me tornei para sempre seu amigo e seguidor. Já o conhecia de Itajaí, em uma sua passagem para a Câmara, e bem me recordava do seu ato de logo procurar o Professor João Maria Duarte para o levar ao Grêmio Cívico e Literário instituído em comemoração do 4º. Centenário do Descobrimento do Brasil e que possuía sede e biblioteca. Fui um dos acompanhantes e fiquei grandemente animado com a importância e o préstimo que o ilustre Parlamentar viu na modesta associação. Boiteux deu-me afetuosa atenção, como era de seu hábito com os estudantes, e que dispensava aos conterrâneos em geral, embora fosse um dos dissidentes do Centro Catarinense que Teófilo Nolasco de Almeida amorosamente mantinha na Rua da Carioca, comodamente instalado, e que eu freqüentava diariamente. Boiteux exercia, cargo federal sem maior graduação, mas era grandemente conceituado pela sua capacidade e exatidão. Colaborador de órgãos de imprensa, mormente para lhes levar informes sobre fatos catarinenses; freqüentador de rodas de jornalistas e literatos e de artistas plásticos; assistente de congressos, conferências e atos cívicos, era pessoa largamente conhecida e, por seu lado, conhecia meio Rio de Janeiro. Além disso a antiga condição de Deputado pusera-o em contacto com altas figuras políticas de todo o Brasil; e, ultimamente, fora auxiliar prestimoso da Secretaria da 3ª.Conferência Pan-Americana, reunida em 1906. Era figura importante numa associação propagadora do Esperanto, nova língua internacional; e era-o mais ainda, na Sociedade Brasileira de Geografia, bem acomodada na Avenida Rio Branco e presidida pelo Marquês de Paranaguá, venerando vulto do Segundo Império. Nesta Sociedade, de que foi considerado sócio benemérito, teve ocasião para prestar grande serviço à cultura brasileira, propondo a organização dos Congressos Nacionais de Geografia, cujo primeiro se reuniu no Rio de Janeiro em 1909, sendo ele o Primeiro Secretário da Comissão organizadora. No ano de 1908, há de ter visto concretizar-se um velho sonho, que era uma publicação sobre coisas específicas do Estado de Santa Catarina, já tentada, em 1896, no Almanaque Catarinense, com o Dr. Joaquim Tiago da Fonseca. A publicação de agora era uma revista mensal e ilustrada, muito bem impressa, que lançou à circulação em julho deste ano de 1908. A assinatura semestral custava cinco mil réis, e foi apenas semestral, porque ele não quis arriscar-se a cobrá-la por maior tempo. Fui um dos primeiros assinantes no Rio de Janeiro e outro, em Itajaí, foi meu Pai, e ambos pagamos os nossos cinco mil réis. Boiteux honrou o seu compromisso, estampando a revista, sempre que podia superar as dificuldades financeiras. O sexto e último número, que corresponderia ao mês de dezembro de 1908, tirou-o com uns dois anos de atraso e nele consignou que dos 415 subscritores das listas de assinaturas, apenas 124 haviam satisfeito a importância respectiva. Como ficou dito, este sexto número devia ser o do último mês de 1908. Por isso, José Boiteux, sempre cortês, esquecendo prejuízos e calotes, salvou as aparências e abriu a revista com votos de Boas Festas, a propósito do Natal de 1908 e do Ano Novo de 1909. NOVO RETORNO "Exiliópolis" chamara o adolescente José Boiteux, à sede de sua Província. O nome poético, alusivo ao oficial, não era de sua invenção; mas, para ele, foi a grande e festiva Cidade dó Rio de Janeiro que passou a ser a verdadeira "Exiliópolis". Exultou, portanto, quando conseguiu ser mandado servir na Capital de Santa Catarina. Agora, vinha portador de diploma de Bacharel em Ciências Jurídicas, porquanto, já depois dos quarenta anos de idade, alcançara terminar o curso de Direito; e vinha também Catedrático de Ensino Superior, como Lente que era da Escola de Comércio do Rio de Janeiro, que ajudara a fundar. E a instalação do Ensino Superior em Santa Catarina foi uma de suas imediatas iniciativas, logo concretizada, no ano de 1917, no Instituto Politécnico, que abriu um curso relacionado com Engenharia e cursos de Comércio, Farmácia e Odontologia, e conseguiu construir cômodo prédio. As canseiras e decepções de toda a sorte que o amarguraram neste empreendimento, não lhe arrefeceram o entusiasmo; e ei-lo, em 1932, a promover e conseguir a criação da Faculdade de Direito. Outra pronta empresa de Boiteux foi a Academia Catarinense de Letras, que principiou com o modesto nome de "Sociedade". Mas, repetiu-se o caso do Instituto Histórico. Se florescia na Capital do País uma Academia Brasileira de Letras; se Academias de Letras surgiram em outros Estados, por que haveria Santa Catarina de ficar em plano inferior? E mudou-se o nome para o solene de "Academia", e deram-se -lhe quarenta cadeiras com outros tantos patronos. José Boiteux, com a volta de Hercílio Luz ao Governo de Santa Catarina, retornou a ter relevo político, tendo sido Deputado Estadual e Secretário do Interior e Justiça. Mas o decisivo para ele foi tê-lo Hercílio elevado a Desembargador. Para tanto, houve de ser nomeado Juiz de Direito; e, embora com brevíssima estada na Magistratura de primeira instância, conseguiu ser incluído em lista tríplice para o Superior Tribunal de Justiça. Hercílio nomeou-o Desembargador, cumprindo a sua advertência e promessa: "Boiteux, Você precisa ganhar em velocidade o que perdeu em tempo". E reconduziu-o sem demora a Secretário de Estado; e, em conseqüência e de acordo com a legislação vigente, decretou-lhe a disponibilidade. Assim se resolveu o problema econômico de José Boiteux, que, tendo passado a vida a cuidar de cultura, civismo e melhorias sociais, não amealhara recursos para ter vida desafogada nem era titular de função efetiva que lhe garantisse aposentadoria a coberto de penúrias. A MORTE DO BATALHADOR José Boiteux, que sempre foi católico, entregou sua alma a Deus a 8 de janeiro de 1934; e eu tive a dolorosa consolação de acompanhá -lo até o último suspiro. Era então Secretário da Faculdade de Direito e, para tratar-lhe da legalização, preparava-se para ir ao Rio de Janeiro, tendo tomado três contos de réis por empréstimo no Montepio dos Funcionários Públicos Estaduais. Ia viajar a expensas próprias, porque a Faculdade não dispunha de recursos. O seu sepultamento foi verdadeira consagração popular, que ratificou as homenagens do Governo do Estado. Parecia que nele haviam muitos perdido não um amigo, mas um parente muito chegado e muito querido. ACLAMAÇÕES José Artur Boiteux, por tudo quanto inquiriu sobre a nossa gente e os nossos fatos e de que era pregoeiro apostolar em livros, festividades, conferências, discursos, narrativas, aulas, notícias, comentários, na simples conversação e em duradouras legendas comemorativas, bem mereceu o cognome, que lhe deu Edmundo da Luz Pinto, de "Garimpeiro do ouro do nosso passado". Foi também chamado 'Semeador de estátuas"; e aí estão os monumentos e efígies de Fernando Machado, de Anita Garibaldi , de Jerônimo Coelho, de Cruz e Sousa e de Víctor Meireles para justificarem o nome e, juntamente, justificarem o prêmio de igual glorificação que recebeu de seu de conterrâneos. E, por ter lançado as Primeiras sementes do ensino universitário, outra aclamação ainda merece: "Patriarca do Ensino Superior em Santa Catarina”. ____________ (Artigo publicado em “A Gazeta” , de 8 de dezembro de 1965) A FACULDADE DE DIREITO DE SANTA CATARINA E SEUS PRIMEIROS TEMPOS Conferência escrita pelo Professor Henrique da Silva Fontes e lida pelo Livre-docente Alcides Abreu a 6 de fevereiro de 1957. Meus Senhores, Quiseram os estudantes da Faculdade de Direito de Santa Catarina que sobre a fundação de sua escola lhes falasse um dos que nela trabalharam, e a mim recorreram. Ponderei que já não tenho fôlego para longas exposições, mas veio a resposta imediata, já engatilhada talvez, de que outrem poderia ser o leitor da explanação. Repetiu-se o episódio do paraninfado da turma de 1951, em que, em lugar da minha voz trôpega, ressoou, vivificando as palavras escritas, a de um jovem que fora meu aluno e se alçara a meu colega. Esta é razão de estar ausente da tribuna o autor da narração, que confessa muito o haver comovido o convite dos moços. Meus Senhores, A Faculdade de Direito de Santa Catarina foi um dos muitos sonhos de José Artur Boiteux, cuja vida foi perene pensamento e ação em prol da grandeza e da glória da província natal. Em 1917, conseguira fundar o Instituto Politécnico, em que, ao lado do curso relacionado com a engenharia, havia os de farmácia, odontologia e comércio. Mas, a ele, bacharel em Direito, sempre se afigurou que imprescindível e urgente era também o ensino de ciências jurídicas. Por isso, quando lhe pareceu consolidado o seu querido Instituto Politécnico, apesar das lutas, sofrimentos e decepções que nele amargara, abalançou-se a propor-lhe o empreendimento de uma Faculdade de Direito. O alvitre foi aprovado em sessão da Congregação realizada a 21 de dezembro de 1931, nomeando-se, para lhe dar andamento, uma comissão de três membros, constituída pelos professores efetivos José Artur Boiteux e Américo da Silveira Nunes e interino Henrique da Silva Fontes. O primeiro passo da comissão foi redigir um convite circular que, em data de 2 de fevereiro de 1932, endereçou aos bacharéis em Direito residentes na Capital do Estado, convocando-os para uma reunião que se realizaria a 11 do mesmo mês na sala da Congregação do Instituto. Dos 37 convidados compareceram 15. Mencionemos-lhes os nomes: desembargadores Américo da Silveira Nunes, Heráclito Carneiro Ribeiro, José Artur Boiteux, Sálvio de Sá Gonzaga e Urbano Müller Salles, juízes Adalberto Belisário Ramos, Alfredo von Trompowsky, Henrique da Silva Fontes e Zulmiro Soncini, e bacharéis Afonso Guilhermino Wanderley Júnior, Edmundo Accácio Moreira, Euclides Queirós de Mesquita, Heitor Salomé Pereira, Neri Kurtz e Othon da Gama Lobo d' Eça. Dois bacharéis fizeram-se representar: Fúlvio Coriolano Aducci e Pedro de Moura Ferro. Constituída a mesa, presidida por José Artur Boiteux e secretariada por Edmundo Accácio Moreira e Heitor Salomé Pereira, discutiu-se e admitiu-se a necessidade e a possibilidade de um curso jurídico, e resolveu-se a sua imediata instituição, mas como entidade autônoma do Instituto Politécnico. Dest’arte a 11 de fevereiro de 1932 nasceu a Faculdade de Direito de Santa Catarina. Deram-lhe logo adesão, comprometendo-se a aceitar funções de magistério, os desembargadores Érico Ennes Torres, Francisco Tavares da Cunha Melo Sobrinho e Gil Costa, os bacharéis Cid Campos, Henrique Rupp Júnior, João Bayer Filho e Nereu de Oliveira Ramos e o médico Antônio Bottini, que são também considerados fundadores. Entrou-se, sem perda de tempo, na fase da organização da Faculdade. A parte dos estatutos e da regulamentação do curso não era difícil, pois dependia tão somente do estudo da legislação do ensino, e tinha para modelo o regulamento de outras escolas. E os professores Boiteux e Fontes meteram mãos à obra da organização jurídica, administrativa e didática. Mas era preciso sede própria, pois já não podia a novel escola contar com as instalações do Instituto Politécnico, uma vez que deliberara ser dele independente. E veio a procura de casa, embora não se dispusesse de um tostão para qualquer despesa. E os mesmos professores, sob sua responsabilidade, alugaram uma parte do andar superior do prédio nº. 2 da Rua Felipe Schmidt, esquina da Praça Quinze de Novembro. A Faculdade tinha sede; podia, pois, reunir seus fundadores e movimentarse. Dias depois, a 16 de março, abriu a escrituração financeira com a partida - "Caixa a Professor José Boiteux - Dinheiro emprestado 43$700 (quarenta e três mil e setecentos réis)". José Boiteux convocou, sem demora, uma reunião a que compareceram 15 professores e, lendo-lhes sucinto relatório dos trabalhos já realizados, apresentou o projeto de estatutos, sendo nomeada uma comissão para interpor parecer. A 21 de março, reuniu-se a Congregação e estudou e aprovou os estatutos, e elegeu a primeira Diretoria, assim composta: diretor Francisco Tavares da Cunha Melo Sobrinho, vice-diretor Henrique da Silva Fontes, secretário José Artur Boiteux e tesoureiro Cid Campos. Para o Conselho Técnico-Administrativo foram eleitos os professores Pedro de Moura Ferro, Urbano Müller Salles, Afonso Guilhermino Wanderley Júnior, Alfredo von Trompowsky e Fúlvio Coriolano Aducci. Subseqüentemente foi votado o regulamento e foi organizado o corpo docente, tendo as várias disciplinas os seguintes catedráticos: Introdução à Ciência do Direito - Pedro de Moura Ferro; Economia Política e Ciência das Finanças - Henrique da Silva Fontes; Direito Constitucional - Nereu de Oliveira Ramos; Direito Civil Francisco Tavares da Cunha Melo Sobrinho, Heráclito Carneiro Ribeiro, Sálvio de Sá Gonzaga e Fúlvio Coriolano Aducci; Direito Comercial - Afonso Guilhermino Wanderley Júnior e Henrique Rupp Júnior; Direito Penal - Urbano Müller Salles e João Bayer Filho; Direito Internacional - Gil Costa; Direito Administrativo - José Artur Boiteux; Direito Judiciário Civil - Adalberto Belisário Ramos e Alfredo von Trompowsky; Direito Judiciário Penal - Érico Ennes Torres, e Medicina Legal - Antônio Bottini. Os demais fundadores foram considerados docentes livres. Foram logo publicados editais sobre a inscrição aos exames vestibulares e também a exames de preparatórios, que a lei vigente facultava a quem tivesse mais de seis obtidos sob o regime de exames parcelados. Realizados os exames, matricularam-se 23 alunos, cujos nomes devem ser mencionados, fundadores que também são da Faculdade, porque uma escola se compõe, necessariamente, de mestres e alunos. Esses 23 moços acreditaram na Faculdade e a possibilitaram, não afinando com outros, moços e homens maduros, que a viram com olhos descrentes e alguns até com olhos malévolos. São estes os moços cofundadores: Aldo Guilhon Gonzaga, Altamiro Lobo Guimarães, Aristeu Rui de Gouvêa Schiefler, Ari Pereira Oliveira, Caio Mário Noronha, Carlos Büchele, Carlos Francisco Sada, Décio Görresen de Oliveira, Emmanuel da Silva Fontes, Francisco de Sales Reis, Gervásio Nunes Pires, João Tolentino de Souza Júnior, José Boabaid, Juvêncio Fraga, Leonardo de Campos, Luiz de Souza, Mário Mafra, Mário Tavares da Cunha Melo, Maurício Moreira da Costa Lima, Nicolau Glavan de Oliveira, Oslym de Sousa Costa, Osni da Gama Lobo d´ Eça, Sadi de Castro e Wilmar Orlando Dias. A 2 de maio de 1932, com início às 19 horas, foram dadas as duas primeiras aulas: a primeira ministrada pelo Professor Pedro de Moura Ferro, catedrático de Introdução à Ciência do Direito, a segunda pelo Professor Henrique da Silva Fontes, catedrático de Economia Política e Ciência das Finanças. A Faculdade de Direito de Santa Catarina era, portanto, uma realidade, e estava a desenvolver-se com observância exata das leis aplicáveis ao ensino jurídico. Precárias eram, porém, as suas condições econômicas, de verdadeira pobreza franciscana. Mas isso não entibiava os seus mantenedores nem diminuía o entusiasmo de José Boiteux, nem lhe atrapalhava a técnica de trabalho, a saber: cuidar das exterioridades que demonstrem organização e fazer publicidade eufórica e sem intermitência do trabalho feito ou projetado. Por isso, Boiteux, nos seus empreendimentos, quando achava que não deveria caber-lhe a chefia, - e este foi o caso da Faculdade, procurava para si o lugar de secretário, que, em regra, ninguém pleiteia, pois entendia, e com razão, que o secretário é o principal motor das instituições. Como secretário, e secretário que tinha completo apoio do diretor, pôde conformar a Faculdade dentro das devidas normas administrativas e pôde trombetear o que ela estava concretizando. Modestamente, mas com decência, e valendo-se de empréstimos e doações, montou os gabinetes do diretor e do secretário, arrumou sala para reuniões e sala de aula e deu começo à Biblioteca. Instalou telefone, adquiriu livros para escrituração da Secretaria e da Tesouraria, e mandou imprimir envelopes e papéis para correspondência e mandou fazer carimbos. Nem se esqueceu do tímpano, para chamar empregados, quando os houvesse. Encargos da Secretaria, da Tesouraria e da Biblioteca foram confiados a alunos e, para serviços mais materiais, instruiu Boiteux um moço do interior, a quem desejava encaminhar na vida. Começou por ajeitar-lhe o nome. Ele não usava nome de família, mas apenas dois prenomes. Era preciso completá-lo. O nome de família era Oliveira; mas o moço tinha um tio possuidor dos mesmos dois prenomes; passou então a assinar-se Fulano de Tal Oliveira Sobrinho. E Boiteux brindou-o com uma pasta de mão e uma capa de gabardine. O secretário da Faculdade tinha, assim, um auxiliar de nome civil bem arrumado e adequadamente trajado e guarnecido. Regularmente, mandava Boiteux para os jornais notícias da Faculdade: as visitas que ela recebera, os prováveis alunos, os donativos que lhe eram feitos, o movimento da Diretoria, da Secretaria, da Biblioteca, da Congregação e do Conselho Técnico, e das provas e exames. E, assim, a Faculdade foi-se tornando conhecida, falada e discutida. Claro está que José Boiteux, que tantas placas apusera em casas vinculadas à vida de catarinenses ilustres, não se esqueceria de tabuleta para a Faculdade, tanto mais porque o docente livre Othon da Gama Lobo d' Eça se comprometera a custeá-la. E encomendou uma de grande tamanho, na qual, em vistosas letras, se lia: FACULDADE DE DIREITO. E a tabuleta foi posta na fachada do prédio que dá para a rua Felipe Schmidt, ficando fronteira a dois cafés, quer dizer, a dois viveiros de línguas viperinas, habituadas a enterrar vivos e desenterrar mortos. E não tardou, consoante a tradição desterrense, um apelido para a Faculdade, apelido para o qual se fantasiou o seguinte episódio: Um velho e míope escrivão do crime, homem aqui muito popular, quando lobrigou a tabuleta, fez esforços para a ler e conseguiu soletrar: ALFAIATARIA DO DIDICO. Exclamou então “Até que enfim o Didico arranjou casa para a alfaiataria”. Esse Didico era um alfaiate seu amigo que andava à cata de bom local para se instalar. E a Faculdade de Direito passou a ser, em bocas brincalhonas ou maldosas, a ALFAIATARIA DO DIDICO ou, simplesmente DIDICO; e alunos irreverentes formaram o verbo DIDICAR-SE, como sinônimo de "estar matriculado na Faculdade". Mas tudo passou e o apelido arcaizou-se, porque a Faculdade de Direito de Santa Catarina era autêntica Faculdade de Direito. A alcunha perdeu a graça e o veneno. A publicidade de José Boiteux era frutuosa. Multiplicavam-se as visitas à Faculdade, e também os donativos. Abriu-se um "livro de ouro", com ofertas de cinqüenta mil réis (50$000), quantia apreciável naquela época, e assim já em abril de 1932 o movimento financeiro, incluída a receita de taxas, foi o seguinte: Receita 2.375$000 Despesa 1.237$000 Saldo 1.138$000 Começaram também os donativos de móveis, primeiro um armário para livros, oferecido pelo foro de Tijucas; e, a seguir, uma grande mesa para a sala da Congregação, oferta do comerciante João Bayer da mesma cidade. O exemplo do foro de Tijucas foi seguido pelo de Tubarão, que enviou 370$000 para aquisição de outro armário igual ao primeiro, e a Faculdade, por outros donativos, conseguiu cinco armários do mesmo tipo. Em agosto, recebeu a Faculdade a visita do Professor Agustin Venturino, ilustre sociólogo chileno, que proferiu notabilíssima conferência, tendo sido saudado pelo Professor Henrique Fontes. Ficou demonstrado que a capital do Estado já possuía um sodalício que condignamente poderia acolher professores universitários. Os alunos, por seu lado, trataram de se organizar na conformidade da legislação federal e, a 3 de setembro, em reunião presidida pelo Professor José Boiteux e secretariada por Mário Mafra e Wilmar Orlando Dias, instituíram o Diretório Acadêmico e o Centro Acadêmico XI de FEVEREIRO, elegendo a seguinte mesa: Presidente - Emmanuel da Silva Fontes, Vice--presidente Altamiro Lobo Guimarães, Secretário - Mário Tavares da Cunha Melo, Tesoureiro - Ari Pereira Oliveira, Representante junto ao Conselho Técnico Administrativo - Carlos Francisco Sada. Para organizar os estatutos, foram designados Mário Mafra, Mário Tavares da Cunha Melo e Oslym de Sousa Costa. A 21 de novembro, encerravam-se oficialmente as aulas da Faculdade, em sessão presidida pelo Diretor Tavares Sobrinho. Discursaram o docente - livre Edmundo Accácio Moreira, que, no impedimento do catedrático, passara a reger a cadeira de Introdução à Ciência do Direito, e o catedrático Henrique Fontes. Pelo corpo discente falou o acadêmico Luiz de Souza. Entre outros conceitos, emitiu o catedrático os seguintes: "Podemos ter como realidade palpável o ensino jurídico em Santa Catarina; e, dada a regularidade, a severidade e o carinhoso interesse que têm presidido a toda a labuta aqui desenvolvida e que certamente encabeçarão o conjunto dos nossos usos e praxes, podemos ter por certo que a nossa escola será honesto e útil centro de estudos. E é preciso que assim seja. Pois não basta abrir escolas, o necessário é abrir escolas eficientes, porque - não nos iludamos, senhores - os cursos secundários e superiores no Brasil vêm atravessando um período de crise. As leis, decretos, regulamentos, avisos, instruções e circulares que sobre eles têm diluvianamente chovido, e as reformas sobre reformas que os têm empuxado, longe estão de mostrarem avanço. Mas não sou pessimista nem desalentado. Pelo contrário. Acho que, dentro da instabilidade reinante, e para lhe atenuar as conseqüências, é obra de mérito criar academias de que saiam alunos sabedores das matérias em que foram aprovados, e não meros portadores de diplomas. E isto é questão mais de moral individual do que de leis e regulamentos, porque o professor consciencioso, ainda que entravado por um mau plano de estudos, saberá instruir utilmente aos seus alunos. E para o trabalho de real difusão do ensino é que foi criada a Faculdade de Direito de Santa Catarina". Regularmente realizam-se os exames finais, a eles comparecendo quinze alunos, a saber : Aldo Guilhon Gonzaga, Altamiro Lobo Guimarães, Ari Pereira Oliveira, Aristeu Rui de Gouvêa Schiefler, Carlos Büchele, Carlos F. Sada, Emmanuel da Silva Fontes, Gervásio Nunes Pires, José Boabaid, Luiz de Souza, Mário Mafra, Maurício Moreira da Costa Lima, Nicolau Glavan de Oliveira, Oslym de Souza Costa e Wilmar Orlando Dias. Registramos os seus nomes, porque eles contribuíram para o avanço da Faculdade. Não basta principiar; é preciso perseverar, e eles perseveraram. * * * O ano de 1933 começou sem maiores dificuldades. Nele foram inauguradas três novas cadeiras e elas estavam bem providas: a de Direito Civil era de Heráclito Carneiro Ribeiro, a de Direito Penal de Urbano Müller Salles e a de Direito Constitucional de Nereu de Oliveira Ramos. Pequeno foi, porém, o número de candidatos ao primeiro ano: cinco apenas, a saber: Álvaro Millen da Silveira, Celso Caldeira de Andrade, Léo Pereira Oliveira, Rubens Arruda Ramos e Savas Lacerda. As aulas iniciaram-se regularmente, tendo Nereu de Oliveira Ramos lido a aula com que estreava no magistério superior, aula que a imprensa divulgou. A propósito do horário das aulas e das provas e exames cabem aqui alguns esclarecimentos para os moços de hoje. Naquele tempo, apenas se esboçava a legislação trabalhista que a Revolução de 1930 iria desenvolver no Brasil. Não havia nas instituições particulares, horários fiscalizados pelo Governo, estendendo-se o trabalho desmesuradamente, em particular nos bancos, onde era freqüente o trabalho noturno. E na Faculdade havia alunos que eram bancários. Foi, por isso, preciso em 1932 fazer provas parciais em horas tardias da noite; e, em 1933, houve, para o segundo ano, necessidade de aulas matinais que permitissem aos bancários estar no serviço às 8 horas da manhã; e, com exemplar regularidade, as deram os professores Carneiro Ribeiro e Urbano Salles. José Boiteux continuou no mesmo ritmo de organização e publicidade. Para esta, valia-se ainda de um recurso que lhe parecia eficaz: fornecia aos professores envelopes timbrados para usarem na correspondência particular, porque esses envelopes, na sua circulação postal, iam chamando atenção para a existência da Faculdade. Duas conferências se realizaram: uma do Dr. Antônio Gallotti sobre “0 Estado e a Questão Social", e outra do médico Dr. Aurélio Rótolo sobre "Psicanálise sexual de Freud". O Centro Acadêmico empossou nova Diretoria a 12 de abril de 1933, da qual faziam parte Mário Tavares da Cunha Mello como presidente, Altamiro Lobo Guimarães e Carlos Francisco Sada como vice-presidentes, Luiz de Souza e Wilmar Orlando Dias como secretários, Ari Pereira Oliveira e Gervásio Nunes Pires como tesoureiros, Mário Mafra como orador e Maurício Moreira da Costa Lima como representante junto ao Conselho Técnico Administrativo. A Biblioteca da Faculdade ia prosperando, à custa de doações de livros, notabilizando-se as feitas pelo Professor Horácio Berlinck, Diretor da Escola Superior de Comércio Álvares Penteado, catarinense radicado em São Paulo, ao qual a Faculdade prestou homenagem inaugurando-lhe o retrato no recinto dos livros, sob palavras entusiásticas de José Boiteux. No fim do ano, já se contavam 1.560 volumes e 561 folhetos. As aulas foram, a 25 de novembro, encerradas com solenidade, como no ano anterior, discursando o professor Henrique da Silva Fontes, então diretor, eleito na vaga aberta pela renúncia do Professor Francisco Tavares da Cunha Mello Sobrinho; falaram também o Professor Gil Costa e o estudante Nicolau Glavan de Oliveira, orador do Centro Acadêmico. * * * A Faculdade ia até aí vivendo sem qualquer auxílio do Governo Estadual e, mesmo, nunca o solicitara; e vivia também sem dependência do Governo Federal, porque então não era necessária autorização prévia para funcionamento de escolas superiores. Estas podiam organizar-se livremente, pedindo depois fiscalização federal para dar validade aos seus cursos. E a Faculdade, em fins de 1933, tratou de habilitar-se para obter essa fiscalização. Era preciso possuir instalações menos precárias do que as de que dispunha, requerendo-se prédio próprio que as possibilitasse; era preciso também remunerar os professores, porque estes, bem assim como o Diretor, o Secretário e o Tesoureiro, nenhuma remuneração recebiam. Pensou-se, pois, no prédio próprio, sendo o Diretor, por proposta do Professor Fúlvio Coriolano Aducci, autorizado a estudar a possibilidade de adquirir um prédio para sede ou terreno para a respectiva construção. Resolveu-se também solicitar da Interventoria Federal, então exercida pelo Coronel Aristiliano Ramos, ato que reconhecesse como de utilidade pública a Faculdade, solicitando-se-lhe igualmente a inclusão de verba, na lei orçamentária, para atender as despesas da inspeção federal. Por outro lado, o Conselho Consultivo do Estado, por iniciativa do Conselheiro Altamiro Lobo Guimarães, aluno da Faculdade, propôs para esta a subvenção anual de 12.000$000 (doze contos de réis), proposta que foi aceita, devendo a verba ser retirada das "Eventuais". Estavam, assim, dados os primeiros passos para requerer a fiscalização federal. E José Boiteux resolveu ir à Capital da República, para melhor estudar o complexo assunto. Para tanto, pois que a Faculdade não tinha recursos para lhe custear a viagem, solicitou ao Montepio dos Funcionários Estaduais um empréstimo de três contos de réis, que recebeu. Mas outros eram os desígnios divinos. José Boiteux, que, normalmente, trabalhara até fins de dezembro, mês em que completara 68 anos de idade, adoeceu nos primeiros dias do ano novo e, após ineficaz intervenção cirúrgica, a Deus entregou sua alma a 8 de janeiro de 1934. O desaparecimento de José Boiteux foi pranteado por todos os bons barrigasverdes. O seu sepultamento foi verdadeira consagração popular e o seu nome, então abençoado em doridos necrológios, continua vivo e reverenciado. Entre os vanguardeiros das homenagens estiveram sempre os estudantes, que, com os acadêmicos de Direito à frente, após memoráveis campanhas que pedem uma história especial, lhe ergueram, enfim, um monumento em praça pública. * * * A Faculdade de Direito entrou no terceiro ano de funcionamento matriculando nove primeiranistas: Alfredo Barbosa Born, Clóvis Aires Gama, Djalma Gonçalves, Emília Ferro da Costa, Eurico Klettenberg Couto, João Antônio Nogueira Ramos, Laércio Caldeira de Andrada, Milton Leite da Costa e Virgílio da Fonseca Gualberto. A 12 de março, abriram-se solenemente as aulas e o Diretor fez considerações animadoras, dizendo: "Quando, a 14 de março de 1932, em companhia do sócio de cruzada Desembargador José Artur Boiteux, a quem deixo aqui o preito de minha saudade, entrei neste prédio para estudarmos a hipótese da instalação desta Faculdade, fundada havia um mês e que não tinha um ponto do espaço em que se situasse; quando, nesse dia, penetramos na sala em que ora nos congregamos, pareceu-nos ela suficiente para a nossa imediata acomodação, pois, dividida, como então estava, em dois compartimentos desiguais, daria para no maior ser sala de aula e de sessões da Congregação, podendo no menor alojar a parte administrativa. Saímos daqui satisfeitos, porque encontráramos a possibilidade de uma sede e, sob nossa responsabilidade, resolvemos alugá-la, futurando que, dentro em três anos, poderíamos ser ocupantes de todo o sobrado. E, meus Senhores, sabeis todos vós que não foram precisos esses mil e noventa e cinco dias dos cálculos de dois sonhadores otimistas, porquanto, menos de cem dias depois a Faculdade de Direito era a única inquilina do pavimento; e, antes de decorridos dois anos, já pode anunciar que vai instalar-se em casa própria, e pode anunciar que a aquisição dessa casa a fez dentro de boas normas econômicas, valendo-se do seu crédito, e também dentro das regras da justiça, com observância do postulado romano do neminem laedere e do princípio cristão do justo preço". (... ) "Este primeiro grande triunfo anima-nos para o imediato pedido de fiscalização federal, que já foi facilitado por dois atos do Governo do Estado, quais são a subvenção pecuniária que nos concedeu e que é suficiente para as despesas da inspeção, e o reconhecimento da nossa casa como instituição de utilidade pública. E, ao lado da validade oficial do curso, podemos ainda dar maior âmbito aos nossos planos de coadjuvar a mocidade conterrânea, pois, dadas as proporções do terreno do prédio adquirido e dada também a circunstância de ter ele fundos numa ampla praça, podemos, desde já, idear a nossa futura instalação em prédio para ela adrede levantado e com frentes para essa praça, ficando a casa existente, que é uma vasta e sólida morada de família de tratamento, destinada a ser Casa do Estudante, destinada a ser esse amparo dos estudantes pobres, para cuja consecução tanto se tem trabalhado, e ainda sem resultado, em outros pontos do país, e que nós, com relativa facilidade, poderemos alcançar". É de esclarecer que o prédio a que se referia o orador era o da Rua Esteves Júnior, nº.11, hoje substituído pelas instalações em que nos encontramos; e que o empréstimo para o adquirir, no montante de sessenta contos de réis (60.000$000), fora contraído com o Montepio dos Funcionários Estaduais. E o orador perguntou e respondeu: - "Será utopia o que sugiro?" - "Não! É plano realizável bastando, somente que para ele mantenhamos a coordenação das boas vontades que já desabrocham nos resultados até aqui conseguidos, conjugando-lhes novos elementos que saibam sonhar e querer". Meus Senhores, Não continuarei a miudear notícias sobre o subseqüente desenvolvimento da Faculdade, porque esta singela narrativa objetivou tratar simplesmente da fundação, e esta, como se viu, já estava bem alicerçada em começos de 1934. Lembrarei apenas que, para facilitar o reconhecimento federal da Faculdade, foi conveniente transformá-la em instituto do Estado, o que se fez pela Lei estadual nº. 19, de 30 de novembro de 1935, sendo Governador o Dr. Nereu de Oliveira Ramos; que a equiparação às escolas federais congêneres foi concedida pela Lei federal nº. 2.098, de 1º. de novembro de 1937; que, em conseqüência da Carta Constitucional de 10 de novembro de 1937, foi a Faculdade desoficializada pelo Decreto-lei nº. 120, de 9 de junho de 1938, voltando a organizar-se como instituto livre, regime em que, sucessivamente, foi autorizada, reconhecida e subvencionada pelo Governo da União, que a federalizou pela Lei nº. 3.038, de 19 dezembro do ano passado, coroando os esforços dos que a edificaram em trabalho honesto, que se prolongou por um quarto de século. Assinalarei, entretanto, que todas as mudanças apontadas custaram lutas e devotamentos, dignos também de registro e louvor, porquanto meritório, não é só o trabalho dos que principiam, mas o é igualmente o esforço dos que, não deixando perecer alheias iniciativas, as completam e engrandecem. * * * Meus Senhores, Foi em idade provecta que José Artur Boiteux empreendeu a fundação da Faculdade de Direito. Não pensem, porém, os moços que, a propósito da sua velhice frutuosa, vá eu fazer o elogio dos velhos. Não. Em velho ninguém se torna idealista. O que eu quero é proclamar a responsabilidade dos moços; o que eu quero é acentuar a confiança que eles, pedindo a ajuda divina, devem ter em si mesmos, porque foi em moço que José Boiteux começou a sonhar, a acreditar no poder da vontade, a não desistir ante oposições, nem descrenças, nem zombarias, nem fracassos; o que ele fez na maturidade e na velhice foi apenas continuar os anseios da juventude. Para direção vossa e para proveito social, tomai, pois, meus queridos e jovens Acadêmicos, a lição de José Boiteux, porque, se, em vossa idade, não vos habituardes a empreender, a cooperar e a querer, já vos fazeis velhos precoces e nunca sereis operários de obras prestimosas, como é esta Faculdade de Direito de Santa Catarina. A NOSSA GERAÇÃO E A JUSTIÇA SOCIAL Meus Senhores, Embora seja contrário ao meu espírito de solidariedade opor um "não" a pedidos razoáveis e dependentes de trabalho pessoal meu, por penoso que este seja, dei resposta negativa, não ao pedido, mas à honrosíssima distinção dos bacharelandos de 1951, de lhes ser paraninfo na solenidade da sua colação de grau. Dei a resposta negativa, fundamentando-a com o estado emocional a que me levam discursos longos e cerimoniosos, e que, há mais de um qüinqüênio, me afastou de tribunas que antes freqüentei, não por me sentir com dotes nem arroubos oratórios, mas no cumprimento de deveres funcionais ou de imperativos de amiga cooperação. Retrucaram-me os meus futuros colegas e atentos e atenciosos alunos que havia o recurso de ser eu, no ato, representado por outrem, que leria as minhas palavras de paraninfo. Nada pude objetar à fórmula proposta, pois sincera ora a minha recusa de comparecimento pessoal. Eis a razão desta mensagem, a que outra voz, jovem e entusiástica, dará vibração sonora, para a qual o escritor já não tem fôlego nem domínio sobre si mesmo (l). Meus novos e prezados Colegas, É natural afigurar-se a cada geração que ela está no ponto culminante da história da humanidade. Acontece com as gerações, no tempo, o que sucede a cada indivíduo no espaço: ele está sempre no centro do seu horizonte, parecendo-lhe que, no ponto por ele ocupado, passa o eixo do mundo. Não é, pois, de estranhar que à nossa geração pareça estar ela em posição suprema ou central, ante os problemas formidandos, que se lhe deparam e que a conturbam. Não vos escandalizeis, meus jovens Amigos, com o falar em "nossa geração" um velho que a vós escandalizeis, porque o sentido em que estou empregando o termo "geração", não é o de grupo de pessoas de idades aproximadas, como o por vós constituído ou como os de conscritos militares: estou empregando o termo "geração" com o significado, que ele também possui e que está no dicionário, de "conjunto de todos os homens que vivem na mesma época" (2). Neste sentido, é a geração dos homens semelhante a um rio, que, estando em perpétua mudança, é, entretanto, a cada momento, composto das águas de todos os seus afluentes e mananciais. Somos, pois, vós e eu, da mesma geração. Com efeito, não estivemos, durante cinco anos, a trabalhar juntos, estudando e aprendendo? No trabalho social, há lugar para todos, e há mesmo necessidade da participação de todos. A economia do mundo precisa da prudência dos velhos, - "saber de experiências feito", - e para o demonstrar aí está o panorama político nacional e internacional da hora presente; mas precisa, necessariamente, do ímpeto inovador dos moços, como precisa, igualmente, que velhos e moços se agrupem com aqueles a quem a nossa lei julga amadurecidos para o Senado da República e para o cume do Poder Judiciário. Não discutirei, se a nossa geração enfrenta o período mais angustioso da história dos homens; e não o discutirei, porque tenho em mente outras gerações às quais também pareceria estar a sociedade a subverter-se irremediavelmente. O que se me afigura é que a nossa geração, como todas as passadas e como todas as vindouras, está em situação decisiva, porque os seus atos não são realidades transitórias do momento em que se positivam, mas são como pedras que se argamassam em edifícios, são como sementes, boas ou más, fecundas ou estéreis. Cada geração aproveita e colhe o que as outras fabricaram e semearam, e constrói e planta para si mesma, mas constrói e planta principalmente para o porvir. Dentro da minha contemplação do mundo, que confesso ter sido sempre otimista, acho que ele, balanceadas todas as suas contas, tem melhorado também moralmente, e que a humanidade segue ainda marcha ascensional de aperfeiçoamento, com retrocessos, é verdade, mas sempre ascensional em suas grandes ondas. Tenho para mim que a idade de ouro não foi a dos tempos primitivos, pelo que se deve inverter a ordem que, às idades deram os poetas. A idade de ouro, - e tenho em meu abono a visão do profeta Isaías (3), começa com o Cristianismo e está a desenvolver-se, sem ter ainda alcançado a plenitude, para depois chegar o fim dos tempos, porque tudo o que é humano é perecedouro. Basta ler a Bíblia e a história, para ver a degradação em que esteve mergulhada a humanidade e de que progressivamente a levantaram a expectação do Messias e o advento de Cristo; basta comparar povos cristãos com outros, em que não fermenta o Evangelho, para ver que estes, dotados embora de velhas civilizações e conhecedores de sábios preceitos, não alcançaram os primores que o Cristianismo possibilita e favorece. Aos que me argüirem com regimes que renegaram a Cristo e a sua doutrina, direi que o que há neles de bom e de humanitário está na doutrina social cristã, foi haurido nos princípios de solidariedade humana contidos nos ensinamentos de Cristo, ensinamentos que as coletividades nacionais tidas por cristãs precisam praticar, para não serem desmoralizadas e engolidas pelo comunismo ateu. Em suma, meus jovens Amigos, o que vos quero dizer sobre a nossa geração, da qual me estou despedindo e na qual permanecereis por largo tempo, nela influindo, é que, como todas as outras, tem ante si problemas formidáveis, mas em compensação, possui recursos de que as antecessoras não dispuseram. A ela, como a todas as gerações, aplica-se a figura vergiliana do barqueiro que, remando, navega rio acima. Se esmorecer, “a torrente o leva, e túrbida o remessa Água abaixo outra vez, roubando-lhe inimiga Num momento o ganhado em horas de fadiga!” (4) Não esmoreçamos, pois, tendo sempre ante a consciência a animação evangélica: “Pedi, e vos será dado; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á. Porque todo o que pede, recebe; e o que busca, encontra; e a quem bate, abrir-se-á”(5). Esta é a lei do trabalho persistente e confiante na indefectível ajuda divina, lei que não se compadece com desânimos, lei a que o Evangelho faz seguir a da solidariedade humana: "Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o também vós a eles (6). No plano religioso, é este mandamento regra de caridade; na legislação civil, a sua adoção é "justiça social". De fato, outra coisa não é a "justiça social", inscrita como princípio constitucional brasileiro. Porque "justiça social" não é simplesmente o "suum cuique tribuere", não é só "dar a cada um o que lhe pertence", não é só o cumprimento rigoroso dos contratos; não é só pagar o salário convencionado, medindo-o pelas tarefas ou por unidades de tempo. Isto é simplesmente "justiça comutativa", em que há equivalência entre o que se paga e o que, em troca, se recebe. A "justiça social" observa os preceitos da "justiça comutativa", mas a ultrapassa, levando em conta os lucros e as posses do recebedor e as necessidades, a cooperação e a dignidade do fornecedor. Por outro lado, não se limita a "justiça social" ao “neminem laedere", a "não prejudicar a ninguém". É ativa, dinâmica, propulsora. Visa ao equilíbrio social, diminuindo, por isso, a distância entre os que têm muito e para os quais sempre se canalizam novas riquezas, e os que pouco ou nada possuem e para os quais sempre avançam as necessidades. "Justiça social" é o salário familiar, o salário que, mesmo em serviços iguais, reconhece os encargos de família do trabalhador; "justiça social" é a participação dos operários nos lucros da empresa, porque se funda na prosperidade desta, para a qual contribui o trabalhador e da qual deve ele participar; “justiça social” é a assistência aos trabalhadores, às mães-operárias, aos desempregados e aos acidentados; "justiça social" é a punição da usura; "justiça social" é a subordinação do uso da propriedade ao bem estar comum, é a distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos; "justiça social" é a repressão de toda e qualquer forma de abuso do poder econômico; “justiça social” é a concessão gratuita ou preferencial da terra ao pobre que, pelo seu trabalho ininterrupto, a torna produtiva. A "justiça social" já está vivificando a nossa legislação; mas é imperioso que ainda se alargue, mesmo no sector econômico. As nossas leis têm ainda para com os devedores durezas herdadas dos romanos. Se já não temos a escravidão nem a prisão por dívidas, temos, por causa de dívidas, a miséria e a ruína de produtores e de unidades de produção. Temos cruezas nas cobranças executivas e nas falências, temos o exagero das multas fiscais e de certas indenizações. Para pagar um credor, para quem não é vital a cobrança imediata da dívida, pode um devedor, dentro de regras legais, passar à condição de desempregado ou mesmo de mendigo, pode uma empresa passar a amontoado de ferros velhos. Para este particular, peço a vossa atenção, desde já e mormente quando fordes legisladores ou executores ou impulsionadores da lei; e, para o fazer, não invocarei o sermão das bem-aventuranças, mas a palavra de um monarca belicoso, enérgico reformador e nada religioso, Frederico II, da Prússia, cognominado o Grande: "A pedra filosofal de toda a legislação é uma boa regulamentação das relações entre o credor e o devedor, devendo, nesta questão, pôr-se o governo sempre no ponto de vista do pobre" (7). Meus caros Colegas, É preciso que os princípios da justiça social informem toda a nossa legislação; pouco valem, porém, as leis, se elas e a sua observância não se fundarem nos costumes. Têm as leis mais exato cumprimento, quando ele decorre da formação moral e não do temor dos códigos. Além disso, não podem as leis prever todas as ajudas nem todas as quebras de solidariedade. Para suprir as omissões, intervém o grande mandamento, com a disciplina a que cada um deve submeter os seus atos: "Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o também vós a eles ". Como é confortante e dignificadora a solidariedade dos navegadores ante os brados de socorro de um barco em perigo: desviam-se das suas rotas e arriscam-se, para o salvar. Pena é que a mesma ajuda heróica e espontânea não surja em outros teatros da atividade humana! Quanto a vós, meus prezados e jovens Colegas, pelo diploma que acabais de conquistar, mais do que outros estais obrigados aos imperativos da solidariedade, porque, em solene promessa, afirmastes que ficareis sempre ligados aos princípios da honestidade e que, no desempenho das funções do vosso grau e no vosso trabalho, ao patrocinar o direito, ao executar justiça e ao prescrever regras, nunca faltareis à causa da humanidade, aos interesses da humanidade. De vós, que ides labutar no sector em que se restauram os direitos violados, pode-se dizer o que dos apóstolos disse Cristo: "Vós sois o sal da terra. E, se o sal perder a força, com que se há de salgar? Para nada mais serve senão para ser lançado fora e calcado pelos homens" (8). Sede, pois, exemplos de justiça, principalmente de praticantes da justiça social, não só em múnus públicos, mas em todos os vossos atos. Não patrocineis abusos do poder econômico ou de outro qualquer poder. Não patrocineis tiranias de umas classes sobre outras. Não abuseis das prerrogativas do vosso diploma, procurando riqueza em vez de justiça, e tornando o vosso patrocínio tão caro que dele se arreceiem os que precisem de soluções judiciárias. Fazei, por outro lado, com perfeição todo o trabalho que vos couber, porque pelas obras é que se conhecem os artífices, porque é em nossas obras que nós nos perpetuamos. São estas as considerações que ao vosso velho paraninfo pareceu conveniente fazer-vos neste alto e festivo momento da vossa vida. Não nos apavoremos com os problemas da nossa geração; encaremo-los resolutamente, lembrados de que outras gerações já enfrentaram outros a eles equivalentes. Não vos apavoreis vós com os problemas da geração a que eu não pertencerei, e na qual pesarão sobre vós responsabilidades maiores do que as que hoje vos cabem; tende sempre viva a animação evangélica: "Todo o que pede, recebe; e o que busca, encontra; e a quem bate, abrir-se-á". Insuflai nas leis e nos costumes os princípios da justiça social: "Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o também vós a eles". E sede vós mesmos, na eqüidade dos vossos atos e na perfeição das vossas obras, paradigmas de justiça social, para que de vós se diga que sois realmente "sal da terra", porque preservais a sociedade de podridões, concorrendo para que nela haja paz, abundância, alegria e dignidade. Não desanimeis com o entrelaçamento em que vivem hoje todos os povos, de modo que até uma guerra longínqua pode vir também a ser guerra nossa. Não desanimeis, pensando que é vão e inoperante o vosso procedimento individual, o vosso esforço isolado. Pelo contrário, lembrai-vos de que, se não podeis consertar o mundo universo, em todo o caso, dentro da nossa democracia, uma coisa podeis fazer: criar em torno de vós um ambiente acolhedor, que seja como o das árvores nas estradas ásperas e desabrigadas. Ditas estas palavras, peço a Deus, meus queridos Colegas, que vos guie e vos propicie forças e oportunidades para todos os vossos encantadores sonhos, que, estou certo, serão nobres e justos; e peço principalmente a Deus que vos conceda a felicidade, que me proporcionastes, de chegar à velhice aureolados pela confiança da mocidade estudiosa. ____________ NOTAS: (l) O discurso foi lido pelo Sr. Professor Dr. Telmo Vieira Ribeiro. (2) Dicionário Contemporâneo, de Caldas Aulete, vb. geração. (3) Isaías, cap. XI (4) Geórgicas, I, 199 a 204. A tradução é de Antônio Feliciano de Castilho. (5) Mat., VII, 7 e 8. (6) Mat., VII, 12. (7) G. Schmoller, Principes d'Économie Politique, vol. III, pág. 466. (8) Mat., V. 13. DISCURSO DO PROFESSOR HENRIQUE FONTES NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA O SENHOR PRESIDENTE - Terminada a leitura do Expediente. Não há oradores inscritos para a Hora do Expediente. Está livre a palavra. (Pausa) A Mesa deu parecer favorável ao requerimento do Sr. Deputado Braz Alves, mandando transcrever nos anais desta Assembléia o discurso do ilustre Professor Henrique da Silva Fontes, proferido na Faculdade de Direito de Santa Catarina, pela colação de grau dos novos bacharéis de 1951. Em discussão. O Sr. BRAZ ALVES - (Para encaminhar a votação). Sr. Presidente, nobres Srs. Deputados. O discurso, cuja transcrição ora pedimos é um documento que define as aspirações de uma época e constitui a mais eloqüente demonstração de confiança no futuro da Pátria e no valor de seus homens. Justo é, portanto, que os pósteros encontrem, nesta Casa, subsídios para o conhecimento do que está sendo a luta na preparação do futuro e a inestimável contribuição dos homens de saber e de consciência humanista para a formação de uma mentalidade sadia. Por sobre isso, a transcrição do monumental discurso de Paraninfo do Professor Henrique Fontes patenteia uma homenagem desta Assembléia ao valor, à cultura e à probidade do insigne Mestre, sem favor algum, personalidade das que mais se destacam na formação moral, cultural e intelectual de sucessivas gerações de catarinenses. Justifica-se, plenamente a enorme repercussão que essa notável peça oratória alcançou entre os jovens e nos meios jurídicos, sociais e políticos de nossa terra. De fato, quando um professor, venerando e respeitável, usa de sua longa e bem alicerçada experiência para dar aos moços conselhos como esses que aos seus afilhados deu o emérito professor Fontes, outra atitude não se poderia esperar de nossa mocidade estudiosa e de todos os homens de responsabilidade, que não o comentário entusiasta e reverente e a meditação atenciosa e confiante. Falar em "justiça social" e em harmonia e relações sociais nos termos e na linguagem usados pelo douto educador, é dizer que estamos no limiar de uma nova era, que outros caminhos se descortinam à nossa frente e que temos obrigação de trilhá-los, se não quisermos falhar a nós próprios e ao nosso destino. Se, pelo contrário, estivermos dispostos a cumprir a nossa missão de homens honrados, de cidadãos da Pátria e de filhos de Deus, devemos ter sempre presentes as palavras, advertências e conselhos do ilustre Paraninfo dos Bacharéis de 1951. Assim sendo, esperamos obter o beneplácito de nossos nobres pares para o requerimento que submetemos à sua alta consideração. Era o que tínhamos a dizer. (Palmas) O Sr. OSWALDO CABRAL - (Para encaminhar a votação). Sr. Presidente, Srs . Deputados, quem teve a oportunidade gratíssima de ouvir, na Faculdade de Direito de Santa Catarina, por ocasião da colação de grau dos novos bacharéis de 1951, a formosa lição do venerando Professor Sr. Desembargador Henrique da Silva Fontes não poderia deixar de impressionar-se com os conceitos ali emitidos e com a forma lapidar que S. Exa. deu à sua oração de Paraninfo. Justo o requerimento do nobre Deputado Sr. Braz Alves, pedindo a inserção, nos anais desta Casa, daquela formosa e substanciosa oração. É o documento de uma época; e, mais do que isto, é a reafirmação de uma geração que acredita que os dias que atravessa, apesar de conturbados, apesar das suas lutas e esforços para sair do caos em que se encontra, ainda são dos mais felizes, dos mais compatíveis com a dignidade humana, porque retratam o aspecto de uma civilização que, evoluindo através dos séculos, chegou, com todos os seus melhoramentos, com todos os seus aperfeiçoamentos, ao alto grau em que estamos. É a oração de um crente, de um homem que acredita na sua gente, no espírito de sua geração e que, dobrando já para o fim da existência, com os todos nós, - a eles, que foram seus afilhados, e a nós que tivemos oportunidade de assistir, - a acreditarmos nos princípios do Cristianismo. Por isso, Sr. Presidente, eu expresso, em nome da bancada da União Democrática Nacional, o nosso assentimento e o nosso aplauso à iniciativa do nobre Deputado Sr. Braz Alves. Era o que tinha a dizer. (Palmas) O Sr. ILMAR CORRÊA - (Para encaminhar a votação). Sr. Presidente, a bancada do Partido Social Democrático dá o seu integral apoio e o seu aplauso à iniciativa do eminente Deputado Sr. Braz Joaquim Alves, no sentido de que conste dos anais da Casa o discurso proferido pelo ilustre Professor de Direito Dr. Henrique da Silva Fontes, por ocasião das solenidades de colação de grau da turma de bacharéis deste ano. Já disse, com o brilhantismo de sempre, o nobre Deputado Oswaldo Cabral que é uma afirmação de fé de um velho mestre de Direito, um dos mais ilustres professores da nossa Faculdade. Nós outros da bancada do Partido Social Democrático, temos a grande satisfação em darmos o nosso apoio e emprestarmos o nosso aplauso ao Deputado Braz Alves pela feliz iniciativa. (Palmas) Sessão de 14/12/951. FACULDADE DE DIREITO DE SANTA CATARINA ABERTURA DAS AULAS EM 1934 Quando, a 14 de março de 1932, em companhia do nosso consócio de cruzada Desembargador José Artur Boiteux, a quem deixo aqui o preito de minha saudade, entrei neste prédio para estudarmos a hipótese da instalação desta Faculdade, fundada havia um mês e que não tinha ainda um ponto do espaço em que se situasse; quando, nesse dia, penetramos na sala em que ora nos congregamos, pareceu-nos ela suficiente para a nossa imediata acomodação, pois, dividida, como então estava, em dois compartimentos desiguais, daria para no maior ser sala de aula e de sessões de congregação, podendo no menor alojar a parte administrativa. Saímos daqui satisfeitos, porque encontráramos a possibilidade de uma sede; e, sob nossa responsabilidade, resolvemos alugá-la, futurando que, dentro em três anos, poderíamos ser ocupantes de todo o sobrado. E, meus Senhores, sabeis vós que não foram precisos esses mil e noventa e cinco dias dos cálculos de dois sonhadores otimistas, porquanto, menos de cem dias depois, a Faculdade de Direito era a única inquilina do pavimento; e, antes de decorridos dois anos, já pode ela anunciar que vai instalar-se em casa própria; e pode anunciar que a aquisição desta casa ela a fez dentro das regras da justiça, com observância do postulado romano do neminem laedere e do princípio cristão do justo preço. E tudo isto, meus Senhores, foi o resultado da articulação de algumas boasvontades: boa-vontade dos professores, boa-vontade dos alunos, boa-vontade dos Poderes Públicos, boa-vontade dos que labutam em serviços particulares e são amantes das iniciativas honestas, - conjunto de boas-vontades a que se ajuntou o favor dos Céus, consoante a proclamação angélica: Pax hominibus bonae voluntatis! Paz aos homens de boa-vontade! Este primeiro grande triunfo anima-nos para o imediato pedido de fiscalização federal, que já foi facilitado por dois atos de apoio do governo do Estado, quais são a subvenção pecuniária que nos concedeu, e que é suficiente para as despesas de inspeção, e o reconhecimento da nossa casa como instituição de utilidade pública. E, ao lado da validade oficial do curso, podemos ainda dar maior âmbito aos nossos planos de coadjuvar a mocidade conterrânea, pois, dadas as proporções do terreno do prédio adquirido e dada também a circunstância de ter ele fundos numa ampla praça, podemos, desde já, idear a nossa futura instalação em prédio para ela adrede levantado e com frente para essa praça, ficando a casa existente, que é uma vasta e sólida morada de família de tratamento, destinada a ser a Casa do Estudante, destinada a ser esse amparo dos estudantes pobres, para cuja consecução tanto se tem trabalhado, e ainda sem resultado, em outros pontos do País, e que nós, com relativa facilidade, poderemos alcançar. - Será utopia o que sugiro? - Não! É plano realizável, bastando somente que para ele mantenhamos a coordenação das boas-vontades que já desabrocharam nos resultados até aqui conseguidos, conjugando-lhes ainda novos elementos que saibam sonhar e querer. E esse trabalho de concentrar simpatias eficazes para a nossa empresa cabe, em grande parte aos alunos. Os professores, por sua assiduidade às aulas, pelo desenvolvimento consciencioso dos programas de ensino, pelo cordial interesse com que promovem e acompanham o andamento dos discentes, já têm patenteado o seu amor a esta instituição e para ela têm chamado a consideração dos que a conhecem. E é de assinalar que, sem embargo de cumprirem aqui sua função com prejuízo dos poucos lazeres da magistratura ou da advocacia, estão todos satisfeitos com a obra empreendida. Eu, de minha parte, devo a esta escola, não só o ter voltado ao labor da minha predileção, que é o magistério, do qual as canseiras administrativas nunca me conseguiram desamarrar, mas também o ter retornado a ser estudante. É com prazer que me embrenho na floresta da Economia Política, para abrir veredas a expedicionários principiantes; e também com prazer revejo o que estudei não para fazer exame, mas para saber; e com prazer estudo coisas novas do curso de humanidades, continuando assim velhos estudos há muito abandonados. Aos alunos cabe desenvolver ação sinérgica com o esforço e o idealismo dos mestres; cabe-lhes, pois, juntamente com o honeste vivere, que é uma das normas do Direito, estudar seriamente, e não só as matérias do curso jurídico, senão também outras que lhe são base e que foram objeto do curso ginasial. Os alunos é que recomendam a escola. Eles são os frutos da escola, e pelo fruto é que se conhece a árvore: Ex fructu arbor agnoscitur. De nada valerá chegarmos a ter magnífico prédio e distribuirmos diplomas de autêntico pergaminho, se a essas coisas materiais não corresponder sólido preparo decorrente da matéria explicada em aula e principalmente do trabalho individual do ouvinte das lições e portador do diploma. Escola sem eficiência não é obra de progresso e de verdade. E nós aqui, Srs. Alunos, queremos construir e estamos construindo, e esperamos que vós, com a vossa boa-vontade, nos ajudeis a construir, uma instituição de progresso e de verdade, com portas abertas para a grandeza da Pátria e para o futuro. Meus Senhores, Com estas palavras de esperança, declaro inaugurado o nosso terceiro ano de trabalhos escolares, que, estou certo, terá novamente as bênçãos de Deus. ________________________ Notas O discurso acima foi proferido pelo Sr. Dr. Henrique da Silva Fontes, diretor da Faculdade de Direito, por ocasião da abertura solene das aulas, a 12 de março de 1934. (Publicado no Diário Oficial do Estado, de 14 de março de 1934). FACULDADE DE DIREITO DE SANTA CATARINA ABERTURA DAS AULAS EM 1943 Sr. Representante do Exmo. Sr. Dr. Interventor Federal, Exmo. Sr. Desembargador Presidente do Tribunal de Apelação, Minhas Senhoras, Meus Senhores, Srs. Professores, Srs. Alunos, Pela décima segunda vez instala a Faculdade de Direito de Santa Catarina os seus trabalhos letivos; e, de acordo com o deliberado pela Congregação para constituir praxe da casa, instala-se com a aula inaugural de um dos srs. professores. É este um dos usos das escolas superiores, e a ele, bem como aos demais que recomendáveis sejam, não deve a nossa escola ficar alheia. A solenidade de que se reveste a aula inaugural, com a reunião dos corpos docente e discente, com a prestigiosa presença de autoridades e de convidados ilustres, mostra aos alunos a seriedade dos trabalhos que se iniciam, e que não são do interesse exclusivo deles e de seus professores, mas têm a relevância de fato importante para a sociedade. Por outro lado, ao professor a quem cabe a incumbência abre-se o ensejo de, como paradigma de seus colegas, mostrar de público a honestidade com que é estudada e exposta a matéria dos programas. Pouco importa que, em caso como o presente exíguo seja o número de alunos. A excelência da preleção, a limpidez da exposição, o acabamento da forma independem de circunstâncias externas. A aula deve ser tal que possa ser impressa e divulgada, de modo que, se tiver havido escassez de ouvintes, seja esta suprida pela abundância de leitores. A aula inaugural é, assim, elemento para recomendação da escola. E estou certo de que tal será a do Sr. Professor Henrique Stodieck. Meus Senhores, Na colação de grau dos nossos bacharéis de 1942, em discurso de paraninfo, proferiu o Sr. Dr. Nereu Ramos, nosso companheiro de magistério e honrado Interventor Federal, palavras normativas para os que concluem o curso jurídico. Nelas pôs s. exa. o seu "saber de experiência feito" de jurista militante, de governante emérito, de homem de trabalho e de ideais, de pensador que conhece a vida brasileira e que sabe como ela se acha situada na complexidade inelutavelmente envolvedora da vida internacional. É alocução que merece ser lida e meditada pelos estudantes de direito. São dela estes conselhos de ordem prática: "Se não quiserdes ficar entre os que a mediocridade vadia apequena e esconde, tereis de dar ao estudo do direito, assim ciência como arte, a constância beneditina do esforço insone e a pertinácia teimosa do trabalho indormido, que aí está verdadeiramente o segredo dos grandes e reais triunfos profissionais." "Se vos aprouver preparar das próprias mãos a moldura do vitorioso destino profissional, tereis de fazer dos livros os inseparáveis e insubstituíveis companheiros das vossas vigílias e das vossas madrugadas. Eles, tão somente eles, esses inigualáveis amigos das horas de tristeza e de saudade, como das horas de euforia e de contentamento, garantir- vos-ão as emoções fecundas do êxito e do triunfo e vos premunirão contra desenganos e decepções..." E este ainda: Imperativo é "o trato ininterrupto das boas letras, sobretudo dos bons vernáculos" ... "das letras clássicas, que tão lustre dão à inteligência e tanta clareza e lucidez ao pensamento". A tão sábias palavras só me cumpre acrescentar, senhores alunos: A nossa biblioteca abre-vos as portas e as suas estantes. Ela merecerá cuidado carinhoso da direção da Faculdade. Freqüentai-a assiduamente; fazei leituras meditadas e anotadas; e, nas vossas discussões e nas vossas dúvidas, recorrei, sempre e em primeiro lugar, aos livros, porque eles, se os souberdes versar, alguma resposta vos darão, e, quando outra não for, a de que estais a tratar de assunto inexplorado, o que não deve ser decepção, mas estímulo, porque vos dá oportunidade para pesquisas e conclusões próprias e inéditas. Meus Senhores, Fico muito penhorado pela honra que nos deram o Exmo. Sr. Dr. Interventor Federal pelo seu representante, o Exmo. Sr. Desembargador Presidente do Tribunal e demais autoridades e convidados, participando da nossa festa. E, declarando instalado o ano letivo de 1943, peço a Deus abençoe os nossos trabalhos, permitindo que decorram tranqüilos e fecundos e que terminem sob as alegrias do Brasil vitorioso e sob as seguranças da justiça já dominando o mundo como sua soberana. _______________________ Nota Discurso proferido pelo Sr. Professor Henrique da Silva Fontes, diretor da Faculdade de Direito de Santa Catarina, ao serem solenemente instalados os trabalhos letivos, a 1º do corrente (01/03/43), e publicado no Diário Oficial de Estado de Santa Catarina, de 10/03/1943. CARTA AOS BACHARELANDOS DE 1937 Florianópolis, 30 de novembro de 1962. Prezados Bacharelandos da Faculdade de Direito da Turma Embaixador Edmundo da Luz Pinto, Tenho o prazer de lhes dar conhecimento da agradável delegação que recebi do ilustre Patrono, em cabograma de ontem datado: “PROFESSOR HENRIQUE FONTES – FNS PEÇO QUERIDO AMIGO REPRESENTAR ME COLAÇÃO GRAU BACHARÉIS TURMA ME HONROU COMO PATRONO RENOVANDO AOS NOSSOS JOVENS COLEGAS, COM CALOROSOS VOTOS BRILHANTE CARREIRA, O TESTEMUNHO MEU PROFUNDO RECONHECIMENTO ALTA DISTINÇÃO TANTO ME EXALTOU E COMOVEU. AFETUOSO ABRAÇO EDMUNDO DA LUZ PINTO”. Apresento aos meus próximos futuros Colegas as mais fraternas saudações. Henrique da Silva Fontes FACULDADE DE DIREITO DE SANTA CATARINA ABERTURA DAS AULAS EM 1944 Exmo. Sr. Dr. Interventor Federal, Exmo. Sr. Des. Pres. do Tribunal de Apelação, Minhas Senhoras, Meus Senhores, Meus colegas, Srs. Alunos, Mercê de Deus, iniciamos, com toda a regularidade, novo período de trabalho escolar, que esperamos decorra proveitoso com os doze anteriores. Um fato auspicioso posso desde já anunciar: a oportunidade de termos, este ano, em nossa escola, um curso de extensão universitária, oportunidade resultante de delicadíssimo oferecimento do Sr. Dr. Mário Tibúrcio Gomes Carneiro, douto jurista, que exerce as funções de Auditor Militar na Capital da República. Assim se explica o oferecimento. Tendo s. exa. comparecido às festas realizadas na Lapa, Estado do Paraná, em comemoração do heróico episódio ali ocorrido há cinqüenta anos, e em que foi figura majestosa o Coronel Antônio Ernesto Gomes Carneiro, seu pai, lá encontrou o honrado Interventor Federal de Santa Catarina, nosso Colega Sr. Dr. Nereu Ramos, que grandemente contribuiu para o brilho das solenidades com a sua prestigiosa presença, e com a sua palavra respeitável e ardorosa. Daí resultou a vinda do Sr. Gomes Carneiro a esta Capital. Aqui, encantado com a acolhida que, merecidamente, lhe foi dispensada, entendeu dever retribuí-la com um serviço ao Estado, e esse serviço, conforme comunicou ao ilustre Chefe do Executivo Estadual e conforme também me comunicou em carta que será presente à Congregação, é o prontificar-se ele a realizar um curso de extensão universitária sobre Direito Penal Militar, sem qualquer ônus para o Estado nem para a Faculdade, em época e com programa que deverão ser ajustados. A inauguração desse curso - acentua o esclarecido jurista - virá a ser "a primeira medida no sentido da criação da cadeira de Direito Penal Militar, com autonomia didática", criação por que se interessam altas autoridades militares e que é de inteira convivência, à vista das realidades presentes, em que todo o cidadão é soldado, e em que a guerra e seus agentes passaram a ter ação de generalidade nunca vista. Devem, por isso, ser estudados miudamente e ter larga divulgação os assuntos de Direito Militar. E que honra para a nossa ainda modesta escola ser a vanguardeira desse estudo e dessa difusão, e com decente de tão grande renome e tão prestigioso nas classes militares e nas letras jurídicas. Meus Senhores, Iremos, dentro em breve ouvir a palavra fluente, encantadora e substanciosa Professor de Direito Público Constitucional Sr. Dr. Ivo d´Aquino. É outro sinal segurança, de prosperidade que se prevê para o novo ano letivo. Certo estou de que demais professores estarão, como sempre, à altura da amostra de nossa dedicação do de os ao ensino, que é a aula inaugural. Certo igualmente estou da correspondência de esforços por parte do corpo discente. Deste teremos, certamente, entusiasmo no trabalho, cortesia no trato e honestidade nas provas de habilitação: - o entusiasmo patente em iniciativas e exercícios que levantem o nível mental dos acadêmicos e os desembaracem para a vida prática; cortesia, que torne deleitoso e sempre desejável o convívio escolar e social; honestidade nos trabalhos escolares, não só porque a honestidade é virtude fundamental em todas as situações da vida, senão também porque a honestidade no aprendizado tem vantagens de ordem utilitária, por isso que a fraude multiforme e irreprimível a que se dá o nome de "cola", engana mais o estudante que o professor, e tem afinal castigo quando o fraudador, mais tarde, está a braços com casos que poderia ter aprendido a resolver na escola, mas a que se furtou, preferindo os azares e os trabalhosos artifícios da cola ao estudo tranqüilo e consciencioso da matéria. Meus Senhores, Agradeço o honroso comparecimento do Exmo. Sr. Dr. Interventor Federal, do Exmo. Sr. Des. Presidente do Tribunal de Apelação e dos demais ilustres convidados; desejo-lhes e aos meus Colegas, aos Srs. Alunos e aos meus Auxiliares Administrativos todas as felicidades e, ainda uma vez, faço votos para que, breve, volte a reinar no Brasil e no mundo a paz, tão necessária à perfeição da ciência e da justiça. ______________________ Nota “Folha Acadêmica” - Faculdade de Direito de Santa Catarina - 1º. de maio de 1944: “A 1º de março, precisamente às 17 horas, acedendo gentilmente ao convite que lhe fora formulado deu entrada no salão nobre de nossa Faculdade o Exmo. Sr. Dr. Nereu Ramos, Interventor Federal no Estado. Achavam-se presentes, além de Sua Excelência, o Des. Medeiros Filho, Presidente do Tribunal de Apelação; o Cap. Mourão Ratton, Secretário da Segurança; o Sr. Orlando Brasil, Secretário da Fazenda; o Sr. Manuel Mello, Prefeito Municipal; o Reverendíssimo Padre Bertoldo Braun, Diretor do Ginásio Catarinense; o Sr. Fernando Machado Vieira, Diretor da Academia de Comércio; a Reverendíssima Irmã Benwarda, Diretora do Colégio Coração de Jesus; o Des. João de Luna Freire; e os Drs. Cantídio Amaral e Silva, Sérgio Boisson, Vasco Henrique d´Ávila, Ataliba Cabral Neves e Altamiro Dias, além de grande número de alunos e professores da Faculdade”. Em primeiro lugar, usou da palavra o Des. Henrique da Silva Fontes, Diretor da Casa. “Neste ponto, por serem 18 horas, foi interrompida a solenidade, para dar lugar ao arriamento da Bandeira, ao som do Hino Nacional, entusiasticamente cantado por todos os presentes. Em seguida o Dr. Ivo de Aquino, lente de Direito Constitucional com o brilhantismo que lhe é peculiar, iniciou a sua preleção, aula primeira do ano letivo de 1944”. FACULDADE DE DIREITO DE SANTA CATARINA COMEMORAÇÃO DO PRIMEIRO DECÊNIO DE FUNDAÇÃO, EM 1942 Meus Senhores, Na comemoração do primeiro decênio desta nossa Faculdade de Direito, quiseram os alunos que lhes falasse um dos que a instituíram. E cometeram-me o encargo, que aceitei, não só porque razão plausível não se me oferecia para recusa, senão também porque é dever do professor solidarizar-se com os alunos no que eles empreendam de meritório, não se deixando vencer em esforços nem em entusiasmos nem em confianças de êxito. Além disso, apraz-me recordar os trabalhos iniciais e seguintes, contínuos e sempre renovados, mas compensados abundantemente. É-me ainda grato ter o ensejo para rememorar e reverenciar a pessoa e a ação de José Boiteux, que para com a terra natal, mais do que afeto de filho, tinha ternuras de namorado. Queria, por isso, brindá-la com jóias iguais às que enfeitam as irmãs mais opulentas. Entre as de mais preço via ele os filhos gloriosos e levou a vida inteira a mostrar que Santa Catarina os tinha e dos mais resplendentes; e publicou-lhes os feitos, tornou-lhes os nomes familiares a todos, assinaloulhes locais de nascimento ou de morte, erigiu-lhes monumentos e comemorou-lhes as datas notáveis com a regularidade semelhante à dos calendários religiosos. E, quando descobria conterrâneo de talento apreciável, ei-lo a animá-lo, a ampará-lo, se preciso, a pedir para ele auxílios oficiais, a fim de que Santa Catarina não descontinuasse a sua galeria brilhante. Daí também a sua ânsia de fundar instituições de cultura e de ensino. E uma delas foi esta Faculdade, que hoje pelo órgão de seus estudantes - o Centro Acadêmico Onze de Fevereiro - soleniza o décimo aniversário de sua fundação. Meus Senhores, Lembremos alguns dos sucessos mais interessantes desses dez anos decorridos, desde que, a 11 de fevereiro de 1932, José Boiteux mais 14 bacharéis em direito, numa das salas do Instituto Politécnico, que também fora criação de Boiteux, resolveram a organização de uma faculdade de ensino jurídico nesta Capital. Resolveram, porém, que a faculdade fosse autônoma, sem qualquer ligação com aquele Instituto, do qual, por proposta de Boiteux, partira a idéia da criação de mais esse curso. A assentada autonomia trouxe, porém, séria dificuldade: deixar a projetada academia sem casa nem mobiliário, nem material, para imediata instalação e para subseqüentemente pleitear a fiscalização federal. A Faculdade de Direito tinha, conseqüentemente, de começar a viver por si só. E começou, alugando, em meados de março, parte do sobrado que no lado par da rua Felipe Schmidt faz esquina com a praça XV de Novembro. Aí, com móveis obtidos por empréstimo, por doação e a crédito, fez-se a instalação provisória, realizando-se sessões para a votação dos estatutos, constituição do corpo docente e eleição da diretoria; aí se fizeram os necessários exames para admissão de alunos e em princípios de maio começaram a funcionar as aulas do primeiro ano. Mal se alugara a casa, um dos cuidados de Boiteux foi apor, na fachada, vistosa tabuleta em que, em grandes letras, se lia o nome do estabelecimento. Sem embargo de estar o público ao corrente do que se empreendera, pois que Boiteux conhecia o poder do noticiário dos jornais - deles sempre tirava partido para propaganda da novel escola, devia a avantajada tabuleta ter causado surpresa, porque muitos eram os que não acreditavam na realização do projeto, e além disso, sobre a reunião de 11 de fevereiro, já se havia escoado mais de 1 mês. Ferveram naturalmente gerais comentários em torno da Faculdade, e nem de outro modo poderia ser, porque ela se apresentava no ponto mais central de Florianópolis, no ponto dos cafés, aonde, reunindo-se ou passando grande parte da população, convergem também os que, com malícia muitas vezes perdoável e com olho crítico vêem caricaturalmente os homens e até os bichos, pondo-lhes apelidos. E a Faculdade teve logo o seu: Alfaiataria do Didico. O apelido era explicado assim: um velho escrivão, aqui muito popular e que enxergava mal, apesar de usar óculos, ao ver a grande tabuleta, e depois de a ter procurado interpretar, exclamara: "Até que enfim o Didico arranjou casa". O tal Didico era um amigo seu, alfaiate de profissão, que andava à procura de bom ponto para se estabelecer; e o escrivão na tabuleta em vez de Faculdade de Direito, conseguira soletrar, Alfaiataria do Didico. A historieta verídica ou não, inocente pilhéria ou impertinente perfídia divulgou-se e o apelido pegou. Fez sorrir professores e alunos e afinal parece que caiu em desuso, não só porque todos se convenceram de que ali se instalava verdadeira academia e não oficina para fornecer becas a quem quisesse se fantasiar de bacharel, senão porque a Faculdade, dois anos depois, passou a ser proprietária e ocupante do prédio em que ora nos reunimos. Quando isso ocorreu, já era falecido o nosso querido Boiteux, que consagrara os últimos esforços de sua vida a esta Faculdade. Idealizara-a, instalara-a, angariando donativos de toda a espécie - e um deles fora a memorada tabuleta - ; e de presidente provisório, que fora, passara por insistência sua, a secretário para assim movimentar e ter sempre em dia o serviço escolar. Quando foi colhido pelo insidioso mal que o vitimou, estava com viagem preparada para o Rio de Janeiro a fim de estudar o caso da fiscalização da Faculdade. E ia viajar a expensas suas, tendo para tanto levantado empréstimo no Montepio do Estado. Por tudo isso, meus senhores, é que o nome de José Boiteux deve ser sempre lembrado nesta casa. ********** Meus Senhores, Os dois primeiros anos de trabalho que coincidem com a ação de José Boiteux, constituem o período heróico da história da Faculdade. Sem sede própria nem patrimônio, sem recursos pecuniários - o primeiro lançamento de sua escrituração, feita a 16 de março de 1932, foi o seguinte: Caixa a Desembargador José Boiteux - dinheiro que emprestou nesta data 43$700 - tínhamos apenas a esperança de um dia podermos afinal - não sabíamos como - alcançar os numerosos requisitos necessários para que o Governo Federal concedesse validade dos nossos diplomas. Sem essa validade perdidos teriam sido todos os esforços dos professores e também dos alunos, que têm igualmente mérito na aventura, porque sem a sua confiança no êxito da Faculdade esta não poderia ter surgido nem continuado. Em 1934, melhoraram, porém, as nossas condições. Mediante empréstimo de 60:000$ conseguido no Montepio dos funcionários estaduais, compramos este prédio, e obtivemos ainda do Estado, então dirigido pelo Coronel Aristiliano Ramos, a subvenção anual de 12 contos de réis. Foi então possível aos professores, que até ali haviam lecionado de graça a remuneração de 20$000 por aula. Foi a seguir atacado o problema principal: o da fiscalização federal; mas o pedido não teve solução favorável, porque a Faculdade não satisfazia a requisitos de ordem material e financeira, entre eles o de poder pagar aos seus professores "remuneração condigna" como instituía na Constituição Federal. Esse primeiro insucesso não desanimou o corpo docente, que por sua maioria entendeu que a existência da Faculdade ficaria assegurada com a transformação de instituto livre em escola oficial do Estado. A idéia foi aceita pelos poderes estaduais e foi efetivada pela lei nº 19, de 30 de novembro de 1935. Entrou a Faculdade em nova fase, tendo então entregue ao Estado valores e serviços demonstradores de que os 105 contos que deles até então recebera - sendo 60 para melhoria de instalação - haviam tido aplicação honesta. Deram-se imediatamente os passos necessários para a equiparação. O primeiro pedido não logrou, porém, deferimento, por deficiências apontadas pelo egrégio Conselho Nacional de Educação. Elas foram, porém, de pronto, supridas e a Faculdade teve, finalmente, o almejado reconhecimento dos seus diplomas, com a equiparação outorgada pelo decreto federal, nº 2.098, de 1º de novembro de 1937. Parecia que tranqüilos e prósperos iam correr-lhes os dias. Mas assim não foi, porque a Constituição Federal decretada a 10 do mesmo mês e ano, vedando a acumulação de cargos públicos, levou a maior parte dos professores a pedir exoneração de suas cadeiras. Entrou a Faculdade de Direito em crise, que teve, porém, desfecho feliz, porque em junho de 1938, o Governo Federal desequiparando a Faculdade, lhe de entretanto o prazo de dois anos para se adaptar como instituto livre, e o Governo do Estado, restituindo-lhe a qualidade de instituição particular, não só lhe doou as instalações custosas com que a ampliara, mas lhe deu ainda títulos no valor de 4.000 contos de réis, que proporcionam a renda anual de 200 contos. Asseguram-lhe, pois todos os elementos para vida autônoma. E é do conhecimento de todos que já foi feita a necessária inspeção para que a Faculdade tenha a fiscalização federal permanente, que regularizará a sua qualidade de escola superior. ********** Meus Senhores, O resultado de dez anos de vida acidentada está patente a todos. Basta lembrar, no tocante à parte material, que a 11 de fevereiro de 1932 a Faculdade nem chegava a ser uma semente: era uma simples idéia, sem nada mais de concreto do que as pessoas que a acharam possível e que, para a constituírem, ainda não formavam número suficiente. Hoje temos este prédio e suas instalações; temos recursos pecuniários suficientes; temos completo pessoal administrativo; temos corpo docente que já fornece examinadores para outras Faculdades; temos corpo discente matriculado e com toda a regularidade e interessado em aprender. Nada nos falta que se exige numa escola superior. E a Faculdade tem levantado o nosso nível cultural, já pelos alunos que instrui; já pelos estudos especializados que seus professores tiveram que fazer; já pela irradiação benfazeja que todos os centros de trabalho fazem sentir no seu ambiente. O Centro Acadêmico Onze de Fevereiro tem, portanto, ponderosos motivos para a comemoração que nos congregou, a começar pela razão de que muitos de seus membros só a esta Faculdade devem a possibilidade de seus atuais estudos. Motivos de júbilos tem da mesma forma o corpo docente pelos trabalhos realizados, que Deus copiosamente abençoou, e motivos de satisfação há de os ter também o Governo do Estado, na pessoa do seu honrado chefe, o Sr. Interventor Nereu Ramos, porque, tendo secundado a Faculdade com recursos que lhe decidiram a existência, concorreu para que Santa Catarina não só como grande semeadora de ensino primário, mas também como ministradora de eficiente ensino jurídico, colabore na cultura nacional. _______________________________ Nota Discurso proferido pelo Professor Henrique da Silva Fontes por ocasião das comemorações do décimo aniversário da fundação da Faculdade de Direito de Santa Catarina. VOTO DE OBEDIÊNCIA Do eminente amigo e judicioso mestre Desembargador Henrique Fontes, em carta expressa, recebi a ordem, também expressa, de um escrito meu para este número de "Atualidades". Acolhendo-lhe, à pressa, o mandado, ponho-me em velho voto de obediência, professado quando a nossa hoje vitoriosa Faculdade de Direito deixava o colo macio da fantasia para engatinhar, choramingona e raquítica, pelas salas alugadas de um prédio da Felipe Schmidt. Matriculei-me na Alfaiataria do Didico na vigência aguda do apelido com que lhe saudavam a fundação e o habitat a descrença chasqueante e o sarcasmo tropical dos netos de Dias Velho. Os professores Fontes e Boiteux, à época enfeitiçados pelo ideal de legarem a Santa Catarina o seu primeiro curso jurídico, carreavam para o bisonho estabelecimento tudo quanto de utilitário lhes surgisse aos olhos e à ambição: livros de Direito, bons ou maus; estantes, novas ou antigas; mesas, altas ou baixas; carteirasescolares, com ou sem conforto anatômico; tinteiros e canetas e etc... No caderno dos donativos, tantos arrebanhados manu-militari, coisas e trastes havia que não pagavam a pena do registro. A matéria-prima supervalorizada, por mais escassa, eram os alunos, que as exigências amargas desse nosso doce ensino limitavam a mínimos. O achado de um ginasiano com todos os preparatórios em dia, a par de conferir ao descobridor assinalados ares de benemerência, era motivo de bandeira ao mastro e nota em jornal. Esquivo bacharel em ciências e letras e desconfiado das confianças que planavam por sobre o novel instituto, as alegrias de me haver caçado, dei-as à catequizante doutrinação desse notável jurista e experimentado líder cinegético, que é o meu venerando e querido mestre Sálvio Gonzaga. Os exames vestibulares, fi-los com grandes facilidades. (Não há falsa modéstia nessa afirmação, porque as facilidades a que me refiro estavam menos em meu saber, e mais na razão direta da ausência dos examinadores, nas provas escritas). No exame oral de Higiene houve, entretanto, um incidente. O Prof. Botini acreditou que eu estava cismado com ele. E eu acreditei que ele estava cismado comigo. Fez uma crítica áspera e demolidora à minha prova escrita. Depois mandou que dissertasse sobre o valor das unhas, na categorização social da espécie masculina do gênero humano. Trincou nos caninos a ponta de um charuto burguês, projetou-a longe, fumegou o havana, virou de banda, gargalhou sinistro e a tamborilar com os dedos sobre os vidros da mesa ficou à escuta. Cuidei mentalmente, em alguns instantes, das excelências do selfhelp, e, observando que o ilustre clínico exibia unhas longas, bem polidas e tratadas, iniciei a contra-ofensiva com a solene afirmação de que todos os sábios usavam todas as unhas muito curtas, mal aparadas e pior cuidadas. Com esse pontapé eu empatara a partida. Só mais tarde vim a saber que o desempate - no caso, a minha aprovação - fora decidido em uma conferência médicolegal... Quando, com o tempo e a convivência, percebi que aquele jeito do dr. Botini era feitio pessoal, tornei-me amigo seu e admirador da opulência de sua bondade e da inteireza de seu caráter. As aulas, no primeiro ano, tinham horários combinados, com os quais os professores atendiam às conveniências dos alunos. Éramos seis, como no romance da Sra. Leandro Dupré. O Prof. Fontes lecionava, como ainda hoje, Economia Política e Ciência das Finanças, das 7:10 às 8 horas. Fui acadêmico dos mais assíduos, embora durante o dia desempenhasse cargo no Ministério do Trabalho e à noite na revisão do jornal A República, cuja prova de página, muitas vezes, só podia ser feita às 2 horas da madrugada. No inverno, em dias frios e chuvosos, com menos de trTTTês horas de sono, chegava à Faculdade rezando por encontrar a porta fechada. Jamais, entretanto, isso ocorreu. Exausto, mal sonhado, subia as escadas a repetir Dante: Lasciate ogni speranza, voi ché entrate. É que, mesmo sendo o único presente, ao chegar da hora, o Prof. Fontes repelia in limine a insinuação de os demais estarem ausentes, sentenciando: - Cumpramos o nosso dever! E ali, obediente como Jacó, entorpecido de sono, cotovelos fincados na estante e mãos ambas ao queixo, durante quarenta infinitos minutos, por meses a fio, ouvi, passadas e repassadas, nas aulas de Henrique da Silva Fontes, as teses de Almeida Nogueira, as doutrinas de Simondi de Sismondi, os princípios de Leroy Beaulieu, os preceitos de Adam Smith, as ensinanças de Charles Gide, as emendas de Karl Marx, os métodos de Macleod, as opiniões de J. B. Say, as lições de Molinari e de não sei quantos mais, inclusive um M. Chevalier que, na tradução de meus apontamentos, aparecia associado ao partenaire de Jeanette Mac Donald, nos filmes da época, com evidente desprestígio para o autorizado Michel Chevalier, sumidade francesa em questões de moeda... A estas alturas devo ainda nova obediência ao ilustrado citador de tanta gente sabida. Manda-me ele que não vá além de meia página. Pelos meus cálculos...ponto final! Revista “Atualidades”, 1948 Escrito pelo Jornalista Rubens de Arruda Ramos 1 . ________________ 1 Dados biográficos do Jornalista RUBENS DE ARRUDA RAMOS. Nascido em Lages, a 03 de janeiro de 1912. Filho de Vidal Ramos Neto e de Dª. Maria Arruda Ramos. Fez preparatórios em Curitiba, completando-os no Ginásio Catarinense. Bacharel em direito pela Faculdade de Direito de Santa Catarina, em 1937. Funcionário do Ministério do Trabalho até 1938. Subdiretor da Penitenciária até 1942, quando foi nomeado diretor, cargo que ainda ocupa. Jornalista brilhante, atual diretor de "0 Estado", e notável pelo fino humor com que impregna seus trabalhos literários e pela ironia voltaireana com que escreve.