A APLICAÇÃO DA ANÁLISE DO CICLO DE VIDA NA GESTÃO INTEGRADA DOS RESÍDUOS SÓLIDOS 1. Introdução A gestão dos resíduos sólidos é um tema polêmico, complexo e freqüentemente em debate. No passado, a gestão dos resíduos limitava‐se a coleta e sua disposição era realizada de forma desordenada. Posteriormente, inicia‐se a associação destas questões com a conscientização da necessidade de conservação dos recursos e também a aspectos relacionados com a poluição do meio ambiente e com a saúde pública. Surgem assim, manifestações a favor de alguns processos de gestão de resíduos em detrimento de algumas práticas. Em 1996 a Comissão Européia, em sua estratégia geral para resíduos, estabeleceu a hierarquia preferencial de gestão de resíduos como minimização, reutilização, reciclagem, tratamento biológico, tratamento térmico (com ou sem recuperação de energia) e disposição em aterros sanitários. No entanto, são reconhecidas as limitações e discutida a utilização desta lista de prioridades de uma forma rígida. Atualmente, sabido o papel e função de cada operação para tratamento de resíduos, reconhece‐se a necessidade de combinar de forma integrada as diferentes operações, como no caso dos RSU, caso se tenha a pretensão de gerir convenientemente um conjunto de resíduos diversificado em composição e outras características. Esta combinação deve ser escolhia de forma a minimizar os aspectos e impactos ambientais, como também considerando importantes questões administrativas, econômicas e sociais. Surge assim o conceito da Gestão Integrada que hoje em dia está na base de qualquer sistema para administrar resíduos. 2. A Análise do Ciclo de Vida na Gestão dos RSU A análise do Ciclo de Via (ACV) é uma técnica de gestão ambiental que permite avaliar os aspectos ambientais e os potenciais impactos associados a um sistema (produto ou serviço) ao longo de todo o seu ciclo de vida, isto é desde a extração da mataria prima, sua produção e utilização à disposição final. Cada sistema deve considerar um conjunto de unidades processuais ligadas por correntes de materiais e energia, que desempenha uma ou mais funções. Esta técnica tem sido utilizada com sucesso no desenvolvimento de modelos de avaliação das cargas ambientais associadas aos sistemas de gestão de resíduos, permitindo comparar diferentes estratégias de gestão e informar aos gestores e decisores as vantagens e desvantagem de cada opção. Em cada opção há a necessidade de avaliar as cargas ambientais inerentes a gestão de resíduos, tendo em conta não somente as operações de tratamento, como também todas as atividades associadas, desde a possível coleta dos resíduos até seu destino final, incluindo o transporte e a obtenção dos materiais e energia necessários. Em termos metodológicos, a ACV divide‐se em quatro etapas (ISSO 14040): a) Definição do objetivo e âmbito; b) Análise do inventário; c) Avaliação de impactos; d) Interpretação dos resultados. É a primeira etapa de um estudo de ACV e estabelece o objetivo final do estudo e seu nível de detalhe, sendo que uma clara definição e apresentação são de extrema importância. O objetivo de um estudo de ACV deve incluir a aplicação prevista para o resultado do estudo, as razões para o seu desenvolvimento e destinatários. O âmbito de um estudo de ACV está intimamente relacionado com o nível de detalhamento que se pretende. Inclui a definição de função ou funções do ou dos sistema(s) em estudo, a unidade funcional, como a unidade de referência para a quantificação das correntes de entrada e saída dos sistemas, sistemas estudados e suas fronteiras, isto é, as unidades processuais que estão incluídas no sistema em estudo. No caso em que iremos apresentar, o objetivo foi comparar cenários opcionais para o gerenciamento de resíduos em termos de consumo de energia e de potencial de aquecimento global. As funções dos sistemas estudados foram a coleta, o tratamento e a disposição final dos resíduos produzidos em um município de 300 mil habitantes. Os sistemas opcionais estudados, foram, definidos em cenários e inclui a coleta, o transporte até a unidade de tratamento especificada em cada cenário, o transporte de resíduos resultantes das unidades de tratamento para o aterro sanitário, o funcionamento das unidades de tratamento especificadas em cada cenário, a produção e o uso de combustíveis e eletricidade, bem como a produção do polietileno de alta densidade (PEAD), utilizados em sacos de coleta. A realização do inventário envolve a coleta e o tratamento de dados para a quantificação das correntes (entradas e saídas) de materiais e energia em cada sistema. Em cada unidade processual procede‐se a quantificação dos recursos, dos materiais, da energia e emissões associadas ao processo. Para cada cenário da Gestão de RSU, aqui apresentado, quantificou‐se as correntes de materiais e energia de acordo com o modelo de inventário proposto por White et al, 1995. Apenas foram contabilizados o consumo/recuperação de energia e as emissões de CO₂, CH₄ e N₂O. Na etapa de avaliação de impactos, os dados de inventário são traduzidos em seu potencial efeito no meio ambiente. As categorias de impacto consideradas devem incluir a utilização de recursos, a saúde humana e as conseqüências ecológicas. No caso aqui apresentado, as categorias de impacto consideradas foram o uso dos recursos (energia) e o aquecimento global resultante dos gases acima referidos. Na fase de implementação, as informações decorrentes do inventário e/ou da avaliação de impactos são analisadas de modo a conduzir a conclusões e recomendações consistentes com os objetivos e âmbito de estudo. Alguns exemplos da aplicação da ACV à gestão de resíduos sólidos incluem: ‐ avaliação ambiental de sistemas de coleta de resíduos; ‐ avaliação das cargas ambientais associadas a programas de reciclagem de materiais; ‐ avaliação da vantagem da compostagem da fração orgânica dos resíduos incluindo ou não a fração de papel; ‐ avaliação da vantagem de diferentes cenários de tratamento de resíduos, tais como a incineração, disposição em aterro, tratamento biológico e reciclagem; ‐ desenvolvimento de estratégias de gestão de resíduos a longo prazo; ‐ avaliação de benefícios ambientais resultantes da alteração de sistemas de gestão; ‐ avaliação de sistemas de tratamento a ser implantado localmente; ‐ avaliação das cargas ambientais dos sistemas de gestão que são propostos por entidades contratadas para a gestão nos municípios; ‐ promoção da participação pública nas questões ambientais por meio da disponibilização de informação objetiva sobre as cargas ambientais dos diferentes sistemas de gestão. A ACV ajusta‐se a realidade local, usando dados decorrentes das infra‐estruturas existentes e tendo em conta as especificidades da região abrangida pelo estudo, permitindo assim realizar o planejamento para a adequada gestão dos resíduos de forma objetiva. 3. Exemplo de utilização da ACV na Gestão Integrada dos Resíduos Sólidos Urbanos Na utilização de um modelo com base na ACV, foram considerados quatro cenários hipotéticos para a gestão dos RSU produzidos em um município hipotético de 300 mil habitantes. Os cenários estudados, além da permanência da composição dos resíduos, supõem o mesmo para o sistema de coleta indiferenciada em sacos PEAD, 5 vezes por semana, seguida de transporte para a unidade de tratamento. As opções de tratamento incluem a disposição em aterro (Cenário 1), compostagem com e sem mercado para o composto (Cenário 2 e 3 respectivamente) e a incineração de todos os RSU (Cenário 4). Nos Cenários 2, 3 e 4 há a disposição final dos resíduos resultantes da compostagem e da incineração. A composição dos resíduos e os cenários estudados se encontram sintetizados na tabela 1. Na tabela 2 são apresentadas as hipóteses consideradas no modelo. Na etapa de avaliação, tal como já referido, consideram‐se como categorias de impacto o consumo de energia e o potencial de aquecimento global (PAG). Para este último, foram consideradas as emissões de dióxido de carbono, metano e óxido nitroso, com potenciais de aquecimento global de respectivamente, 1 para CO₂, 21 para CH₄ e 310 para N₂O, de acordo com as propostas do IPCC – Intergovernmental Panel for Climate Change. Os resultados obtidos com esta base de ponderação serão apresentados a seguir. 4. Características dos cenários estudados População: 300 mil habitantes Número de habitantes por habitação: 4 Composição dos resíduos (% em peso): Papel = 20,4 Vidro = 3,5 Metais = 2,4 (92% ferrosos e 8% não ferrosos) Plástico = 9,1 (75% flexível e 25% rígido) Têxteis = 4,7 Orgânicos = 38,5 Outros = 21,4 Número total de visitas dos veículos de coleta: 260 por habitação por ano Número de sacos coletados por habitação por ano: 260 (1 saco por dia, 5 por semana) Massa de cada saco (PEAD) = 20 g Consumo médio dos veículos de coleta= 30 l de combustível por 1000 habitações 5. Cenários Coleta comum (indiferenciada) CENÁRIO 1 Disposição em Aterro Sanitário Coleta seletiva CENÁRIO 2 Compostagem do orgânico, com mercado para o composto Disposição dos resíduos não utilizados em aterro sanitário, incluindo os resíduos resultantes do processo de compostagem Coleta seletiva CENÁRIO 3 Compostagem do orgânico, sem mercado para o composto Disposição dos resíduos não utilizados em aterro sanitário, incluindo os resíduos resultantes do processo de compostagem Coleta comum CENÁRIO 4 Incineração de todos os resíduos com recuperação de energia Disposição dos resíduos da incineração em aterro sanitário sem recuperação de energia 6. Hipóteses consideradas Consumo de combustível no aterro = 0,6 l/ton. res. Aterro Sanitário INCINERAÇÃO TRATAMENTO BIOLÓGICO COMBUSTÍVEIS, MATÉRIAS PRIMAS E TRANSPORTE Eficiência da coleta de gases no aterro= 40% Composição do gás de aterro (g/Nm³): CO₂ = 883,93, CH₄ = 392,86, N₂O= 0 Composição do gás resultante da queima do gás de aterro (g/Nm³): CO₂= 1964,29, CH₄ = 0, N2) = 0 Distância da unidade ao aterro de resíduos Classe I = 2 km Distância da unidade ao aterro de resíduos Classe II = 10 km Quantidade de cinzas volantes produzias= 0,032 ton/ton res. ( para qq resíduo) % de recuperação de cinzas = 0 Eficiência da recuperação energética = 20% Não há reutilização de escórias. Produção de escórias por tipologia de resíduos (ton/ton res): Papel = 0,084 Vidro = 0,9 Metais ferrosos = 0,85 Metais não ferrosos = 0,9 Plástico filme = 0,09 Plástico rígido = 0,06 Têxteis = 0,077 Orgânicos = 0,077 Outros = 0,42 Consumo de eletricidade = 70 KWh/ton res Emissão de CH₄ = 0 g/ton res Emissão de N₂O = 0 g/ton res Emissão de CO₂ por cada tipo de resíduo (g/ton res): Papel = 1128500 Vidro = 0 Metais ferrosos e não ferrosos = 0 Plástico filme = 2336700 Plástico rígido = 2492500 Têxteis = 1209200 Orgânicos = 563900 Outros = 1025900 Fração de orgânicos e papel considerado como não completamente biodegradáveis e/ou aderido ao material removido com a segregação na fonte = 5 % Distância da unidade de compostagem ao aterro = 10 km Consumo de energia na unidade de compostagem = 30 KWh/ton res Produção de composto = 0,5 ton/ton res Emissão de CO₂ = 320 kg/ton res Emissão de CH₄ = 0 Emissão de N₂O = 0 Produção e uso de diesel: Resíduos não perigosos = 0,0057 ton/1000 l Consumo de energia = 44,1 GJ/1000 l Emissão de CO₂ = 3036258 g/1000 l Emissão de N₂O = 41 g/ton res Emissão de CH₄ = 0 PEAD dos sacos: Resíduos não perigosos = 0,0885 ton/ton Consumo de energia = 98,1 GJ/ton Emissão de CO₂ = 1691657 g/ton Emissão de N₂O = 70 g/ton Emissão de CH₄ = 0 Produção e uso de eletricidade: Resíduos não perigosos = 0,0491 ton/MWh Consumo de energia = 9,5 GJ/MWh Emissão de CO₂ = 441657 g/MWh Emissão de N₂O = 70 g/MWh Emissão de CH₄ = 0 Produção e uso de gás natural Emissão de CO₂ = 2061211 g/1000 m³ Emissão de CH₄ = 0 Consumo de diesel de um caminhão de 20 ton = 0,321 l/km Obtenção de metais ferrosos Consumo de energia = 12,4 GJ/ton Emissão de CO₂ = 0 Emissão de N₂O = 176 g/ton Emissão de CH₄ = 0 7. Resultados Fig. 1 ‐ BALANÇO ENERGÉTICO (GJ) Fig. 2 ‐ POTENCIAL DE AQUECIMENTO GLOBAL Fig. 3 ‐ EMISSÃO DE CO₂ (kg) Fig. 4 ‐ EMISSÃO DE CH₄ (kg) Fig. 5 – EMISSÃO DE N₂O (kg) A análise das figuras 1 a 5 permite estabelecer algumas conclusões acerca dos sistemas de gestão definidos pelos diferentes cenários da região estudada. O cenário 4 – Incineração de Resíduos – em termos de saldo energético tem uma clara vantagem frente aos outros cenários devido à recuperação energética realizada no processo da incineração. Nos cenários restantes há um consumo real de energia, e, portanto, um saldo energético negativo. O cenário 1 – Disposição de resíduos em aterro sanitário é o que apresenta menor consumo de energia, apesar da diferença em relação aos Cenários 2 e 3 ser pouco significativa. Sobre o potencial de aquecimento global, o mais favorável é o Cenário 2 – compostagem com possibilidade de comercialização do composto. Nesta categoria de impacto, o mais desfavorável é o Cenário 1 – disposição em aterro sanitário. Esta situação deve‐se essencialmente a emissão de CO₂ associada a degradação anaeróbia dos resíduos depositados em aterro. A emissão de CO₂ mais elevada verifica‐se no Cenário 4 – incineração de todos os RSU – mas o efeito no PAG é diminuído pelo valor negativo da emissão de N₂O neste cenário resultante da emissão evitada na produção de energia elétrica por meios convencionais geradores de N₂O, como é o caso das centrais termoelétricas. O cenário 2 apresenta uma clara vantagem em relação ao Cenário 3 em termos de PAG. Esta situação resulta na prática de não haver mercado para o composto produzido, por exemplo: devido ao não cumprimento dos requisitos de qualidade, o que não é raro acontecer em alguns países que adotam este processo. Neste caso, o composto foi considerado disposto em aterro, pelo que a vantagem de um cenário de compostagem avaliado com base no PAG aparece diminuída, a considerar que em alguns países europeus é comum o composto não vendável ser incinerado. 8. Conclusão Não há uma solução ótima para o tratamento de resíduos sólidos. As tecnologias existentes devem ser analisadas no contexto local e global. A Análise do Ciclo de Vida é uma técnica de gestão ambiental que tem sido largamente utilizada diante dos resíduos sólidos, entre outras atividades, para comparar diferentes estratégias, apresentando aos gestores as vantagens e desvantagem ambientais de cada ação. A ferramenta apresentada é de extrema importância para se analisar as condições praticáveis existentes, de forma a se optar pela melhor solução no resguardo da saúde pública, do meio ambiente e do potencial de aquecimento global. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS ISO 14040 – Environmental management – Life Cycle Assessment – Principles and Framework, International Organization for Standardization, Switzerland. White et al, 1995 – Integrated Solid Waste management: a life cycle inventory, Blackie A&P; Glasgow, U.K. Xará, Silva, Almeida e Costa – LEPAE – Laboratório de Engenharia de Processos, Ambiente e Energia – Faculdade de Engenharia do Porto – Portugal IPCC – Guidelines for National Greenhouse Gas Inventories, vol. 3 Intergovernmental Panel for Climate Change. Importante: As analises aqui apresentadas pretenderam demonstrar a importância da utilização da ferramenta e não indicar quais dos cenários demonstrados são os mais indicados para o tratamento dos resíduos gerados. Caso seja necessário subsidiar uma tomada de decisão, a ACV deverá ser realizada formalmente por meio de especialistas da área.