UMA ABORDAGEM DOS SENTIDOS ESPIRITUAl
EM SANTO ANTÓNIO
Teresa Santos(·I)
Helena osta(·~)
Resumo: Refere-se que a pastoral antoniana, decorrente da caridade, se articula '()Iil ()
exercício de apuramento dos sentidos espirituais e correlativamente com o exercí 'io dI'
desapego dos sentidos físicos. Todavia o movimento ascético implícito na purificação dON
sentidos espirituais não se abstrai da presença exigente da comunidade nem se condcnsu (1111
normas éticas impositivas, mas transfere-se para a vivência vitalizadora da pastoral 'I'iHI ,
Palavras-chave:
pastoral antoniana, sentidos espirituais; caridade; encarnação.
1. A funcionalidade dos sentidos
Uma das finalidades
rica espiritual,
dos sermões antonianos,
consiste em apresentar
vista a necessidade
de orientar
tomados
como peças de r -t ).
normas para uma conduta
o ser humano
na passagem
moral, tend
('111
por este mundo em di.
recção ao reino dos céus, A decisão de aderir a uma conduta moral e a persistên
de nela se manter
momento
é de ordem individual,
assim como a experimentação
ascético é singular e pessoal. Este acento na subjectividade
para uma antropologia
sua criatura,
egótica nem pressupõe
mundividência
conforto interior
que deixaria
uma separação
a criatura
do amparo crístico. Ao contrário,
entregue
'111
de cada
não rem ,to
entre o Criador
a si mesma
\
II
sem ()
Santo António reforça a efe 'Li·
vidade da condição filial pressuposta
na omnipresença
ção da Santa Cruz» é bem ilustrativo
do vínculo presencial:
divina. O sermão da «Inv
11·
«Nesta terra estão postos os olhos do Senhor, os olhares da graça
divina, desde o princípio da conversão até aofim da última incineração "(1).
(*1) Universidade de Évora/CIDEHUS
(*2) Mestranda na Universidade do Porto
(1) S. H, 890: "i« hac terra sunt oculi Domini, idest respectus divinae gratiae, a principio conversionis
ad finem ultimae incinerationis ".
Ano XXII (2009) N.°43
EBORENSIA
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zação e um guiao e
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tação imediata da progressão
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o regime díferencial imp ICItO,
espiritual do ser umano 19n
ima cit d quando recorre ao veterotestaÉ na continuação da passagem acima CI a a,
,
dif _ nciaI da ascéti 'lt
' '1' rvro d e J o b (XXV" 6) que se evidencia esse regime I ele
mentano
cuidado
A'
,
antoniana:
"Neste céu está ofilho do homem, verme, hu~ilde, "". se ~;~h~
rme efilho de verme, Dele escreve [ob: O homem e podridao e ,
ve
do homem um verme, qu,er dizer. podridão de podridão,deO humilde
ide
dridão ( ) Tal indivíduo vive em pureza
antmo no
cons ra-se po
, '"
, ~ d
"
sobe ao céu com
sobredito céu, desce do céu por compaixao o proxuno,
h
a elevação do espírito, E ninguém mais o pode fazer, porque nehnu~l
soberb o alit s obe , Deus resiste aos sober b os e d a' a sua graça aos umtde S"(2) ,
A
,
com 'céu' • O
im acto a conjugação dos termos ,verme "podridão'
e
Causa I p ,
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ceú Literalmente,
esta passagem do sermao
movimento de subida e descida
'I"
matéria ('verme') e espírito (viv«
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ainda adverte para a lllSU traive sujei
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no ceu - e,
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1 e à inculcada natureza pecarmnosa,
desgastante do curso tempora
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idão' reforçam um dos pilare ,
pressas no termo "po drin dão" . Porem verme e po n
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ermis idest humilis, qui se vermem etfilium vel'III/~
(,») S II 890-891: "ln. hoc caelo est filtus h01ntntS, ulest v.
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. id t putretlo de putredine. HU111'i/1s
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hominís vermis t es
I"'/III/al,
de quo 10b xxv Homo. putr~ o e 11.US
elo animi U1itate, descendit de caelo proximi C01Jl/i//N
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existimat. (. ..) Iste talis est m supradicto c~. s quia !:uUus superbus. Superbis enim Deus restsut,
. . ascendit
in caelum mentis eleoatume,
et nemo a tu ,
,\IIIIH,
'
"
//I/I/I/IIIJ/I.\'
autem. dat gratuun. Amen .
S I
m stad cI utr facção, já fétido e deformado. O outro pilar a orn] [tid vinculação comunitária do ser humano expressa no movím nto d(
xão vivíficant
d scida do céu, referência
uardando-se
assim a referência
nação. Por conseguinte,
do ser humano à comunidad
aos valores cristãos da personalidade
da expansão da dimensão
entrega contemplativa
e da
que despreza
interior. Tão-pouco
a vida da traternidade
Em oposição, a ascética indica um regime diferencial
o que passo a passo leva ao distanciamento
volição egótica. Neste
nergizada pelo amor.
n iar-
e compaixão
sentido,
é uma ir-
comunitária.
de vivência humana, senti
te do mistérío'" e difusiva do amor caritativo. Em vez de um caminhar
vêncía da humildade
, alva-
a ascética não é um processo de escalada linear e cal ulada
por graus, para exercitação
reversível
à força vinculativa
dos demais, a ascese efectiva-se
caritativa,
ou seja, no momento
a ascese configura-se
n-
metodol
gi-
na vi-
da extinção ela
como propulsão
imediata
Em Santo António a maximização do descentramento
de si mesmo expressa-se no amor devido à criatura humana, às demais criaturas e à natureza em geraI. 6
Se ama Deus quando
se ama simultânea
posto que a obra da criação representa
e indiferenciadamente
toda a sua obra,
e concretiza
o acto do amor de Deus'". Con-
siderar o maravilhamento
estético da obra remete,
tal como esclarece o santo português:
por associação, para seu criador;
'1\ obra do Senhor é a sua criação, que, bem considerada, leva o
que examina à consideração do seu Criador. Se tanta beleza há na criatura, quanta existe no Criador? A sabedoria do artista resplende na
matéria"(;)).
A consideração não desencadeia
culativo, reveladora quer da sabedoria
ooísas belas. Na linha da tradição
uma mera operação noética, de tipo espedo criador quer dos modelos eidétícos das
franciscana,
despida
de sentido
possessivo,
a
I'Onsideração Suporta-se numa vital, genuína e gostosa truição estética que desper. marão ar referência a seguinte edição: Santo António di'
Note-se que todas as citações dos sermoes to
p...
D
t'
2 Vols ed. bilingue _ Latün
1I
I
S rmões Domtntcms e res toas,.,
,
I .ishoa, Doutor Evangélico, Obras Comp etas. e.
R
a Porto Lello e Irmão editores, 1987.
algartsmn
Português, Introdução e Tradução de ~e~nque Pinto em,
,
1\1 )
ti '
(:1) 'fi. hermenêutica antoniana autodelimita-se ao tocar o Mistério que já não pode captar, o indivisível que
"penas se aproxima de longe, na humilde e humana tentativa de o simbolizar". PACHECO, Maria Cândida.
,~lIllto Antõnio de Lisboa, A Águia e a Treva, Porto, Imprensa
Nacional
Casa da Moeda, 1986, p. 60.
(,I) Sobre o amor à natureza e a todas as criaturas consultar M. C. Pacheco, Da Ciência da Escritura ao Livro
ti" Natureza, Santo António de Lisboa: da ciência da escritura ao livro da natureza, Lisboa, Imprensa Nacional
Cusa da Moeda, 1997, pp. 218 _ 221,
c.
m) S. lI, 445 - 446: "Opus D01nini, creatio, quae, bene considerata, suum inspectorem transmittit ad sui Creatort»
nmsiderationem, Si tanta pulchritudo in creaturn, quanto est in Creatore? Opificis sapientia resplenda in materla ",
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siml elogia amorosa da 'riu {lO 'Iam () si "li ('lido /111(10 dus .rluturus.
!\ obra da criação não é prioritariam ntc um livro uh 'I'lo l ru .louultza '~lO do 10der e transcendêncía
do Críador'" mas a superior manifesta 'ão lo amor cria íonista, pelo que a 'consideração' referida no sermão antoniano corr sponde à m ditação experiencial da relação amorosa com cada criatura, através da qual resplandece difusivamente a sabedoria amorosa do Criador. No esquema metafísico da
semelhança'", para considerar e contemplar o que nessas coisas está oculto, basta
permanecer no mundo das coisas criadas, num regime de amorosidade fraternal
inconfundível com adesões panteístas.
A biografia mística de Santo António exemplifica bem a fraternidade franciscana e as possibilidades experienciais dos sentidos físicos, não tanto na função activa
de estímuladores'" mas na passividade receptiva de percepções do mundo espiritual,
plasmadas em vozes e imagens. A fulcralidade desta mística está na percepção super-sensorial, ou alterada, propiciadora de aventuras espirituais intensas e espontâneas
que materializam infantilmente o divino, tal como veicula a crença do santo taumaturgo ter segurado o Menino Jesus ao colo. Na medida em que o conhecimento qu
vê Deus nas criaturas se realiza por intermédio dos sentidos físicos, por um lado, e,
por outro, dado o reconhecimento da potenciação receptiva dos sentidos, valoriza-se
a autêntica unidade do ser humano, desagravando o separatismo instalado na relação
corpo-espírito e rejeitando a indiferença ao mundo fenomenal.
A vida sensitiva e a experiência sensorial também são expressão do dinamismo
criacionista, pelo que a mística antoniana se particulariza na vivência amorosa 'sentíente' que, como escreve Maria Cândida Pacheco, se abre à "meta-racíonalídade'P'
humana, sendo impossível seccioná-la metodologicamente e aferi-la intelectualmente.
Coloca-se a questão de saber como intensificar as potencialidades receptivas
dos sentidos corporais ou como transmutá-los para evitar a entrada do pecado, distorcivo e desordenador. Estando a alma subjugada aos sentidos do corpo, o prazer
que eles propiciam tem que ser elucidado pela razão, sujeitando a sensualidade à
compunção do coração. Todavia a razão não é uma actividade gnoseológica superadora do negativo sensorial, o que levaria a admitir uma ascética de cálculo mental,
algo incompatível com os textos antonianos. A razão, presente no ser humano, mala para a
(6) Importa acrescentar que não se nega ou desconfia do poder da razão, tal como não se impõem regras para
o exercício racional rigoroso. O amor, a exemplo de S. Francisco, é determinante em Santo António quando
se tem a fé como referência preferencial.
(7) CF M. C. Pacheco, A Águia e aTreva, p. 46.
(8) O sentido é o estímulo do entendimento servindo de intermediário entre o corpo e a alma: "Sensus est
per CO"l'pUS
ad animam commeans mentis stimulatio". (cf. o sermão do XVII Domingo depois de Pentecostes)
(9) Ver M. C. Pacheco, A Águia e aTreva, p. 62.
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com Deus e como tal é uma actividade
' '1C'lIl " Lotu-s ' a s guinte transcrição:
"Senhor, a luz do teu rosto, a luz da graça, que estabelece em nós
a tua imagem e nos torna semelhantes a ti, está gravada em nós, isto é,
impressa na razão, faculdade superior da alma, Por ela somos semelhantes a Deus, nela está impressa aquela luz, como selo em cera"(lO).
Imagem do rosto de Deus, a inteligibilidade racional pode discernir normas com valor universal para ordenar e potenciar a percepção. Segundo Santo António, o pecado mortal entra na alma pelos sentidos corpóreos e dela apenas pode
sair através da penitência.
Por similitude, a par dos sentidos corporais existem os espirituais. É com base
numa similitude funcional entre ambos que se pode falar de uma ascética de adaptação dos sentidos espirituais a instâncias alargadas de consciência mediante um
processo purificador ou de sintonização com a vontade ordenada. Trata-s~ de um
exercício que se integra na prospecção da vida interior; conjugando o sentir purificado com o querer ordenadov" e pressupondo uma praxis pedagógica que ensina o
ser humano a principiar'P o verdadeiro caminho pelo qual deve enveredar de modo
a percepcionar a luz difusiva do amor de Cristo. Este exercício é uma actividade
noética e volitiva'P' essencial ao ser humano se for integrado na vida, sendo acessí(10) S. lI, 367: "O Domine, lumen. oultus tui, idest lumen. gratiae, qua reformatur imago tua in nobis, qua tibi
simile summes, 'est signatum super nos, idest impressutri rationi, quae est superior 'Visanimae, qua Deo similes
summus, cui impressum est illud lumen, nt sigillum cerae '".
(11) este sentido é acompanhada de uma ascética moral. A nossa leitura tomou, sem contestar, um rumo diferente da de Francisco da Gama Caeiro. Por conseguinte não faz sentido corroborar ou discordar da seguinte
afirmação. [existe I"uma primeira fase ascética, espécie de conquista da [elicidade suprema, e visa imediatamente
o aperfeiçoamento moral do homem, a sua elevação progressiva até que ele, na semelhança e imagem de Deus,
reflicta, o mais altamente possível, os próprios atributos divinos e elimine as imperfeições que o abstém ao contacto de face a face que pode ter na visão gloriosa, finda a peregrinação terreno". (cf. Francisco da Gama Caeiro,
Santo António de Lisboa, Introdução ao Estudo da Obra Antoniana, Vol. I, Lisboa, Ed. do Autor, 1967, p. 281).
(12) Veja-se a alusão de Hel~rique Pinto Rema aos três estádios de aperfeiçoamento espiritual na Introdução
aos sermões (SANTO ANTONIO DE LISBOA, Doutor Evangélico, Obras Completas, Sermões Dominicais
e Festivos, 1.0 Vol., Porto, Lello e Irmão Editores, 1987, LXXIX).
(13) É pela capacidade cognitiva da alma que o ser humano se vê implicado no processo de ascese espiritual.
Criado à imagem de Deus pode e deve alimentar a esperança de vir a conhecer a essência de Deus (cf. M.
Couraceiro, Sensus et Ratio, Para um Estudo do Pensamento Gnoseológico em Santo António de Lisboa, Porto,
1994, pp. 83-86 [Dissertação policopiada de Mestrado em Filosofia Medieval, Faculdade de Letras da Universidade do Porto]). O conhecimento da verdade alcança-se nas relações do espírito do ser humano com o
seu corpo, em acção conjunta dos sentidos espirituais e da inteligência. O corpo é que estimula a alma mas é
a alma que obriga os sentidos à subordinação. A alma mostra-se activa, enquanto o corpo, depois de contribuir
para a estimulação da mente, está completamente
passivo. A estimulação da mente faz com que esta tenha
a iluminação do que superiormente
viu de semelhante a si, ou seja, Deus. É esta acção da alma que mostra
o conhecimento da realidade divina e garante ao ser humano a possibilidade de se realizar como imago-dei:
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UMA ABORDAGEM DOS SENTIDOS ESPIRITUAl EM SANTO