8VIDA & FAMÍLIA A GAZETA DOMINGO, 26 DE JULHO DE 2015 www.albertogoldin.com.br [email protected] CONSULTÓRIO ALBERTO GOLDIN “Sou casado há 20 anos com Dominique e temos dois filhos. Aos 10 anos de casados, caiu de paraquedas na nossa vida um jovem de 17 anos, dizendo ser meu filho. Fiz o exame de DNA e se confirmou, gerado antes de conhecer Dominique. O problema é que ela não o aceita. Nem que eu pronuncie seu nome. Isso a tem atormentado, e ela faz com que tenhamos um conflito diário. Dia após dia, é um Se seu desejo se realizasse e o filho de Tiago se afastasse, mesmo assim, sua existência seria irrefutável verdadeiro inferno desde a sua descoberta. Não pronuncio seu nome em casa, e preservo meu casamento. Para ela, soa como uma profunda traição só o fato de pensar nele. Minha esposa perdeu o seu pai quando tinha 2 anos de idade e sempre chorou sua ausência. O que devo fazer? Como posso proceder?” — TIAGO RIO DE JANEIRO, RJ Estado de negação Quando um poderoso empresário foi preso por corrupção, os jornais e revistas acompanharam o escândalo. Provas irrefutáveis o acusavam, como vídeos, recibos, depósitos em contas bancárias, etc. Por isso, a declaração do seu advogado pareceu muito estranha. Ele simplesmente declarou que seu cliente era inocente e que jamais havia cometido qualquer ilegalidade. Tudo não passava de um mal-entendido, nada mais. Realidade de um lado, negação do outro. Na verdade, não surpreende, pois esta é a função de um advogado: refutar, destruir vestígios do delito, negando, enfaticamente, a própria existência dos fatos. Por sua vez, Dominique, esposa de Tiago, age da mesma forma. Nega, sistematicamente, a existência do jovem filho, que, para ela, não existe nem jamais existiu. Não é apenas uma recusa a conviver com ele ou incorporá-lo à família. É algo ainda maior. É negar sua existência. O advogado e Dominique assumem a pesada tarefa de recusar a realidade mesmo sabendo que a realidade não some discretamente. Pelo contrário, ela reaparece, insiste, repete-se, incansável até seu reconhecimento definitivo. Por isso, Dominique reagiu violentamente não apenas na presença do jovem, mas sempre que ele é mencionado em qualquer conversa. Será que, por ciúme, não aceita que Tiago tenha tido um relacionamento com outra mulher no passado? Assim, seu filho é a prova viva desse relacionamento, motivo pelo qual Dominique se propõe a mudar o passado. Se seu desejo se realizasse e o filho de Tiago se afastasse definitivamente, mesmo assim, sua existência seria irrefutável. Nós conseguimos entender e justificar as declarações do advogado defensor, mas as motivações de Dominique continuam sendo um mistério. Um fato relevante, entretanto, é que ela perdeu o pai quando tinha 2 anos, de modo que, para ela, a paternidade é um tema delicado. Acabo de me lembrar de uma paciente que também ficou órfã na infância e, contra toda lógica, irritada, acusava o pai morto de tê-la abandonado. Será que Dominique compartilha dessa ideia? Se for o caso, uma solução seria provar que seu pai não lhe abandonou por vontade própria (de fato, sua morte não foi voluntária), mas o fez porque “alguém” o impediu, exatamente como ela impede Tiago de se aproximar do seu filho. Sei que é uma hipótese difícil de provar, mas, se fosse correta, explicaria a radical proibição que pesa sobre Tiago, que, embora ame seu filho, não pode se aproximar dele porque “alguém” o proíbe. E então percebemos que Dominique e o jovem têm, em comum, um pai ausente e impedido de manifestar seu amor, sustentando assim a fantasia infantil de Dominique. A tese que explica sua atitude tão inútil quanto arbitrária é que um pai jamais abandonaria seu filho e, se o faz, é simplesmente por uma força maior, porque “alguém”, a própria Dominique, o impede. O advogado muda a realidade para defender seu cliente, Dominique o faz para autorizar uma garota órfã a sonhar que seu pai, sempre ausente, a amou e, se pudesse, estaria para sempre ao seu lado. Alberto Goldin é psicanalista. Os nomes dos leitores são alterados para preservar o anonimato, as cartas devem ser enviadas para o email [email protected] ou para o site www.albertogoldin.com.br