Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
DOMINAÇÃO MASCULINA E PERCURSOS DA FORMAÇÃO DO BRASIL NO
ROMANCEIRO SERGIPANO, DE JACKSON DA SILVA LIMA.
Antonio Marcos dos Santos Trindade1
Matais, ó marido meu,
A morte eu mereci,
Com meu marido na cama,
Meu Deus! Eu não conheci.
(D. Marina, Estância-SE)2
1.
INTRODUÇÃO - DOS ROMANCES E SUAS NARRADORAS
Os versos em epígrafe, do rimance tradicional originário da península ibérica
conhecido como Bernal Francês, estão sendo ouvidos e recolhidos de D. Marina, em São
Cristóvão-SE no ano de1971, pelo folclorista sergipano Jackson da Silva Lima, cuja
recolha final resultará em seu premiado livro, publicado em 1977, O Folclore em Sergipe
– I romanceiro. (LIMA, 1977). Como apresentação antecedente ao romance, Silva Lima
explica que: “Para
Teófilo Braga, sempre consciencioso em suas afirmações, este
romance não passa de uma simples fusão de dois outros constantes da tradição
espanhola, Adultera Castigada e El Palmer, ambos registrados no Romanceiro General
(...). (LIMA, 1977: p. 86).
Tanto este romance, como também dois outros mais, A. D. Infanta (Bela Infanta) e
D. Martinho de Avisado (Donzela que vai à guerra), são o suporte textual no qual nos
apoiaremos para engendrarmos nossa reflexão sobre dominação masculina3, tradição
luso-brasileira e percursos da formação do Brasil. Com efeito, o último desses romances,
D. Martinho de Avisado (Donzela que vai à guerra), é a estória da donzela que tanto
fascinou o escritor Guimarães Rosa, escritor marcante e decisivo4 para a literatura
brasileira. De seu romance de 1956 disse Ariano Suassuna: “O romance Grande sertão:
1Mestrando
em Estudos Literários pela UFS. E-mail: [email protected].
LIMA, Jackson da Silva. O Folclore em Sergipe, I: romanceiro. Rio de Janeiro, Cátedra; Brasília, INL, 1977. p. 92.
3 Dominação masculina aqui é entendida, seguindo-se os ensinamentos de Pierre Bourdieu, para quem tal conceito
encerra um processo de des-historicização da dominação, operado pelos aparelhos ideológicos Estado, família, igreja,
escola etc, a partir de “um longo trabalho coletivo de socialização do biológico e de biologização do social (...)”.
(BOURDIEU, 1999: p. 9).
4 Uso o termo “decisivo”, pensando em Antônio Candido e em seu Formação da Literatura Brasileira (momentos
decisivos), (CANDIDO, 1997). Embora, aí, o autor tenha como recorte ir das origens até o Romantismo, o termo se aplica
perfeitamente bem, em relação a Guimarães Rosa e seu momento histórico-literário, pela importância do autor e do
momento nos rumos das discussões sobre o pensar o Brasil e sua representação, sua identidade, suas origens e seus
conflitos intestinais.
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veredas, de João Guimarães Rosa, teve como ‘guião’ de seu enredo, um desses
romances ibéricos sobreviventes no Sertão, o da ‘Donzela que foi à Guerra’”.
(SUASSUNA, 2010: p.255).
Na verdade, Guimarães Rosa não usou a estória da Donzela Guerreira apenas
em Grande Sertão: veredas, mas, como mostra Walnice Nogueira Galvão, (GALVÃO,
1998: pp. 29-44), em pelo menos seis estórias, nos livros Corpo de baile, Primeiras
estórias e Sagarana. Silva Lima nos informa que o romance da donzela guerreira é de
origem castelhana, mas “Já no último quartel do século XVI era cantado pelas camadas
populares, em Portugal, sob a epígrafe ‘O Rapaz do Conde Daros, todo ele em
castelhano, numa prova inequívoca de sua procedência espanhola.” (LIMA, 1977, p. 47).
Claro está que de Portugal ele chega ao Brasil5 no período da colonização. É
durante esse período que aqui se vai gestando o corpo de uma tradição popular. Da
confluência do colonizador ibérico, do braço escravo africano e do índio nativo, dos quais
resultará a figura do mestiço, no processo de mestiçagem que aqui se operou, e que
ainda se opera, mas que teve como momentos decisivos os três primeiros séculos da
colonização. Ensina Sílvio Romero6 em Estudos sobre a poesia popular do Brasil:
O europeu foi o concorrente mais robusto por sua cultura e o que deixou
mais tradições. No século XVI, pois, por uma lei de evolução que dá em
resultado antecederem as formas simples às mais compostas, as
canções e contos populares das três raças ainda corriam desagregados,
5A
esse respeito esclarece Camara Cascudo: “Todos os romances populares no Brasil vieram de Portugal. Foi um gênero
que resistiu até princípios do século XX. Cada ano diminui o número dos que sabem recordar algumas estrofes, cada vez
mais interrompidas pelos hiatos da memória. Um romance ou rimance completo já é uma impossibilidade. Há uns bons
setenta anos (ele está escrevendo isso em 1949) que as crianças não adormecem ao som da estória que relembra a má
tenção da Bela Infanta ou o martírio de Iria a Fidalga. [...].”, (CASCUDO, 1984, pp. 208-209). A pesquisa de Silva Lima,
porém, sendo feita, a maior parte dela em Sergipe, mas também em Alagoas, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, na
década de 1970 – a primeira parte levou dois anos, de 1970 a 1972, quando ele é laureado pela Campanha de Defesa
do Folclore Brasileiro (CDFB) - atual CNFCP (Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular) - do então Ministério da
Educação e Cultura e, estimulado pela láurea, amplia por mais dois anos a coleta -, tal pesquisa, dizia-se, ainda
consegue coletar os rimances acompanhados de música! Silva Lima se congrega ao maestro Antonio Carlos Plech e aos
músicos Miguel Alves e Marena Isdebski Salles para oferecer aos pesquisadores musicais, como o fora Mário de
Andrade, as solfas de boa parte da coleta.
6 Nesse livro de 1888, pioneiro nos estudos sobre a poesia popular no Brasil, Romero levanta a tese da figura do mestiço
como principal fator, ao lado do português, na formação da cultura brasileira. É claro que Sílvio Romero não esteve
imune às teorias raciais cientificamente racistas de seu tempo. Mas suas ideias foram seminais para, por exemplo,
Gilberto Freyre. Ouçamos o que nos diz Antonio Candido a esse respeito no seu O Método Crítico de Sílvio Romero,
publicado inicialmente, em 1945, como tese universitária: “[...] pode-se dizer que estão (nesse livro Estudos sobre a
poesia popular do Brasil) os germens das ideias que, cinquenta anos mais tarde, serão desenvolvidas e devidamente
fundamentadas, à luz do progresso científico, na grande obra que é Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre. [...] É
realmente estranho, e serve para mostrar o mundo de ideias em choque que Sílvio trazia em si, o fato de que, sendo
uma das fontes de Gilberto Freyre, a sua obra seja também a precursora do antropossociologismo de Oliveira Viana e
sua teoria da branquificação, eivada de preconceito racial. (CANDIDO, 2006, pp. 96-99). Para maior aprofundamento
sobre o debate em fins do século XIX e início do XX sobre as teorias raciais, cf.: Memória coletiva e sincretismo
científico: as teorias raciais do século XIX e Da raça à cultura: a mestiçagem e o nacional. (In: ORTIZ, 1985: p.13-44).
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diferenciados. Nos séculos seguintes, sobretudo no XVIII e XIX, é que se
foram cruzando e amalgamando para integrar-se à parte, produzindo o
corpo de tradições do povo brasileiro. [...]. (ROMERO, 1977: pp. 38-9).
O processo de formação do povo brasileiro, como se vê, não se fez só da
miscigenação racial, questão tão cara aos pensadores de fins do século XIX e primeiras
décadas do XX, entre eles o próprio Sílvio Romero, mas também Euclides da Cunha,
Nina Rodrigues e Oliveira Viana. Fez-se também da miscigenação cultural. E não se
pode pensar o Brasil sem pensar esse processo cultural, que jaz na base de sua
formação étnica. A compreensão disso é a grande contribuição de Sílvio Romero aos
estudos sobre o folclore brasileiro.
Para Florestan Fernandes, os estudos folclóricos nascem de uma necessidade do
evolucionismo de Charles Darwin e Herbert Spencer e do positivismo de Augusto Comte,
da mesma forma que também nasce para atender a uma necessidade histórica da
burguesia: “determinar o conhecimento peculiar ao povo, através dos elementos
materiais e não materiais que constituíam a sua cultura”. (FERNANDES, 1978: p. 38 –
grifo do autor). Pois bem, para Florestan Fernandes, é exatamente essa a preocupação
de Sílvio Romero e da qual no Brasil ele se fez, sem dúvida, um dos maiores defensores.
Esses agrupamentos étnicos, ainda seguindo Florestan Fernandes, constituiriam o
“povo”, ou os “‘grupos atrasados’, as ‘classes baixas’ ou a ‘gente do povo’”. (Idem, p. 40).
Ou seja: seriam os grupos dos que não teriam conseguido acompanhar o progresso, não
teriam conseguido civilizar-se, ingressar na nova ordem social burguesa; não teriam,
enfim, conseguido se capacitar para usufruir do desenvolvimento tecnológico e científico
dessa nova ordem social, que sucedeu ao antigo regime escravocrata.
D. Marina, então, vista como “portadora da tradição”, como chama Silva Lima aos
seus Informantes-Narradores7, termo também usado por ele, é uma representante desse
povo brasileiro e uma possuidora desses conhecimentos e valores “ultrapassados”. Como
Cf. LIMA, Jackson da Silva. Anais da III Jornada Sergipana de Estudos Medievais. Aracaju: Secretaria de Estado da
Cultura, 1999, p. 143. Nessa conferência, proferida nesse encontro sergipano de estudos medievais em 1998, Silva Lima
fala da relação íntima e de profunda admiração que ele mantinha com suas(seus) informantes, de quem, em algum
momento, ele diz: “Também tive a felicidade de, como pesquisador, sentir essa gostosa sensação de encantamento, a
mesma sensação inefável que sentiram Lins do Rego com sua Totônia da Paraíba, Câmara Cascudo com a sua Bibi do
Rio Grande do Norte, Altimar Pimentel e companheiros paraibanos, com a sua Luzia Tereza, os conterrâneos Sílvio
Romero, com a Josefa Nó, de Lagarto, e Exupero Monteiro com a Mariquinha de Sá Guilhermina ou “Mariquinha do
caminho do rio”, de Itabaianinha – sentir aquela mesma sensação de antes ao ouvir já adulto algumas das estórias da
minha infância, estórias que tanto me emocionaram, que me faziam chorar quase sempre e dormir assombrado muitas
vezes, recontadas, dezenas de anos depois, por Lió, Caçula, Esmeralda, seu Bebé, Vivinha, Djalma e tantos outros
(entre os quais, acrescentemos aquela que temos em mira, nos contando a estória do Bernal Francês: D. Marina)
monumentos vivos das tradições populares.
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tais valores e conhecimentos revelam muito de nossa formação psicossocial e dá
confiantes pistas para uma construção identitária mais autêntica do que as fornecidas
pela sociedade modernizada, D. Marina acaba se convertendo em uma verdadeira coautora da obra de Jackson da Silva Lima, O Folclore em Sergipe – I romanceiro.
Isso por ser ela – assim como os/as demais informantes - quem, como diz Jerusa
Pires Ferreira, mantém a “tradição em transmissão e em performance;” (FERREIRA,
1997: p.102). Com sua memória resistente, ela mostra ao “doutor” Jackson, – como
Riobaldo faz para seu interlocutor urbano e letrado (ROSA, 1986)8 - uma “cultura” que,
embora oral numa sociedade letrada e alicerçada na documentação escrita, onde a
palavra só tem valor se assinada e reconhecida a firma no cartório, mesmo assim ela se
revela um documento vivo, de valor inestimável, para se pensar nossa identidade,
enquanto povo formado dessas três etnias, em suas relações sociopolíticas e culturais
tensas, conflitivas e violentas.
2.
DA COLONIZAÇÃO BRASILEIRA
Gilberto Freyre mostra como a índia foi fundamental na constituição das primeiras
famílias brasileiras, uma vez que rareavam as mulheres brancas vindas de Portugal: “[...]
há que sobrepor a circunstância da escassez, quando não da falta absoluta, de mulher
branca”. (FREYRE, 1992: p. 92). Posteriormente, ele mostra o papel fundamental da
negra africana na vida íntima, sexual, afetiva e familiar do branco português. Transitando
da senzala para casa-grande, e muitas vezes aí ficando e chegando até a ter uma certa
importância afetiva, moral, ela deixa uma marca indelével na educação das crianças.
Da branca portuguesa, ele nos retrata uma vida privada de autonomia, à sombra
do pai, irmão, marido ou frade, punida no menor deslize, de forma autoritária e violenta,
característica do ambiente opressivo patriarcal:
As meninas criadas em ambiente rigorosamente patriarcal, estas viveram
sob a mais dura tirania dos pais – depois substituída pela tirania dos
maridos. (Idem, p. 421).
A passagem acima ilustra bem a condição submissa em que se encontrava a
mulher portuguesa na casa-grande, sufocada entre o pai autoritário, a mãe controladora e
o olhar vigilante de todos sobre ela. A situação da negra africana e da índia nativa, afora
a especificidade de serem tratadas como raças inferiores, como mais sedutoras pela
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Cf. Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 538 p.
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sensualidade transbordante e como de mais utilidade nos serviços domésticos, no
cuidado da prole etc., a situação para elas era praticamente a mesma que a da sinhá,
quanto à submissão absoluta e temente ao patriarca: “[...] Até então, esposas e filhos se
achavam quase no mesmo nível dos escravos. (Idem, p. 421)”.
Com efeito, a casa-grande era o espaço onde se exercia o poder tirânico do
temido patriarca, poder absoluto sobre terras e gentes. Esses senhores de engenho,
avoengos dos coronéis poderosos do nordeste brasileiro, cujo mundo se via em seus
estertores no momento em que Gilberto Freyre está escrevendo Casa-Grande & Senzala,
a década de 30, e vai acabar mesmo na era do Estado Novo de Vargas com a
centralização do poder, esses grandes latifundiários são assim os bichos-papões, para
todos. Bichos-papões assustadores, sobretudo, para as mulheres que com eles vivem,
ou, dizendo melhor, que a eles sobrevivem. As portuguesas, evidentemente, sentiam
mais que as outras esse peso existencial de sua condição política e sociocultural pelo
fato de, sobre elas, enquanto europeias e base de reprodução da família patriarcal,
recaírem mais rigidamente as cobranças de recato e de obediência servil.
Dialogando com Casa-Grande & Senzala e, em muitos aspectos, indo em direção
oposta a ele, Sérgio Buarque de Holanda escreve, em 1936, Raízes do Brasil
(HOLANDA, 1995). Nesse livro, ele ataca o regime patriarcal e o configura como sendo
um dos fatores responsáveis pela criação do homem cordial. Porém, a “cordialidade”
desses senhores de engenho, desses coronéis tão temidos, não esconde a violência que
os caracteriza e mesmo que plasmou deles uma imagem tão negativa, sempre ligada à
autoridade e tirania, “Nos domínios rurais, a autoridade do proprietário de terras não
sofria réplica. Tudo se fazia consoante sua vontade, muitas vezes caprichosa e
despótica”. (HOLANDA,1995: p. 80).
3.
DO GÊNERO FEMININO NA REPRESENTAÇÃO ROMANCÍSTICA
O romanceiro de Jackson da Silva Lima está repleto de romances que ilustram
bem essa condição politicamente servil da mulher colonial. Em seus 54 romances - às
vezes esses poemas narrativos de caráter épico-lírico, além de serem chamados
romances ou rimances, são também chamados xácaras, quando neles há diálogo –
neles, os 54 romances de O Folclore em Sergipe, dizia-se, temos um verdadeiro painel
de valores medievais de controle rígido à mulher.
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Constatamos que, em pelo menos 16 romances dessa recolha de Silva Lima, a
personagem feminina se encontra sempre em estado de privação, punição ou
subordinação total. Embora em algumas dessas personagens, como ocorre nos famosos
rimances Bernal Francês e Juliana, exista o desejo de emancipação feminina pela
insubordinação e autoafirmação, esse desejo, no entanto, não se realiza nunca. Os
casamentos são “negócios” do pai, e qualquer tentativa de autonomia é imediatamente
associada à ideia de pecado, infundida pelos frades, que comem à mesa com os
familiares da casa-grande, sob o olhar governador do pai. Desse modo, apesar da
coragem de algumas dessas personagens de ousarem afirmar sua liberdade de escolha,
de tomar a rédea de seu destino, o usufruto de seu próprio corpo, do gozo nele, num
mundo em que seu corpo não lhes pertence, qualquer ato emancipatório assim é, para o
regime patriarcal, imperdoável. Representa o limite a que a personagem pode chegar,
cuja punição só pode ser, na lógica desse universo, a morte. Inclusive, esse modo de ver
as coisas é aceito e introjetado pela própria vítima, “Matais, ó marido meu,/ A morte eu
mereci,” da versão Bernado Francês, de D. Marina/Estância-SE, (LIMA, 1977: p. 92),
cujos versos, já vistos acima em epígrafe, abrem o artigo.
Os três romances, escolhidos para nortear nossa reflexão sobre dominação
masculina no processo de formação do Brasil e sua representação no romanceiro
sergipano, A. D. Infanta, Bernal Francês e D. Martinho de Avisado, são três narrativas
cujas personagens femininas protagonizam situações em que seus projetos de vida ou se
dão em função das personagens masculinas, o marido para a Bela Infanta e o pai para a
Donzela Guerreira, ou são cerceados pelo marido como traição, como no Bernal Francês.
No romanceiro sergipano, no entanto, abundam estórias semelhantes, nessa direção.
Ilustram essas estórias cenas dolorosas. A infanta desejada sexualmente pelo
próprio pai, que a trancafia numa imensa torre, onde ela vem a morrer de fome e de sede
(A Silvana). A esposa assassinada pelo marido, por causa de traição amorosa (Bernal
Francês). A esposa testada em sua fidelidade (D. Infanta). A pastora órfã e
desamparada, que é salva do abandono pelo irmão, depois de este testar sua castidade
(A Linda Pastorinha). A moça que virou santa por ter sido brutalmente assassinada pelo
namorado, por ela não ter, como diz Silva Lima, referindo-se à lenda da Padroeira de
Santarém, “[...] por não ter se sujeitado à concupiscência de um libertino” (o assassino
dela) (Iria a Fidalga). Porém também aparecem infantas cruéis, que não titubeiam em
assassinar a rival que lhes impede de realizar seu almejado desejo (Juliana e O Conde
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Alberto). A donzela que se traveste de homem e vai à guerra no lugar do pai idoso,
impossibilitado (D. Martinho de Avisado). A rainha cativa nas mãos dos mouros, que
reencontrou uma sua irmã, há muito não vista, também como cativa e, para lhe ajudar a
alcançar a liberdade, se sacrifica, preferindo permanecer presa, mas salvando a outra (A
Cativa). A mãe adúltera denunciada pela própria filha e assassinada pelo marido, ou em
outra versão a donzela que namora às escondidas, ajudada pela mãe, vê seu namorado
assassinado pelo pai, contrariado em sua vigilância (O Conde de Alemanha). Por ser
descoberta grávida, “pejada”, a infanta é ameaçada de morte pelo pai, mas é salva,
depois de provar sua fidelidade ao amado, por ele, que lhe pede em casamento ao pai
(D. Carlos de Montealbar). A moça raptada por um falso cego, na verdade um príncipe
disfarçado, que a sequestra com a ajuda da mãe dela (O Cego Andante). A infanta que,
sem saber, é observada dormindo por um rapaz, que, ao fugir, deixa cair seu sapato.
Este, tido como uma pista de uma possível visita noturna, leva o pai da moça a prendê-la
numa torre, da qual ela é salva pelo rapaz, que confessa ao rei, o pai dela, ser dele o
sapato. Depois da confissão e de ter jurado que não tocou nela, o rei os casa (Chapim
Del-Rei). A mulher casada que adultera com o padre e que, descoberta, é assassinada a
facadas pelo marido (A Moreninha). A esposa que recebe a triste notícia de que seu
marido caiu do cavalo e está para morrer em terras de Portugal (O Casamento
Malogrado). A triste estória da mulher que morreu de parto, por não ter tido quem a
ajudasse, embora ela clamasse ao marido para ele ir buscar sua mãe ou sua irmã ou a
mãe dela (Flor do Dia). A bela estória da princesa apaixonada por um seresteiro, que,
para não ser assassinado pelo pai dela, é aconselhado por ela a fugir, prometendo-lhe
ela ir depois em busca dele. O que, quando faz, o faz tarde demais: encontra-o já com
esposa e filhos. De tanta tristeza morre a princesa. Ao vê-la morta, morre também o
seresteiro, deixando família e transformando-se em cipozinhos que se abraçam a outros
cipozinhos - a princesa que o amava e não o pode ter (D. Duarte e Donzilha). A escolha
de uma das filhas da condessa para o casamento (La Condessa) etc.
4.
CONCLUSÃO
Enfim, todo esse imaginário ibérico-medieval, o qual, como se disse, será
transplantado para o nordeste no processo de colonização portuguesa, revela que os
vínculos, que fazem com que as narradoras populares guardem essas narrativas na
memória, são vínculos de natureza sentimental e estão ligados à problemática de gênero
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e à situação sociopolítica e cultural da mulher no horizonte histórico patriarcal. Mulheres
sem liberdade, num mundo dominado por reis, padres, freis e pais severos, onde o
destino da vida de uma mulher está irremediavelmente ligado ao destino do patrimônio e
do matrimônio. Mulher objeto, pois, do pai, do marido ou da igreja9.
Os romances que essas narradoras tradicionais transmitem, tiram-nas de sua
usual indizibilidade e anonimato. Pois que, quando cantados, eles lhes conferem
visibilidade e lhes fornecem um olhar sobre a vida no presente e no passado, permitindo
a elas, dessa maneira, reconhecerem-se enquanto sujeitos ativos, em sua constituição
histórica, num universo misógino de dominação masculina.
Como se vê, o romanceiro sergipano é uma amostragem privilegiada da
cosmovisão medieval que permanece na memória coletiva do povo nordestino, em
função das características patriarcais da colonização brasileira, que deixou suas marcas
de dominação masculina como uma das mais fortes na formação cultural dessa região. A
representação que se vê da personagem feminina, nas diegeses de boa parte dos
romances colhidos por Silva Lima, provinda essa representação da Europa medieval,
encontra, nesse espaço, pois, um meio perfeito para sua continuidade e sobrevivência,
devido à semelhança que apresenta essa região com a ambientação cultural
característica do feudalismo, marcada fortemente pela ideologia patriarcal.
REFERÊNCIAS
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 1º v. Belo Horizonte-Rio de Janeiro:
Editora Itatiaia Limitada, 1997. 334 p.
________. O método crítico de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 200. 256 p.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 158 p.
CASCUDO, Luis da Camara. Literatura Oral no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo:
Ed. Da Universidade de São Paulo, 1984. 435 p.
FERNANDES, Florestan. O folclore em questão. São Paulo: HUCITEC, 1978. 227 p.
FERREIRA, Jerusa Pires. “Um roteiro para os estudos do medievo no Nordeste”. In: Anais da I
Jornada Sergipana de Estudos Medievais. Aracaju, Secretaria de Estado da Cultura, 1997. pp.
95-104.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1992. 569 p.
Cf. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio
de Janeiro: Record, 1992. pp. 282 a 379. Cf. também HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995. pp. 71 a 92.
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GALVÃO, Walnice Nogueira. A Donzela Guerreira – Um estudo de gênero. São Paulo: Editora
SENAC São Paulo, 1998. 247 p.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 220 p.
LIMA, Jackson da Silva. O Folclore em Sergipe, I: romanceiro. Rio de Janeiro, Cátedra; Brasília,
INL, 1977. 595 p.
_________. “O conto popular em Sergipe”. In: Anais da III Jornada Sergipana de Estudos
Medievais. Aracaju: Secretaria de Estado da Cultura, 1999. pp. 141-148.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985. 148 p.
ROMERO, Sílvio. Estudos sobre a Poesia Popular do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977. 273 p.
SUASSUNA, Ariano. “Notas sobre o romanceiro popular do Nordeste”. In: _________. Seleta em
Prosa e Verso. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. pp. 249-286.
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