Notas sobre o Barroco e o Urbanismo Ibero-Americano Dr. Ricardo Hernán Medrano* Universidade Presbiteriana Mackenzie 1 – Introdução Este trabalho tem como objetivo estudar alguns aspectos do urbanismo iberoamericano desde uma perspectiva de visão de conjunto, e realizar algumas reflexões sobre a conceituação do barroco como parte desta visão. Na historiografia sobre o urbanismo ibero-americano há uma produção significativamente maior envolvendo ou o urbanismo hispano-americano ou o luso-brasileiro. Particularmente em 1992, no caso espanhol, e 2000, no caso português, tivemos uma enorme produção que sintetiza o conhecimento acumulado sobre uma das experiências humanas mais notáveis na história. Esta pesquisa tem também um objetivo maior, a longo prazo, que é o de contribuir à construção de um quadro conjunto da formação da rede urbana entre o continente europeu e o americano. O primeiro trabalho no Brasil a tratar do urbanismo realizado por portugueses e espanhóis na América foi Sérgio Buarque de Holanda, no clássico “Raízes do Brasil”, publicado em 1936. Neste trabalho, Sérgio Buarque, no capítulo “O semeador e o ladrilhador”, procura caracterizar como portugueses e espanhóis atuaram de forma diferente. O semeador é o português e o ladrilhador é o espanhol. Transcrevemos um dos trechos mais conhecidos da obra, onde estas mentalidades são evidenciadas: * Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que apoiou a participação neste congresso. Fizemos uma pesquisa neste sentido durante o doutorado, trabalhando com o período da virada do século XIX para o XX. A tese intitula-se “São Paulo e Buenos Aires: Urbanismo e Arquitetura (1870-1915)”, foi orientada pelo prof. Dr. Nestor Goulart Reis, e defendida na Universidade de São Paulo em 2003. Ricardo Hernán Medrano - 1153 “A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra “desleixo” - palavra que o escritor Aubrey Bell considerou tão tipicamente portuguesa como “saudade” e que, no seu entender, implica menos falta de energia do que uma íntima convicção de que ‘não vale a pena...’” Outro autor conhecido que partilhou de opinião semelhante é Robert Smith, que em 1955 dizia: “A ordem era ignorada pelos portugueses como assinalavam deliciados os viajantes. As suas ruas, ironicamente chamadas “direitas”, eram tortas e cheias de altibaixos, as suas praças de ordinário irregulares. As casas agarravam-se às vertentes alcantiladas das colinas em torno de uma teia de caminhos escuros, escadas e passadiços, tendo os andares superiores salientes, como na Europa. Desta sorte, em 1763, quando deixou de ser a capital do Brasil, era a Bahia uma cidade tão medieval quanto Lisbôa na véspera das grandes reformas de Pombal. Nada inventaram os portugueses no planejamento de cidades em países novos. Ao contrário, dos espanhóis, que eram instruidos por lei a executar um gradeado regular de ruas que se entrecruzam em torno de uma praça central, os portugueses não mantinham regras, exceto a antiga, da defêsa através da altura. Suas cidades cresceram pela vinculação gradual de núcleos isolados, formados pela fundação individual e arbitrária de capelas, casas ou mercados. A posição destes edifícios ditava as trajetórias irregulares seguidas pelas ruas que os uniam.” No caso de Sérgio Buarque, é importante destacar que em “Raízes do Brasil” ele não tinha como objetivo estudar o urbanismo. O que ele procurava era tentar interpretar o Brasil, e em especial encontrar as razões pelas quais o Brasil não havia dado ainda o salto para a modernidade. A comparação que realiza é parte do método de base weberiano que utiliza, visando à construção de tipos ideais. Em nenhum outro capítulo ele dedica espaço à comparação entre portugueses e espanhóis. Também é importante destacar que àquela época eram muito escassos os documentos, em especial iconográfico e cartográficos, disponíveis ou conhecidos para compreender a urbanização brasileira. Sérgio Buarque, nesse sentido, se distingue de Gilberto Freyre, para citar outro autor contemporâneo preocupado como os aspectos urbanos (“Sobrados e Mucambos” também é de 1936), já que evidencia a necessidade de superação de uma situ- HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 26a ed. p. 110. Grifo nosso. SMITH, Robert. Arquitetura Colonial. Salvador : Livraria Progresso Editora, 1955. p. 12. Grifo nosso. 1154 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano ação de base colonial. Gilberto Freyre, ao contrário, harmoniza os conflitos e as diferenças (como diria Carlos Guilherme Mota) e encontra uma fórmula conciliatória, que Braudel qualificou como “simpática” na primeira edição italiana de “Casa Grande e Senzala”. O primeiro questionamento conceitual a essa visão vem com a tese “Evolução Urbana no Brasil. 1500-1720”, de Nestor Goulart Reis, defendida em 1964. Nesta, o autor mostra que o fato de não existir no caso português uma prática sistemática de realizar traçados regulares como fizeram os espanhóis, não significava que não houvesse planejamento, ou em outras palavras, os portugueses tinham consciência do que estavam fazendo, mas como encontraram condições muito diferentes da Espanha, em especial o ouro e a prata, fizeram aquilo que era mais adequado. Esta situação muda radicalmente no século XVIII, como veremos adiante. Uma particularidade interessante dos núcleos urbanos do Brasil colonial é que praticamente não tinham vida cotidiana. Tudo se passava nos engenhos de açúcar. A vida nas vilas e cidades era sazonal, configurando um sistema paradoxal onde havia campo, mas não cidade. Nestor Goulart mostrou a relação entre a rede urbana brasileira e a européia, caracterizando o Brasil como uma retaguarda rural dos núcleos urbanos europeus. A utilização dos modelos europeus é relativizada, e a relação campo/cidade é substituída pela relação urbano/rural. Simultaneamente a este trabalho, surge escrita por Jorge E. Hardoy a obra “Ciudades Precolombinas”. Trabalhando em direção semelhante, verifica as limitações das conceituações correntes quando aplicadas às cidades pré-colombianas, entre elas os dez critérios propostos por Gordon Childe para diferenciar uma cidade de uma aldeia prévia. Embora Nestor Goulart tenha mostrado que a política urbana de Portugal era parte de um projeto consciente, que falta de regularidade não significava que não houvesse um projeto por trás, não era seu propósito fazer uma comparação entre o urbanismo hispano e luso-americano. A essa tarefa se dedicaram em diversas medidas alguns autores, como Paulo Santos, Ramón Gutierrez, Jorge E. Hardoy, Richard Morse, entre outros, mas entendemos que esta visão de conjunto ainda é um interessante campo em aberto. 2 – Urbanização e urbanismo no Brasil Como os dados atualmente disponíveis, podemos periodizar como foi o urbanismo colonial. O Brasil de 1500 a 1532 se caracteriza apenas pela atividade ex- A publicação original é REIS FILHO, Nestor. Goulart. Evolução Urbana do Brasil: 15001720. São Paulo, Pioneira, 1968. Em 2001 a Editora Pini Ltda. lançou uma 2ª edição revista e ampliada, já esgotada. HARDOY, Jorge Enrique. Ciudades Precolombinas. Buenos Aires, Ed. Infinito, 1964. A mesma editora publicou uma 2ª edição revista em 1999. Esta periodização baseia-se em trabalhos de Nestor Goulart Reis. Ver: MEDRANO, Ricardo Ricardo Hernán Medrano - 1155 trativa. De 1532 a 1549 pela criação das Capitanias Hereditárias, sem maior sucesso. Só duas capitanias vingaram, Pernambuco e São Vicente. O ano de 1549 marca a criação de um Governo Geral com o objetivo de centralizar e controlar mais diretamente a ocupação do Brasil. Bahia é também a primeira cidade fundada (1549), e sabe-se hoje que ela foi objeto de um projeto realizado em Portugal por Miguel de Arruda. O traçado, embora não absolutamente ortogonal, mostra uma razoável regularidade que é resultado também de sua adaptação ao terreno. Nos dizeres de Rafael Moreira, é a “capital ideal do Renascimento português”. Em 1580 há a Unificação das Coroas. Neste caso, Portugal passa a depender da Coroa Espanhola, e muda conseqüentemente a política, que tem agora como objetivo proteger a costa e desta forma impedir incursões território adentro que pudessem atingir as minas na Bolívia e Peru. Portugal passa a obedecer à Legislação Filipina, mas o urbanismo não assume as características das existentes em suas possessões, embora a uma maior regularidade seja perceptível, resultado também das exigências militares. São desse período São Luís (Maranhão), de 1614, Belém (Pará), de 1616. São Luís possui um traçado quase ortogonal, enquanto Belém possui ângulos formados pelas ruas que denotam terem sido traçados com instrumentos ou procedimentos técnicos. A partir da Restauração (1640) é criada a Companhia Geral do Comércio, e em Salvador a cidade alta é ocupada pelos proprietários de engenho, decadentes devido à concorrência das Antilhas, enquanto os portugueses natos ocupam a cidade baixa, dominando o comércio. O ano de 1693 marca uma inflexão profunda, já que é a data oficial da descoberta de ouro nas Minas Gerais. O século XVIII no Brasil é provavelmente o mais rico e sofisticado em termos urbanos. A partir da descoberta de ouro começa a formação de inúmeros núcleos em torno dos pontos de exploração. Surgiram assim importantes cidades que, se bem perderam com o tempo importância, constituem hoje alguns dos mais importantes patrimônios existentes. É o caso de Ouro Preto (antiga Vila Rica) que se formou pela junção de diferentes arraiais, que ao crescerem terminaram aglomerando-se. A praça Tiradentes formou-se pelo encontro dos fundos de dois arraiais, o do Pilar (dos portugueses) e o de Antônio Dias (dos pau- Hernán Resumos das aulas do Prof. Nestor Goulart Reis Filho na disciplina AUH 237 Urbanização e Urbanismo no Brasil I. Cadernos de Pesquisa do LAP 19. São Paulo, FAUUSP, 1997; REIS, Nestor Goulart. Notas sobre o Urbanismo no Brasil – Primeira parte: período colonial. Cadernos do LAP 8. São Paulo, FAUUSP, julho-agosto de 1995; REIS, Nestor Goulart. Notas sobre o Urbanismo no Brasil – Segunda parte: séculos XIX e XX. Cadernos do LAP 9. São Paulo, FAUUSP, setembro-outubro de 1995. MOREIRA, Rafael. O Arquiteto Miguel de Arruda e o Primeiro Projeto para Salvador. Cadernos do LAP 37. São Paulo, FAUUSP, janeiro-junho de 2003. Idem, ibidem. P. 48. ARAÚJO, Renata Malcher de. Cidades da Amazônia no século XVIII. Belém, Macapá e Mazagão. Porto, Faup, 1998. 1156 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano listas).10 Por volta de 1711 já está formada, constituindo-se no centro da cidade, nela sendo edificado o Palácio de Governo (iniciado em 1747) e a Casa de Câmara e Cadeia (1783), obra de seu Governador, Luís da Cunha Meneses. Muitas destas cidades têm um traçado característico: traçado e ocupações alinhadas, que persistiram no caso de Ouro Preto até os anos 1930/40 (figura 1). Mariana, desenhada pelo engenheiro militar Alpoim, e Diamantina, são exceção. Figura 1. Acima: “Mappa de Villa Rica”, ca. 1775-1800. Abaixo, à esquerda: fotografia da Matriz N. S. da Conceição tirada nos anos 1930/40. À direita, o mesmo ângulo em fotografia atual. O traçado linear que se observa no mapa e na fotografia antiga já não existe mais, conseqüência da ocupação das colinas. Fontes: (1) REIS, Nestor Goulart. Imagens das Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo, Edusp/Imprensa Oficial do Estado, 2000. (2) Acervo IFAC – Universidade Federal de Ouro Preto. (3) Foto Ricardo Hernán Medrano, 2006. Outro caso ligado à mineração é Goiás, fundada em 1726 como o Arraial de Sant’Anna, e que foi capital do estado de Goiás até que a construção de Goiânia. Assim como Ouro Preto deve sua fortuna ao ouro e é também Patrimônio Cultural da Humanidade.11 VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica. São Paulo, Perspectiva, 1977. As cidades ou áreas urbanas brasileiras declaradas Patrimônio Mundial da Humanidade são: São Luis, Olinda, Salvador, Ouro Preto, Diamantina, Congonhas do Campo, Brasília, Goiás e São Miguel das Missões. 10 11 Ricardo Hernán Medrano - 1157 Com Pombal (1750-1777) consolida-se um projeto de ocupação do território sofisticado e sob inspiração iluminista. É um período marcado pela intensa fundação de vilas e cidades, a maioria em áreas do interior, e tinha como objetivo a ocupação do território.12 Pensa-se o Brasil como um todo, com atividades complementares entre as diversas partes. Especial importância é dada à bacia amazônica, designando seu próprio irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, como governador do Estado do Grão Pará e Maranhão. Muitas destas vilas e cidades têm um traçado absolutamente regular, e seu urbanismo é pensado não apenas como traçado, mas como aparência, através de regras de composição das fachadas.13 Em Portugal estas características estarão presentes em uma obra notável, que é a reconstrução de Lisboa depois do terremoto de 1755, como também em Vila Real de Santo Antônio, no sul do país. No Brasil estas características perpassarão o período pombalino e continuarão até a vinda da Família Real (figura 2). Figura 2. Acima: “Plano de Villa Bella da Santíssima Trindade Capital da Capitania de Matto Grosso”, de 1789. A cidade, fundada em 1752, chegou a ser um importante núcleo urbano até deixar de ser capital. Possui um traçado absolutamente regular. Abaixo: foto de Vila Real de Santo Antônio (17741776), no sul de Portugal, que reflete com precisão as características do urbanismo pombalino. Fontes: (1) REIS, Nestor Goulart. Imagens das Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo, Edusp/Imprensa Oficial do Estado, 2000. (2) Foto Ricardo Hernán Medrano, 2006. DELSON, Roberta Marx. Novas Vilas para o Brasil-Colônia. Planejamento espacial e social no século XVIII. Brasília, Ed. Alva-Ciord, 1997; FLEXOR, Maria Helena Ochi. As vilas pombalinas do século XVIII: estratégias de povoamento. In: V Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. São Paulo, PUCCAMP, 1998. 13 A respeito deste conceito ver: REIS, Nestor Goulart. Notas sobre História da Arquitetura e aparência das vilas e cidades. Cadernos de Pesquisa do LAP 20. São Paulo, FAUUSP, julhoagosto de 1997. 12 1158 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano 3 – Urbanização e Urbanismo Hispano-americano Nos dois primeiros séculos a Espanha promove um processo de ocupação do território intenso e notável pela sofisticação atingida. A característica mais marcante, e o que mais impressionou, foram as cidades, a maioria seguindo um mesmo padrão de traçado ortogonal. Como havíamos ressaltado antes, a Espanha, ao contrário de Portugal, encontrou grandes riquezas, o que justificou a empresa realizada. Mostra dessa diferença e a quantidade de núcleos urbanos fundados por ambas metrópoles: no século XVI foram 427 pela Espanha e 14 por Portugal. No século 17 foram respectivamente 156 e 51. E no século XVIII e Espanha fundou 370 vilas e cidades enquanto Portugal fundou 118. No caso português proporcionalmente o período mais fértil foi durante a época pombalina, quando entre 1750 e 1777 foram fundados 60 núcleos urbanos.14 Como mostra Nicolini15 o modelo que foi largamente utilizado nas cidades hispano-americanas foi o resultado de uma experiência acumulada, de tal sorte que em 1573, quando Felipe II promulga as Leis de Descobrimento e População, já haviam sido fundadas mais de 200 cidades. Em efeito, as leis de 1573 introduziram uma sofisticação que raramente pode ser observada na prática, prevalecendo o modelo “clássico” do tabuleiro de xadrez com a ausência de uma ou mais quadras, que formam a praça. O modelo previsto nas leis pressupunha uma hierarquização e qualidades espaciais que as emparentam a um traçado que poderíamos referenciar como barroco. As cidades que mais se aproximam do previsto nas leis são aquelas fundadas no atual Uruguai, dentro da política de Carlos III de ocupação de territórios despovoados (figura 3).16 Para o Brasil usamos os dados de: AZEVEDO, Aroldo de. Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras, Boletim No 208, 1956. Para o caso espanhol, os dados publicados em: CEHOPU. La ciudad hispanoamericana. El sueño de un orden. Madri, CEHOPU, 1989. Neste último caso, alguns pesquisadores detectaram algumas imprecisões nos dados, o que compromete sua utilização. Entendemos, porém, que para os fins específicos deste trabalho, permitem caracterizar em ordem de grandeza a diferença entre ambas colonizações. 15 NICOLINI, Alberto. La traza de la ciudad hispanoamericana em el siglo XVI. Buenos Aires, Anales del IAAIE/FADU/UBA, 29. 16 DE PAULA, Alberto. Las nuevas poblaciones en Andalucía, California, y el Rio de la Plata 1767-1810. Buenos Aires, IAAIE/FADU/UBA, 2000. 14 Ricardo Hernán Medrano - 1159 Figura 3. À esquerda: Plano de fundação da cidade de Mendoza, Argentina (1561). Trata-se, segundo Nicolini, do plano fundacional mais antigo conhecido que documenta o modelo urbano que foi reiteradamente repetido na América Hispânica. À direita: Concepción de Minas (Uruguai), fundada em 1783. Trata-se, segundo De Paula, da cidade que mais se aproxima do modelo das Ordenanças de 1573. Nas fases da cidade hispano-americana não há rupturas tão evidentes como no caso luso, mas uma maior continuidade.17 Ao fim do primeiro século de ocupação já estavam praticamente definidos os pontos principais da rede urbana, bem como o arcabouço institucional correspondente. O século XVII marca o período de acomodação desses sistemas, com a consolidação das fundações e traslados nas situações em que não houve os resultados esperados. Este processo avançou durante o século XVIII em alguns casos. No século XVIII ocorre também uma maior subdivisão dos lotes das quadras, inicialmente quatro por quadra, implicando em maior densidade, como também a ampliação da quadricula, usualmente em torno da praça maior, assim como a construção de novos edifícios públicos. A par de um traçado bastante definido, as construções que o completam e que lhe dão um caráter espacial foram sendo feitas progressivamente. Exceto as cidades mais importantes, como Lima e México, o aspecto consolidado destas cidades somente será realidade na segunda metade do século XVIII. É interessante notar que os estudos sobre a cidade hispano-americana privilegiam principalmente os estudos sobre a cidade com traçado regular. No caso portu- DE PAULA, Alberto. Las nuevas poblaciones en Andalucía, California, y el Rio de la Plata 1767-1810. Buenos Aires, IAAIE/FADU/UBA, 2000. 17 1160 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano guês, ao contrário, conhece-se muito mais sobre as cidades cuja origem denota menor rigor geométrico (embora nem sempre ausente em diferentes graus). Mas, como já mostrados, há uma enorme quantidade de cidades fundadas no século XVIII que possuem um traçado regular. Entretanto, ao contrário do caso espanhol, nenhuma dessas cidades se transformou em um núcleo comparável em importância a aqueles fundados no Brasil nos séculos XVI e XVII, como Salvador, Rio de Janeiro, Recife, Olinda, São Luís, Belém e São Paulo. O contrário ocorre do outro lado da fronteira colonial: as principais cidades surgiram desde muito cedo já com o plano indiano, algumas inclusive como superposição às cidades existentes, casos de Lima México. 4 – As Missões Jesuíticas do Paraguai Um caso particular e interessante são as Missões Jesuíticas do Paraguai. Foi uma experiência que produziu importantes resultados arquitetônicos e urbanísticos, parte de um projeto com singulares características sociais, e que gerou dezenas de publicações.18 Na fase consolidada o território jesuítico era composto por trinta reduções, todas elas essencialmente com o mesmo urbanismo. Embora o modelo utilizado pareça seguir as Leis das Índias, na prática configuram um espaço que reflete uma estrutura social absolutamente distinta. Nesta, dois jesuítas e alguns milhares de guaranis (atingindo picos excepcionais de até 8000 almas) interagiam com essa configuração urbana intensamente, que era palco de procissões, festas e rituais. Como mostra Gutierrez, ao invés do quarteirão é o solar, a casa missioneira, o elemento urbano conformador.19 A planta dessas reduções explica apenas parte deste espaço, cujas características barrocas, seu poder de persuasão, era enorme: as vias principais desembocavam na praça, e a igreja e o colégio, situados acima do nível da praça, possuíam uma decoração e sofisticação muito maior que o restante das construções. Havia também capelas posas que sacralizavam os trajetos naquele traçado (figura 4). Além das reduções em si, formavam um território fechado, muito bem organizado, no qual havia um sistema de produção complementar entre as reduções e uma rede de caminhos melhor estruturados do que no lado espanhol. Por exemplo: FURLONG CARDIFF, Guillermo, S.J. Misiones y sus Pueblos de Guaraníes. Buenos Aires, 1962; GUTIERREZ, Ramón. As Missões Jesuíticas dos Guaranis. Rio de Janeiro, Sphan/Fundação Nacional Pró-Memória, 1987. 19 GUTIERREZ, Ramón. Estructura Socio-política, Sistema Productivo y Resultante Espacial en las Misiones Jesuíticas del Paraguay durante el Siglo XVIII. Resistencia, UNNE, 1974. 18 Ricardo Hernán Medrano - 1161 Figura 4. Acima: reconstituição da redução de São João Batista, realizada no século XIX. Abaixo: vista atual da igreja e praça da redução de São Miguel das Missões. Notar que as crianças se apropriam do espaço da praça da mesma forma como é caracterizada na pintura. Fontes: (1) FURLONG CARDIFF, Guillermo, S.J. Misiones y sus Pueblos de Guaraníes. Buenos Aires, 1962. (2) Foto Ricardo Hernán Medrano, 2004. 5 – O espaço barroco A cidade barroca européia é usualmente definida como a cidade que reflete uma nova ordem social, a formação dos Estados-nação, que exigem uma cidade capital para abrigar suas instituições. Segundo Pierre Lavedan20 ela se caracteriza por três aspectos: a linha reta, a perspectiva monumental e a uniformidade. A cidade passa a contar com “vistas”, que permitem uma observação em perspectiva em direção a um ponto focal. O período que melhor caracteriza a consolidação da cidade barroca é o século XVIII, mas seus antecedentes podem ser situados pelo menos um século antes, e seus reflexos perpassarão o século XIX em muitos casos. Numerosos exemplos conhecidos podem ser citados: desde um projeto precursor como as reformas do papa Sixto V (1585-1590), Richelieu, Versailles, Aranjuez, Nancy. Nos conjuntos urbanos podemos mencionar a Place Vendôme, a Plaza Mayor de Madri, os projetos de John Nash, a urbanização de Regent Park, a Praça do Comércio em Lisboa. LAVEDAN, Pierre. Histoire de L’Urbanisme: Renaissance et Temps Modernes. Paris, Henri Laurens, 1941. 20 1162 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano Uma das interpretações existentes para o caso do urbanismo barroco no Brasil é de Nestor Goulart Reis, e refere-se aos conjuntos urbanos.21 Estes surgem no século XVIII em algumas cidades brasileiras, como Salvador, São Luís, Alcântara, Belém, Recife e Rio de Janeiro. São edifícios que seguem normas de construção que, sem apresentarem características individuais notáveis, formam interessantes conjuntos urbanos. O autor os associa a conjuntos barrocos como os da Place Dauphine, o conjunto da rua Rivoli, Versailles e o projeto para a Baixa Pombalina. Fotografias antigas registram estes conjuntos, particularmente os de Salvador, que impressionam pela dimensão e qualidade. Também assinala o autor que estes conjuntos já existiam na Bahia quando da reconstrução de Lisboa, devido ao terremoto de 1755, e portanto serviram de referência para essa gigantesca obra. Isto permite relativizar o conceito de centro e periferia que se utiliza em muitas ocasiões para descrever a arquitetura e o urbanismo Ibero-americano.22 A rigor, para o caso espanhol, o urbanismo proposto pelas Ordenanças de 1573 contêm elementos que caracterizam perspectivas, como as ruas saindo dos quatro lados da praça. Entretanto, como já comentamos, o modelo largamente utilizado na prática é mais simples. E não possui em geral perspectivas focais. De fato, não existe nenhuma cidade que contenha todos as características implícitas nas leis de 1573. A cidade que mais se aproxima é Concepción de Minas, no Uruguai, já no final do século XVIII (1783).23 Na figura 3 (à direita) temos uma planta desta cidade, onde podemos ver que a igreja (3) não está localizada na praça (1), como o Cabildo (2), mas afastada um quarteirão com acesso por uma rua que desemboca no meio da praça. Os outros três lados da praça possuem ruas com estas características. A cidade regular espanhola possuía uma área central, com quadras e lotes, envolta por uma área para expansão e uso de seus habitantes, o ejido. O mesmo acontece com a cidade portuguesa, que possuía o rossio, com funções semelhantes. Ambos modelos traziam implícitas a idéia da expansão indefinida, lograda pela multiplicação de seus elementos urbanos. O caso das Missões Jesuíticas é diferente: as reduções quando atingiam uma certa população eram subdivididas. É conhecido o relato do padre Sepp sobre a subdivisão de São Miguel para formar São João Batista.24 As justificativas apontadas são várias. REIS FILHO, Nestor Goulart. Notas sobre o urbanismo barroco no Brasil. São Paulo, Fauusp, 1994. (Cadernos do LAP 3). 22 Este argumento foi utilizado para o tombamento pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - de conjuntos urbanos em São Paulo e Porto Alegre. 23 DE PAULA, Alberto. Las nuevas poblaciones en Andalucía, California, y el Rio de la Plata 1767-1810. Buenos Aires, IAAIE/FADU/UBA, 2000. 24 “Reunidos os índios principais, expus-lhe o pensamento do R. Pe. Provincial: a saber, que se devia dividir a povoação por causa do grande número de habitantes, os quais já nem a igreja comportava; nem dois padres poderiam instruir convenientemente o povo na doutrina cristã, quanto menos um só; não podiam governá-los por mais tempo com facilidade; além disso, começavam a faltar nos arredores os campos para o cultivo, pois tornavam-se estéreis com o contínuo amanho de tão longos anos; mesmo a maior parte deles estava tomado pelas formigas que devastavam tudo, não eram bem adequados para as sementeiras, etc.. 21 Ricardo Hernán Medrano - 1163 Entretanto, dadas as características barrocas do espaço missioneiro, qualquer eventual expansão não seria possível sem um grande prejuízo para o significado daquele espaço. Esse modelo não era expansível como os das cidades “normais”. A expansão significaria outro modelo, e talvez outra organização social. Já mostramos em trabalhos anteriores25 que a dimensão da praça permite, em princípio, que a totalidade da população de uma redução possa ali se reunir. Isto mostra que existe uma relação entre a quantidade da população e os resultados de persuasão possíveis com aquele espaço. A subdivisão, nesta perspectiva, não é apenas uma questão funcional. Mas é necessária para a persistência e manutenção de um espaço barroco com características bem definidas. Entretanto, alguns autores buscam uma conceituação de cidade barroca que transcendam esses referenciais europeus. É o caso de Giovanna Del Brenna, que, baseada em descrições de Paulo Santos,26 pondera que o caráter barroco das cidades brasileiras está na forma como edifícios, chafarizes, praças e outros espaços livres se relacionam com a paisagem, configurando o cenário.27 Este conceito é retomado por José Pessoa, que trilhando pela mesma linha, mostra como os monumentos direcionam a formação da malha urbana, detalhando também outros aspectos como os jardins, o mobiliário urbano e as pontes.28 No caso hispano-americano, destaca-se a idéia de que o barroco na América não é permeado por uma dialética do conflito, como na Europa, mas pela interação cultural, assinalando assim uma primeira grande diferença. Ramon Gutierrez elenca diversos exemplos onde este diálogo que, pautado também por algumas afinidades culturais entre europeus e americanos, produz manifestações que somente pode ser entendidas a partir desse processo.29 Entre os elementos destacados está a importante participação de “corporações” de artesão e outros ofícios nas obras de arquitetura e as artes. As festas realizadas nas Emigrassem, portanto, de suas vivendas e barracas...”. SEPP, Antonio S.J. Viagem às Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos. São Paulo, Edusp, 1980. p. 199. 25 MEDRANO, Ricardo Hernán. Fronteiras no período colonial: arquitetura, urbanismo e cultura nas Missões Jesuíticas do Paraguai. Trabalho apresentado no Simpósio Internacional Artes, Ciencias y Letras en la América Colonial. Buenos Aires (Argentina). 2005. Biblioteca Nacional; MEDRANO, Ricardo Hernán. A ocupação das fronteiras e o diálogo cultural: arquitetura e urbanismo nas Missões Jesuíticas do Paraguai. Trabalho apresentado no II Seminário Internacional de História. O espaço público: configuração de olhares. (Maringá, PR). 2005. 26 SANTOS, Paulo. Formação de Cidades no Brasil Colonial. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2001. 27 DEL BRENNA, Giovanna Rosso. Medieval ou Barroco? Proposta de leitura do espaço Urbano Colonial. Belo Horizonte, Revista Barroco 12, 1982/83. p. 141-146. 28 PESSÔA, José. Cidade barroca ou tardo medieval? A arquitetura na definição dos traçados urbanos da América portuguesa. Sevilla, Actas del III Congreso Internacional del Barroco Americano, 2000. p. 1133-1140. 29 GUTIERREZ, Ramón. Repensando el Barroco Americano. Sevilla, Actas del III Congreso Internacional del Barroco Americano, 2000. p. 46-54. 1164 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano cidades, que implicava na ritualização do espaço, inclusive com a colocação de cruzes, vias sacras, altares, retábulos efêmeros e outros elementos que referenciam o espaço urbano para cada ocasião. Dá-se neste caso o “cenário para a festa coletiva”, que inclui também tapetes, peças de prata ou cerâmica que adornam balcões e fachadas, que configuram uma “vestimenta efêmera”. Esta conceituação inclui também a persistência de tradições culturais pré-colombianas que resultavam na utilização ritual dos espaços através de referências que não eram as da cidade espanhola. Esta posição é reiterada também por Viñuales e Nicolini.30 Procuramos com estas breves notas estabelecer algumas relações entre o urbanismo ibero-americano, que caracterizamos a partir das referências espanhola, portuguesa e jesuíta, e algumas correntes de explicação do espaço barroco. Um maior aperfeiçoamento conceitual permitirá construir modelos teóricos que ampliem a visão de conjunto deste tema. 6 – Bibliografia Básica ALOMAR, Gabriel (coord.). De Teotihuacán a Brasilia. Estudios de História Urbana Iberoamericana y Filipina. Madrid, Instituto de Estudios de Administración Local, 1987. ARAÚJO, Renata Malcher de. Cidades da Amazônia no século XVIII. Belém, Macapá e Mazagão. Porto, Faup, 1998. AZEVEDO, Paulo Ormindo. Urbanismo de traçado regular nos dois primeiros séculos de colonização brasileira – origens. In: CARITA, Helder; ARAÚJO, Renata (coord.). Colectânea de Estudos Universo Urbanístico Português 1415-1822. Lisboa, CNCDP, 1998. AZEVEDO, Aroldo de. Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras, Boletim No 208, 1956. CEHOPU. La ciudad hispanoamericana. El sueño de un orden. Madri, CEHOPU, 1989 CHUECA GOITIA, Fernando. Breve historia del urbanismo. 1a ed. Madrid, Alianza Editorial, 1989. DELSON, Roberta Marx. Novas Vilas para o Brasil-Colônia. Planejamento espacial e social no século XVIII. Brasília, Ed. Alva-Ciord, 1997. NICOLINI, Alberto. La ciudad Hispanoamericana en los siglos XVII y XVIII. Sevilla, Actas del III Congreso Internacional del Barroco Americano, 2000. p. 1085-1100. Na obra: GUTIÉRREZ, Ramón (coord.), Barroco Iberoamericano de los Andes a las Pampas, Barcelona, Madrid, Lunwerg, 1997, podemos encontrar diversos estudos de caso sobre esta questão. Alguns são de autoria de Graciela Viñuales. 30 Ricardo Hernán Medrano - 1165 DEL BRENNA, Giovanna Rosso. Medieval ou Barroco? Proposta de leitura do espaço Urbano Colonial. Belo Horizonte, Revista Barroco 12, 1982/83. p. 141-146. DE PAULA, Alberto. Las nuevas poblaciones en Andalucía, California, y el Rio de la Plata 1767-1810. Buenos Aires, IAAIE/FADU/UBA, 2000 FLEXOR, Maria Helena Ochi. As vilas pombalinas do século XVIII: estratégias de povoamento. In: V Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. São Paulo, PUCCAMP, 1998. FURLONG CARDIFF, Guillermo, S.J. Misiones y sus Pueblos de Guaraníes. Buenos Aires, 1962. GUTIERREZ, Ramón. As Missões Jesuíticas dos Guaranis. Rio de Janeiro, Sphan/ Fundação Nacional Pró-Memória, 1987. GUTIERREZ, Ramón. 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