“TEACHING FOR THE WORLD”: REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE A EDUCAÇÃO BILÍNGUE EM UMA ESCOLA DE ELITE DE GOIÂNIA Valéria Rosa da Silva (UEG/Faculdade de Tecnologia SENAC) [email protected] Carla Conti de Freitas (UEG) [email protected] Tornou-se lugar comum dizer que o mundo contemporâneo é o mundo da globalização. E, como afirma o sociólogo Ortiz (2006, apud COX e ASSISPETERSON, 2007), a língua que detém posição privilegiada nessa sociedade globalizada é, apesar da presença de outros idiomas, o inglês. Por essa razão, o inglês é a língua estrangeira mais estudada no mundo. Para situar esta discussão, recorremos ao sociólogo francês Bourdieu (1982), para o qual a língua é vista como capital simbólico. Para este estudioso, a língua é considerada uma forma de capital cultural ou simbólico que está disponível para ser trocada no mercado da interação social. No entanto, o valor atribuído às línguas pode ser diferente, dependendo do mercado. Acreditamos que essa visão sociológica sobre a linguagem ajuda a explicar como certas línguas e tipos de ofertas de ensino têm maior prestígio do que outras. Em resposta a essa exigência mercadológica do mundo contemporâneo, surge um novo tipo de indústria: a indústria do ensino de línguas. São inúmeras as ofertas de ensino de inglês oferecidas tanto por cursos livres de idiomas quanto por escolas regulares numa perspectiva bilíngue em todo o mundo. Por se tratar do ensino de uma língua de prestígio internacional, o tipo de bilinguismo adotado por tais escolas é o que a literatura convencionou chamar bilinguismo de elite (PAULSTON, 1975; SKUTNABB-KANGAS, 1981, apud MEJÍA, 2002), que se refere a uma situação de educação bilíngue em que uma língua de prestígio internacional serve como meio de instrução para alunos que falam como primeira língua (L1) a língua oficial e dominante do país. Diante disso, com um enfoque diferente da maioria das pesquisas sobre educação bilíngue que se centram em situações de minorias linguísticas, este artigo é parte de uma pesquisa que investiga uma situação em que as crianças da sociedade majoritária, neste caso, a cidade de Goiânia, estão adquirindo uma língua minoritária, porém de prestígio internacional, em contexto de imersão escolar. A educação bilíngue é um campo de pesquisa bastante controvertido (MELLO, 2002), pois sua definição, bem como seus objetivos, orientações, modelos e tipos de programas podem variar de região para região. Mejía (2002) aponta para a crescente influência de fatores contextuais e históricos específicos no desenvolvimento de programas bilíngues que atendam as necessidades de alunos em situações diversas. A educação bilíngue de elite é um campo de pesquisa riquíssimo para investigação de questões de ensino e aprendizagem de segunda língua/língua estrangeira (L2/LE). Trata-se ainda de um assunto pouco explorado em seus contextos específicos, notadamente no contexto brasileiro. Vale ressaltar que há na literatura uma quantidade significativa de estudos sobre os programas de imersão em contextos bilíngues, como é o caso do Canadá (MEJÍA, 2002). Em se tratando do Brasil, Mello (2002, p. 29) pontua que há estudos sobre educação bilíngue, porém “entre estes, a grande maioria focaliza contextos indígenas ou de outras minorias linguísticas, a exemplo dos contextos de fronteira, bidialetais/rurbanos e das comunidades de surdos”. 1 O discurso associado às escolas que oferecem educação bilíngue de elite está, geralmente, voltado para atrair futuros clientes. Trata-se de um propósito persuasivo, similar às propagandas comerciais. Como grande parte das escolas que oferecem ensino bilíngue dessa natureza é particular, de alto custo, é preciso atrair aqueles que estão dispostos a pagar pelo tipo de ensino que oferecem. Os programas de educação bilíngue de elite são geralmente iniciados para atender às necessidades de grupos ou indivíduos particulares, que de certa forma, buscam uma educação dessa natureza. Posto isso, objetivou-se fazer uma reflexão crítica sobre o Projeto Político Pedagógico (PPP) e os textos informativos disponíveis no site da escola, considerando uma perspectiva mais ampla de língua como prática social (FAIRCLOUGH, 1999), com o intuito de conhecer e analisar a concepção de educação bilíngue da escola, de acordo com esses documentos. Desta forma, este artigo considera as seguintes categorias: 1) objetivos e finalidades da educação bilíngue e 2) importância da educaçao bilíngue na formação do indivíduo. Para tanto, recorremos às teorias sobre bilinguismo e educação bilíngue, e à literatura sobre reflexão crítica como referencial teórico, conforme registros que seguem. 1 Fundamentação teórica 1.1 Bilinguismo e Educação Bilíngue – Conceitos O conceito de bilinguismo, bem como o de educação bilíngue é complexo e pode envolver várias dimensões ao se definirem. Na visão popular, ser bilíngue é ser capaz de falar duas línguas fluentemente. O critério de fluência é refletido também na definição clássica proposta por Bloomfield (1933), que define como bilíngues os indivíduos que têm controle de duas ou mais línguas de maneira semelhante à dos nativos. Entretanto, acatar essa definição de bilíngues perfeitos seria descartar a maioria dos falantes bilíngues. Nos termos de Baker (2006), essa definição mostra-se extrema e maximalista, além de ambígua, uma vez que o que se entende por controle e quem forma o grupo de alusão mencionado como nativo pode não estar claramente definido. No outro extremo, tem-se o conceito de bilinguismo incipiente adotado por Diebold (1964). Tal conceito inclui na categoria de bilíngues pessoas com um nível de proficiência mínima em uma segunda língua, por isso mostra-se minimalista. A questão que se coloca é se diante desses dois extremos existe um meio-termo. Uma alternativa é mudar o foco para o uso que os falantes fazem das duas línguas, ao invés de ter como base a dimensão da competência. Pensando dessa forma, autores como McLaughlin, 1978; Grosjean, 1982, 1994; Romaine, 1995; Mello, 1999 e outros, adotam uma definição mais funcional de bilinguismo, como “o uso regular de duas línguas” (GROSJEAN, 1982, p. 230). Mackey (1972, apud MELLO, 1999, p. 47), corrobora essa ideia ao defender que o “bilinguismo não é um fenômeno da língua; é uma característica de seu uso. Não é um elemento do código, mas da mensagem. Não pertence ao domínio da língua, mas ao da fala”. Entender o bilinguismo nessa perspectiva funcional exclui a noção de bilíngues equilibrados 1 , isto é, indivíduos que dominam igualmente as duas línguas. Fishman 1 De acordo com Mello (1999), os termos balanced bilinguals e nonbalanced bilinguals surgiram dos resultados de testes com indivíduos bilíngues, cuja finalidade era detectar o grau relativo de dominância de uma língua sobre a outra em áreas específicas do conhecimento. No entanto, a validade desses testes é questionada por vários estudiosos, pois têm como parâmetro o falante monolíngue, além de desconsiderarem as situações nas quais o indivíduo atual como bilíngue. 2 (1971) argumenta que raramente alguém será igualmente competente nas duas línguas em todas as situações, uma vez que a maioria dos bilíngues usa suas duas línguas para finalidades diferentes e com pessoas diferentes. Sobre as diferentes funções desempenhadas pelas línguas que fazem parte do repertório linguístico do bilíngue, bem como sobre o grau de proficiência dos falantes nas diferentes habilidades da língua, como falar, ouvir, ler e escrever, Fishman (1972) propõe uma classificação inicial em domínios, que ajuda a compreender as relações entre a escolha da língua a ser usada, quem usa a língua, com quem, e para que propósitos. Dessa forma, este pesquisador afirma que algumas situações de fala podem ser agrupadas em cinco domínios básicos que incluem família, trabalho, vizinhança, igreja e o domínio público mais geral (atividades formais e informais). Outro fator que contribui para a compreensão das questões ligadas ao bilinguismo é o entendimento dos conceitos de bilinguismo aditivo e subtrativo. De acordo com Baker (2006), o uso mais amplo dos termos bilinguismo aditivo e subtrativo está associado ao enriquecimento ou perda da língua minoritária. Dessa maneira, uma situação de bilinguismo aditivo é aquela em que a adição de uma segunda língua não tem a intenção de ocupar o lugar da primeira, pois é vista como adicional e enriquecedora. A situação de bilinguismo subtrativo, por outro lado, envolve a perda da primeira língua, em detrimento da língua da sociedade dominante. Tornar-se bilíngue, nesse caso, pode estar associado a sentimentos negativos. Essa diferença entre bilinguismo aditivo e subtrativo leva-nos a considerar outra distinção muito comum na literatura sobre bilinguismo, o bilinguismo de elite e o bilinguismo popular. O bilinguismo de elite está ligado ao acesso de línguas de prestígio internacional para indivíduos que queiram ou precisem se tornar bilíngues (MEJÍA, 2002). Tornar-se bilíngue para muitos alunos que vêm de grupos de status socioeconômico mais altos significa a possibilidade de ser capaz de interagir com falantes de línguas diferentes diariamente, e de ganhar acesso a oportunidades de emprego no mercado global, preparando-os para serem “cidadãos do mundo” (MEJÍA, 2002, p. 5). O bilinguismo popular, por sua vez, está associado aos grupos minorizados, forçados a aprender a língua do grupo dominante, por meio de pressões internas ou externas. Como se pode notar, há na literatura vários termos utilizados para tentar explicar o bilinguismo e a educação bilíngue, sob diferentes pontos de vista. Contudo, pensando no contexto desta pesquisa 2 , adota-se um conceito mais abrangente de bilinguismo, entendido como a habilidade de uma pessoa de processar duas línguas ao interagir com seus pares no seu contexto social (MELLO, 2002). Essa definição abarca tanto os indivíduos que usam regularmente as duas línguas quanto aqueles que estão em processo de desenvolvimento da competência bilíngue, como é o caso dos alunos da escola pesquisada. Do mesmo modo, a expressão educação bilíngue, neste estudo, é usada num sentido mais amplo, abarcando as situações em que duas ou mais línguas estão em contato no contexto escolar. Hornberger (1991) entende educação bilíngue como aquela em que duas línguas são usadas como meio de instrução. De acordo com Baker (2006), para entender uma educação bilíngue é necessário relacionar e integrar dados, contextos, processos e rendimentos, em qualquer modelo que se apresente. Mello (2002, p.122) acredita que “a educação bilíngue está diretamente relacionada à história, à ideologia e à organização sociopolítica de um povo 2 Vale lembrar que este artigo é parte de uma pesquisa maior, que se insere no paradigma qualitativo, de cunho etnográfico, e investiga a educação bilíngue infantil em uma escola de Goiânia. Este artigo, no entanto, limita-se à análise de textos documentais apresentados pela escola. 3 e, por isso, segue caminhos diferentes”. Assim, surgem os modelos diferenciados de programas de educação bilíngue, que serão descritos a seguir. 1.2 Programas de Educação Bilíngue Como foi dito anteriormente, só é possível entender a educação bilíngue à luz de fatores contextuais específicos, por isso escolas em vários países apresentam organizações diferentes e denominam-se escolas de educação bilíngue. Baker (2006) enfatiza que uma importante distinção entre as propostas está nas finalidades educativas. Enquanto algumas escolas têm como foco ensinar a língua oficial do país aos grupos minoritários, por exemplo, o ensino de inglês nos Estados Unidos aos imigrantes de países latinos, outras escolas, como algumas no Canadá, propõem o ensino de duas línguas majoritárias, ambas com prestígio cultural – o inglês e o francês. Além disso, Mejía (2002) enumera vários países, das diversas partes do mundo (Marrocos e Tanzânia, na África; Brasil, Argentina e Colômbia, na América do Sul; Japão, Hong Kong e Brunei Darussalam, na Ásia; Finlândia, Suécia, Bélgica e Catalônia, na Europa e Austrália, na Oceania) que também propõem educação bilíngue, cada um de acordo com suas características locais. Adotamos, neste estudo, a tipologia proposta por Hornberger (1991) por ser mais esclarecedora e abarcar as diversas variações de ensino bilíngue. Esta autora identifica três modelos3 de educação bilíngue: transicional, de manutenção e de enriquecimento. O modelo transicional tem objetivos assimilacionistas, ou seja, encoraja a perda da primeira língua (L1), nesse caso língua minoritária4 , em detrimento da língua da sociedade dominante, língua majoritária 5 . Mello (2002, p. 123) acrescenta que “o objetivo principal desses programas não é o bilinguismo, mas o monolinguismo na língua majoritária”. Como exemplo desse tipo de modelo, pode-se considerar o que ocorre nos Estados Unidos, onde o grupo de imigrantes hispânicos é muito grande, porém, o espanhol tem menos prestígio na sociedade do que o inglês, que é o idioma oficial. O modelo de manutenção é caracterizado por seus objetivos pluralísticos. Visa o desenvolvimento da L1 e a aquisição da L2. Portanto, ao contrário dos modelos transicionais, os de manutenção têm uma orientação aditiva de línguas, visto que é esperado que os alunos tenham proficiência na L1 e na L2. Assim como o modelo de manutenção, o modelo de enriquecimento também apresenta objetivos pluralísticos e propõe uma orientação aditiva de línguas, porém difere-se quanto ao valor dado à língua minoritária. O modelo de enriquecimento visa não só a manutenção da L1, mas seu desenvolvimento. Além disso, os programas que seguem essa orientação são destinados tanto à população minoritária quanto à majoritária. Sobre a relação entre modelos e tipos de programas 6 bilíngues dentro dessa classificação, Mello (2002, p. 25) pontua que essa classificação sugere que esses modelos podem dar origem a diferentes tipos de programas de ensino bilíngue, assim como 3 Hornberger (1991) define modelos de programas bilíngues em termos dos objetivos dos planejamentos linguísticos e das orientações ideológicas em relação à diversidade linguística e cultural na sociedade. 4 Entende-se por língua minoritária aquela que tem menor prestígio em uma sociedade. 5 Por sua vez, língua majoritária é a língua que tem maior valor na sociedade, geralmente é a língua oficial. 6 Em comparação aos modelos, os tipos de programas de educação bilíngue são entendidos num nível mais específico, norteados pelas características contextuais e estruturais específicas (HORNBERGER, 1991, apud MELLO, 2002). 4 qualquer tipo de programa pode ter orientações do tipo transicional, de manutenção ou de enriquecimento. Isso significa que um programa do tipo de imersão pode ser incluído em qualquer um desses modelos, dependendo de suas orientações, objetivos e características. Uma questão importante que se coloca, independente do modelo de educação bilíngue, é refletir sobre como criar condições que preparem os alunos para uma vivência multicultural de forma ampla e qualificada. Por essa razão, nota-se que os modelos de enriquecimento são mais adequados quando o objetivo é o desenvolvimento de uma proficiência bilíngue de fato. 1.3 O contexto brasileiro Cavalcanti (1999, apud MELLO, 2002) afirma que falar de educação bilíngue no Brasil causa certa estranheza, para a qual ela enumera três razões. Em primeiro lugar, existe no Brasil o mito do monolinguismo, capaz de silenciar a diversidade de línguas minoritárias existentes no país, como as línguas indígenas, das comunidades de imigrantes e da comunidade de surdos. Segundo, o acesso às línguas de prestígio internacional é privilégio de poucos e por isso revela um caráter mais elitista de educação. Em terceiro lugar, aos olhos da sociedade, esses contextos são neutralizados, ou seja, são tornados invisíveis. Oficialmente, no Brasil, a educação bilíngue para as comunidades indígenas tornou-se uma realidade, a partir do reconhecimento e da conquista do direito de ensino da língua indígena como língua materna pela Constituição Federal de 1988 (MELLO, 2002). No entanto, a oficialização do ensino das diversas línguas indígenas faladas regularmente no país não é suficiente para que o Brasil seja considerado um país bilíngue ou multilíngue de fato. Por se tratar de línguas minoritárias, principalmente no sentido de apresentarem menor prestígio social, político e econômico no contexto brasileiro, o uso dessas línguas, em geral, está restrito ao uso doméstico entre os nativos das tribos indígenas. Estes, por sua vez, são compelidos a aprender a língua majoritária para que possam interagir com os grupos linguísticos dominantes. Infelizmente, em muitos casos, isso implica na substituição da L1 pela língua dominante (português). Além disso, pode-se notar também o crescente incentivo em relação à aprendizagem da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), língua utilizada pela comunidade de surdos, possibilitando o acesso das pessoas surdas à educação. No entanto, em relação às diversas comunidades de fala existentes no país (imigrantes italianos, alemães, asiáticos, libaneses e outros), pode-se afirmar que não há uma política linguística e educacional multilíngue no Brasil. Quanto à educação bilíngue de elite, foco deste estudo, nota-se um crescente interesse da população brasileira por um ensino de inglês numa perspectiva bilíngue desde a infância. O aprendizado do inglês, por ser uma língua de reconhecido prestígio mundial, é visto pelas famílias como um meio de assegurar aos seus filhos sucesso acadêmico, profissional e econômico no futuro. No entanto, na maioria dos casos, o acesso a formas particulares de educação bilíngue é restrito a quem pode pagar. As escolas bilíngues no Brasil são encontradas, principalmente em grandes centros, como Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. A maioria delas oferece bilinguismo português – inglês. Além disso, Mejía (2002) salienta que, diferente dos outros países da América do Sul, há no Brasil um número muito grande de institutos particulares que oferecem ensino de inglês. A autora organiza esses institutos em três grupos: os Centros 5 Binacionais Americanos7, as Culturas Inglesas e as escolas que fazem parte do grupo LAURELS8, União latino-americana de escolas registradas de língua inglesa. Diante desse cenário, é interessante notar que embora o Brasil seja um país rico em diversidades linguísticas (uma vez que nele coexistem comunidades linguísticas que fazem uso regular de outras línguas que não a oficial, nesse caso o português), é tido como monolíngue 9 . Todavia, o país parece caminhar rumo ao bilinguismo, quando constata-se que a sociedade valoriza o ensino de línguas de prestígio mundial e desconsidera as minorias linguísticas. Por isso, seja nas regiões de fronteiras, como é o caso do sul do país, ou nas regiões centrais, como é o caso da cidade de Goiânia, podemos notar que há uma grande ênfase na necessidade de aprender inglês para propósitos de estudo ou trabalho. 1.4 Inglês e globalização Como já foi mencionado na introdução, o mundo contemporâneo é o mundo da globalização, que por sua vez “declina-se preferencialmente em inglês” (ORTIZ, 2006 apud COX e ASSIS-PETERSON, 2007, p. 6). Como salienta este estudioso, apesar das outras línguas que fazem parte da sociedade contemporânea, é o inglês que ocupa lugar de destaque. A ampla difusão da língua inglesa tem recebido diferentes interpretações que vão desde leituras ingênuas, que atribuem tal fenômeno à neutralidade do inglês como meio de comunicação entre as pessoas, até leituras mais críticas, que afirmam ser fruto dos interesses capitalistas e do imperialismo americano (PHILLIPSON, 1992, apud COX e ASSIS-PETERSON, 2007). Ou ainda, de acordo com a visão de Pennycook (1995, apud COX e ASSIS-PETERSON, 2007), por trás da aparente naturalidade, neutralidade e benefício da língua inglesa, agem interesses capitalistas advindos do colonialismo e neocolonialismo de instituições britânica e norte-americana. Moita Lopes (2003, p. 36) não é menos crítico em relação à invasão da língua inglesa. Segundo este estudioso, paralelamente aos discursos da diversidade e da diferença que varrem o mundo, há o discurso de uma única lógica neoliberal e global, do interesse de um capitalismo global, que transforma tudo em mercadorias e as pessoas em clientes. Seja qual for o ponto de vista acerca dos interesses que subjazem à difusão do inglês no mundo, percebe-se que há uma busca cada vez maior por parte da população em aprender a língua inglesa. Em alguns casos, a iniciativa é oficial, decretada pelo governo, como em Brunei Darussalam. Nesse pequeno sultanato multilíngue e multirracial, localizado na costa noroeste da ilha de Borneo, foi instituído, em 1980, o programa bilíngue dwibahasa (malaio – inglês). O malaio, língua nativa de quase 70% da população, é a língua usada nas interações sociais. As movimentações financeiras e transações comerciais conseguidas graças à grande quantidade de petróleo existente no local, por sua vez, acontecem em inglês (MEJÍA, 2002). Reafirmando a ideia já apresentada anteriormente de que o domínio da língua inglesa é sinal de poder e 7 US Binational Centers. Latin American Union of Registered English Language Schools. 9 O Brasil é considerado, por razões históricas, políticas e ideológicas, um país monolíngüe, visto que todo e qualquer falante tem o português como primeira língua. Porém, tal consideração não leva em conta as inúmeras línguas indígenas faladas no país. 8 6 prestígio, nota-se que em Brunei, assim como em Hong Kong, Índia, Colômbia e outros países ao redor do mundo10, ser bilíngue em inglês confere alto status social. Posto isso, é importante notar o papel que a educação vem desempenhando, como meio poderoso de acesso a essas fontes simbólicas valiosas, como o bilinguismo em línguas de prestígio mundial, notadamente o inglês. Os pais acreditam que os filhos terão acesso ao poder por meio da educação e aprendizado de línguas. Diante desse cenário, Magalhães (2004) argumenta que é preciso compreender a escola dentro de um contexto cultural, social e político e não como um local de transmissão de conhecimentos neutros e desvinculados da sociedade mais ampla. Moita Lopes (2003) corrobora essa visão, enfatizando a necessidade de considerar questões relativas à natureza sociopolítica dos processos de ensino-aprendizagem de línguas e a relevância de o professor de línguas, principalmente o de inglês, tomar consciência do mundo em que está situado. Fairclough (1999), seguindo esse mesmo raciocínio, pontua que uma consciência crítica sobre a linguagem deveria ser uma preocupação básica no ensino de línguas. Propondo uma mudança discursiva em relação à mudança social e cultural, esse autor entende o discurso como “o uso de linguagem como forma de prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais” (FAIRCLOUGH, 1999, p. 90). Para o autor, o discurso deve ser entendido como um modo de ação, implicando em uma relação dialética com a estrutura social. Dessa forma, o discurso, ao mesmo tempo, constitui e constrói o mundo em significado. Entendendo que a prática discursiva carrega uma ideologia, Fairclough (1999) aponta para a questão da naturalização do discurso ideológico, que chega a atingir o status de senso comum, tornando-se inconsciente e imperceptível. As pessoas nem sempre estão conscientes daquilo que está por trás de suas ações. Faz-se necessário, dessa forma, adotar uma consciência crítica em relação à linguagem para que se possa enxergar além dos discursos já existentes para então avançar o conhecimento. 2 Análise dos dados Como já foi dito na introdução, este artigo é parte de uma pesquisa maior, que investiga a educação infantil bilíngue (português – inglês) em uma escola de elite de Goiânia. A pesquisa, ainda em fase de desenvolvimento, enquadra-se no paradigma qualitativo, de cunho etnográfico e investiga as concepções de educação bilíngue da escola, que foi fundada em 2003 e apresenta uma proposta de ensino de inglês numa perspectiva bilíngue para alunos de educação infantil e ensino fundamental e atende crianças a partir de um ano e cinco meses de idade. Neste contexto, propõe-se investigar a concepção de educação bilíngue da escola, bem como sua pertinência ao contexto sociocultural em que se insere. Para tanto, faz-se necessário, primeiramente, analisar os documentos e informativos da escola, com o intuito de entender a proposta bilíngue, para depois partir para questões específicas da sala de aula. Consideramos, neste artigo, que o trabalho educacional é representado também em textos produzidos institucionalmente, os quais veiculam prescrições ao trabalho educacional. Por isso, procuramos reconhecer no PPP e nos textos informativos da escola, aspectos que norteiam a prática pedagógica, considerando as seguintes 10 Para uma abordagem mais ampla sobre os países em que o bilinguismo em inglês está associado a prestígio social, consultar Mejía, 2002. 7 categorias: 1) objetivos e finalidades da educação bilíngue e 2) importância da educaçao bilíngue na formação do indivíduo. Para tanto, como referencial teórico, além das teorias sobre bilinguismo e educação bilíngue, recorremos à literatura sobre reflexão crítica na formação de professores de língua inglesa, uma vez que esta propõe uma abordagem mais crítica acerca dos fenômenos linguísticos, considerando uma perspectiva mais ampla de língua como prática social (FAIRCLOUGH, 1989), além de problematizar questões ligadas ao ensino de línguas estrangeiras. 2.1 Objetivos e finalidades da educação bilíngue e suas implicações na formação do indivíduo As finalidades da educação bilíngue da escola podem ser percebidas no próprio slogan “Teaching for the world /Ensinando para o mundo” (página inicial do site oficial da escola). Formar para o mundo ou, como quer Bingham (1998, apud MEJÍA, 2002, p. 5), “formar cidadãos do mundo” em um mundo cada vez mais interconectado é uma das características mais marcantes do tipo de educação bilíngue valorizada hoje, que é, como já foi dito, o bilinguismo de elite. Os objetivos da proposta pedagógica também estão ligados à ideia de preparar para o mundo, conforme o excerto 1. Excerto 1 A proposta pedagógica da escola tem então como objetivo despertar a criança para uma postura crítica do mundo que a cerca, não apenas de forma cultural, mas também política, social e econômica. Tal proposta sugere que é preocupação da escola formar indivíduos críticos, munidos de forças que os possibilitem se colocar no mundo em todas as esferas. Além disso, tais indivíduos estarão preparados para enfrentar a competitividade do mundo atual, conforme o excerto 2: Excerto 2 (...) com muito respeito, possam viver em um mundo moderno e competitivo, conhecendo seus direitos e deveres, praticando o exercício da cidadania. No excerto acima, o status privilegiado dos alunos está ligado às responsabilidades sociais como cidadãos do mundo, preocupados com os direitos humanos. Entretanto, podemos notar que o mundo, para o qual a escola prepara, equivale ao mundo do progresso científico e tecnológico e a todas as implicações trazidas por ele. No entanto, outras características do mundo moderno como destruição do meio-ambiente, fome, pobreza, novas formas de escravidão produzidas pelo capitalismo selvagem, entre outros, não ocupam lugar de destaque no mundo para o qual a escola ensina. Percebemos que há uma ênfase maior nos aspectos mercadológicos ligados à globalização da sociedade atual, como no excerto 3. Excerto 3 As transformações sociais, culturais e os avanços tecnológicos do momento, exigem do homem criação de novos paradigmas, bem como uma flexibilidade de pensamentos e ações para viver o futuro. 8 A preocupação com a formação desse cidadão do mundo justifica-se por meio da apresentação de verdades universais tidas como certas, pois cabe à escola preparar o indivíduo para atuar nesse mundo. Tais preocupações, todavia, não estão voltadas para o momento atual, conforme se pode notar na última linha do excerto 3. Trata-se de preparar o aluno para a vida futura, esquece-se o hoje e em decorrência disso, transferese para o futuro, a importância da escola na constituição do sujeito no momento atual. Considerando mais uma vez as verdades universais, que, por sua vez, estão intimamente ligadas ao capitalismo, o texto faz alusão às exigências de flexibilidade, versatilidade, habilidades comunicativas e tecnológicas requeridas pela sociedade atual, conforme o excerto 4. Excerto 4 A sociedade atual necessita de pessoas flexíveis e versáteis e com boa capacidade de comunicação. (...) Devem dominar tecnologias de informações e possuir conhecimento de outras línguas e culturas. O texto recorre novamente ao uso de verdades universais. Trata-se da repetição daquilo que já é dado como certo. Todavia, a insistência nesse tipo de repetição leva a crer que a proposta da escola reafirma a visão do ser humano voltado para as concepções capitalistas. Sendo assim, possuir conhecimento de outras línguas equivale a possuir conhecimento de línguas de prestígio internacional, nesse caso, notadamente o inglês. De acordo com o PPP, a escola surgiu por causa do interesse dos pais em oferecerem a seus filhos uma educação bilíngue, o que as outras escolas da cidade não ofereciam na época. A escola vê na educação bilíngue sua razão de ser, como expresso no excerto 5. Excerto 5 Entretanto, ao nosso ver, a maior vantagem da educação bilíngue – aquela que se constitui na mola propulsora do projeto da escola, (...) Considerando o aspecto linguístico, o texto deixa a impessoalidade e passa a adotar um estilo mais personalizado devido ao uso da primeira pessoa do plural. Assim, o texto apresenta aquilo que a escola considera as maiores vantagens da educação bilíngue, conforme o excerto 6. Excerto 6 Entretanto, ao nosso ver, a maior vantagem da educação bilíngue – aquela que se constitui na mola propulsora do projeto da EB11, é o fato de que, ao contrário da criança monolíngüe, ao ser confrontada com outros valores culturais, a criança bilíngue percebe o relativismo cultural e adquire um conceito pluralista e dinâmico da cultura, abandonando assim o egocentrismo e abrindo mais espaço à objetividade e à harmonia em grupo. De outro modo, a educação bilíngue ajuda a criança a situar-se em uma cultura pluralista, desenvolvendo seus próprios mecanismos de identidade sem se deixar intimidar pelo diferente, dissolvendo assim, o sentimento de separatismo tão nocivo à nossa sociedade e que, em geral ocorre quando a familiaridade com outras línguas e culturas é negada. 11 As iniciais EB (Escola Bilíngue) serão utilizadas para preservar a identidade da escola pesquisada. 9 De acordo com o excerto 6, as vantagens da educação bilíngue estão ligadas, principalmente, a razões pluralísticas. Podemos notar ainda neste excerto que a visão que se tem de uma criança bilíngue, é a de uma criança dotada de habilidades pessoais que a colocam num patamar diferenciado da criança monolíngue. Desse modo, ser bilíngue significa ter capacidades de percepção que possibilitam familiarizar-se com o diferente. Diferentemente, a criança monolíngue é vista como mais propensa ao sentimento separatista, visto que a familiaridade com outras línguas e culturas lhe é negada, conforme a última linha do excerto 6. Além disso, são enfatizadas as habilidades interpessoais do indivíduo, como se pode notar em “abandonando assim o egocentrismo e abrindo mais espaço à objetividade e à harmonia em grupo”. Os conceitos pluralistas, que de acordo com o excerto 6 são conseguidos por meio de uma educação bilíngue, são entendidos pela escola como consequência do mundo globalizado, conforme o excerto 7. Excerto 7 No mundo atual, onde predominam os intercâmbios internacionais, seja no âmbito turístico, econômico, político ou demográfico, requer cada vez mais um tipo de educação que melhor corresponda ao pluralismo cultural que esse processo de globalização vem impondo à nossa sociedade. Dessa maneira, a escola busca oferecer um ensino que atenda às exigências de pais que, mesmo vivendo em um país tido como monolíngue, sentem a necessidade de acrescentar ao repertório linguístico de seus filhos uma língua de prestígio internacional como o inglês. Apoiando-se na abordagem humanista de educação, que, segundo o excerto 8, apresenta forte tendência sociointeracionista, a escola apresenta suas considerações sobre a estruturação de um projeto bilíngue. Excerto 8 De acordo com a abordagem humanista de educação, com forte tendência sociointeracionista, adotada pela Escola, um projeto bilíngue deve necessariamente ser estruturado com bases no contexto sociocultural e que os alunos se inserem. Em se tratando da EB, este contexto caracteriza-se por uma sociedade não bilíngue, com predominância da língua portuguesa. Por se tratar de questões complexas que requerem tempo e espaço que extrapolam os limites deste trabalho, não serão discutidas questões ligadas à teoria sociointeracionista, tampouco sua relação ou pertinência com as teorias de educação bilíngue. Entretanto, vale ressaltar o tom enfático com que o texto apresenta a tendência sociointeracionista adotada pela escola, reforçada no excerto 9. Excerto 9 Diante desta realidade e de tais necessidades é que se opta por uma Pedagogia adotando os pressupostos desenvolvimentais e de aprendizagem numa perspectiva sociointeracionista. Tal postura educacional possibilita a formação deste cidadão, já que pressupõe que o sujeito constrói seu conhecimento na interação com o meio social, num processo de mediação permeado pela linguagem. 10 A realidade e necessidades referidas na primeira linha do excerto 9 são aquelas já mencionadas anteriormente (excertos 3, 4 e 7), ou seja, trata-se de uma sociedade globalizada que exige indivíduos aptos a atuarem nela com autonomia. O cidadão que a perspectiva sociointeracionista ajuda a formar, de acordo com o excerto 9, refere-se ao cidadão do mundo, pronto a atuar na sociedade globalizada, adequando-se às suas exigências. Em relação às últimas linhas do excerto 9, onde a interação social por meio da linguagem é mencionada, cabe questionar como essa interação é concretizada num contexto bilíngue (português – inglês), visto que a competência linguística em inglês dos alunos, pelo menos nas séries iniciais, é limitada. Porém, as tentativas de encontrar respostas para esse questionamento ligado às questões da prática pedagógica serão deixadas para as fases posteriores do desenvolvimento da pesquisa em que este artigo se insere. Por ora, o foco é refletir criticamente sobre a concepção de educação bilíngue presente nos textos informativos da escola. Mesmo não sendo o foco deste trabalho discutir com profundidade questões específicas das teorias sobre bilinguismo e educação bilíngue, como modelos ou tipos de programa de educação bilíngue, o papel das duas línguas no ambiente escolar, a distribuição das línguas no currículo, e outras, parece importante traçar, mesmo que superficialmente, uma visão geral do programa bilíngue da escola. Conforme o PPP, o programa bilíngue se organiza da seguinte forma: Excerto 10 Nosso programa visa à construção de um bilingüismo que leve em conta a realidade de nossos alunos, buscando “gradualmente” um bilingüismo equilibrado – onde a competência lingüística é equivalente em ambas as línguas. Este perfil de educação bilíngüe compreende dois tipos de instrução que o aluno recebe em seu percurso escolar: 1 - nas turmas de Baby e Pre K (crianças de 1,5 a 03 anos de idade), o Inglês é usado como imersão. A língua é usada durante todo o tempo, evitando o uso do Português. 2 - nas turmas de Kinder 1, inicia-se a alfabetização em Português (língua materna na maioria dos alunos), dando continuidade no Kinder 2 e sedimenta-se no 1º ano. 3 - A partir do 2º ano do Ensino Fundamental, inicia-se a alfabetização na língua inglesa e com conteúdos das disciplinas curriculares específicas (História e Geografia, Ciências, Matemática, etc), apresentados em ambas as línguas: Português e Inglês. Caso contrário, estaríamos apenas oferecendo um curso paralelo de aprendizagem do idioma Inglês. Tal procedimento, ao mesmo tempo em que promove o conhecimento de áreas específicas, auxilia o processo de aquisição do Inglês e facilita a alfabetização no idioma. Analisando as primeiras linhas do excerto 10 e o excerto 8, pode-se inferir que a escola considera o contexto sociocultural em que os alunos estão inseridos, ponto fundamental na estruturação do programa bilíngue. Dessa forma, acredita que, nesse contexto, é possível conseguir um bilinguismo equilibrado, ou seja, que os alunos tenham competência linguística equivalente em português e em inglês. Há dois pontos a serem considerados nessa proposta. Primeiramente, estudos mostram que o conceito de bilinguismo equilibrado é idealizado. Fishman (1971, apud BAKER, 2006) argumenta que raramente alguém será igualmente competente nas duas línguas em todas as situações, isto é, a maioria dos bilíngues usa suas duas línguas para finalidades diferentes e com pessoas diferentes. 11 Em segundo lugar, apesar de a proposta da escola levar em conta a realidade em que os alunos estão inseridos, ela parece não considerar o fato de o inglês não fazer parte do repertório dos alunos nos outros “domínios” (FISHMAN, 1971, apud BAKER, 2006), exceto o da escola. É pertinente inferir, portanto, que uma competência equivalente nas duas línguas é fato pouco provável, considerando o contexto de Goiânia, onde, em geral, as crianças têm pouca ou nenhuma oportunidade de usar a língua inglesa fora do contexto escolar. Com o intuito de promover uma oferta de ensino de inglês diferente da maioria das escolas, ou até mesmo dos cursos livres de inglês da cidade, o texto enfatiza que conteúdos de outras disciplinas do currículo como história, geografia, ciências, matemática serão ministrados em ambas as línguas, para que dessa forma o inglês se torne instrumento de aprendizagem e não apenas objeto de estudo, facilitando o processo de alfabetização no segundo idioma. Há várias considerações a serem feitas sobre a distribuição das línguas no currículo, bem como sobre a proporção de uso das línguas no ambiente escolar. No entanto, tais questões serão deixadas para depois. Vale lembrar que há, ainda, outras questões abordadas nos documentos que não serão tratadas aqui, não por serem menos importantes, mas porque fogem aos objetivos deste estudo. Depois de analisar as seleções de trechos dos documentos considerados, podemos inferir que os objetivos e finalidades do programa bilíngue da escola estão ligados principalmente à formação de cidadãos do mundo, aptos a atuar criticamente na atual sociedade globalizada. Quanto à visão de bilinguismo da escola, podemos afirmar que a educação, mais especificamente a educação bilíngue, é vista como símbolo de prestígio e poder. Faz-se importante reafirmar a visão de Bourdieu (1982, 1991, apud MEJÍA, 2002) acerca da linguagem. Para este autor, como foi dito anteriormente, a língua é considerada uma forma de capital cultural ou simbólico que pode ser trocada no mercado da interação social. No entanto, a língua pode receber diferentes valores, dependendo do mercado. No caso do mercado brasileiro, além do português, que é a língua nacional, o inglês é revestido de grande valor, o que não acontece, por exemplo, com as línguas indígenas que existem no país. A impressão geral da proposta é de superioridade. A referência de excelência é feita em todos os níveis: proficiência bilíngue, oportunidades futuras para ganhar qualificações de valor, e o conseqüente acesso a um estilo de vida privilegiado. As crianças que fazem parte desse tipo de programa são colocadas como seres humanos excepcionais, possuindo, por um lado qualidades de liderança fora do comum, e por outro, a maturidade para apreciar a diversidade, ser tolerante e viver em harmonia. A proposta da escola trata os alunos como uma superclasse de indivíduos prontos para atuar criticamente diante das situações inesperadas impostas pela atual sociedade globalizada, preparados para o sucesso graças à educação bilíngue a eles oferecida. Considerações Finais Com uma visão de língua como prática social, este estudo propôs mostrar como os textos informativos de uma escola de educação bilíngue foram construídos, e como eles indiretamente reproduzem e legitimam as relações de poder existentes no mundo capitalista. 12 Para tanto, além das teorias sobre bilinguismo e educação bilíngue, este artigo teve como base a literatura sobre reflexão crítica, uma vez que, para as propostas deste artigo, foram consideradas as implicações ideológicas envolvidas no processo de ensino e aprendizagem de língua estrangeira. Canagarajah (1999, p. 35) salienta que “a aprendizagem de uma língua não pode ser considerada uma atividade inocente, pois possibilita a dominação ideológica e de conflito social”. Uma proposta de educação bilíngue dessa natureza afirma o desejo dos pais que aspiram para seus filhos uma educação de excelência, que os prepare para ter “uma postura crítica do mundo”, tendo a educação bilíngue como “mola propulsora” para garantir “boa capacidade de comunicação”, com competência linguística “equivalente em ambas as línguas”. Além disso, tal proposta sugere que o fato de ser bilíngue possibilita à criança “situar-se em uma cultura pluralista, desenvolvendo seus próprios mecanismos de identidade sem se deixar intimidar pelo diferente”, além de se tornarem pessoas “flexíveis e versáteis”, prontas para “viver o futuro”. Tais habilidades são vistas como exigências que “o processo de globalização vem impondo à nossa sociedade”, como pré-requisitos básicos para garantir sucesso “em um mundo moderno e competitivo”. É nesse sentido que a escola está “ensinando para o mundo”. Vale ressaltar que as seleções de trechos e interpretações feitas neste trabalho são de caráter subjetivo, adquirindo maior ou menor grau de importância segundo o olhar da autora. Deixam-se as portas abertas, no entanto, para que o leitor pouco convencido faça suas próprias leituras. Referências BAKER, C. Foundations of bilingual education and bilingualism. Clevedon, UK: Multilingual Matters Ltd., 2006. CANAGARAJAH, A.S. Adopting a critical perspective on pedagogy. In: CANAGARAJAH, A.S. Resisting Linguistic Imperialism in English Teaching. Oxford: O.U.P., 1999, P. 9-37. CELANI, M. A. Culturas de aprendizagem: risco, incerteza e educação. In: MAGALHÃES, M. C. C. (Org.). A formação do professor como um profissional crítico. São Paulo: Mercado das Letras, 2004. p. 37-56. CONTRERAS, J. Contradições e contrariedades: do profissional reflexivo ao intelectual crítico. In: CONTRERAS, J. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002, p. 133-188. COX, M. I. P.; ASSIS-PETERSON, A. A. 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