Comissão Organizadora:
Ana Paula Canel Bluhm
Andreas Betz
Arnaldo Cheixas Dias
Breno Teixeira Santos
Bruno Blotta Baptista
Eduardo Koji Tamura
Renata Brandt Nunes
Rodrigo Pavão
Profa. Organizadora:
Profa. Dra. Lucile Maria Floeter-Winter
Apresentação
Uma corrida às universidades se procede nos últimos anos. A demanda por
cursos dos mais variados tipos (graduação, pós-graduações, extensão, etc) é,
talvez, a conseqüência mais facilmente visível desse fenômeno.
Nesse contexto a Universidade de São Paulo olha atentamente para sua
responsabilidade frente à sociedade, oferecendo espaços de extensão para a
disseminação dos valores e resultados colhidos no meio acadêmico, assim como
estabelecendo conexão entre a mesma e setores que não têm acesso institucional
ao seu corpo docente. É nesse momento, onde há uma enorme demanda por
aumento da qualificação profissional e conseqüentemente de procura às
instituições capacitadas para tal, que se propõe a criação de espaços de
comunicação entre universidade e sociedade. Certamente isso faz com que as
atividades de extensão exijam sobremaneira uma sintonia plena com estes valores
e também com as expectativas da comunidade.
No entanto, é importante lembrar que, notoriamente, a extensão universitária
é uma credencial de excelência, porque somente centros com história e alto
desempenho no âmbito da pesquisa e do ensino podem repassar à comunidade
externa, em forma de serviços ou ensinamentos, o conhecimento acumulado. Isto
faz com que a responsabilidade de uma universidade como a USP seja ainda
maior.
Frente a essa realidade é que, desde o ano de 2002, um pequeno grupo de
pós-graduandos do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências
começou a discutir sobre a sua própria formação acadêmica, bem como a de
alunos que almejavam o ingresso em cursos de pós-graduação. Nos debates
ocorridos internamente, foi observado que muitos dos interesses dos alunos por
vezes excedem o tema e a carga horária disponíveis nos próprios cursos de
graduação. Além disso, há pouco tempo fazíamos parte de uma gama de pessoas
que compunham o coro pela criação de espaços onde fossem oferecidas tais
possibilidades alternativas de aprendizado complementar.
Sendo assim, neste momento de inquietude e vontade discente, a decisão foi
de empenho em realizar um curso no período de férias e oferecê-lo a estudantes
das áreas biológicas que almejam ingressar na pós-graduação em Fisiologia, ou
mesmo para aqueles que se interessam pelo tema de uma forma geral.
Com esta iniciativa conseguimos envolver um grande número de alunos de
pós-graduação do departamento, o que resultou na formação de uma Comissão
Organizadora conquistando a simpatia natural dos nossos docentes, que
permitiram a viabilização deste projeto. O primeiro passo para a concretização das
nossas idéias foi batizar o curso de férias como “Curso de Inverno: Tópicos em
Fisiologia Comparativa”, dando-se então início à organização prática do projeto,
que agora começa sua quarta edição.
Esse livro e sua organização são resultado de uma nova estrutura didática
aplicada ao curso. Essa estrutura didática consiste na criação de módulos que
apresentam uma determinada área de estudo de forma integrada: (1) uma aula
introdutória, seguida por (2) aulas apresentando tópicos específicos e, finalmente,
(3) a sessão de pôsteres das pesquisas desenvolvidas pelos integrantes do
módulo. O livro apresenta a mesma organização, excluindo os pôsteres.
Esse livro tem como objetivo ampliar o acesso aos conteúdos trabalhados no
curso e desenvolvidos no departamento de Fisiologia. Esperamos que seja de
grande utilidade aos interessados nesses temas.
São Paulo, inverno de 2007
Comissão do IV Curso de Inverno – Tópicos em Fisiologia Comparativa
Índice
PRODUTOS NATURAIS MARINHOS E MECANISMOS DE AÇÃO
Página 1 a 22
Introdução - Jeanete Lopes Naves
Substâncias bioativas – Macroalgas - Andréa Lúcia Campos Natali
Substâncias bioativas – Microalgas - Jeanete Lopes Naves
Substâncias bioativas – anêmonas-do-mar - André Junqueira Zaharenko
Substâncias bioativas - animais terrestres - Bruno Garcia Stranghetti
Fisiologia da Dor - Wilson Ferreira Junior
COMPLEXIDADE EM SISTEMAS BIOLÓGICOS
Página 23 a 42
Aula Inagural - Breno Santos
Informação - Vitor Hugo Rodrigues
Sistemas dinâmicos - José Eduardo Natali
ECOFISIOLOGIA
Página 43 a 88
Breve Histórico da Fisiologia Comparativa - Renata Brandt e Bruno Blotta-Baptista
A vida no limite: mecanismos de adaptação bioquímica a extremos de temperatura
- Ivan Prates
Ecofisiologia de insetos - Antonio Carlos da Silva e Fabiano Ricardo A. Negrini
Ecofisiologia e ciclos de vida complexos - Monique Simon
Fisiologia da Estivação - Isabel Cristina Pereira
A importância dos mecanismos osmorregulatórios na conquista dos diferentes
ambientes: Um enfoque em Crustacea - Bruno Blotta-Baptista
Efeitos de poluentes e respostas ecofisiológicas em divesos níveis tróficos diante
de estressores ambientais - Tiago Gabriel Correia
Ecofisiologia de metais pesados em organismos aquáticos - Marina Granado e Sá
Efeitos da disponibilidade de oxigênio na fisiologia de organismos aquáticos com
ênfase em peixes - Renato Massaaki Honji
FISIOLOGIA NA ERA DA BIOLOGIA MOLECULAR
Página 89 a 120
Introdução - Biologia molecular como instrumento para o estudo de processos
fisiológicos - Lucile Maria Floeter-Winter
Manipulação gênica no estudo da fisiologia - Emerson Augusto Castilho Martins
A expressão de proteínas heterólogas - Maíra Natali Nassar
Sistemas para diminuir ou anular a expressão gênica - Marcos Gonzaga dos
Santos
PCR em tempo real - Rafaella Marino Lafraia e Natália Nour Obeid
Uso de bibliotecas combinatórias para seleção de peptídeos ou oligonucleotídeos
específicos para o estudo da interação de moléculas - Maria Fernanda
Laranjeira da Silva
NEUROFISIOPATOLOGIA
Página 121 a 192
Aula Inaugural - Merari de Fátima Ramires Ferrari
Biologia molecular e celular aplicadas à neurofisiologia - Merari de Fátima Ramires
Ferrari
Neuroanatomia - Karen Lisneiva Farizatto e Sérgio Marinho da Silva
Controle neural da pressão arterial e hipertensão - João Paulo de Pontes
Matsumoto
Treinamento físico aeróbio: adaptações e benefícios cardiovasculares e
parâmetros comportamentais em animais e indivíduos hipertensos Regiane Xavier de Moraes
Neurofisiologia do abuso de drogas - Andreas Betz
Fisiologia aplicada a reabilitação de doenças neurodegenerativas - Fernanda
Beatriz Monteiro Paes Gouvêa
COGNIÇÃO
Página 193 a 252
Aula Inaugural - Arnaldo Cheixas-Dias e Rodrigo Pavão
Fisiologia da Atenção - Arnaldo Cheixas-Dias
Fisiologia do Sono - Arnaldo Cheixas-Dias e Gabriela de Matos
Música e Linguagem - Felipe Rodrigues
Neurofisiologia da Linguagem - Rodrigo Collino
Evolução da Inteligência - Rodrigo Pavão
O estudo de solução de problemas - Pedro Leite Ribeiro
Neuroeconomia: a fisiologia da tomada de decisão - Luiz Eduardo Tassi
CRONOBIOLOGIA
Página 253 a 306
Conceitos básicos - Cintia Etsuko Yamashita
A identificação anatômica do oscilador circadiano - Gisele Akemi Oda
Maquinaria molecular e controle do sistema temporizador interno - Pedro Augusto
Carlos Magno Fernandes
Fototransdução e sincronização por luz - Leonardo Henrique Ribeiro Graciani de
Lima
Melatonina: o hormônio do escuro - Eduardo Koji Tamura
Fisiologia celular do Plasmodium durante a fase assexuada - Laura Nogueira da
Cruz
PRODUTOS NATURAIS MARINHOS E
MECANISMOS DE AÇÃO
“Todas as substâncias são venenosas; não há nenhuma que não o seja. É a dose que
diferencia um veneno de um remédio” - Paracelso (1493-1541)
Introdução
Jeanete Lopes Naves ([email protected]) - Laboratório Farmacologia de Produtos
Naturais Marinhos
Em todos os níveis da escala filogenética animal encontra vários exemplos de
ataque, defesa e outros comportamentos que dependem de substâncias repelentes,
paralisantes ou de outras ações farmacológicas. Durante os milhões de anos de evolução
os organismos desenvolveram um refinamento dessas substâncias para diversas funções,
a captura de presas e as defesas químicas em geral (Freitas, 1990). A produção e a alta
diversidade de toxinas têm estimulado outros animais a desenvolver técnicas de
sobrevivência a estes compostos. Rápida excreção, acumular em compartimentos do
corpo, tais como tecido de gordura ou cutícula estão entre os mecanismos desenvolvidos
para combater o efeito letal dos compostos (Kittreldge et al, 1974).
A biodiversidade em animais, por exemplo, é resultado da grande variedade de
venenos e peçonhas e assim, uma quantidade grande de toxinas. Esses organismos
utilizam diversos mecanismos para prevenir predação, e nesse caso, envolve a produção
de metabólitos secundários que podem ser tóxicos, desagradáveis ou ambos para
consumidores em potencial (Pawlik, 1993; Hay, 1996; McClintock & Baker, 1997, Faulkner,
1998).
Para o homem se envolver em acidentes ou intoxicações por qualquer substância
produzida por organismos vivos, é necessário que esta exerça alguma influência química
em um ou mais constituintes das suas células a fim de produzir uma resposta
farmacológica. Em outras palavras, é necessário que as moléculas dessas substâncias
fiquem muito próximas das moléculas celulares para que o funcionamento destas seja
alterado (Dale, 1997). Um exemplo é o acidente ocorrido na costa brasileira provocado por
Physalia physalis (Freitas et al, 1995).
Popularmente chamamos de veneno toda substância química, ou mistura de
substâncias químicas, que provoca intoxicação ou a morte com baixas doses, como
também reservado, segundo alguns autores, especificamente para designar substâncias
provenientes de animais, nos quais teriam importantes funções de autodefesa ou de
predação, como é o caso de veneno de cobra, de abelha, etc (Oga, 2003). Entretanto
existe diferentes terminologia para as diferentes substâncias que podem causar algum
dano a um sistema biológico – veneno, peçonha, toxina.
Segundo Freyvogel e Perret (1973), no reino animal as toxinas podem ser divididas
em venenos e peçonhas. Os venenos (em inglês ‘poisons’) são produtos metabólicos
produzidos ou estocados em órgãos que, em condições naturais, afetam o organismo
quando ingeridos e podem também atuar, de modo artificial, por via parenteral. Os
organismos venenosos primários são aqueles que produzem metabolicamente os venenos
como, por exemplo, o dinoflagelado tóxico, Gonyaulax catenella, produtor de uma potente
toxina. Os animais venenosos secundários adquirem as toxinas através da cadeia trófica,
alimentando-se de organismos venenosos primários, por exemplo, os mexilhões podem
adquirir a neurotoxina dos dinoflagelados tóxicos através da cadeia alimentar. Os
mexilhões passam a ser ‘transvetores’, e o envenenamento geralmente é o resultado da
ingestão do animal pelo seu predador, tais como os humanos.
As peçonhas (em inglês ‘venoms’) são originadas em glândulas especializadas
associadas a dutos excretores e possuindo ou não, estruturas inoculadoras; a maioria
dessas substâncias contém proteínas que são facilmente inativadas pela digestão.
Animais peçonhentos utilizam à peçonha para aquisição de presas, que pode incluir uma
1
pré-digestão, e como defesa contra predadores, obviamente a mais importante função de
interação com os humanos. Ex: Peixe escorpião e cnidários (Freitas, 1991).
Peçonhas e venenos são compostos que são deletérios para outro organismo em
certa dosagem. Eles interferem em importantes atividades fisiológicas de plantas, animais
ou humanos, causando envenenamento. Peçonhas e venenos raramente são substâncias
puras. Na maioria dos casos representam misturas de numerosos compostos, que podem
ser tóxicos ou ter outra atividade. Peçonhas consistem principalmente de peptídeos ou
proteínas. Venenos são geralmente produtos ou metabólicos secundários produzidos por
microrganismos, plantas ou animais. Toxinas são sempre de origem natural, são
substâncias quimicamente bem definidas, puras e homogêneas.
Apesar de serem conhecidas antes de Cristo, as toxinas começaram a ser
estudadas, do ponto de vista químico e farmacológico, há apenas seis décadas atrás. São
muitas as toxinas marinhas, as quais são encontradas em quase todos os Filos,
distribuindo-se ao longo da cadeia alimentar e podendo, eventualmente, atingir o homem
(Gleibs & Mebs, 1999).
Para que uma droga seja de algum modo útil tanto como instrumento terapêutico
quanto cientifico, ela deve agir seletivamente em determinadas células e tecidos, ou seja,
deve mostrar alto grau de especificidade de ligação ao sitio.
Para isso são necessários muitos estudos, principalmente de químicos e biólogos.
Muitas vezes, no final, a pesquisa não leva a nenhum produto de interesse farmacológico.
Diferente do que ocorreu com o Ácido okadaico que se tornou uma importante ferramenta
de estudo de mecanismos moleculares. Ele foi primeiro isolado de esponjas marinhas e
depois reconhecido como um constituinte da microalga Prorocentrum lima.
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Scheuer, P.J. (1991). Drugs from the sea. Chemistry and Industry 8, 276-279.
2 Substâncias bioativas – Macroalgas
Andréa Lúcia Campos Natali ([email protected]) - Laboratório Farmacologia de
Produtos Naturais Marinhos
As macroalgas são de primordial importância, uma vez que representam uma grande
fonte de alimentos, remédios, forragens e fertilizantes. Os primeiros registros do uso
terapêutico, indicador empírico da presença de substâncias bioativas, estão documentados
num compêndio médico chinês de 2700 anos a.C. entre os povos do leste da Ásia. A
medicina popular oriental utiliza amplamente as algas como tratamentos para várias
enfermidades tais quais verminoses, gota, nefrite e outras. Com a tecnologia, o avanço
nas técnicas químicas proporcionou uma melhora e uma crescente identificação de
substancias bioativas na área farmacológica.
Estudos realizados com intuito de reconhecer gêneros representantes de algas
marinhas com substâncias bioativas foram e estão sendo muito explorados pela
comunidade científica. Ragan (1984) encontrou cerca de 160 gêneros representantes de
algas marinhas na região canadense do Oceano Atlântico, onde constatou a presença de
vários metabólitos ativos de interesse terapêutico.
Os recentes avanços científicos na farmacologia marinha têm revelado diversos
compostos bioativos, ampliando as possibilidades de aplicação das algas como fonte
direta de medicamentos ou inspirando a síntese de novas substâncias a partir das
estruturas moleculares descobertas.
Além dos produtos como o ágar-ágar, a carragenina, e os alginatos, as macroalgas
têm numerosos constituintes que atraem progressiva atenção em muitos campos,
principalmente para a finalidade farmacológica (Hoppe, 1982). Os constituintes das algas
incluem ácidos, alcalóides, aminas, substâncias antibacterianas, antibióticas, anti-fúngicas,
antivirais e substâncias de alta toxicidade como a saxitoxina, a tetrodotoxina e derivados
(Freitas et al.,1988). As macroalgas são similares às plantas terrestres no que diz respeito
à produção de terpenos, compostos aromáticos, acetogeninas, derivados de aminoácidos
e polifenóis. Tais substâncias são genericamente denominadas de metabólitos
secundários ou compostos secundários.
As vias metabólicas secundárias das plantas conduzem à formação de substâncias
específicas e, muitas vezes, são estas que levam à caracterização de algumas famílias,
gêneros e espécies entre as plantas. As algas diferem das plantas terrestres por
incorporarem halogênios (bromo, cloro e principalmente iodo) nos seus metabólitos
secundários, comum em muitas plantas terrestres (Hay & Fenical, 1988). Com o
desenvolvimento da ecologia bioquímica, grande enfoque tem sido dirigido aos metabólitos
secundários nas funções vitais, como a preservação da espécie e da sua integridade
contra os ataques de seus predadores naturais (herbivoria), sejam eles fungos, bactérias,
moluscos ou animais superiores (Barbosa et al, 2003). Assim, também no ambiente
marinho tem sido reconhecida a importância das interações químicas entre as espécies e
dos compostos presentes nas macroalgas, que devem desempenhar diversas funções nas
relações entre algas e outros organismos marinhos.
Investigações recentes sugerem que a função primária dos metabólitos secundários
das algas é deter a herbivoria, porém não se exclui a possibilidade de outras funções e
atividades detectadas em ensaios laboratoriais. Os compostos mais conhecidos que
inibem a herbivoria, agindo na defesa química das algas, são os polifenólicos encontrados
nas feofíceas. Na década de 80 Ragan e Glombitza já haviam elucidade que
quimicamente, essas substâncias derivam do floroglucinol (1,3,5-triidroxi-benzeno) e de
seus polímeros (polifloroglucinóis) que compreendem 15-20% do peso seco do talo das
algas pardas. De acordo com Steinberg (1985, 1988), tanto os polifenóis das algas pardas
como os de plantas terrestres (ácido poligálico ou tânico), agem como inibidores da
predação pelos herbívoros marinhos: Tegula funebralis e T. brunea (moluscos) e
Strongylocentrotus purpuratus (ouriço-do-mar). Ainda em relação interações químicas que
ocorrem na natureza, podemos citar a observação de alguns autores, que, mediante
análise do conteúdo estomacal de alguns crustáceos decápodes braquiúros (que podem
regurgitar, durante situações de defesa as secreções digestivas com atividade
neurotóxica), fazem notar a presença preponderante de algas (Freitas, 1979, 1980 e
Freitas & Jacobs 1983). Assim, especulou-se sobre a possibilidade de que nos crustáceos
poderia estar havendo o seqüestro de toxinas de algas da dieta com finalidade defensiva,
3
um paralelo aos insetos e plantas terrestres. Alcala & Halstead (1970) já haviam indicado
as algas da dieta dos crustáceos como a possível fonte de toxinas paralisantes. Mais
tarde, uma espécie não identificada da alga rodofícea, do gênero Jania, foi indicada como
a fonte de neurotoxinas em crustáceos e moluscos do Pacífico (Kotaki et al., 1983). A
análise química realizada por estes autores indicou, nas algas, a presença de
goniautoxinas I, II e III (análogas à saxitoxina) em quantidade máxima durante o período
da primavera. Yasumoto et al. (1985) encontraram também tetrodotoxina no mesmo
gênero de alga vermelha (Jania sp.) (figura 1). No Brasil, Freitas et al., (1988) identificaram
saxitoxina, goniautoxinas e tetrodotoxina nas algas rodofíceas Jania rubens e Arthrocardia
gardneri (figura 2). Posteriormente, essas mesmas neurotoxinas foram também
encontradas em secreções digestivas dos crustáceos dos oceanos Atlântico e Pacífico
(Freitas et al., 1991).
Figura 1: Jania sp
http:\\www.hawaii.edu/enviroment
Figura 2: Arthrocardia gardneri
http://www.ib.usp.br/fisionomias/index.htm
A presença de toxinas em diversas algas tem interesse para a saúde pública, pois as
mesmas podem provocar envenenamentos em populações que utilizam algas em sua
dieta. Outras espécies, porém, aparentemente não tóxicas, funcionam como complemento
nutricional devido ao seu alto teor de vitaminas e iodo. O problema do bócio endêmico,
que atinge determinadas populações no mundo, poderia ser grandemente diminuído pela
exploração das algas, as quais são portadoras de alto teor de iodo, da ordem de 100 a
40.000 vezes maior que a quantidade existente na água do mar.
A macroalga Bryopsis pennata (figura 3 e 4) cloroficea pertencente à ordem
Caulerpales, sin. Bryopsidales é uma espécie tropical encontrada em diversos oceanos.
Essa espécie produz uma defesa química tóxica para organismos herbívoros, além de
promover alelopatia e se reproduzir facilmente a partir de pequenos fragmentos. Possuem
um potencial de se tornar invasiva e dominante em condições ambientais favoráveis como
águas ricas em nutrientes (Lamouroux, 2000; Oliveira, 2002).
Estudos prévios afirmam que extratos de algumas algas provocam alterações nos
potenciais de ação, e que essas alterações são decorrentes de quebra de ligações
peptídica, acarretando redução da quantidade de proteínas provocada pela baixa
intensidade de luz disponível em ambientes marinhos no inverno e por alguns períodos de
exposição ao ar durante a baixa maré (Fenical & Sin, 1979).
Sakamoto (1993) em uma tese de doutoramento observou que as atividades
farmacológicas, em diferentes épocas do ano, do extrato da B. pennata demonstraram que
este provocou o aumento no tônus muscular com ação inotrópica e cronotrópica positiva
em coração de anuro. Descobertas recentes demonstraram a presença de dois
componentes ativos, não identificados, nas frações do extrato bruto da B. pennata, os
quais possuem efeitos neurotóxicos reversível em nervo sensorial de crustáceo e
inotrópico e cronotrópico positivos em coração de anuros (Rana catesbeiana).
Considerando que nos países desenvolvidos muitos indivíduos morrem de distúrbios
circulatórios, mais do que de qualquer outro tipo de doença, essa seria uma forte razão
para aumentarem substancialmente as pesquisas farmacológicas a respeito de
substâncias de algas marinhas, com vistas a fomentar a produção de drogas
antiateroscleróticas.
4 Figura 3 e 4: Bryopsis pennata
http:\\www.hawaii.edu/enviroment
http:\\www.botany.hawaii.edu/reefalgae
Já está bem estabelecida, em termos farmacológicos, a ação antibiótica de muitos
extratos de algas, inclusive a atividade contra vírus, bactérias, leveduras, fungos e
microalgas. Além de outras atividades: tais como, anticoagulante, antilipêmica, antitumoral,
hipocolesterolêmica, hipotensiva, hemostática, hemaglutinante e antiulcerogênica. Além
disso, uma grande variedade de aminas foi isolada de macroalgas, várias delas análogas a
neurotransmissores que são, geralmente, derivados descarboxilados de aminoácidos
(Yamamoto et al., 1982). KNEIFEL (1979) apresentou uma revisão das aminas
encontradas em algas; foi isolado de Laminaria angustula um aminoácido básico capaz de
prevenir a hipertensão em ratos, a laminina, ela é um derivado da lisina e provoca a
redução na força dos batimentos cardíacos, sem reduzir a freqüência; induz, ainda, ao
relaxamento da musculatura lisa do intestino, dos vasos capilares e da traquéia. Seu
mecanismo de ação reside no bloqueio dos receptores da acetilcolina e,da histamina.
Figura 5: Digenea simplex
http:\\www.botany.hawaii.edu/reefalgae
Figura 6: Laminaria digitata
http:\\www.botany.hawaii.edu/reefalgae
O ácido kaínico, isolado da alga rodofícea Digenea simplex (figura 5), tem sido
empregado em populações orientais como vermífugo, sendo também neuroativo; pois se
liga de maneira irreversível nos receptores para glutamato, constituindo uma importante
ferramenta de pesquisa neurofisiológica (Johnsson, 1980).
Tiramina e dopamina já foram isoladas de macroalgas (Monostroma, Polysiphonia,
Chondrus e Laminaria – (figura 6), que são consumidas na alimentação (Baslow, 1969;
Freitas & Marsiglio, 1986).
Nos Estados Unidos, a equipe do Dr. Robert S. Jacobs da Universidade da Califórnia
e do Dr. John Faulkner (www.mrd.ucsd.edu/jf/) tem como principal objetivo a verificação do
sítio e do mecanismo de ação de substâncias isoladas de organismos marinhos. Algumas
têm origem em algas e apresentam grande interesse farmacológico, por exemplo: a
Estipoldiona, isolada da alga parda Stypopodium zonale, que inativa a citocinese (inibe a
polimerização de microtúbulos), aumenta a sobrevida de camundongos leucêmicos e é um
poderoso agente espermatostático. Anteriormente já havia sido evidenciado que esse
produto natural reage com grupos sulfidrílicos de micromoléculas, peptídeos e proteínas,
inclusive da tubulina. O elatol e a elatona isoladas da alga vermelha (Laurencia sp) inibem
a divisão celular, tanto de zigotos de ouriço-do-mar, como de células cancerosas
humanas, em cultura (Jacobs & Wilson, 1986).
5
No Brasil o programa de pesquisas sobre produtos naturais de origem vegetal, com
finalidade terapêutica, desenvolve-se em duas linhas: a primeira, que consta de um
"screening" farmacológico de substâncias puras ou extratos, previamente obtidos por
químicos, de plantas que não possuem usos conhecidos na medicina popular. A segunda
que segue orientação oposta, isto é, sabendo-se previamente do uso empírico de
determinada planta na medicina folclórica, procura-se estudar o seu extrato brutos para
comprovação de suas·possíveis propriedades medicinais.
Referências
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Rocas. Dissertação de Mestrado em Biologia Marinha, Universidade Federal
Barbosa, J.P.; Teixeira, V. L; Villaça, R.; Pereira, R.C.; Abrantes, J.L., Frugulhetti, I.C.P.P. A
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7
Substâncias bioativas – Microalgas
Jeanete Lopes Naves ([email protected]) - Laboratório Farmacologia de Produtos
Naturais Marinhos
Ocasionalmente, algumas microalgas proliferam rapidamente podendo formar
manchas visíveis na superfície da água, provocando um fenômeno conhecido como maré
vermelha, floração ou “bloom”. Essas florações podem estar associadas a espécies de
microalgas que produzem toxinas que são acumuladas por organismos filtradores. Os
efeitos dessas florações tóxicas têm sido revisados por Landsberg (2002). Apesar de
serem fenômenos naturais, as florações efeitos negativos, causando perdas econômicas
para a aquacultura, pesca, turismo e impactos na saúde humana (Richardson and
Jorgensen, 1997; Hallegraeff, 2003,). Freitas 1995, As transferências dessas toxinas
através da cadeia alimentar podem afetar larvas e formas adultas de muitos organismos
marinhos.
O aparecimento de algas tóxicas vem aumentando não somente em número de
eventos, mas também em variedades de espécies e toxinas envolvidas (Hallegraeff, 1993,
2003). Explicações para esse crescente aumento são atribuídas a uma combinação de
temperatura, salinidade, luz, concentração de nutrientes, aumento da utilização das águas
costeiras para aquacultura, transporte de organismos para novas áreas pela água de lastro
de navios e sementes de mariscos contaminados (Holligan, 1985; Maclean 1989;
Halegraeff et al., 1988, Hallegraeff, 1993, Leong and Tagushi, 2004). Além disso, há um
crescente interesse pelo estudo destas toxinas mediante emprego de técnicas modernas
para sua identificação e quantificação, e também os aspectos toxicocinéticos e
toxicodinâmicos.
Existem pelo menos 90 espécies de microalgas marinhas conhecidas por produzirem
toxinas, dessas, 70 são dinoflagelados (Dinophyceae) (Taxonomic Reference List of Toxic
Plankton
Algae
of
Intergovernmental
Commission
–
IOC;
http://ioc.unesco.org/hab/data.htm). Pertencem principalmente as ordens Peridiniales,
Gymnodiniales e Dinophysales. Com relação às marés vermelhas tóxicas, quatro gêneros
podem ser destacados: Alexandrium, Dinophysis, Gymnodinium e Prorocentrum
(Shumway, 1990; Sournia, 1995).
O consumo de peixes ou mariscos contaminados por uma ou mais toxinas derivadas
desses dinoflagelados tem sido responsabilizado por casos de intoxicação humana, com
sintomas tais como diarréias, amnésias e paralisias, podendo nos casos graves levar à
morte (Daranas et al. 2001). As toxinas responsáveis por esses efeitos são em geral
compostos não protéicos e de baixo peso molecular (250-3500 Da), apresentando
estruturas químicas, solubilidade e modos de ação bem diferenciados. Podem ser hidro ou
lipofílicas, termolábeis ou não, sendo algumas altamente estáveis (Gasthwaite, 2000).
Os dinoflagelados produzem potentes compostos bioativos que podem ser extraídos
e concentrados a partir de seu cultivo ou animais marinhos que deles se alimentam
primaria ou secundariamente como bivalves, esponjas, peixes etc. São compostos
extremamente interessantes para estudos de fisiologia celular, que auxiliam na
compreensão do funcionamento de determinados mecanismos das células, devido à sua
ação como inibidores específicos.
Um dos principais metabólitos produzidos por dinoflagelados é a saxitoxina
(C10H17N7O4) e seus derivados, que estão envolvidos nas intoxicações paralisantes (PSP).
São toxinas termoestáveis, hidrossolúveis e de alta neurotoxicidade (Shimizu, 1987),
podendo ser encontradas em dinoflagelados do gênero Alexandrium, Pyrodinium e
Gymnodinium (Shimizu, 1987). A saxitoxina é o representante mais conhecido das toxinas
causdoras de PSP. O mecanismo de ação é comum a todos eles, exibindo diferenças na
potencia e em relação à abundância na amostra (Kodama, 2000). As toxinas paralisantes
bloqueiam a transmissão neural pela ligação ao canal de sódio dependente de voltagem,
causando inibição do fluxo de íons Na+ e impedindo as células nervosas de produzirem
potenciais de ação (Steidinger, 1983; Laycock et al., 1994; Asakawa et al., 1995).
As brevetoxinas (BTX-2, C50H70O14, BTX-9, C50H74O14), produzidas principalmente
pelo dinoflagelado Gymnodinium breve, provocam intoxicações do tipo neurotóxicas
(NSP). Estão envolvidas moléculas cíclicas lipossolúveis contendo vários grupamentos
éteres (Nakanish, 1985). O mecanismo de ação desta toxina é aumentar a atividade
condutora de canais de sódio dependentes de voltagem. Ela se liga ao sítio 5 do receptor
8 de canais de sódio voltagem-dependentes causando alterações na ativação e bloqueio da
inativação (Benoit et al., 1986; Cestèle e Catterall, 2000; Purkerson-Parker et al., 2000). A
formação de aerosol pelas ondas do mar durante uma floração pode produzir sintomas
semelhantes a asma e irritação nos olhos de banhistas (Baden et al, 1982, Fleming et al,
1995).
Nas intoxicações do tipo diarréicas (DSP) podem estar envolvidos o ácido okadaico
(C44H68NO13), as dinofisistoxinas, yessotoxina (C55H80O21S2Na2) e pectenotoxinas, que
apresentam estrutura molecular geral do tipo poliéter, com oxigênio e sem átomos de
nitrogênio, são termo-estáveis e insolúveis em água. Os dinoflagelados que causam este
tipo de intoxicação são dos gêneros Dinophysis e Prorocentrum (Murata et al., 1982, 1986,
1987). Originalmente, estudos farmacológicos demonstraram que o ácido okadaico causa
prolongada contração no músculo liso de artérias humanas (Shibata et al, 1982). Como
sabemos, a contração nesses músculos lisos é ativada pela fosforilação de uma
subunidade de miosina, e foi proposto que o efeito do ácido okadaico é devido a inibição
da fosfatase da cadeia leve da miosina (Takai et al., 1987). Considerando esta
observação, o ácido okadaico foi considerado um potente inibidor da proteína fosfatase 1
(PP1) e 2 (PP2), duas das quatro principais fosfatases em células de mamíferos (Cohen
and Cohen, 1989; Haystead et al, 1989; Cohen et al., 1990; Hardie et al., 1991). As
proteínas fosfatases constituem um grupo de enzimas ligadas a processos metabólicos
cruciais dentro de uma célula (Cohen, 1989), e conseqüentemente a inibição dessas
enzimas produz estados de hiperfosforilação, resultando em uma variedade de efeitos
secundários alterando vias metabólicas e eventualmente levando à morte celular.
A ciguatoxina (C60H86O19), maitotoxina (C164H256O68S2Na2), palitoxina (C129H223N3O54)
e o ácido okadaico estão envolvidos na intoxicação ciguaterica, onde estão presentes os
dinoflagelados Gambierdiscus toxicus e outros do gênero Prorocentrum (Yasumoto and
Murata, 1993). Alguns cientistas acreditam que os sintomas causados pela ciguatera
(CFP) são resultados da combinação de várias toxinas e/ou seus metabólitos, produzidos
por um ou mais dinoflagelados (Tindall et al., 1984; Juranovic and Park, 1991). Entretanto,
Gambierdiscus toxicus, dinoflagelado bentônico encontrado colonizando a superfície de
macroalgas que servem de alimento para peixes herbívoros, é considerado o principal
agente etiológico (Bagnis et al., 1980; Lewis and Holmes, 1993). As espécies bentônicas
Ostreopsis siamensis, O. lenticularis, Coolia monotis, Prorocentrum lima possivelmente
estão relacionadas a ciguatera (Hallegraeff, 1993). Lombet et al (1987) mostraram que a
ciguatoxina age no sítio 5 de canais de sódio dependentes de voltagem. Esses canais são
os elementos da membrana envolvidos na função dos nervos e músculos de gerar e
propagar potenciais de ação. A conseqüência fisiológica da ligação nesses canais iônicos
é o aumento da excitabilidade celular, a qual resulta em repetitivos disparos de potenciais
de ação, seguido da diminuição na excitabilidade à medida que a membrana se
despolariza (Lehane and Lewis, 2000; Lewis et al., 2000).
Um número recente de intoxicações humanas na Europa, pelo consumo de mariscos
Irlandeses, tem sido atribuído a presença de uma nova classe de toxinas chamadas
azaspiracideas (AZP), polieter altamente oxigendo (Satake et al, 1998). O estudo
demonstra que esta toxina comporta-se diferentemente de outras toxinas poliéteres
conhecidas. Tipicamente, toxinas poliéteres do tipo da dinofisistoxina são concentradas
nas glândulas digestivas de mariscos, mas esta situação não ocorre sempre com as
azaspiracideas (James et al., 2002 a,b). A administração oral em camundongos dessa
toxina causou necrose no intestino e nos tecidos linfóides de órgãos, tais como o timo e o
baço. Linfócitos T e B também são danificados. Essas afecções são totalmente diferentes
daquelas causadas pelo ácido okadaico, responsável pelo envenenamento diarréico por
ingestão de mariscos (Ito et al., 2000).
No Sul do Brasil foram encontradas espécies de dinoflagelados que produzem
toxinas do tipo diarréica e paralisante (Proença et al., 1998, 1999, 2000). Ocorrências de
proliferações de dinoflagelados têm sido registradas no Brasil por Freitas e Lunetta (1982),
CETESB (1980, 1983) e Tommasi (1985).
No Estado de São Paulo, litoral norte, o
extrato do dinoflagelado Prorocentrum mexicanum apresentou efeito citotóxico em
neuroblastoma atuando sobre o citoesqueleto, desorganizando os microfilamentos (Naves
et al, 2006). Trabalhos anteriores demonstraram a ocorrência de toxinas paralisantes em
ascídiaceos, crustáceos e micro-organismos isolados de mexilhões (Freitas et al, 1992 a,
b, 1995).
9
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12 Substâncias bioativas – anêmonas-do-mar
André Junqueira Zaharenko ([email protected]), Wilson Ferreira Junior
([email protected]) - Laboratório Farmacologia de Produtos Naturais Marinhos
Os cnidários são animais de estrutura radial, a maioria com tentáculos. Esses podem
ocorrer em formas fixas (hidras ou pólipos) ou móveis (medusas), sendo representados
por várias espécies ao longo do litoral do Brasil. As caravelas, que pertencem à classe
Hidrozoa e à espécie Physalia physalis , são muitos comuns, especialmente nas regiões
Norte e Nordeste e podem provocar acidentes graves. As cubomedusas, da classe
Cubozoa, estão associadas a acidentes fatais em vários países e duas espécies são
comuns no Brasil: a Tamoya haplonema e a Chiropsalmus quadrumanus.
Vidal Haddad Jr. notificou que em uma série de 144 acidentes provocados por
animais marinhos observados no pronto-socorro de Ubatuba (SP), cerca de 25% foram
causados por cnidários.
Apesar das anêmonas não estarem relacionadas entre os principais responsáveis
por acidentes, sendo que são animais sésseis (algumas espécies conseguem deslocar-se
por pequenas distancias) e de pequeno porte, estudos dos compostos formados na
peçonha deste animal vêm contribuindo muito para avanços do conhecimento no campo
da Farmacologia de Produtos Naturais e temas correlacionados.
Como todo animal peçonhento, as anêmonas do mar empregam toxinas para
paralisar suas presas ou se defenderem de predadores. Todos os cnidários, filo ao qual
pertencem as águas-vivas, os corais e também as anêmonas, possuem nos cnidócitos,
estruturas celulares microscópicas, similares a arpões, denominadas de nematocistos,
responsáveis pela inoculação de peçonha rica em potentes neurotoxinas paralisantes.
Este grupo de toxinas age sobre crustáceos e peixes (Abita et al., 1977; Malpezzi et al.,
1993; Lagos et al., 2001). Adicionalmente a estas neurotoxinas, foi também mostrada a
presença de hemolisinas (Malpezzi and Freitas, 1991; Lagos et al., 2001; Anderluh and
Macek, 2002; Oliveira et al., 2004). As hemolisinas são proteínas que formam poros em
membranas celulares e causam desequilíbrio osmótico e lise celular (Lanio et al., 2001;
Hong et al., 2002).
Desde a década de 70, vários estudos vêm sendo realizados com o intuito de
caracterizar os mecanismos envolvidos na ação das toxinas de anêmonas. Trabalhos
clássicos (Beress et al., 1975; Norton et al., 1980) elucidaram os mecanismos de ação das
toxinas ATX-I, II e III da anêmona Anemonia sulcata, habitante do mar Mediterrâneo,
mostrando que estas toxinas retardam a inativação dos canais de sódio dependentes de
voltagem. Com o surgimento, na década de 70 e início da década de 80, da técnica de
“patch-clamp”, a caracterização de peptídeos das mais diversas fontes animais, bem como
de sua atividade biológica, teve um avanço considerável. Neste sentido, foi possível
evidenciar que as toxinas isoladas de anêmonas do mar apresentam ações em diversos
canais iônicos, mostrando grande potencial farmacológico. Assim, a toxina ShK, isolada da
anêmona caribenha Stichodactyla helianthus, mostrou ser potente bloqueador de canais
para K+ dependentes de voltagem, discriminando principalmente os subtipos Kv1.1 e 1.3
(Kalman et al., 1998) e Kv3.2 (Yan et al., 2005). Os canais Kv1.3 são altamente expressos
em linfócitos-T, durante ativação do sistema imune. Assim, a caracterização de fármacos
capazes de bloquear estes canais torna-se altamente atrativa em terapias para o controle
de doenças auto-imunes (Ghanshani et al., 2000; Beeton et al., 2001; Beeton and Chandy,
2005). Desta forma, foram obtidos, por meio de mutações sítio-dirigidas, análogos da
toxina ShK com maior atividade biológica, para possibilitar o desenvolvimento de
imunossupressores (Beeton et al., 2001). Foram também estabelecidas metodologias
teóricas para a síntese de compostos que apresentem apenas as cadeias laterais dos
aminoácidos envolvidos no bloqueio destes canais (Baell and Huang, 2002).
Recentemente, foi descrita uma nova classe de toxinas peptídicas de anêmonas,
cujos representantes principais são as toxinas APETx1 e APETx2 isoladas de extratos da
anêmona Anthopleura elegantissima (Diochot et al., 2003; Diochot et al., 2004). A primeira
toxina é um modulador de canais para potássio do tipo HERG (“Human Ether-a-gogo
Related Gene) e a segunda, um bloqueador de canais do tipo ASIC (“Acid-sensing Ion
Channels”). Da espécie japonesa Antheopsis maculata, Honma e colaboradores (2005)
isolaram outro peptídeo com sequência primária similar a APETx1 e 2. Sugere-se que no
13
futuro, muitas toxinas dessa nova categoria sejam isoladas e, conseqüentemente, novos
canais iônicos sejam caracterizados como alvos destas toxinas.
A caissarona, um composto de baixo peso molecular isolado de extratos de
Bunodosoma caissarum, uma espécie endêmica do litoral brasileiro, induz poliespermia
em ovos de ouriço do mar da espécie Lytechinus variegatus e aumenta a motilidade
intestinal de íleo isolado de cobaia (de Freitas and Sawaya, 1990). Cooper e
colaboradores (1995) mostraram que o aumento da motilidade intestinal era conseqüência
da capacidade da caissarona em antagonizar receptores para adenosina.
Em 1993, foi também isolada da fração neurotóxica da peçonha de B. caissarum, a
toxina BcIII, um polipeptídeo de 48 resíduos de aminoácidos que pertence às toxinas do
tipo 1 de anêmonas do mar (Malpezzi et al., 1993). Posteriormente, a mesma toxina foi
ensaiada em canais de sódio humanos clonados (Nav 1.1 a 1.6), os quais estão presentes
no sistema nervoso central (Nav1.1, 1.2, 1.3), sistema nervoso periférico (Nav1.6),
musculatura esquelética (Nav1.4) e cardíaca (Nav1.5). Os resultados mostraram que a
BcIII e outras duas toxinas de anêmona (ATXII e AFTII) ligam-se a alguma outra região
dos canais de sódio, além do suposto sítio 3 (Oliveira et al., 2004). Como conseqüência,
há retardo na inativação desses canais e aumento do pico da corrente e da corrente
persistente. Esses dados sugerem que outras regiões dos canais de sódio estão
envolvidas no processo de inativação dos mesmos, abrindo a possibilidade de que os
peptídeos de anêmonas sejam empregados como protótipos para o desenvolvimento de
novas drogas ou como importantes ferramentas farmacológicas no estudo da biofísica de
canais de sódio.
Outra anêmona da costa brasileira que já foi estudada é a Bunodosoma cangicum,
congênere de B. caissarum. Araque e colaboradores (1995) testaram a peçonha deste
animal e encontraram atividade inibitória sobre canais de K+ dependentes de Ca2+.
Posteriormente, Lagos e colaboradores (2001) observaram que diferentes frações da
peçonha deste animal apresentavam atividade hemolítica e neurotóxica. Estas
neurotoxinas atuam sobre canais de sódio dependentes de voltagem, além de inibirem
canais de potássio dependentes de voltagem.
Além das neurotoxinas e das hemolisinas de anêmonas, a única menção que se faz
a compostos de baixo peso molecular é o trabalho de Garateix et al. (1996). Neste artigo,
os autores observaram que uma fração eluída no final da cromatografia de gel-filtração
(Sephadex G-50), da peçonha da anêmona Phyllactis flosculifera, bloqueava receptores
glutamatérgicos metabotrópicos em neurônios de gastrópodes. Sabe-se, por exemplo, que
o neurotransmissor muscular de crustáceos e insetos é o glutamato. Desta forma, é
possível que predadores desses invertebrados tenham desenvolvido, além de toxinas que
atuem em canais iônicos, toxinas que possam interferir com receptores glutamatérgicos.
Recentemente foram isolados compostos bromados e de baixo peso molecular
provenientes da peçonha de B. cangicum. Através da filtração em gel da peçonha destes
animais, obteve-se uma fração que é eluída no final do cromatograma, denominada de
fração V (FrV). Após repurificação da mesma em cromatografia líquida de fase reversa de
alto desempenho (HPLC), foram obtidos vários compostos de massas moleculares
variando entre 300 e 600 Da. Dentre estes compostos, a molécula majoritária da FrV
apresentou atividade analgésica periférica marcante, quando administrado em ratos.
Portanto, devido ao grande “leque” de atividades das moléculas produzidas nos
nematocistos das anêmonas, aqui demonstrado, torna-se claro a conclusão de que este
grupo desperta um enorme interesse dentro da comunidade científica, principalmente as
áreas interligadas com a farmacologia de produtos naturais.
14 Substâncias bioativas - animais terrestres
Bruno Garcia Stranghetti ([email protected])
Farmacologia de Produtos Naturais Marinhos
–
Laboratório
de
Os animais terrestres, assim como os marinhos, apresentam substâncias bioativas
que podem causar acidentes, alguns até fatais. Neste texto foram selecionados aqueles de
maior interesse devido à composição e toxicidade da sua peçonha. Entre esses
organismos estão as aranhas, escorpiões e serpentes.
As aranhas do gênero Phoneutria são popularmente conhecidas como aranhas
armadeiras. Sua peçonha é de natureza protéica, constituída de peptídeos básicos.
Estudos demonstraram que a peçonha tem efeito modulador nos canais de sódio
neuronais, o que provoca despolarização das fibras musculares favorecendo a liberação
de neurotransmissores, principalmente acetilcolina e catecolaminas. Há também efeitos
cardiovasculares, que em ratos parecem ser decorrentes da ativação dos canais de cálcio
(Bucaretchi, 1997). A peçonha das aranhas marrons, Loxosceles, possui ação
dermonecrótica, devido aos seus componentes proteolíticos e necrotóxicos. Ocorre
também hemólise intravascular por interação da peçonha com a membrana do eritrócito
(Torres et al., 1997).
Em relação aos escorpiões, sua peçonha é uma mistura complexa composta de
grande número de proteínas básicas, de baixo peso molecular, associadas a aminoácidos
livres e sais. Não apresenta atividade hemolítica, proteolítica e fosfolipásica, nem contém
fibrinogênio. A toxina escorpiônica provoca efeitos moduladores nos canais de sódio,
produzindo despolarização das terminações nervosas pós-ganglionares dos sistemas
simpáticos e parassimpáticos, o que causa grande liberação de neurotransmissores
(adrenalina, noradrenalina e acetilcolina) (Hering et al., 1997).
Entre as serpentes conhecidas no mundo, apenas 10% delas são peçonhentas. No
Brasil a fauna ofídica de interesse médico está representada pelos gêneros Bothrops,
Crotalus, Lachesis, Micrurus, Philodryas e Clelia.
Os acidentes com Bothrops (jararacas) correspondem aos de maior importância
epidemiológica no país, já que são responsáveis por cerca de 80 a 90% dos
envenenamentos registrados pelo Ministério da Saúde (Cardoso, 1997). Segundo este
mesmo autor, a peçonha dos animais deste gênero possui várias ações, tais como: ação
proteolítica, devido à presença de proteases, hialuronidases e fosfolipases; ação
coagulante, já que a maioria das peçonhas botrópicas ativa o fator X e a protrombina, e
possuem também ação semelhante à trombina, convertendo o fibrinogênio em fibrina;
ação hemorrágica, decorrente da presença de metaloproteínas ácidas, as hemorraginas,
que provocam lesões na membrana basal dos capilares.
A peçonha das serpentes cascavéis, gênero Crotalus, é um complexo tóxico
enzimático, cujo fracionamento tem revelado componentes peptídicos com efeitos que
variam nas diferentes espécies animais. As ações tóxicas das peçonhas de crotalídeos
são conhecidas por possuírem: ação neurotóxica, produzida pela crotoxina, uma
neurotoxina de ação pré-sináptica, inibindo a liberação de acetilcolina, que leva a um
bloqueio muscular; ação miotóxica, que produz lesões nas fibras musculares esqueléticas
levando à liberação de enzimas e mioglobina para o sangue, que são excretadas pela
urina; ação coagulante, produzida pela fração tipo trombina, que converte o fibrinogênio
diretamente em fibrina, podendo levar à incoagulabilidade sanguínea (Azevedo-Marques et
al.,1997).
Os acidentes com serpentes do gênero Lachesis, conhecidas como surucucu,
surucutinga e outros, são raros em nosso país. Esta espécie possui peçonha com
atividades diversas, tais como a: ação proteolítica, com enzimas que podem induzir a
liberação de substâncias vasoativas, tais como histamina e bradicinina, podendo levar ao
choque nos envenenamentos; ação coagulante, que resulta no consumo de fibrinogênio,
que coagula e se deposita principalmente nos capilares pulmonares; e ação hemorrágica,
com liberação de hemorragina que age sobre os vasos capilares destruindo a membrana
basal e causando sua ruptura (Santos e Mulle, 1997).
No caso de espécies de cobras-corais, pertencentes ao gênero Micrurus, as
atividades da peçonha apresentam, em humanos, efeitos neurotóxicos e miotóxicos. As
peçonhas desta serpente são constituídas por neurotoxinas pré-sinápticas, com proteínas
com atividade fosfolipásica, que impedem a liberação de acetilcolina na junção
15
neuromuscular; neurotoxinas pós-sinápticas, com proteínas desprovidas de atividade
enzimática, que competem pela ligação nos receptores colinérgicos das membranas póssinápticas das junções neuromusculares. Também estão presentes miotoxinas com efeitos
que podem estar associados à ação neurotóxica (Silva Jr, 1997).
Figura 1. A liberação de neurotransmissores da membrana pré-sináptica para a pós-sináptica
gera nesta um potencial de ação que conduz o impulso elétrico para outro neurônio ou para um
órgão efetuador. Na situação 1 há um bloqueio pré-sináptico onde substâncias impedem a
liberação dos neurotransmissores. Na situação 2 há um bloqueio pós-sináptico, onde
substâncias competem pela ligação dos neurotransmissores no receptores pós-sinápticos.
Referências
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Porto Alegre, RS.
BUCARETCHI, F. 1997. Cap. 6.1 – Phoneutria. In: NICOLELLA, A., BARROS, E., TORRES,
J.B. & MARQUES, M.G. (eds.) Acidentes com animais peçonhentos: Consulta Rápida,
pp. 117-124. Hospital das Clínicas de Porto Alegre: Porto Alegre, RS.
CARDOSO, J.L.C. 1997. Cap. 5.1 – Bothrops. Serpentes Brothrops de impotância médica. In:
NICOLELLA, A., BARROS, E., TORRES, J.B. & MARQUES, M.G. (eds.) Acidentes com
animais peçonhentos: Consulta Rápida, pp. 79-85. Hospital das Clínicas de Porto Alegre:
Porto Alegre, RS.
HERING, S.E., AZEVEDO-MARQUES, M. & CUPO, P. 1997. Cap. 7.1 – Tityus. In:
NICOLELLA, A., BARROS, E., TORRES, J.B. & MARQUES, M.G. (eds.) Acidentes com
animais peçonhentos: Consulta Rápida, pp. 141-147. Hospital das Clínicas de Porto
Alegre: Porto Alegre, RS.
SANTOS, M.C. & MULLE, L.D. 1997. Cap. 5.3 – Lachesis. In: NICOLELLA, A., BARROS, E.,
TORRES, J.B. & MARQUES, M.G. (eds.) Acidentes com animais peçonhentos: Consulta
Rápida, pp. 100-103. Hospital das Clínicas de Porto Alegre: Porto Alegre, RS.
SILVA Jr., N.J. 1997. Cap. 5.4 – Micrurus. In: NICOLELLA, A., BARROS, E., TORRES, J.B. &
MARQUES, M.G. (eds.) Acidentes com animais peçonhentos: Consulta Rápida, pp. 104110. Hospital das Clínicas de Porto Alegre: Porto Alegre, RS.
TORRES, J.B., MARQUES, M.G., NICOLELLA, A. & KLUWE, L.H.S. 1997. Cap. 6.3 –
Loxosceles. In: NICOLELLA, A., BARROS, E., TORRES, J.B. & MARQUES, M.G. (eds.)
Acidentes com animais peçonhentos: Consulta Rápida, pp. 127-129. Hospital das
Clínicas de Porto Alegre: Porto Alegre, RS.
16 Fisiologia da Dor
Wilson Ferreira Junior ([email protected]) - Laboratório Farmacologia de Produtos
Naturais Marinhos
Dor é uma qualidade sensorial complexa, freqüentemente não relacionada ao grau
de lesão tecidual. A interpretação da sensação dolorosa envolve não apenas os aspectos
físico-químicos da transmissão da dor, da periferia para o sistema nervoso central
(nocicepção), mas também os componentes sócio-culturais dos indivíduos e as
particularidades do ambiente onde o fenômeno nociceptivo é experimentado.
A dor evoca emoções e fantasias, muitas vezes incapacitantes, que traduzem o
sofrimento. Incertezas, medo da incapacidade, da desfiguração e da morte, preocupação
com perdas materiais e sociais são alguns dos diferentes componentes do grande
contexto dos traços que descrevem o comportamento do doente com dor. A limitação para
execução das atividades da vida diária, profissionais, sociais e familiares, o
comprometimento do ritmo sono, do apetite e do lazer contribuem para agravar o
sofrimento dos que padecem de dor.
Apesar do grande desenvolvimento observado, nesses últimos anos, no campo do
conhecimento sobre a fisiopatologia da dor, alguns estudos revelam que, em varias
situações clínicas, o fenômeno doloroso não é adequadamente controlado, pois,
freqüentemente, muitos dos componentes não nociceptivos do sofrimento não são
enfocados e tratados.
Diversas terapias antiálgicas compreendendo associação de novos fármacos, meios
físicos, bloqueios de vias sensitivas, ablação ou estimulação de sistemas sensoriais, têm
sido propostas e empregadas, nos últimos anos, para o tratamento da dor. A sofisticação
da tecnologia, por si só, não significa assistência adequada. Muitas vezes, procedimentos
ou emprego de equipamentos complexos implicam em custos elevados e são,
freqüentemente, desnecessários para minimizar o desconforto.
O maior contingente das síndromes álgicas pode ser controlado com medidas
farmacológicas e físicas simples que estão ao alcance de todos os profissionais da saúde.
Obviamente, o manejo sintomático correto dos quadros dolorosos pressupõe o diagnóstico
etiológico da dor e a remoção prévia, sempre que possível, dos fatores implicados em sua
gênese. A história e o exame clínico são, sem dúvida, os principais instrumentos para a
elucidação das causas da dor.
A história da evolução do conhecimento sobre os fenômenos dolorosos remonta às
sociedades antigas. Nestas, a dor, sem outra causa aparente como traumatismo, era
atribuída à invasão do corpo por maus espíritos e como punição dos deuses. Acreditavase que o coração e os vasos sanguíneos estivessem envolvidos na apreciação do
fenômeno doloroso. Na Índia, a dor foi reconhecida como uma sensação e seus aspectos
emocionais, realçados. Na China, a dor e as doenças eram atribuídas ao excesso ou
deficiência de certos fluidos no interior do organismo. Na Grécia, nos séculos V e VI A.C.,
foi atribuído ao cérebro e nervos, e não ao coração, o processamento da sensação
nociceptiva. No entanto, para Aristóteles, que caracterizou as cincos modalidades
sensoriais, a estimulação dolorosa era conduzida pelo sangue, ao coração.
Os conceitos de Aristóteles predominaram durante a Idade Média. Somente após o
Renascimento foi, definitivamente, atribuído ao sistema nervoso central (SNC) o papel
fundamental no mecanismo das sensações e da nocicepção. Nos séculos XVI e XVII,
Descartes introduziu os conceitos sobre a especificidade das vias nervosas envolvidas na
nocicepção que se firmaram completamente no século XIX.
A Teoria das Especificidades, desenvolvida no século XIX, a partir dos trabalhos de
Descartes, propôs a existência de terminações nervosas distintas para variedade de
sensação cutânea. No final do século XIX, foi divulgada a Teoria do Padrão de Estímulos,
segundo a qual, não existiriam estruturas especificas responsáveis pela estimulação
nociceptiva no sistema nervoso periférico(SNP) e SNC. Esta teoria afirmava que o padrão
temporal e espacial dos estímulos conduzidos por canais sensoriais inespecíficos é que
determinaria se a sensação seria nociceptiva ou não.
Com a evolução dos conhecimentos, percebeu-se que a Teoria da Especificidade é
falha, pois confunde especialização com especificidade e pelo fato de não ter sido
encontrado, no sistema nervoso, estruturas específicas para a veiculação das informações
nociceptivas. Conclui-se, também que a Teoria de Padrão de Estímulos é incompleta, pois
17
não reconhece a existência, no SNC, de estruturas especializadas para o processamento
das informações relacionadas com as qualidades sensoriais específicas. No SNC e SNP,
há certo grau de especialização funcional e a somação de estímulos também está
envolvida no mecanismo de dor.
Melzack e Wall, em 1965, apresentaram a Teoria da Comporta que concilia
conceitos da Teoria da Especificidade com os da Teoria do Padrão de Estímulos, firmando
o principio de interação sensorial. Esta teoria propõe que o impulso conduzido pelo SNP
ao SNC sofre a atuação de sistemas moduladores, antes que a percepção dolorosa seja
evocada. A substância gelatinosa do corno posterior da medula espinal atua como
moduladora dos estímulos aferentes e os tratos dos funículos posteriores ativam estruturas
encefálicas que, por meio de fibras descendentes, alcançam o cordão medular onde
ocorre a modulação.
Do balanço entre a atividade dos aferentes primários, que conduzem informação
nociceptiva, e a atividade inibitória das vias segmentares e supra-segmetares resulta a
sensação dolorosa. Na década de 70, Melzack apontou as várias dimensões da dor
sensitivo-discriminativa, afetivo-motivacional e cognitiva. Assim, aspectos sensoriais,
afetivos, culturais e emocionais compõem o fenômeno doloroso. A Teoria das Comportas
teve o mérito de atrair a atenção dos investigadores sobre os processos envolvidos na
modulação da dor.
Atualmente, sabe-se que o controle da dor é mais complexo do que o esquema
proposto. A transmissão da dor, da periferia para o SNC, está associada à atividade
elétrica das fibras nervosas aferentes primárias, as quais possuem terminações sensoriais
nos tecidos periféricos e são ativadas por estímulos mecânicos, térmicos e químicos.
Muitas destas fibras nervosas aferentes são denominadas nociceptores polimodais (fibras
C), possuindo baixa velocidade de condução, por não apresentarem mielina. As fibras
nociceptivas mielinizadas, denominadas Aδ, conduzem mais rapidamente os estímulos
periféricos.
Figura 1: A velocidade de condução do impulso nervoso é diretamente relacionada ao
diâmetro da fibra. A dor aguda e súbita é transmitida pelas fibras A, enquanto que a dor
persistente e mais lenta é transmitida pelas fibras C.
Neurônios aferentes primários tem 3 funções principais relacionadas à nocicepção:
1- detecção do estímulo nocivo ou lesivo (transdução); 2- passagem do estímulo sensorial
resultante do terminal periférico para a medula espinhal (condução); 3- transferência
sináptica desses impulsos para neurônios em lâminas específicas do corno dorsal da
medula espinhal (transmissão). Da medula espinhal, a informação sensorial é então
enviada para estruturas supraespinhais (Kidd & Urban, 2001).
18 4 4
1 = Estimulo nocivo;
2 = Ativação do nociceptor;
3
3 = Transmissão para o cérebro;
4 = Percepção como dor.
1= calor
2
Dor transitória é normalmente observada quando fibras nervosas primárias aferentes
do tipo C e Aδ são ativadas por estímulos breves de alta intensidade, que produzem pouco
ou nenhum dano tecidual. Durante o desenvolvimento de uma resposta inflamatória, as
fibras nervosas, particularmente as do tipo C, são ativadas por estímulos de baixa
intensidade, acarretando dor mais persistente. Neste caso, a sensibilização dos receptores
da dor (nociceptores), causando hiperalgesia, é o denominador comum de todos os tipos
de dor inflamatória.
O fenômeno de hiperalgesia envolve tanto a sensibilização das terminações
nervosas nociceptivas periféricas, pela ação de mediadores químicos, quanto facilitação
central (corno dorsal da medula espinhal e tálamo) da transmissão nervosa (Levine et al.,
1993; Dray, 1994).
Além dos receptores polimodais C, um grupo adicional de nociceptores,
denominados receptores "silenciosos" ou "adormecidos" (silent nociceptors/ sleeping
nociceptors), são ativados durante processos inflamatórios, contribuindo para a
hiperalgesia. Estas fibras aferentes são encontradas na pele, articulações e em órgãos
viscerais (Schaible & Schmidt, 1988; Schemelz et al., 1994). É importante salientar que, na
vigência de estímulos nociceptivos de grande intensidade, dor pode ser observada
também em resposta a outros estímulos que usualmente não provocam dor (estímulos não
nocivos). Este processo é denominado de alodinia (Kidd & Urban, 2001; Dworkin et al.,
2003).
Várias substâncias sintetizadas e/ou liberadas durante o processo inflamatório
podem interferir com a atividade de fibras nervosas sensitivas aferentes (Schaible &
Richter, 2004). Estes mediadores, através da atuação em receptores específicos e
geração de segundos mensageiros, agem: a) ativando diretamente os nociceptores,
causando dor (bradicinina, histamina e substância P, por exemplo) ou b) induzindo
hiperalgesia (eicosanóides, serotonina, dopamina). Alguns dos mediadores que ativam
diretamente os nociceptores podem acarretar, também, hiperalgesia, pela liberação de
agentes hiperalgésicos. A bradicinina é um exemplo deste tipo de mediador (Cunha et al.,
1992; Ferreira et al., 1993; Dray, 1995, 1997).
O corno dorsal da medula espinhal é um sítio importante no processo de transmissão
da informação nociceptiva da periferia para o Sistema Nervoso Central. Muitos
neurotransmissores, agindo em receptores específicos, estão envolvidos na modulação da
transmissão desta informação nociceptiva neste sítio medular (Aimone & Yaksh, 1989).
Estes neurotransmissores incluem os aminoácidos excitatórios, como o glutamato, e
neurocininas, como a Substância P, a Neurocinina A e o Peptídeo Relacionado ao Gene
da Calcitonina (Kidd & Urban, 2001; Schaible & Richter, 2004). Alem disso, as células da
glia (astrócitos e microglia) da medula espinhal, por meio da liberação de mediadores
nociceptivos, têm papel relevante para a transmissão da informação nociceptiva no SNC.
19
É importante salientar que estruturas presentes no tronco encefálico, através de
projeções descendentes excitatórias e inibitórias, são capazes de modular a transmissão
da informação nociceptiva na medula espinhal (Schaible & Richter, 2004). Estas vias
inibitórias envolvem sistemas serotoninérgicos, noradrenérgicos e opioidérgicos. Além
destes sistemas, o sistema histaminérgico central, diferentemente do observado na
periferia, está também envolvido no controle da dor (Thoburn et al., 1994; Paul et al.,
2002).
O conhecimento sobre a dor e seu controle tem favorecido o desenvolvimento de
novos fármacos analgésicos. Neste sentido, a busca por fármacos analgésicos
desprovidos de efeitos adversos no SNC tem contribuído para ampliar o conhecimento dos
mecanismos periféricos da dor, bem como de sua modulação, ainda no terminal
nociceptivo primário.
Analgésicos com ação periférica podem atuar prevenindo a sensibilização dos
nociceptores (Ferreira, 1972; Ferreira et al., 1973), como os antiinflamatórios não
esteroidais, ou interferindo, direta ou indiretamente, com os receptores da dor já
sensibilizados, como, por exemplo, a dipirona, os opióides ou substâncias liberadoras de
opióides endógenos e o óxido nítrico (Ferreira et al., 1988; Ferreira, 1994; Ferreira &
Lorenzetti, 1995).
Vários estudos sobre os mecanismos moleculares envolvidos na ação periférica dos
fármacos que agem interferindo com os receptores da dor já sensibilizados têm mostrado
a existência de uma via única comum para a ação destes fármacos. Assim, estes trabalhos
têm evidenciado que opióides, doadores de óxido nítrico ou mesmo antiinflamatórios não
esteroidais, como o ketorolac promovem analgesia via ativação da via óxido
nítrico/GMPc/PKG e abertura de canais para potássio (Ferreira et al., 1991; Duarte et al.,
1992; Ferreira & Lorenzetti, 1995; Lorenzetti & Ferreira, 1996; Rodrigues & Duarte, 2000;
Lázaro-Ibáñez et al., 2001; Alves et al., 2004; Sachs et al., 2004).
Assim os canais de potássio têm sido considerados como um dos mediadores finais
da ação analgésica periférica destes fármacos. Adicionalmente, evidências experimentais
têm mostrado o envolvimento destes canais no efeito central de drogas analgésicas, como
agonistas α-adrenérgicos e antihistamínicos (Galeotti et al., 1999). Estes canais têm sido
caracterizados como canais de potássio sensíveis a ATP, ativados por cálcio ou
dependentes de voltagem. (Galeotti et al., 1999; Santos et al., 1999; Ortiz et al., 2002).
Dessa forma, a ação de drogas sobre canais para K+, que resulte na
hiperpolarização da membrana e inibição da excitabilidade da célula, tem sido explorada
para se obter analgesia (Dray & Urban, 1996), favorecendo pesquisas de novos fármacos
analgésicos periféricos com atividade sobres estes canais.
Referências
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from rat spinal cord in vivo. Peptides 1989 (10): 1127-1131.
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antinociceptive effect of the combination of diazoxide, an activator of ATP-sensitive K+
channels, and sodium nitroprusside and dibutyryl-cGMP. Eur J Pharmacol 1989 (489): 59-65.
Dray A. Tasting the inflammatory soup: role of pheripheral neurones. Pain Rev 1994 (1):
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Dray A. Inflammatory mediators of pain. Br J Anaesth 1994 (75): 125-131.
Dray A, Urban L. New pharmacological strategies for pain relief. Annu Rev Pharmacol
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nociceptor sensitization involves the arginine-nitric oxide-cGMP pathway. Eur J Pharmacol 1994
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21
22 COMPLEXIDADE
BIOLÓGICOS
EM
SISTEMAS
Aula Inagural
Breno Santos ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia Teórica
Algumas Definições:
Antes de começarmos nossa discussão sobre complexidade em sistemas biológicos
precisamos, primeiramente, estabelecer duas definições: a definição de complexidade e a
definição de sistema. Vamos começar pela segunda delas. Vamos observar definições de
sistema advindas de mundos (aparentemente!) muito distintos.
“A system is a combination of components that act together and perform a certain
objective. A system is not limited to physical ones. The concept of the system can be
applied to abstract, dynamic phenomena such as those encountered in economics. The
word system should, therefore, be interpreted to imply physical, biological, economics, and
the like, systems.”
Ogata, K., Modern Control Engineering
“... system is defined as a unit by the relations between its components which
realize the system as a whole, and its properties as a unity are determined by the way this
unity is defined, and not by the particular properties of its components.”
Varela, F. G., Maturana, H. R. e Uribe, R., Autopoiesis: The Organization of Living
Systems, Its Characterization and a Model
Podemos perceber então, que as ciências exatas e as ciências biológicas possuem
um denominador comum a respeito da definição do termo sistema; é um conjunto de
partes as quais estabelecem relações entre si. Se podemos reduzi-lo à soma de suas
partes constituintes, ou se apresenta as chamadas propriedades emergentes, isso é
discussão para outra hora e local!
E quanto à complexidade? O senso comum chama de simples os sistemas que,
aparentemente, possuem um ou poucos objetos e ações constituintes. Imagine um mol de
um gás às CNTP, em equilíbrio, encerrado em uma caixa de 1cm³. Isso é um sistema
simples ou complexo? Muitos diriam que é um sistema simples, pois não percebemos
nenhuma atividade coordenada ou forma de dinâmica, esse sistema “não faz nada” nem
“vai para lugar algum”. Porém perceba que estamos falando de, nessas condições, 6,023 x
10²³ moléculas de gás, comportando-se individualmente (dado que a interação entre elas
ocorre em escalas de angstroms), ou seja, estamos falando do que Boltzmann chamou de
caos molecular. Complexo ou não? Observemos o seguinte trecho escrito pelo físico
Murray Gell-Mann (grifos meus):
“As measures of something like complexity for an entity in the real world, all such
quantities are to some extent context-dependent or even subjective. They depend on the
coarse graining (level of detail) of the description of the entity, on the previous
knowledge and understanding of the world that is assumed, on the language employed,
on the coding method used for conversion from that language into a string of bits, and on
the particular ideal computer chosen as a standard.”
Gell-Mann, M., What is Complexity?
O que Gell-Mann quer nos dizer é que uma medida de complexidade está
intimamente conectada a idéias sobre informação. Na teoria da informação proposta por
Shannon, uma seqüência de bits aleatória é a que possui a maior quantidade de
23
informação. Ouvir o chiado (“random sequence”) de um rádio mal sintonizado lhe traz
alguma informação? Não. Porém o chiado começar ou parar sim. Vejamos o que diz
Russel Standish:
“Random sequences have maximum complexity, as by definition a random sequence
can have no generating algorithm shorter than simply listing the sequence. ..., this
contradicts the notion that random sequences should contain no information.”
Standish, R. K., On Complexity and Emergence.
No capítulo intitulado Informação será apresentado o conceito de Informação
Pragmática, que está ligado ao fato de que, se algo é informativo, é informativo para
alguma entidade e deve, portanto, causar mudanças de estado nessa entidade.
Como Podemos Então Estudar Sistemas Complexos?
Complexidade, caos, fractais, entropia e outros monstros são parte de um assunto
muito mais amplo chamado dinâmica. A dinâmica é a área das ciências que se ocupa de
estudar a mudança; os sistemas que evoluem com o passar do tempo. Independente do
sistema encontrar-se em equilíbrio, ou repetindo-se ciclicamente ou fazendo algo mais
complicado, é a dinâmica que deve ser utilizada para acessa-lo. O capítulo Sistemas
Dinâmicos irá abordar, entre outros assuntos, um pouco sobre a operacionalização
matemática necessária para analisarmos, quantitativamente, os sistemas dinâmicos
apresentados em sua maneira formal, ou seja, como conjuntos de equações diferenciais.
Portanto, iremos introduzir algum formalismo referente ao estudo dos sistemas dinâmicos
e observar quais características podem relacionar-se à complexidade e os outros
monstros.
Classificação dos Sistemas Dinâmicos:
Em relação à variável temporal
Um sistema pode ser de tempo contínuo ou tempo discreto. Se o tempo é um
número inteiro positivo dizemos que o sistema é de tempo discreto e é governado por uma
ou mais equações de diferenças finitas. Por outro lado, se o tempo for um número real
positivo e, portanto, governado por equações diferenciais, é dito de tempo contínuo. A
temperatura corpórea de um dado animal é uma variável que seria bem modelada por um
sistema de tempo contínuo, já a quantidade de alimento ingerida parece ser melhor
modelada por um sistema de tempo discreto, já que o animal se alimenta de maneira
esporádica, intercalada por períodos sem ingestão.
Quanto aos parâmetros do modelo
No que se refere aos parâmetros do modelo, este pode ser a parâmetros fixos ou
variáveis e a parâmetros concentrados ou distribuídos. Observe o neurônio esquematizado
na figura 1. Lembrando que esse neurônio é responsável por integrar uma série de
impulsos elétricos excitatórios ou inibitórios nas proximidades de seu corpo celular e, de
acordo com o resultado dessa integração, deflagrar uma despolarização, ou seja, enviar
ou não outro impulso elétrico através de seu axônio, não é de surpreender que seria
possível modelar esse neurônio através de um circuito elétrico. E é exatamente isso que é
feito. Observe a figura 2, a qual apresenta um modelo elétrico de uma membrana celular.
24 Figura 1: Neurônio esquematizado.
Esse esquema apresenta 3 condutâncias, 3 baterias e 1 capacitância, modelando,
respectivamente, a condutância da membrana aos íons sódio, potássio e cloreto (na
verdade o L vem de “leakage”, mas essa corrente se deve principalmente aos íons
cloreto), os potenciais devidos a cada um desses íons e a capacitância da membrana
celular. As setas cortando os símbolos de condutância indicam que os valores dessas
condutâncias podem ser alterados, ou seja, são parâmetros variáveis. Já a condutância a
cloreto é modelada como um parâmetro constante. Perceba que esse modelo é referente a
um pequeno trecho do axônio, ou seja, vários desses pequenos circuitos elétricos devem
ser associados para que possamos ter um modelo completo do axônio. Estamos diante de
um modelo a parâmetros distribuídos! Se Hodgkin e Huxley tivessem modelado o axônio
inteiro através de apenas um circuito como o da figura 2, o modelo seria a parâmetros
concentrados. O trabalho de Hodgkin e Huxley é um dos mais belos exemplos da
aplicação de modelos matemáticos para o estudo de sistemas biológicos.
Figura 2: Modelo elétrico proposto por Hodgkin e Huxley de um pequeno segmento do
axônio gigante de lula.
Quanto à memória
Em um sistema instantâneo, sem memória, a resposta em um dado instante
depende apenas dos valores de entrada do sistema nesse mesmo instante. Caso o
sistema leve em consideração valores passados de suas entradas para computar sua
resposta atual, isso significa que o sistema possui memória e, portanto, é chamado de
dinâmico. Voltando ao exemplo anterior, um capacitor é um sistema dinâmico, pois o valor
da diferença de potencial entre suas placas depende dos valores passados dessa ddp. Já
as condutâncias, uma vez definidas, irão implicar uma dada corrente iônica que depende
apenas da diferença instantânea entre Vm (o potencial da membrana) e o respectivo E
(força eletromotriz).
25
Quanto ao tipo de modelo
Por fim, e não menos importante, um sistema pode ser linear ou não-linear. Não
iremos entrar nos detalhes matemáticos que justificam a linearidade ou não de um
conjunto de equações diferenciais. Ao invés disso, vamos observar as seguintes
propriedades apresentadas pelos sistemas lineares: o princípio da aditividade e o princípio
da proporcionalidade entre excitação e resposta. O primeiro princípio garante que, se para
uma entrada E1 a resposta do sistema é R1, e para uma entrada E2 a resposta é R2, para
uma entrada E1+E2 a resposta será R1+R2. Ou seja, essa característica dos sistemas
lineares nos permite “desligar” todas excitações de um sistema ao menos de uma e
observar como o mesmo se comporta e, após realizar esse mesmo “protocolo” com cada
uma das excitações, computar a resposta total do sistema através de uma simples
superposição de efeitos. Já a segunda propriedade garante que se para a entrada E1 a
resposta é R1, para uma entrada kE1, a resposta será kR1. Portanto, as respostas de
sistemas lineares são proporcionais às respectivas entradas. Para sistemas não-lineares
não são válidos nenhuns desses dois princípios.
Mas Todos esses Nomes Querem Dizer o Que?
A imensa maioria dos sistemas complexos se apresentará na forma de sistemas
não-lineares e muitos desses serão sistemas com memória. O modelo matemático
utilizado para descrever o sistema deverá levar isso em conta além das outras duas
características, tempo contínuo ou discreto e formato dos parâmetros. Vejamos o que
Steven Strogatz nos diz a respeito:
“... a linear system is precisely equal to the sum of the parts. But many things in
nature don’t act this way. Whenever parts of a system interfere, or cooperate, or compete,
there are nonlinear interactions going on. Most of every day life is nonlinear, and the
principle of superposition fails spectacularly.”
Strogatz, S. H., Nonlinear Dynamics and Chaos.
Dessa maneira, se estamos interessados em modelar sistemas biológicos, teremos
que estar preparados para lidar com fenômenos não lineares como, por exemplo,
saturações e crescimentos ou decaimentos exponenciais, para citar dois extremamente
simples! No mesmo livro, Strogatz apresenta a tabela, figura 3, abaixo. Observe que os
modelos de sistemas biológicos mais simples se inserem em sistemas lineares com muitas
variáveis e sistemas não lineares com duas variáveis sendo que, a imensa maioria de
fenômenos, reside após a fronteira dos sistemas não lineares com muitas variáveis!
26 Figura 3: Onde os sistemas biológicos se inserem, retirado de [Strogatz, 1994].
Ruído, Caos e Fractais
Toda a medida realizada em um sistema está sujeita à presença de ruído, seja ele
ruído térmico (inerente às oscilações térmicas dos elétrons que compõem a matéria) do
próprio sistema, ou dos instrumentos de medida ou, ainda, o ruído de quantização quando
digitalizamos dados ao passá-los para um microcomputador. Portanto, como é possível
discernir entre ruído e comportamento caótico? Essa é uma pergunta bastante complicada
e, ainda hoje, se procuram métodos para responder essa questão de maneira definitiva, se
é que isso será possível (ao menos no que tange a medidas experimentais). Todo ruído
térmico, também chamado ruído branco ou ruído Gaussiano, é definido através de uma
distribuição normal de probabilidades e muitas séries temporais caóticas também. O
aparecimento de caos na dinâmica de um sistema está vinculado a:
- imprevisibilidade: o conhecimento do estado do sistema durante um tempo
arbitrariamente longo não permite predizer, de maneira imediata, sua evolução posterior.
- espectro contínuo de freqüências: a energia do sistema está igualmente distribuída
ao longo de diferentes freqüências. Essa característica indica comportamento aperiódico.
- invariância de escala: não importa a escala em que se observe o fenômeno (pense
nisso como um zoom) a estrutura hierárquica do mesmo apresenta características de autosimilaridade.
- estacionariedade: grosso modo, embora aperiodicamente, os padrões tendem a
repetição.
Todas essas características estão associadas ao que chamamos de dependência
sensitiva às condições iniciais (DCI). O caos determinístico é essencialmente devido à
DCI. Essa dependência resulta das não-linearidades presentes no sistema, as quais
amplificam exponencialmente pequenas diferenças nas condições iniciais do sistema. Isso
foi observado por Edward Norton Lorenz, matemático e meteorologista que, quando
trabalhando com previsão do tempo no exército norte americano durante a II Grande
Guerra, observou que o resultado dos cálculos de seu modelo de movimentação do ar na
atmosfera eram sempre diferentes a cada vez que ele os computava em seu computador
analógico (sim, analógico!!!). O problema era que a impressão de seus resultados estava
27
limitada a uma determinada quantidade de casas decimais e quando ele utilizava esses
dados truncados para uma nova computação (ou seja, usava-os como novas condições
inicias, levemente diferentes das anteriores devido ao truncamento) o resultado era
absurdamente diferente. Isso ficou então conhecido como efeito borboleta, e a figura 4, o
atrator de Lorenz, ganhou o mundo.
Figura 4: O atrator de Lorenz.
Temos então ainda um novo conceito a ser esclarecido, o conceito de atrator.
Imagine que uma bolinha será colocada na superfície apresentada na figura 5.
Dependendo da posição inicial da bolinha e se a mesma foi apenas colocada ou foi
impulsionada em alguma direção, ninguém duvidaria que a bolinha, em algum momento,
irá parar dentro de algum dos poços da figura. Após ela parar seu movimento dentro de
algum desses poços, ela nunca mais sairá de lá a menos que lhe seja cedida energia de
alguma forma. Pois bem, os fundos dos poços são o que chamamos de atratores. Se algo
estiver próximo o suficiente desse atrator e se esperarmos o tempo necessário, esse algo
irá se dirigir ao atrator.
Figura 5: Poços de potencial são atratores pontuais.
Mas isso é bem diferente do que podemos observar na figura 4, isso porque o atrator
apresentado lá é de outro tipo, chamado atrator estranho. Perceba que, embora o sistema
28 não evolua para um determinado ponto, ele está confinado em um determinado volume e
no caso de um sistema dissipativo (ou seja, um sistema no qual a energia interna do
mesmo vai sendo perdida através de alguma ineficiência do processo), esse volume se
tornará cada vez menor. Para que exista uma DCI é necessário um atrator estranho e,
sistemas determinísticos que apresentam evolução temporal que conduz assintoticamente
a atratores estranhos, apresentam dinâmica caótica. Os fundos dos poços, tendo em
mente o espaço euclidiano tridimensional representado (X, Y e Z ou largura, altura e
profundidade), são na verdade pontos (mais matematicamente, uma tríade (x, y, z)),
portanto possuem dimensão menor (um ponto tem dimensão 0) do que a do espaço no
qual estão incluídos. Serão apresentados, no capítulo Sistemas Dinâmicos, mais detalhes
sobre atratores, mas um atrator sempre terá dimensão menor do que a do seu espaço,
caso contrário ele seria o próprio espaço e, portanto, poderíamos “passear” livremente
sem necessariamente convergir para nenhum lugar restrito do mesmo. Observando
novamente o atrator de Lorenz e sem nenhum rigor matemático, percebemos que esse
atrator é “maior do que um ponto, maior do que uma reta, mas menor do que uma
superfície”. Estamos nos aproximando do conceito de fractal, ou melhor, dimensão fractal.
Vamos a um exemplo mais simples, porém altamente elucidativo. Observe a figura 6 que
mostra geometricamente a maneira de se construir um conjunto de Cantor. Para termos
um conjunto de Cantor tome a barra inicial e divida-a em três partes iguais. Agora jogue
fora o terço central e repita o mesmo processo para os dois terços restantes e assim por
diante.
Figura 6: O conjunto de Cantor.
Para n muito grandes, teremos uma nuvem de pontos que possui dimensão maior do
que a de um único ponto, porém, obviamente, menor do que a de uma reta, ou seja, o
conjunto de Cantor tem dimensão maior que 0 e menor do que 1! Utilizando processos que
não iremos descrever aqui (para maiores detalhes consulte nas bibliografias sugeridas o
assunto: algoritmos de contagem de caixas – box counting algorithms), calculamos que a
dimensão do conjunto de Cantor é 0,63! Estamos lidando com entidades que possuem
dimensão não inteira e, para tanto, Benoît Mandelbrot cunhou o termo fractal que vem do
latim fractus que significa quebrado, fraturado. Agora, com uma definição um pouco
melhorada do que vem a ser uma dimensão fractal, podemos dizer que atratores
estranho possuem dimensão fractal, como o atrator de Lorenz.
Na figura 7 temos um outro famoso fractal, o conjunto de Mandelbrot. Observe, nas
miniaturas, que mostram zooms cada vez maiores, que a invariância de escala é
marcante. Existem diversos exemplos de dimensão fractal na biologia, a ramificação
dendrítica neural, a superfície pulmonar, a ramificação arterial, a superfície interna das
cristas mitocondriais, microvilosidades intestinais e acoplamento entre osciladores (disparo
de neurônios ou canto de animais, por exemplo).
29
Figura 7: Detalhes do conjunto de Mandelbrot.
Conclusões:
Apesar de superficial, essa pequena introdução ao mundo dos sistemas complexos
mostrou a enorme aplicabilidade dessa teoria para o estudo dos sistemas biológicos que
são, na sua maioria absoluta, sistemas regidos por dinâmicas não lineares. Durante a
evolução temporal desses sistemas podemos passar por dinâmicas caóticas,
sincronização, “edge of chaos”, ou seja, estudar esses sistemas com as técnicas aplicadas
a sistemas lineares e, muitas vezes admitindo-os no equilíbrio (ou muito próximos deles)
pode nos levar a conclusões nebulosas sobre o seu funcionamento. Cada vez mais
estamos observando que a biologia não pode mais evoluir sem unir forças com outros
ramos do conhecimento como matemática, física e engenharia o que pode, no futuro,
culminar em teorias gerais da biologia.
Para saber mais:
Fiedler-Ferrara, N. e Prado, C. P. C. 1994. Caos – Uma Introdução. Edgard Blucher.
Gell-Mann, M. 1995. What is Complexity? In: Complexity, vol. 1, no. 1. John Wiley and Sons.
Glass, L. e Mackey, M. C. 1997. Dos Relógios ao Caos: Os Ritmos da Vida. Edusp.
Monteiro, L. H. A. 2006. Sistemas Dinâmicos. 2ª edição. Editora Livraria da Física.
Ogata, K. 2001. Modern Control Engineering. 4ª edição. Pearson.
Prigogine, I. 2002. As Leis do Caos. Editora Unesp.
Strogatz, S. H. 1994. Nonlinear Dynamics and Chaos: With Applications in Physics, Biology, Chemistry, and
Engineering (Studies in Nonlinearity). Addison Wesley.
Varela, F. G., Maturana, H. R. e Uribe, R. 1974. Autopoiesis: The Organization of Living Systems, Its Characterization
and a Model. Biosystems, 5:187-196.
Belas Figuras com Dimensões Fractais:
http://local.wasp.uwa.edu.au/~pbourke/fractals/
http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_fractals_by_Hausdorff_dimension
30 Informação
Vitor Hugo Rodrigues ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia Teórica
Esta é uma palavra utilizada em muitos contextos, comumente citada em diversos
meios, e que assume, no geral, uma gama de significados, como por exemplo:
“Conjunto de conhecimentos sobre alguém ou alguma coisa, conhecimentos obtidos
por alguém, fato ou acontecimento que é levado ao conhecimento de alguém ou de um
público através de palavras, sons ou imagens, elemento de conhecimento susceptível de
ser transmitido e conservado graças a um suporte e um código”.
Essa palavra descreve fenômenos que são comuns a diversos tipos de sistemas, e
não somente a nós humanos, pois o processo de comunicação se dá em diversos níveis,
que vão de células, a populações inteiras, passando inclusive por sistemas inanimados. E
olhando a definição de informação dada, podemos ver que na verdade, nos processos de
comunicação, há transmissão de informação, pois se obtemos conhecimento sobre algo,
alguém, ou algum fato, isto ocorre porque fomos comunicados de alguma forma. Quando
observamos algo, procuramos de alguma forma, reduzir a incerteza que temos sobre
aquilo que observamos, e, para isso, tentamos obter o máximo de informação sobre o
objeto observado. Por exemplo, quando se está em uma festa, e uma pessoa nos chama a
atenção, podemos logo de cara tomar duas posturas:
9 De alguma forma tentar se aproximar, e, se apresentar para iniciar uma
conversa.
9 Ou não ir conversar com a pessoa, observá-la a noite inteira, e se remoer em
algum canto, torcendo para ela vir falar com você (o que não vai acontecer, a não ser que
você seja o Giannechinni).
Supondo que a primeira opção tenha sido escolhida, e, a abordagem tenha sido feita
(seja lá de que forma for), o diálogo (que pode virar um monólogo dependendo da reação
da outra pessoa) certamente vai envolver perguntas como “Você vem sempre aqui?”,
“Qual é seu nome?”, entre outras. Tudo isso sempre observando o comportamento da
pessoa com quem se fala, para obter o máximo de informação possível, e assim,
reduzindo algumas incertezas que por ventura possam surgir, como “Será que ela vai
sequer falar comigo?” ou “Vou sair sozinho desta festa hoje?”.
Então, do exemplo, podemos dizer que o ambiente fornece parte das mensagens
(reação, aparência, ou se a pessoa está acompanhada), assim como a própria conversa
(informações relevantes (ou não!), como nome, idade, o que gosta, etc.).
Um pouquinho de história:
A história da Teoria da Informação remonta os idos de 1928, quando Ralph Hartley,
no artigo “Transmission of information”, apresenta uma formula para a quantificação de
informação, onde o importante é a habilidade do receptor em selecionar símbolos em um
dado vocabulário. Então, tendo W símbolos disponíveis, a quantidade de informação H,
em uma dada seleção é h=logW. Hartley estava interessado em comparar a capacidade
de transmissão de diversos sistemas elétricos de telecomunicação.
Durante a segunda Guerra Mundial, Claude Shannon trabalhava com criptografia e
sistema de controle e automação no Bell Lab, nos Estados Unidos. Com o fim da guerra, e
com muitas idéias advindas de seu trabalho com criptografia, Shannon desenvolveu a
importante e controversa (ao menos na sua aplicabilidade em biologia) teoria da
informação, em 1948, com a publicação de um artigo A Methematical Theory of
Communication (Shannon,1948). Esse artigo foi publicado em forma de tese em 1949,
com uma pequena alteração no titulo (que sinceramente faz toda a diferença), para The
Methematical Theory of Communication (Shannon & Weaver, 1949).
Tá, chega de enrolação e fala logo da Teoria:
Shannon logo no começo de seu artigo, inicia sua linha de raciocínio dizendo que o
principal problema da comunicação é reproduzir num ponto exatamente ou da maneira
mais próxima possível, uma mensagem que foi selecionada e enviada de outro ponto, e
que a verdadeira mensagem, na verdade é uma que é escolhida de um conjunto de
31
mensagens possíveis. Então, o sistema tem que operar em qualquer seleção possível, e
não para a que vai realmente ser escolhida, pois esta é desconhecida, no momento em
que a mensagem é preparada, ou seja, não é possível prever, quem é a mensagem que
será transmitida. Isso só será conhecido no momento da transmissão (Shannon, 1948).
A partir disso, vemos que, para Shannon, comunicação é um processo probabilístico,
e que para problemas de engenharia (que era com o que ele estava preocupado), o
significado e veracidade das mensagens não importavam. Portanto, a teoria da informação
está relacionada com a redução da incerteza do receptor, pois a mensagem tem uma
probabilidade de fazer com que o receptor mude de estado, depois da transmissão da
mensagem, narrando algum evento.
Então imagine um sistema como o da figura 1, onde se tem uma fonte de
informação, que produz uma mensagem ou seqüência de mensagens que serão
transmitidas pelo... Adivinha só? Se estiver olhando a figura e falou transmissor, acertou.
Esse transmissor enviará um sinal para o receptor, por um canal, que nada mais é do que
o meio pelo qual essa mensagem é enviada (sejam letras que se concatenam formando
palavras, ou variação de voltagem, ou traços e pontos de código Morse, etc.). O receptor
tem o papel de receber (porque isso me soa redundante?), e reconstruir a mensagem
enviada, e por fim, existe o destino que é quem deve receber a mensagem (seja uma
pessoa ou coisa).
Então imagine um evento que você gostaria muito que acontecesse; como ganhar na
loteria e passar o resto da vida deitado numa rede tomando seu drinque favorito. Para
você saber se ganhou ou não, alguém precisa comunicá-lo, e para isso é necessária uma
mensagem. Imagine que H é uma medida de informação e pi é a probabilidade de
ocorrência de um evento dentre vários possíveis (quantidade de números acertada) e h é a
informação recebida pela transmissão de uma mensagem informando um dos possíveis
eventos ocorridos (por exemplo, você acertou todos os números), temos que h= - log pi.
Então, a medida informação H, que é uma somatória da quantidade de informação de
− ∑ pi log pi
, sendo que H é chamado de
todos os h, ou na forma matemática, H=
entropia informacional.
Reanalisando tudo isso a partir do exemplo acima, podemos ver que existiu um
transmissor de informação (Caixa Econômica Federal, que é quem faz os sorteios), por um
meio (transmitiu o sorteio pela TV ou rádio, ou publicou o resultado no jornal). Então o
receptor (seus olhos ou ouvidos, ou os dois) recebeu a mensagem, e seu cérebro atento,
que é o destino da mensagem é quem vai processar a mensagem enviada e comparar
com os números contidos no seu bilhete, e aí a glória celestial vai preencher seu coração,
ou a frustração do “droga, perdi de novo” vai amargurá-lo mais uma vez.
Sendo assim, se quiséssemos medir a quantidade de informação presente na
transmissão deste evento, faríamos:
9 Tomaríamos a probabilidade de cada evento que no exemplo seria não acertar
nenhum número (p0), acertar um (p1), dois (p2), três (p3), quatro (p4), cinco (p5) ou o
bilhete irradiar uma imensa quantidade de felicidade mostrando que você acertou os seis
números (p6, sem querer ser estraga prazeres, essa é irrisória).
9 Então multiplicaríamos as probabilidades, pelos logaritmos das respectivas
probabilidades (h0= p0 log (p0); h1=p1log(p1); e assim por diante).
9 E somaríamos todos os h. Fácil não?
Teríamos, portanto, uma medida da informação contida na transmissão deste
evento, segundo a teoria de Shannon. Isso realmente pode parecer um tanto esquisito,
pois se ele partiu do pressuposto de que comunicação é um evento probabilístico, fica fácil
ver o porquê de usar a probabilidade de cada evento, mas porque usar o logaritmo da
probabilidade????
Shannon explica:
9 Alguns parâmetros em engenharia como tempo, comprimento de onda, variam
linearmente com o logaritmo do numero de possibilidades. Por exemplo, dobrando o tempo
de uma série temporal, eleva ao quadrado o numero de mensagens possíveis, ou dobra o
logaritmo dessas possibilidades num logaritmo de base 2.
9 É próximo do que intuitivamente se chamaria de medida apropriada, pois se
costuma comparar coisas por comparações lineares. Por exemplo, dois DVD’s tem o dobro
de capacidade de armazenar informação do que um único DVD (nota: no exemplo de
32 Shannon, foi usado cartão furado. Observe o quanto os meios de armazenamento de
informação, e o tamanho dos computadores mudou de lá pra cá).
9 É matematicamente mais apropriado, pois facilita algumas operações.
Acho que entendi, mas o que isso tem a ver com Biologia?
Alguns pesquisadores tentaram se utilizar da entropia informacional de Shannon
para quantificar informação biológica. Considerando que informação é uma propriedade
importante dos seres vivos, pois desde alguns dos menores níveis de organização
(células, tecidos) envolve comunicação, ou transmissão de informação por moléculas
(DNA no processo de transcrição e replicação, por exemplo), uma medida como essa
permitiria medir o nível de organização ou complexidade de um organismo.
No entanto, alguns pesquisadores faziam criticas severas ao uso desta teoria em
biologia evolutiva. Primeiro que para no calculo desta complexidade, as unidades de
informação são arbitrárias, sendo que diferentes quantidades de informação serão obtidas
dependendo do que se chama de unidade de informação, e que um zigoto seria menos
complexo que o homem, pelo simples fato dele ser menor. Quando se utiliza, por exemplo,
proteínas constituintes como unidades de informação, calculou-se que a informação
contida em um homem é de 5.1025 bits, no entanto outra critica curiosa e bem apontada
foi que isto não pode ser levado em conta pelo fato de que um homogeneizado de homem,
e um homem inteiro teriam a mesma quantidade de informação. No entanto, de todos os
arranjos moleculares possíveis entre as moléculas que formam o homem, apenas alguns
podem formar um homem vivo. Outra critica é que não se pode utilizar a teoria de
Shannon, onde se tem emissor, receptor e decodificador, para moléculas, como o DNA,
pois estes componentes não são aparentes em um sistema químico e, portanto estes
processos não carregam informação, alem do que a Teoria de shannon não se preocupa
com a veracidade ou com o significado da informação, e em sistemas biológicos, a
qualidade da informação é tão importante quanto a quantidade de informação.
Segundo Maynard-Smith, se é possível transmitir informação por ondas elétricas,
sonoras ou por eletricidade, por que não seria possível transmitir informação por meios
químicos? Para ele, um dos grandes ganhos da teoria de Shannon é que a mesma
informação pode ser transmitida por diferentes carreadores físicos, e que engenheiros não
usaram carreadores químicos justamente pela dificuldade de colocar ou tirar informação
de meios químicos, uma dificuldade que segundo ele, os sistemas vivos conseguiram
superar. É realmente difícil ver todos os elementos da teoria de Shannon, no modelo de
transcrição do DNA para RNA e da tradução deste RNAm para proteína. Se pensarmos na
comunicação entre duas pessoas por código Morse, por exemplo, podemos identificar
todos os elementos da figura 1, pois uma pessoa é a fonte da informação, existe o
aparelho onde a mensagem será “digitada”, que é o transmissor, existe o meio de
transmissão (eletricidade através de fios e cabos), existe o receptor, e o decodificador do
código, que é o operador da maquina que recebe a mensagem. No entanto, é dificil de
imaginar uma decodificação de mensagem do RNAm para proteína, uma vez q o código
não foi codificado por uma proteína para RNAm.
Então, Maynard Smith argumenta que essas críticas não são suficientes para que
não se possa ver os elementos da Teoria de Shannon no exemplo genético, pois para ele,
o codificador, é a seleção natural. Porque? Pelo simples fato de que foi por seleção natural
que selecionou as seqüências de bases, dentre muitas seqüências possíveis, que
originariam proteínas funcionais e constituintes dos sistemas vivos, por meio do canal de
transmissão de informação descrito pela teoria de Shannon. Como ele diz em seu artigo:
“Onde um engenheiro vê design, um biólogo vê seleção natural!”.
Maaaasss...como nem tudo são flores, existem alguns pontos em que a teoria da
Informação realmente peca quando aplicada em biologia. Warren Weaver, que trabalhou
com Shannon no artigo que demonstra a teoria, diz que se pode medir a efetividade num
processo de comunicação, observando três preceitos básicos:
1. O quão acurado os símbolos que codificam a mensagem podem ser transmitidos
(o problema técnico).
2. O quão precisamente os símbolos transmitidos, transportam o significado
desejado (o problema de significado).
3. A efetividade da mensagem recebida na mudança de estado do receptor.
E a teoria da Informação, está apenas preocupada com o preceito 1, e em biologia,
os outros dois preceitos são muito importantes também. Então, baseado na teoria de
33
Shannon, e focando no preceito 3, Weinberger, em 2002 propôs uma medida chamada
informação pragmática, com o intuito de “medir” evolução. Na verdade a informação
pragmática vai medir a capacidade que uma mensagem tem de fazer com que o receptor
mude de estado (e com isso quero dizer que se o sistema estava operando de uma
determinada forma, vai passar, após a recepção da mensagem, a operar em outra; por
exemplo, se você estiver parado, e seus olhos virem no relógio de que você está atrasado
para a prova, seu coração disparará, e suas pernas se moverão loucamente...percebeu a
mudança de estado?) . Se imaginarmos um conjunto M de mensagens m, que chega a um
receptor que por sua vez está ligado a um “tomador de decisão”, que enviará uma
alternativa a um efetor. Esse efetor, tinha um conjunto de possíveis “saídas” oi, cada uma
com uma probabilidade q(oi) antes da mensagem atingir o receptor (maiores detalhes na
figura 2). Até aí nenhuma novidade, a grande novidade desse modelo, é que quando o
receptor capta a mensagem, as probabilidades q(oi) são revistas e as probabilidades de
uma determinada “saída” se torna p(oi). Ou seja, imagine a festa do começo do capítulo, e
imagine que aquela pessoa que te despertou o interesse está momentaneamente sozinha
em algum canto, e deu uma olhadela sexy e uma piscadela marota pra você. Com essa
mensagem, as probabilidades de uma possível postura que você pode tomar (como por
exemplo, ir até a pessoa, ou ir até a pessoa com um drinque, ou ir até a pessoa chegando
pelas costas; por que convenhamos, a probabilidade q(não chegar na pessoa), é quase
nula nesse caso), no entanto, numa segunda observada que você dá nessa pessoa, você
se depara com ela um pouco distraída, e ela enfia o dedo no nariz. Bem, depois dessa
outra mensagem, as probabilidades vão ser revistas, e a probabilidade de você se
aproximar se torna menor, e a de você não se aproximar, maiores.
A informação pragmática torna-se uma medida, então, onde o contexto, e a
semântica são relevantes, e então é uma medida que pode ser muito mais útil para ser
usada em processos biológicos, apesar de algumas dificuldades, como por exemplo,
determinar os conjuntos de ações possíveis, de mensagens possíveis e suas
probabilidades.
Nossa, que confusão!
É, a coisa é realmente confusa. E provavelmente essa confusão ainda perdure na
cabeça das pessoas por muito tempo. Mas mesmo assim, algumas coisas bem legais
estão surgindo da Teoria de Sannon. A própria informação pragmática,é uma tentativa de
quantificar informação, derivada da teoria de Shannon, mas que tenta ao menos
estabelecer uma aplicabilidade para questões evolutivas.
Teoria da Informação tem sido (mas não amplamente) usada em neurofisiologia, e
em alguns estudos de comunicação de sapos e golfinhos para carcterização sonora dos
cantos emitidos por estes animais (para maiores detalhes ver Suggs & Simmons, 2005 e
Mcgowan, 1999). E pode ser uma base para projetos que tentem ver processamento no
sistema nervoso central de algum animal, a partir de eventos de comunicação (como
cantos, para animais que cantam). Por isso, apesar das limitações a Teoria da Informação
de Shannon, ela abre precedentes para se pensar em transmissão de informação em
processos de comunicação. Shannon, relembrando, se focou em problemas de
comunicação na engenharia, e obviamente não se pode transpor diretamente esse tipo de
teoria para a biologia. Mas tentativas de adaptação, como a de Weinberger com a
Informação Pragmatica, são muito bem vindas, pois tentar entender e quantificar
comunicação e informação em processos biológico, pode trazer grandes ganhos no
entendimentos desses sistemas malucos, que são os sistemas vivos.
Transmissor
Fonte de
informação
sinal
receptor
destino
Figura 1: Diagrama esquemático simplificado de um sistema de informação, com seus
componentes (adaptado de Shannon, 1948).
34 Figura 2: Diagrama esquemático simplificado dos componentes que aparecem na
informação pragmatica, (adaptado de Weinberger, 2002).
Para saber mais (plagiando uma famosa revista):
Shannon, C.E. 1948. A Mathematical theory of communication. The Bell Sys. Tech. J. 27:379-423,623-656.
Monteiro, L.H.A. & Piqueira, J.R.C. 2000. O que orienta a evolução biológica? In. Auto-organização, D´Ottaviano I.M.L
& Gonzáles, M.E.Q. Coleção CLE30, Campinas.
McCowan,B; Hanser, S.F; Doyle, L. R. 1999. Quantitative tools for comparing animal communication systems:
Information theory applied to bottlenose dolphin whistle repertoires. Anim. Behav. 57:409-419.
Suggs, D & Simmons, A 2005. Information theory analysis of patterns of modulation in the advertisement call of the
male bullfrog, Rana catesbeiana. J. Acoust. Soc. Am. 117:2330-2337.
http://en.wikipedia.org/wiki/History_of_information_theory
35
Sistemas dinâmicos
José Eduardo Natali ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia Teórica
Introdução
Um sistema é um conjunto de componentes agrupados por relações de interação e
interdependência, de forma a existirem relações de causa e efeito nos processos
envolvendo-os. Um sistema é considerado dinâmico quando as grandezas de seus
componentes variam no tempo. Um dos objetivos do estudo de um sistema dinâmico (SD)
é o de prever para “onde o sistema está indo”, ou seja, o comportamento do sistema a
partir de uma dada condição inicial. Os SD têm sido amplamente utilizados em estudos
biológicos, desde níveis moleculares até o de comunidades, passando por estudos no
nível do indivíduo e seus sistemas orgânicos componentes. O objetivo dessa aula é
explicar e exemplificar como essas análises, envolvendo conceitos bem definidos e de
caráter quantitativo, podem contribuir diretamente para a melhor compreensão de sistemas
biológicos.
Modelo Inicial
O estudo matemático de sistemas dinâmicos é dado pelo estudo de equações
diferenciais ou de diferenças, ou seja, é o estudo de grandezas x(t) em um tempo contínuo
ou tempo discreto, respectivamente. Essas grandezas serão chamadas de variáveis de
estado. No caso contínuo, a variação de uma grandeza x(t) no tempo é dada pela derivada
dx(t )
dt . A forma geral de uma equação diferencial linear é dada por:
d n x(t )
d n−1 x(t )
dx(t )
a0 (t )
+ a1 (t )
+ ... + an−1 (t )
+ an (t ) x(t ) = F (t )
n
n −1
dt
dt
dt
Para um estudo inicial vamos usar o modelo de T. R. Malthus sobre o crescimento
populacional. Nesse modelo, consideramos uma população que aumenta de tamanho
(número de indivíduos) com taxa de nascimentos (n) e decresce com taxa de mortes (m),
ambos dependentes do tamanho populacional (x). Dessa forma a variação do número de
dx
= nx − mx
, levando em conta que n e m são constantes
indivíduos é dada por: dt
podemos dizer quer
k =n−m
e reescrever a equação da seguinte maneira
dx
= kx
dt
.
x (t ) = x e kt
o
Se integrarmos essa equação temos :
, que é a solução do nosso
problema. Partindo de uma população inicial x0 arbitrária podemos ver como o número de
indivíduos se comporta com o passar do tempo com o auxílio dos seguintes gráficos.
Figura 1 - Número de indivíduos
por tempo com k>0.
36 Figura 2 – Número de
indivíduos por tempo com k<0.
Com esses gráficos, é possível observar dois importantes aspectos do sistema, o
seu ponto de equilíbrio e sua estabilidade. O ponto de equilíbrio (cuja notação é um
asterisco sobrescrito à variável de estado) é quando o sistema para de variar, ou seja,
quando a equação diferencial é igualada a 0. Nesse caso, temos o ponto de equilíbrio
kx* = 0 , ou seja, a população está em equilíbrio quando x (número de indivíduos) for
igual a 0. A estabilidade desse ponto de equilíbrio pode ser obtida se afastarmos o sistema
do ponto de equilíbrio: caso ele volte ao mesmo P.E, o sistema é assintoticamente estável,
caso contrário, ele não é assintoticamente estável. No exemplo acima, quando o
parâmetro k é menor que 0 o sistema é estável, pois não importando a população inicial,
ele vai tender ao P.E. x = 0; caso k seja maior que 0 o sistema é instável, pois se o
tirarmos do P.E. x = 0, a população tenderá ao infinito.
Esse modelo está associado a diversas situações que envolvem um crescimento ou
um decaimento exponencial como, por exemplo, a eliminação exclusiva pelos rins de uma
substância contida somente no sangue. O modelo de Malthus é um exemplo bem simples
de como sistemas dinâmicos pode ser utilizado para melhor entender sistemas biológicos.
Porém, na maioria dos casos, os modelos são mais complexos e outras ferramentas são
necessárias.
Um Modelo Mais Complexo
Vamos supor o seguinte sistema:
dx
= − y + x(b − x 2 − y 2 )
dt
dy
= + x + y (b − x 2 − y 2 )
dt
Esse sistema representa duas variáveis que, de alguma forma, se relacionam.
Podemos imaginar que são substâncias químicas ou até variáveis fisiológicas. Nesse
momento, o que importa mais são as conclusões que podemos tirar, a partir de algumas
ferramentas gerais.
Como já foi dito, podemos encontrar o ponto de equilíbrio se igualarmos as duas
equações a 0 (simultaneamente), tendo então:
0 = − y * + x * (b − ( x * ) 2 − ( y * ) 2 )
0 = + x * + y * (b − ( x * ) 2 − ( y * ) 2 )
Multiplicando a primeira equação por y e a segunda por x, temos:
0 = −( y * ) 2 + x * y * (b − ( x * ) 2 − ( y * ) 2 )
0 = + ( x * ) 2 + x * y * (b − ( x * ) 2 − ( y * ) 2 )
Ao igualarmos as duas equações, ficamos com:
( y * ) 2 + ( x* ) 2 = 0
Com isso, chegamos ao ponto de equilíbrio desse sistema, (0,0), ou seja, o SD para
de variar quando x e y valem 0, simultaneamente. Com isso, o próximo passo é
analisarmos a estabilidade desse sistema. No primeiro exemplo, isso foi feito integrandose , analiticamente, a equação e depois analisando sua evolução com o passar do tempo.
Nesse caso, o modelo é mais complicado, e integrar as equações diferenciais se torna
inviável. Restam, então, soluções qualitativas e/ou numéricas. Uma das possíveis
abordagens qualitativas envolve uma análise do sistema em busca de valores que nos
ajudem a definir a estabilidade do mesmo, como o parâmetro k do modelo de Malthus.
Numericamente, pode-se obter os valores das integrais do sistema. Nesses casos, as
37
equações diferenciais do sistema são calculadas com o auxílio do computador para uma
determinada faixa de valores. O resultado é menos geral que as soluções anteriores, mas
é possível tirar diversas conclusões sobre a estabilidade do sistema. Essa opção é a que
utilizaremos nesse caso.
Vamos, então, resolver o sistema impondo inicialmente que b = −15 . Podemos
visualizar a evolução de um caso particular do sistema através do seu retrato de fases,
um espaço n-dimensional onde cada eixo corresponde a uma variável do conjunto de
equações, ilustrando o “caminho” que o sistema percorre. Nesse caso, como temos duas
variáveis, nosso retrato de fases é um gráfico de duas dimensões feito a partir dos dados
obtidos computacionalmente. Para facilitar, vamos colocar diversas condições iniciais e
observar o que acontece:
Figura 3 – Retratos de fases de 20 condições iniciais aleatórias, e com o parâmetro b = 15.
As setas indicam o tempo, ou seja, a direção que o sistema está indo. Temos que,
em todos os casos simulados, o sistema foi para o ponto de equilíbrio (0,0). Isso sugere
que, talvez, esse ponto de equilíbrio seja estável.
O caminho percorrido pelo sistema e sua estabilidade, por sua vez, está intimamente
relacionado aos parâmetros escolhidos. Nesse caso, começamos com um valor de “b” alto
e negativo, é interessante então mudar esse parâmetro para ver se a característica de
estabilidade é mantida.
Quando resolvemos o sistema (da mesma maneira que feito anteriormente) com
b = −1 temos o seguinte espaço de fases:
38 Figura 4 - Retratos de fases de 20 condições iniciais aleatórias, e com o parâmetro b = -1.
Vista geral.
A estabilidade é mantida e, aparentemente, o caminho realizado pelo sistema é o
mesmo. Porém, se observarmos o comportamento na região bem próxima ao ponto de
equilíbrio temos:
Figura 5 - Retratos de fases de 20 condições iniciais aleatórias, e com o parâmetro b = -1.
Vista ampliada.
Já é possível observar uma mudança de comportamento: com b=-15, as variáveis de
estado iam diretamente para o ponto de equilíbrio, sem cruzar os eixos do retrato de fase;
com b=-1 elas vão de uma maneira espiralada. Isso caracteriza dois tipos diferentes de
P.E., porém o sistema continua sendo assintoticamente estável. Por outro lado, ao
colocarmos 1=b temos o seguinte espaço de fases:
39
Figura 6 - Retratos de fases de 20 condições iniciais aleatórias, e com o parâmetro b = 1.
Vista geral (esquerda) e vista ampliada (direita).
Nesse caso, o sistema tende a um caminho oscilatório cujo centro é o ponto de
equilíbrio, esse tipo trajetória é chamada ciclo-limite e é dita neutralmente estável (o
sistema tende ao ciclo). Ciclos-limite estão associados a sistemas que possuem um
comportamento oscilatório mesmo na ausência de um forçamento periódico externo. Isso
pode ser observado, por exemplo, em ritmos cronobiológicos, onde diversas
características fisiológicas (ex: temperatura) e comportamentais (ex: ciclo sono-vigília)
oscilam mesmo com condições externas constantes (ex: ciclo luminoso, temperatura do
ambiente...).
Voltando ao sistema estudado, temos então, um resultado muito interessante, pois
dependendo do valor de apenas um parâmetro as variáveis podem tender a 0 ou ficar
oscilando para sempre. O que tivemos foi uma mudança qualitativa do espaço de fases.
Tal mudança é chamada bifurcação e pode ocorrer de diversas maneiras, como por
exemplo a transição de um ponto de equilíbrio para dois, ou de um sistema estável para
um instável. A bifurcação que estudamos é caracterizada pela transição de um ponto de
equilíbrio assintoticamente estável para um ciclo-limite e é conhecida como bifurcação de
Hopf.
Conclusões
Os modelos propostos procuram mostrar alguns aspectos iniciais e fundamentais do
estudo dos sistemas dinâmicos. Temos agora um arcabouço de ferramentas que, apesar
de estarem muito distantes de abranger todas as possibilidades que esse tipo de estudo
permite, já podem auxiliar no estudo de fenômenos biológicos através de uma melhor
quantificação dos processos de interesse, além da formalização de maneira precisa de
conceitos (como equilíbrio e estabilidade) muito importantes da fisiologia.
Para saber mais:
Monteiro, L. H. A. 2006. Sistemas Dinâmicos. 2ª edição. Editora Livraria da Física. São Paulo. p. 625.
40 Alguns exemplos:
Chaui-Berlinck, J. G., L. H. A. Monteiro, C. A. Navas, J. E. P. W. Bicudo. 2002a. Temperature effects on energy
metabolism: a dynamical system analysis. Proceedings Of The Royal Society Of London Series B Biological
Sciences. 269: p.15 – 19.
Oliva, W. M. & E. M. Sallum. 1996. Periodic dynamic systems for infected hosts and mosquitoes. Revista de Saúde
Publica. 3: 218-223.
Wolkenhauer, O. M. Ullah, P. Wellsteadand & K. Cho. 2005. The dynamic systems approach to control and regulation
of intracellular networks. FEBS letters, v. 579, 1846-1853.
41
42 ECOFISIOLOGIA
Breve Histórico da Fisiologia Comparativa
Renata Brandt ([email protected]) – Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia
Evolutiva
Bruno Blotta-Baptista ([email protected]) – Laboratório de Fisiologia de Crustáceos
Desde os tempos da antiga Grécia existe uma preocupação por entender a natureza
da diversidade biológica e o funcionamento dos animais e do homem (fisiologia,
etimologia). Essa preocupação tem por objetivo satisfazer a necessidade profunda, que é
a base de toda ciência: a curiosidade do homem, o desejo de compreender o mundo
natural e de explicar seus fenômenos. Entretanto, para os gregos, a curiosidade do
homem sobre a constituição do seu corpo e as funções de seus órgãos é superior ao
desejo de compreender os outros seres vivos. Nesse contexto, a semente da Fisiologia
reside nos primeiros avanços médicos.
Hipócrates (460–377 aC) é considerado "pai da medicina" e uma das figuras mais
importantes na história da saúde. Foi o primeiro a desvincular medicina de religião. Suas
descrições clínicas de doenças, presentes nas obras hipocráticas, permitiram diagnosticar
doenças como a malária, papeira, pneumonia e tuberculose. Além disso, seus escritos
sobre anatomia contêm ótimas descrições tanto de instrumentos de dissecação como de
procedimentos práticos. Hipócrates fundamentou a sua prática na teoria dos quatro
humores corporais: sangue; fleuma ou pituíta; bílis amarela e bílis negra, que dependendo
das quantidades relativas presentes no corpo, levariam a estados de equilíbrio (eucrasia)
ou de doença e dor (discrasia).
Hipócrates fez parte da escola de Cós (550-400 aC), que foi sucedida pelo período
Ateniano (400-290 aC), de grandes filósofos como Platão e Aristóteles (384-322 aC).
Aristóteles foi aluno de Platão e professor de Alexandre o Grande. Foi um grande
estudioso de diversos assuntos como física, biologia e zoologia, metafísica, lógica,
retórica, política, governo, ética, poesia (incluindo teatro). Escreveu cinco grandes
trabalhos biológicos: Historia Animalium – História dos Animais, De Partibus Animalium –
Partes de Animais, De Generatione Animalium – Geração dos Animais, De Motu
Animalium – Movimento dos Animais, De Incessu Animalium – Progressão dos Animais;
onde são discutidos muitos problemas biológicos atuais até hoje. Ele criou as bases da
doutrina da Evolução Orgânica, desenvolveu teorias coerentes de geração e
hereditariedade, e fundou a Anatomia Comparativa, sem provavelmente nunca ter
dissecado um corpo humano (Singer, 1996).
Do ponto de visto anatômico, Aristóteles fez ótimas descrições de alguns órgãos,
algumas acompanhadas de desenhos e muito da nomenclatura que ele usou foi mantida,
de forma pouco modificada, até hoje. Uma das descrições mais notórias é a do
desenvolvimento placentário do tubarão Mustelus laevis. Aristóteles foi um grande
estudioso da reprodução dos peixes, notou entre um grupo de elasmobrânquios um caso
cujo desenvolvimento era análogo ao de mamíferos placentários. Essa descoberta
permaneceu esquecida até o século XIX, quando sua redescoberta chamou a atenção dos
naturalistas para as obras de Aristóteles. As obras aristotélicas contêm ainda registros de
experimentos reais, como um que procura explicar perda e ganho de peso corpóreo no
animal vivo.
Aristóteles também cometeu algumas grandes falhas. Uma delas foi considerar o
coração como sede da inteligência. Para ele, o cérebro não estava relacionado com
sensibilidade ou pensamento, seu papel era o de resfriar o coração evitando seu
superaquecimento. Essa crença nasceu das suas pesquisas embriológicas, entre elas a
mais importante que foi realizada com pintainhos.
Aristóteles descreveu os primeiros sinais perceptíveis do desenvolvimento destes
animais, que para ele ocorriam no terceiro dia, quando o coração torna-se visível como um
ponto palpitante de sangue. À medida que o embrião se desenvolve, surgem dois vasos
sanguíneos que envolvem a túnicas circunvizinhas. Um pouco mais tarde, o corpo torna-se
visível, com a cabeça facilmente distinguível e os olhos bem grandes. Aristóteles atribuiu
grande importância ao aparecimento do coração no embrião. Ele tinha uma visão
43
gradualista da natureza, assim, julgou que os órgãos mais importantes apareceriam antes
dos outros, motivo que o leva a acreditar na primazia do coração. Ele ainda acreditava que
as artérias continham ar, não sangue.
A morte de Aristóteles em 322 aC, de Alexandre em 323 aC e posteriormente de
Teofrasto em 287 aC, ambos alunos de Aristóteles, simbolizam o declínio da escola
científica ateniense. O centro científico é transferido para Alexandria no Egito. Lá a
Anatomia é reconhecida oficialmente como disciplina. Os primeiros professores de
anatomia reconhecidos são Herófilo e Erasístrato (310-250 aC). Ambos foram
anatomistas notáveis e os primeiros a terem permissão para dissecar humanos, ao que
tudo indica indivíduos vivos, numa época em que todo conhecimento de anatomia vinha de
dissecações de animais. As contribuições de Herófilo são mais anatômicas que
fisiológicas.
Erasístrato, entretanto, pode ser considerado mais um fisiologista. Ele observou que
todos os órgãos eram dotados de um sistema tríplice de vasos: veias, artérias e nervos.
Segundo ele, esse sistema tríplice se ramifica até o limite da visão e o processo de divisão
continua além desse limites. Assim, as menores divisões seriam trançadas e formariam os
tecidos. Teorizou que existiam três fontes essenciais de alimentação e movimento, o
sangue transportado pelas veias e mais dois tipos de pneuma. O ar é absorvido nos
pulmões e transportado ao coração, onde se transforma no espírito vital, que é
transportado pelas artérias. Ao chegar ao cérebro, esse espírito é transformado em
espírito animal e é transportado pelos nervos, considerados como ocos.
Dessa forma se considera que Erasístrato tenha sido o primeiro a discriminar os
sistemas vasculares sistêmico e pulmonar. Descreveu ainda as veias, artérias e as
válvulas do coração, a tricúspide e a sigmóide e o coração como sendo a origem das
artérias e veias. Concluiu que o coração funcionava como uma bomba, desmistificando-o
como sendo centro das sensações. Foi ainda o primeiro a estudar o ritmo cardíaco. Fez as
primeiras diferenciações entre os hemisférios cerebrais e o cerebelo e determinou ainda
que o cérebro era a origem de todos os nervos. Estabeleceu a relação entre as
circunvoluções cerebrais e a inteligência, notando que no homem elas eram mais
complexas e traçando o paralelo com o aumento da inteligência.
Existe ainda uma teoria sobre a ação dos músculos na contração muscular cuja
autoria é atribuída a Erasístrato. Segundo ele, o encurtamento dos músculos é atribuído a
sua distensão pelo espírito animal (um dos pneumas). Teorias semelhantes a essa forma
novamente propostas, em bases teóricas, por Descartes no século XVII (1595-1650) e
Borelli (1637-1680), mas foram descartadas pelos experimentos de Swammerdam (16371680). Além disso, muitos pesquisadores acreditam que Erasístrato também descobriu os
vasos linfáticos do mesentério.
A fisiologia como disciplina empírica é derivada da anatomia. O principal anatomista
influenciador dessa corrente foi Galeno (131 d.C. – 200 d.C.) Suas teorias dominaram a
ciência médica ocidental por cerca de 1300 anos. Ele gostava de estudar o corpo, mas
dissecção depois da morte era proibida pela Lei Romana, e a saída era estudar porcos,
macacos e outros animais o que o levou a cometer alguns erros. Ele afirmava existir um
grupo de vasos sanguíneos próximos a parte de trás do cérebro, comum em animais, mas
não em humanos. Foi precursor de muitas cirurgias audaciosas que não foram utilizadas
por mais ninguém por quase dois milênios, incluindo cirurgia do cérebro e dos olhos. Suas
inovações incluem uma experiência que iria mudar o curso da medicina: demonstrou pela
primeira vez que as artérias conduzem sangue e não ar, como até então se acreditava. Foi
ainda o primeiro a demonstrar, baseado em experiências, que o rim é um órgão excretor
de urina. Em anatomia, Galeno distinguiu os ossos com e sem cavidade medular,
descreveu a caixa craniana, o sistema muscular e diversos nervos cranianos, incluindo
uma parte do sistema simpático. Apesar de todo avanço, Galeno inevitavelmente acabou
cometendo erros, principalmente por causa de limitações ópticas. Não foi possível ver o
que se passava no interior dos órgãos. Seu maior erro foi na teoria da circulação, pois
segundo ele o sangue circulava em razão de um impulso ou de uma força atrativa, cuja
origem era a parede da artéria.
O respeito pelas teorias de Galeno era tão grande que nenhum outro estudioso
realizou algum avanço considerável, a investigação científica ficou paralisada durante
inúmeras gerações. Para que a que a teoria das forças de Galeno fosse contestada, foram
necessários aproximadamente 15 séculos. Saltando esse período de estagnação,
44 chegamos ao período de Andreas Vesalius, quando a Anatomia Humana abriu as portas à
pesquisa em Fisiologia.
Andreas Vesalius (1514-1564) foi um médico belga, considerado o "pai da anatomia
moderna". Estudou medicina na Universidade de Paris, e lá tomou contato com as obras
de Galeno. A falta de aulas práticas acabou levando-o a freqüentar cemitérios em busca
de ossadas. Ao ser nomeado professor de Cirurgia e Anatomia em Pádua, realizava
dissecções como ferramenta de ensino primária, ao contrário do costume até então de
ensinar a partir dos textos clássicos de Galeno. Manteve registro meticulosos das
dissecções, através de desenhos, e as tornou acessíveis pela publicação de Tabulae
Anatomicae SexI (1538) e de Institutiones Anatomicae (1539), uma versão melhorada do
livro de Galeno.
Em 1539, um juiz de Pádua se interessou pelo trabalho de Vesalius e tornou corpos
de criminosos executados disponíveis para dissecção. Em 1541, Vesalius descobriu que a
pesquisa de Galeno foi baseada em anatomia animal em vez de humana, em razão das
dissecções terem sido banidas na Roma antiga. Galeno dissecou o macaco de Gibraltar
(Macaca sylvanus), e argumentou que eles seriam anatomicamente similares aos
humanos. Por essa razão, Vesalius publicou uma correção de Opera omnia, de Galeno, e
começou a escrever seu próprio livro de anatomia. Em 1543, Vesalius publicou De Humani
Corporis Fabrica, sua principal obra, um atlas do corpo humano ricamente ilustrado,
dividida em sete partes – ossos (Livro 1), músculos (Livro 2), sistema circulatório (Livro 3),
sistema nervoso (Livro 4), abdômen (Livro 5), coração e pulmões (Livro 6) e cérebro (Livro
7). Além de ser o primeiro a descrever corretamente inúmeras estruturas, foi também o
primeiro a descrever a ventilação mecânica.
As primeiras grandes descobertas em Fisiologia são derivadas dos estudos
anatômicos. Algumas dessas grandes descobertas foram realizadas por William Harvey
(1578-1657), médico britânico considerado por muitos o fundador da fisiologia
experimental. Harvey foi estudar na Universidade de Pádua, a mais avançada da época,
sob a supervisão de Hieronymus Fabricius. Fabricius dizia ter descoberto as válvulas nas
veias, mas não descobriu sua verdadeira função, achava que o sangue fluía por algum tipo
de ação contrátil das artérias. Sua explicação não satisfazia Harvey, e por essa razão, se
tornou seu desafio explicar a verdadeira função dessas válvulas, o que acabou levando-o
a buscar a explicação para o movimento do sangue.
Harvey anuncia em 1616 a descoberta do sistema circulatório, ele defendia a idéia
de que o sangue era bombeado pelo coração antes, retornando ao coração e sendo
recirculado num circuito fechado. Isso bateu de frente com o modelo aceito na época, o de
Galeno, que identificou o sangue venoso (vermelho escuro) e arterial (mais fino e
brilhante), cada um com funções distintas e separadas. O sangue venoso era tido como
originário do fígado e o sangue arterial do coração; o sangue fluía desses órgãos para
todas as partes do corpo, onde era consumido. Em 1628, publica essa argumentação em
Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus.
Harvey baseou a maioria das suas conclusões em observações cautelosas
realizadas durante vivissecções de vários animais durante experimentos controlados,
sendo a primeira pessoa a estudar biologia quantitativamente. Ele realizou um
experimento para verificar quanto sangue passaria pelo coração a cada dia. Neste
experimento usou estimativas: (1) da capacidade do coração, (2) de quanto sangue é
expelido em cada bombeada do coração, e (3) da quantidade de vezes que o coração bate
em meia hora. Todas essas estimativas eram propositadamente baixas, isso para que as
pessoas pudessem perceber a vasta quantidade de sangue que era preciso produzir por
dia no fígado. Ele estimou que a capacidade do coração era de 44 ml, e que cada vez que
o coração bate são expelidos 1/8 desse sangue. Isto levou a estimativa de que 5 ml de
sangue passavam pelo coração a cada batida. A próxima estimativa que ele usou foi que o
coração batia 1000 vezes a cada meia hora, o que resulta 5 L de sangue em cada meia
hora, e quando esse número era multiplicado por 48 meias horas em um dia, ele percebeu
que o fígado teria que produzir 240 L de sangue em um dia, anulando a idéia que o
sangue era consumido.
Propôs ainda que o sangue fluía através do coração em duas alças. Uma delas, a
circulação pulmonar, conectava o sistema circulatório aos pulmões. A segunda alça, a
circulação sistêmica, responsável pelo fluxo sanguíneo aos órgãos vitais e tecidos. Ele
também observou que o sangue nas veias se movia na direção do coração, mas as veias
45
não permitiam fluxo no sentido oposto, observado em um outro experimento simples.
Harvey amarrou torniquete ou garrote ao braço de uma pessoa. Isto cortaria o fluxo
sanguíneo das artérias e veias. Quando isso foi feito, o braço abaixo do torniquete estava
gelado e pálido, enquanto acima estava aquecido e inchado. O torniquete foi afrouxado
delicadamente, o que permitiu o sangue das artérias perfundir o braço, uma vez que as
artérias têm localização mais profunda que as veias. Quando isso foi feito, o efeito oposto
foi observado no antebraço, estava agora aquecido e inchado. As veias ficaram também
mais visíveis, porque agora estavam cheias de sangue. Harvey notou pequenas saliências
nas veias, o que ele concluiu como sendo as válvulas descobertas pelo seu professor
Fabricius. Ele então tentou empurrar o sangue das veias para o antebraço sem sucesso,
mas ao tentar empurrar para o braço o sangue se moveu facilmente. O mesmo efeito foi
observado em outras veias do corpo, exceto as do pescoço. Estas não permitiam ao
sangue subir, somente descer. Harvey então concluiu que as veias permitiam o fluxo na
direção do coração, e que as válvulas mantinham o fluxo unidirecional. Harvey concluiu
posteriormente que o coração agia como uma bomba que forçava o sangue a se mover
pelo corpo, em vez de seguir com a teoria da época que o fluxo sangüíneo era resultado
por uma ação de sucção do coração e fígado.
Harvey era muito curioso sobre o corpo e em certo ponto da carreira voltou sua
atenção a reprodução. Ele especulava que os humanos e outros mamíferos deveriam se
reproduzir através do óvulo e do esperma. Nenhuma outra teoria fazia sentido, mas a
teoria de Harvey era tão fascinante e tão conhecida que o mundo assumiu que ele estava
certo mesmo 200 anos antes do primeiro óvulo mamífero ser observado. Seu livro sobre
embriologia, De Generatione, foi publicado em 1651. Os estudos sobre a circulação foram
importantes na consolidação da Fisiologia como ciência empírica, alguns desses estudos
foram realizados por Stephen Hales (1677 - 1761), conhecido como pioneiro da fisiologia
experimental, é considerado Fisiologista, químico e inventor.
Do discurso de aceite do Prêmio Nobel em Medicina feito por Werner Forssmann em
1956:
"The credit for carrying out the first catheterization of the heart of a living animal for a
definite experimental purpose is due to an English parson, the Reverend Stephen Hales.
This scientifically interested layman undertook in Tordington in 1710, 53 years after the
death of William Harvey (1578-1657), the first precise definition of the capacity of a heart.
He bled a sheep to death and then led a gun-barrel from the neck vessels into the stillbeating heart. Through this, he filled the hollow chambers with molten wax and then
measured from the resultant cast the volume of the heartbeat and the minute-volume of the
heart, which he calculated from the pulse-beat. Besides this, Stephen Hales was also the
first, in 1727, to determine arterial blood pressure, when he measured the rise in a column
of blood in a glass tube bound into an artery."
"O crédito por ter realizado a primeira cateterização do coração de um animal vivo
por um propósito experimental definido é de um clérigo Inglês, o reverendo Stephen Hales.
Este homem leigo interessado cientificamente, realizou em Tordington em 1710, 53 anos
depois da morte de William Harvey (1578-1657), a primeira definição precisa da
capacidade do coração. Ele sangoru uma ovelha até a morte para então levar um cateter,
dos vasos do pescoço, até o coração que ainda batia. Através disso, ele encheu as
câmaras vazias com cera derretida e então mediu o volume de cada batida do coração e o
volume/minuto do coração, calculado do número de pulsações. Além disso, Stephen Hales
foi também o primeiro, em 1727, a determinar a pressão arterial, quando ele mediu a altura
de uma coluna de sangue em um tubo de vidro ligado a uma artéria."
Hales demonstrou que alguns reflexos são mediados pela medula espinhal. Mostrou
que os princípios de circulação em animais e plantas são diferentes. Descobriu os perigos
de respirar ar estagnado e inventou um ventilador, que melhorou as taxas de
sobrevivência quando empregado em navios, hospitais e prisões. Estudou ainda pedras da
bexiga e dos rins e sugeriu solventes que deveriam reduzi-las sem a necessidade de
cirurgia. Em 1733, Hales publicou Haemastaticks, que continha experimentos sobre a
"força do sangue" em vários animais, a taxa de fluxo e a capacidade de diferentes vasos.
Além da circulação, estudos pioneiros em Fisiologia muscular também foram muito
importantes na consolidação da Fisiologia como ciência empírica. Luigi Galvani (17371798), médico e investigador italiano, foi um desses pioneiros. Ele era professor de
46 Anatomia na Universidade de Bolonha. Em 1766, começou a investigar a ação da
eletricidade sobre os músculos de sapos.
Inventou o arco metálico pela observação da contração nos músculos das pernas de
sapos suspensos por ganchos de cobre em uma barra de ferro. O arco era feito de dois
metais diferentes, tanto que quando um metal era colocado em contato com um nervo do
sapo e o outro em contato com o músculo, ocorria uma contração (Fig 1),
Figura 1 – O comportamento eletroquímico de dois metais diferentes, zinco (Z) e cobre (C)
num arco bimetálico, em contato com os eletrólitos do tecido, produz uma corrente elétrica
que estimula a contração muscular.
Em 1783, Galvani ao dissecar uma rã numa mesa em que conduzia experimentos de
eletricidade estática, um assistente tocou, com um bisturi metálico, em um nervo ciático
exposto, que acumulou uma carga. Neste momento eles viram faíscas numa máquina de
eletricidade e a perna da rã morta chutou. A observação fez de Galvani o primeiro cientista
a investigar a relação entre eletricidade e reanimação. Esta descoberta deu início ao que
chamamos de Fisiologia Experimental.
Ainda nessa época, a Fisiologia recebeu importantes contribuições teóricas, que
fugiam do tradicional enfoque anatômico. Um exemplo é a famosa equação de Pierre
Simon de Laplace (1749-1827), que relacionava raio e pressão nas paredes de um vaso.
No contexto do desenvolvimento do método empírico e teórico na Fisiologia, toda Biologia
passava pela revolução causada pela discussão evolutiva de Charles Darwin e Alfred
Wallace e a teoria da Seleção Natural.
No início do século 20, surge a Fisiologia Comparativa derivada da anatomiafisiologia humana, mas influenciada pela discussão evolutiva do momento. O grande
impulsionador do enfoque Comparativo foi August Krogh (1901-1987)
Prêmio Nobel descobridor do axônio gigante de lula. Krogh fundamentou sua
pesquisa num princípio que ficou depois foi batizado com seu nome, o Princípio de Krogh:
“Para cada problema fisiológico existe um modelo animal adequado para seu estudo”
(1929). Exemplos clássicos incluem o músculo de salto de anfíbios, o axônio gigante da
lula, o rim de roedores de deserto. O modelo era escolhido segundo alguma característica
exagerada dos animais, transformando o ambiente em um laboratório natural. Pouco
depois, aliada à discussão paralela da Genética de Populações (consolidação do conceito
de “fitness” e proposição de um mecanismo de ação da Seleção Natural, os ambientes se
transformaram em agentes do aparecimento dessas características exageradas.
O enfoque da Fisiologia Comparativa se torna claramente mais ecológico, iniciando a
Fisiologia Comparativa Moderna. Podemos apontar como principais fundadores dessa
linha de pensamento 3 grandes fisiologistas: George Bartholomew, Per Fredrik
Scholander e Knut Schmidt-Nielsen por volta da segunda metade do século 20. O
princípio de Krogh deixa de ser o único fio condutor da fisiologia comparada para focalizar
a relação ecologia – fisiologia - evolução. Nesse contexto, é natural que nas décadas de
60-70 o foco de estudo da fisiologia comparativa fosse nos ambientes extremos. A
adaptação entra na pauta. Podemos citar pesquisas clássicas com termorregulação em
Camelos, regulação hídrica e osmótica no rato canguru, adaptação ao mergulho de longa
duração das focas de Weddell, hibernação, entre outros.
47
Nas décadas de 70-80, o desempenho do organismo como um todo se torna um
importante objeto de estudo para a conexão mais clara de aptidão com Fisiologia, uma vez
que o indivíduo, e não as suas partes, é quem é desafiado pelo ambiente. Entre os
pesquisadores mais influentes podemos citar Harvey Lylliwhite, Harvey Pough, Warren
Burggren, Raymond Huey e Alfred Bennett.
A partir da década de 80, perguntas como as abaixo tornam-se cada vez mais
comuns para a Fisiologia Comparativa:
1.Como funcionam os animais nos diferentes ambientes?
2.Como se integram as funções fisiológicas em diferentes níveis de organização?
3.Qual a significância ecológica das características fisiológicas?
4.Porque existe variação fisiológica entre indivíduos?
5.Quais características são exageradas em ambientes extremos?
Nos anos 90, cresce a demanda pela maior integração de pesquisas mecanicistas e
reducionistas (ex. vias de sinalização celular) com as organismais, caracterizando a
Fisiologia como a disciplina mais integrativa das Ciências Biológicas. Com isso a Fisiologia
Comparativa começa a aumentar as interações com outras áreas do conhecimento,
incorporando novas abordagens tanto da Fisiologia Biomédica, Bioquímica e Biologia
Molecular quanto Ecologia, Evolução, Sistemática, Comportamento. Contemporaneamente
procura-se:
1.Entender o funcionamento dos seres vivos sob o princípio da “diversidade na
unidade”, e.g., a diversidade fisiológica e bioquímica que surge no contexto dos processos
básicos.
2.Entender como os animais estão adaptados a diferentes estilos de vida e
ambientes, particularmente no contexto de extremos comportamentais ou ecológicos.
3.Promover o entendimento das relações entre ecologia e fisiologia, incluindo a
capacidade de ajuste à diversidade ambiental que acontece ao longo da vida dos animais
(espacial e temporal).
4.Entender a evolução dos mecanismos fisiológicos e a origem histórica da
adaptação fisiológica.
5.Entender a relação entre expressão gênica, caracteres fisiológicos e ecologia
Por fim, atualmente a Fisiologia Comparativa se apresenta como ferramenta
fundamental do princípio básico que rege a Biologia, ou seja, a Evolução. Sendo o meio o
principal agente da seleção natural, não é possível desvincular evolução do funcionamento
dos organismos, uma vez que ele está intimamente ligado ao ambiente. Não é razoável
enxergar um ser vivo como algo que não seja fruto da evolução.
Para saber mais:
Franklin, K. J. A short history of physiology. London: Staples Press, 1949. 146p.
Navas, C. A. & Freire, C. A. Comparative biochemistry and physiology in Latin América over the last decade (19972006). Comp. Biochem. Physiol. 2007, 147(A): 577-585.
Navas, C. A.; Chauí-Berlinck, J. G.; Bicudo, J.E.P.W.; Pivello, V. R. & Martins, M. Comparative biochemistry and
physiology in Brazil: a critical appraisal. Comp. Biochem. Physiol. 2007, 147(A): 586-593.
Schmidt-Nielsen, K. About curiosity and being inquisitive. Annu. Rev. Physiol. 1994, 56: 1-12.
Schmidt-Nielsen, K. Fisiologia Animal: Adaptação e Meio Ambiente, São Paulo, Santos Livraria Editora, 2002. 611p.
Singer, C. Uma breve história da Anatomia e Fisiologia desde os gregos até Harvey.. Campinas: Editora da Unicamp,
1996. 234p.
Warren, B; Randall, D. & French K. Fisiologia Animal ( Eckert ): Mecanismos e Adaptações. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 2000, 729p.
Withers, P. C. Comparative animal physiology. Saunders College Publishing, 1992, 949p.
48 A vida no limite: mecanismos de adaptação bioquímica
a extremos de temperatura
Ivan Prates ([email protected]) – Laboratório Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva
Diversos organismos invadiram de forma surpreendentemente bem sucedida
ambientes absolutamente inóspitos para nossa espécie. O estudo das adaptações que
seres extremófilos desenvolveram em resposta às pressões associadas à sobrevivência
em seus ambientes, além de nos impressionar, contribui para o entendimento dos
processos em evolução biológica, apresenta novos modelos para o entendimento de
fenômenos bioquímicos e fisiológicos, e aponta novas possibilidades práticas para a
biomedicina e biotecnologia. Não por coincidência, a ecofisiologia se iniciou com o estudo
de seres que vivem em ambientes extremos, já que esses nos fornecem exemplos muito
ilustrativos do surgimento e operação das adaptações. Como uma forma de ilustrar o
pensamento e a abordagem em fisiologia evolutiva e ecofisiologia, esse capítulo foca nos
ajustes fisiológicos apresentados por organismos que vivem em extremos de temperatura,
em particular nos ajustes ao nível do metabolismo celular.
Ortólogos de enzimas e a conservação filogenética das porções catalíticas
Ao comparar espécies, populações ou mesmo indivíduos, chamamos ortólogos as
variedades correspondentes de uma proteína que desempenham mesma função e tem
mesma origem filogenética. Quando comparamos entre espécies ortólogos de uma
determinada enzima, raramente observamos diferenças na seqüência de aminoácidos que
compõem a porção que corresponde ao chamado vacúolo catalítico, que é aquela na qual
a reação efetivamente ocorre (Hochachka e Somero, 2002). Comparando todos os
ortólogos conhecidos da LDH (lactato desidrogenase, que catalisa a reação piruvato →
lactato), por exemplo, é surpreendente que a geometria que define as interações no
vacúolo catalítico é virtualmente a mesma para todas as formas de vida conhecidas, desde
bactérias aos vertebrados mais derivados (Deng et al. 1994). Essa semelhança se explica
pelo fato de que, uma vez que a atividade catalítica de uma enzima depende inteiramente
da ligação dos substratos com os resíduos de aminoácidos que determinam o vacúolo
catalítico, qualquer modificação na sua seqüência pode destituir completamente a enzima
de sua função. Sem dúvida, a seleção natural atua no sentido de manter em limites muito
estreitos a variação possível nesse tipo de seqüência. Essas são considerações
particularmente relevantes para enzimas cujo gene codificante está presente em apenas
uma cópia no genoma.
Etapas limitantes da velocidade das reações mediadas por enzimas
Os passos envolvidos numa reação catalisada por enzimas podem
representados da seguinte forma:
ser
enzima + substrato → complexo enzima-substrato → complexo ativado →
complexo enzima-produtos → enzima + produtos
O passo mais notável quando consideramos a operação de uma enzima é a
passagem do complexo enzima-substrato para o complexo ativado, no qual os substratos
são convertidos em produtos. Entretanto, tem sido demonstrado que os passos que
determinam mais pronunciadamente a velocidade de uma reação mediada por enzimas
são as alterações de conformação que promovem a ligação dos substratos e a liberação
dos produtos (Hochachka e Somero, 2002). De fato, a reorganização de ligações
covalentes dos reagentes, que se passa no sítio catalítico de enzimas, é
surpreendentemente rápida; para a LDH-A bovina, por exemplo, o tempo requerido para a
conversão de piruvato em lactato no vacúolo catalítico é apenas um terço daquele
necessário para as mudanças conformacionais que promovem ligação e liberação dos
reagentes.
Alterações que incrementam a velocidade das reações em ambientes frios
Sendo a ligação e liberação dos reagentes as etapas mais limitantes da velocidade
das reações enzimáticas, não é de surpreender que observemos, em espécies que vivem
49
em ambientes frios, alterações nas seqüências de aminoácidos que tornam as enzimas
capazes de modificar suas conformações estruturais mais rapidamente. Enzimas mais
“frouxas” ou “ágeis” são uma solução desenvolvida evolutivamente para compensar a
redução na velocidade das reações ocasionada por baixas temperaturas. Na verdade,
essa é provavelmente a única direção possível para a modificação de enzimas a fim de
incrementar velocidades de reação, já que a porção cataliticamente ativa, como afirmado
acima, tem sua capacidade de modificação pesadamente comprometida com a função que
desempenha (Hochachka e Somero, 2002).
Para quantificar o desempenho enzimático e assim comparar os efeitos de variações
na seqüência de proteínas de espécies ou populações que vivem em ambientes
termicamente diferentes, podemos analisar os valores da constante de catálise (Kcat) de
uma dada reação, que indica a taxa na qual o substrato é convertido em produto por
unidade de tempo. A Fig. 1 (extraída de Fields e Somero, 1998) traz valores de Kcat a 0oC
para ortólogos da LDH de vertebrados adaptados à vida entre -1,86oC (peixes
nototenióides da Antártica) e 42oC (um réptil termófilo). O melhor desempenho dos
ortólogos de espécies viventes em ambientes mais frios é evidente; paralelamente, nas
espécies nas quais as enzimas normalmente operam em temperaturas mais elevadas, a
LDH opera de forma progressivamente mais lenta.
Figura 1. Relação entre a constante de catalização (Kcat) de ortólogos da A4-LDH e
temperatura de corporal de vertebrados de ambientes térmicos distintos. As espécies são:
quatro peixes nototenióides antárticos, (1) Parachaenichthys charcoti, (2) Lepidonotothen
nudifrons, (3) Champsocephalus gunnari, (4) Harpagifer antarticus; dois nototenióides sulamericanos, (5) Patagonotothen tessellata e (6) Eleginops maclovinus; (7) um peixe-pedra
temperado, Sebastes mystinus; (8) Hippoglossus stenolepis; (9) uma barracuda
temperada, Sphyraena argentea; (10) o peixe cão, Squalus acanthias; (11) uma barracuda
subtropical, Sphyraena lucasana; (12) um peixe gobídeo temperado, Gillichthys mirabilis;
(13) um atum, Thunnus thynnus; (14) uma barracuda tropical, Sphyraena ensis; (15) a
vaca, Bos taurus; (16) a galinha, Gallus gallus; (17) o perú, Meleagris gallopavo; (18) o
iguana do deserto, Dipsosaurus dorsalis (Fields e Somero, 1998).
Quanta modificação é necessária para surtir algum efeito biológico?
As diferenças na seqüência de aminoácidos que conferem propriedades cinéticas
diferentes a espécies de ambientes distintos podem ser realmente pequenas. Uma única
substituição de aminoácido na posição 8 distingue a LDH de barracudas de clima
temperado (Sphyraena idiastes) e subtropical (Sphyraena lucasana), com diferenças
acentuadas nas taxas catalíticas (Holland et al. 1997). Uma ou duas substituições de
aminoácidos diferem a LDH-B do peixe de água doce Fundulus heteroclitus de regiões
mais ao norte ou ao sul dos EUA. Nesses animais, a substituição de um resíduo de serina
50 por uma alanina representa a perda de um único grupo –OH. A eliminação resultante de
apenas uma ligação polar resulta em estabilidade diminuída, com aumentos nas taxas de
catálise em temperaturas mais baixas (Power et al. 1993).
Alterações que aumentam a estabilidade de enzimas em ambientes quentes
A situação vivida por organismos que vivem em altas temperaturas é oposta àquela
dos que vivem em ambientes frios. Enquanto a diminuição da estabilidade de uma dada
enzima pode ser benéfica para antagonizar os efeitos de baixas temperaturas, organismos
que vivem em ambientes excessivamente quentes têm de lidar com o risco de ter suas
moléculas biológicas desnaturadas. No que se refere às enzimas, são observadas
modificações nas seqüências de aminoácidos no sentido de conferir estabilidade nas
espécies que vivem em temperaturas mais elevadas. A Fig. 2 (McFall-Ngai e Horwitz,
1990) apresenta a estabilidade térmica das proteínas componentes do cristalino (lentes
dos olhos) para várias espécies de vertebrados. Um padrão nítido é que as proteínas de
espécies submetidas naturalmente a temperaturas mais elevadas são mais estáveis
termicamente, o que se expressa no fato de que perdem 50% de sua estrutura secundária
em temperaturas também mais elevadas.
Figura 1. Estabilidade térmica dos cristalinos (lentes dos olhos) de vertebrados adaptados
á diferentes temperaturas. A temperatura na qual ocorre 50% da perda de estrutura
secundária (conforme medido através de espectroscopia CD) é dada como função da
temperatura corporal máxima para cada espécie. As espécies são: (1) Pagothenia
borchgrevinki (peixe antártico); (2) Coryphaenoides armatus (peixe abissal); (3)
Coryphaenoides rupestris (peixe abissal); (4) Onchorynchus mykiss (truta arco-íris); (5)
Cebidichthys violaceus (peixe de poças de maré); (6) Rana muscosa (rã); (7) Alticus kirkii
(peixe do Mar Vermelho); (8) Rana erythraea (rã); (9) Gekko gecko (lagarto); (10) Rattus
norvergicus (rato); (11) Tropidurus hispidus (lagarto); (12) Dipsosaurus dorsalis (iguana do
deserto); (McFall-Ngai e Horwitz, 1990).
O estudo das proteínas de organismos hipertermofílicos, como os procariontes
Archaea, que podem viver em temperaturas acima de 100oC, tem trazido elementos
importantes para entender como mudanças na composição de aminoácidos tem efeitos na
estabilidade de enzimas. Em linhas gerais, quando comparamos espécies mesófilas a
termófilas, observamos: um incremento na freqüência de aminoácidos polares, dotados de
carga, que favorecem a ocorrência de interações iônicas entre resíduos de uma mesma
proteína; uma redução na proporção de aminoácidos não polares, sem carga, em favor de
um incremento de aminoácidos hidrofóbicos, que favorecem interações hidrofóbicas; uma
redução na freqüência de aminoácidos com radicais propensos à rotação, por exemplo
substituindo glicina por alanina, e assim diminuindo o número de conformações possíveis
à proteína; entre outros (Haney et al. 1999).
51
Chaperonas moleculares e a resposta de choque térmico
No interior das células, onde cada molécula exerce e recebe influência de muitas
outras, uma variedade significativa de proteínas precisa de ajuda para atingir a
configuração terciária correta. Esse auxílio é fornecido por uma classe especial de
proteínas que, além de auxiliar o enovelamento protéico, encaminha a proteína em
formação à destruição caso o dobramento correto não seja possível. São as chamadas
chaperonas moleculares, que constituem uma família de grande de proteínas com
função semelhante: a partir da hidrólise de ATP, as chaperonas desenovelam proteínas e
possibilitam um novo enovelamento, a fim de que a proteína em dobramento atinja sua
conformação terciária adequada para a função que desempenha (Feder e Hofmann,
1999).
As chaperonas são comumente designadas por proteínas de choque térmico ou
hsp (do inglês heat shock proteins), já que sua descoberta ocorreu com a indução de
choques térmicos em drosófila. De fato, muitas chaperonas são expressas em resposta a
elevação de temperatura, além de várias outras formas de stress. Após a exposição a
temperaturas elevadas, síntese de hsp é observada em um intervalo que varia entre
espécies e que depende da intensidade e duração do choque (Tomanek e Somero, 2000).
O mecanismo é universal, e não foi observado até o momento somente em espécies que
evoluem em ambientes glaciais há milhões de anos, como certos peixes antárticos
(Somero e DeVries, 1967). Além das chaperonas expressas em resposta a choques de
temperatura, há também expressão constitutiva na ausência de estressores. Assim, as
chaperonas assistem o dobramento de proteínas de células também em condições
fisiológicas normais (Hochachka e Somero, 2002).
No que se refere às diferentes classes de proteínas de choque térmico, duas
mostraram-se particularmente importantes nos eucariontes: as hsp70 e as hsp60. Com
relação ao seu modo de operação, as hsp70 se ligam a seqüências hidrofóbicas expostas
e mantêm a cadeia peptídica desenovelada enquanto ela assume de forma espontânea a
conformação tridimensional adequada à função. Impedem que várias proteínas
malformadas, com seqüências hidrofóbicas expostas, formem agregados, e são
importantes no evento de desenovelamento necessário para a passagem de proteínas por
membranas intracelulares (como da mitocôndria ou do retículo endoplasmático), com
posterior reenovelamento (Mayer e Bukau 2005). As chaperonas do grupo hsp60, por sua
vez, agem sempre sobre uma proteína já pronta que possui um erro na configuração
terciária. O erro aparece sempre como uma seqüência de aminoácidos hidrofóbicos que
ficam expostos e são reconhecidos pelas chaperonas. Uma vez detectado o erro, as hsp60
se ligam à proteína, aprisionando-a no interior de uma reentrância da própria chaperona.
Essa reentrância constitui um ambiente separado do citossol, propício para o
enovelamento adequado da proteína. Erros como os citados acima são particularmente
freqüentes em situações estressantes, como por exemplo quando o organismo é exposto a
temperaturas elevadas. A síntese das chaperonas como uma resposta a esses eventos
assegura a estabilidade química da célula e, portanto, a sobrevivência do organismo.
Defesas celulares contra o congelamento
A formação de gelo deve ser evitada e controlada por qualquer organismo que viva
em um ambiente de temperaturas abaixo do ponto de congelamento da água. A água no
estado líquido é fundamental para a formação e estabilização da estrutura de moléculas
biológicas; para a manutenção da bicada lipídica das membranas celulares (os lipídios
protegem sua porção hidrofóbica compondo membranas!); para o transporte de materiais
entre compartimentos de um organismo e entre ele e seu ambiente; e como substrato de
várias das reações do metabolismo (Hochachka e Somero, 2002). Além de concorrer com
esses importantes papéis da água líquida, a formação de gelo coloca as células em perigo
também pelo fato que os cristais podem danificar mecanicamente a estrutura de moléculas
biológicas e de membranas.
Muitos táxons distintos evitam a formação de cristais de gelo no citoplasma e em
fluídos corpóreos através de sua concentração com moléculas orgânicas. O aumento da
concentração dos fluídos permite seu super-resfriamento abaixo de 0oC, sem
congelamento, valendo-se das propriedades coligativas das soluções. As moléculas
concentradas são freqüentemente solutos orgânicos de baixa massa molecular, como a
52 glicose, o glicerol, o sorbitol e a trealose (Duman, 2001). O glicerol é particularmente
relevante quando tratamos de artrópodes; em peixes, a concentração de glicerol pode
tornar-se tão elevada que os animais tornam-se iso-osmóticos em relação à água salgada
do mar! (Raymond, 1993). Com relação aos peixes antárticos, o óxido de trimetilamina
(TMAO) é o composto mais relevante em evitar a formação de cristais de gelo (Raymond e
DeVries, 1998). Esse tipo de estratégia caracteriza certos animais tolerantes ao
congelamento, como rãs e tartarugas, que assumem um estado de torpor durante o
inverno e permitem o congelamento de fluídos extracorpóreos, garantindo a integridade
das células pela acumulação de solutos (Schmidt-Nielsen, 2002).
Diante do fato de que cristais de gelo efetivamente se formam no interior de células
apesar dos mecanismos que animais de clima frio possuem para evitá-los, foram
selecionados mecanismos de controle do crescimento dos cristais de gelo após sua
formação. Substâncias anticongelativas de caráter protéico e glicoprotéico foram descritas
para pelo menos 11 famílias de peixes marinhos não aparentados filogeneticamente,
incluindo formas da Antártica e Ártico. Essas moléculas atuam após a formação de cristais
de gelo no interior das células, evitando seu crescimento; para tanto, complexam-se com a
superfície do cristal de gelo em formação e impedem a adição de mais moléculas de água.
Essa estratégia caracteriza animais não tolerantes ao congelamento, em oposição à
acumulação de soluto, embora as duas possam estar presentes no mesmo animal
(Schmidt-Nielsen, 2002; Hochachka e Somero, 2002).
Outras estratégias bioquímicas conferem aos animais extremófilos condições de
viver e se reproduzir em seus ambientes. Dentre eles, podemos citar proteínas de choque
frio (cold shock proteins) e mudanças na composição de lipídeos de membranas para
aumentar sua fluidez e permeabilidade em baixas temperaturas e diminuí-las em baixas
temperaturas.
Referências
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53
Ecofisiologia de insetos
Antonio Carlos da Silva ([email protected]) e Fabiano Ricardo A.
([email protected]) - Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva
Negrini
Os insetos surgiram na Terra há 350 milhões de anos atrás, no período Devoniano
da Era Paleozóica. Pouco se sabe sobre as primeiras formas, exceto que elas rastejavam
e não voavam. A distribuição deste grupo é bem ampla no meio terrestre, estando
presente inclusive em regiões desérticas. Uma das características que permitiram a estes
grupo de invertebrados a grande distribuição sobre a terra é a constituição de seus corpos
rica em carboidratos e quitina, a qual possibilitou a resistência a condições de dissecação
do meio ambiente.
A variedade de micro-ambientes em que se encontram insetos é grande e muitas
são as estratégias verificadas por estes animais para enfrentarem mudanças dos
gradientes ecológicos e climáticos, tais como mecanismos de termoregulação, de
absorção de água, além de estratégias comportamentais que asseguram aos indivíduos a
manutenção das condições necessárias para sua sobrevivência, ou seja, permitem a
manutenção da homeostase.
As adaptações encontradas com relação à alimentação estão associadas ao tipo de
dieta que o animal possui: - se líquida tem que lidar com problemas de peso ou volume; já
dietas sólidas requerem mecanismos que permitam a quebra do alimento facilitando a sua
absorção.
A regulação fisiológica do tamanho da refeição pode incluir estímulo sensorial
(positivo ou negativo), feedback volumétrico via estiramento de receptores localizados nas
paredes intestinais (ileum) ou nas paredes do corpo, a composição da hemolinfa
(osmolaridade ou a concentração de nutrientes individuais), reservas disponíveis e
neuropeptídeos, muitos dos quais são conhecidos por atuar na atividade contrátil do
intestino (Gäde, et al 1997).
As dietas também podem variar de acordo com o estágio de desenvolvimento do
animal, no caso de insetos holometábolos (Fig.1) existe uma diversidade de dietas entre o
estágio larval e o adulto; no estágio larval se alimentam de plantas que permitam um
ganho maior de biomassa, em larvas de borboletas Poyommatus icarus há incorporação
de flavonóides que são componentes secundários de açucares presentes nas plantas; já
quando adultas uma dieta liquida que possibilita rápida metabolização, não prejudicando
no vôo (Geuder, et al 1997).
Fig.1 Ciclo de vida da borboleta, um inseto holometábolo.
O tipo de dieta associada ao estágio de desenvolvimento em borboletas
provavelmente leva em consideração a rapidez com que alimentos líquidos (sacarose) são
digeridos e a capacidade de chegar até a fonte alimentar. No caso do indivíduo adulto,
54 pela possibilidade de rápida locomoção pelo vôo tornam esta estratégia alimentar mais
viável, além de já estar acompanhada pelas modificações sofridas durante o período de
metamorfose, no qual se estabelece a peça bucal lambedor/sugador, permitindo a coleta
de alimentos líquidos.
Assim os sistemas alimentares desempenham um papel essencial no fornecimento
de energia por meio da digestão e da absorção de alimentos e na remoção de sustâncias
indigeríveis e subprodutos tóxicos da digestão.
Os processos metabólicos exercem um papel fundamental nos mecanismos que
promovem a homeostase, e para tal há mecanismos de transporte interno que asseguram
a movimentação dos nutrientes obtidos.
O coração dos insetos geralmente repousa dentro de um seio pericárdio dorsal,
separado por um diafragma dorsal perfurado do seio perivisceral que circunda o
intestino. Pode também haver um diafragma ventral separando o cordão nervoso do seio
perivisceral. O coração é tubular e, na maioria das espécies, estende-se através dos nove
primeiros segmentos abdominais. Em cada segmento, um par de músculos alares se
estendem lateralmente do coração para parede corporal dentro do diafragma dorsal de
camada dupla. As contrações dos músculos alares fazem com que o coração se expanda
e o sangue passe através dos óstios cardíacos. Essa fase de preenchimento é seguida por
uma onda de contrações das células mioepiteliais da parede cardíaca, sendo o sangue
empurrado para frente. O coração é fechado posteriormente, mas anteriormente é
contínuo com aorta que corre para a cabeça. O sangue normalmente flui da parte posterior
para a parte anterior no coração e da parte anterior para a posterior dentro dos seios
perivisceral e perineural. As perfurações no diafragma dorsal permitem o retorno do
sangue no interior do seio pericárdio. O fluxo sanguíneo pode ser aumentado por
estruturas pulsatórias acessórias na cabeça, tórax, pernas ou asas e por contrações do
diafragma dorsal. Em muitos insetos de vôo rápido, existe um “coração” torácico adicional
que puxa o sangue através das asas e o descarrega no interior da aorta. O fluxo
sanguíneo também é facilitado por vários movimentos corporais, tais como as contrações
abdominais ventilatórias (Barnes e Ruppert, 1984).
Além de efetuarem o transporte sanguíneo, as elevações localizadas da pressão
sanguínea podem servir para uma variedade de funções, tais como descarte das asas
pelos cupins, o desenrolamento da probóscide nos Lepidóptera, a eversão de vários
órgãos, a egestão de pelotas fecais e o inchaço do corpo durante a muda e eclosão.
O sangue dos insetos é geralmente incolor ou verde, com vários tipos de hemócitos,
alguns dos quais fagocitários. Alguns insetos possuem agentes coagulantes no sangue,
mas a maioria das espécies fecha ferimentos com tampa de células. Como a troca gasosa
tecidual é realizada diretamente pelo sistema traqueal, o sangue exerce papel muito
pequeno no transporte gasoso. A maioria dos animais conta com íons inorgânicos (tais
como íons sódio e cloreto) como reguladores osmóticos do fluido corporal. Nos insetos, as
moléculas orgânicas (especialmente os aminoácidos livres) são mais importantes nessa
função. A hemolinfa também contém altas concentrações de ácido úrico dissolvido,
fosfatos orgânicos e um açúcar não redutor – a trealose.
Muitos insetos das regiões temperadas podem sobreviver a temperaturas
congelantes acumulando compostos tais como glicerol, sorbitol e a trealose, que agem
como agentes anticongelantes. Alguns insetos são capazes de super-resfriar o sangue e
os fluidos celulares para -30ºC sem congelá-los; outros exibem um congelamento
controlado, permitindo que se formem cristais de gelo somente nos espaços
extracelulares. Proteínas especiais podem ser produzidas para agir como núcleos na
formação de cristais de gelo (Barnes e Ruppert, 1984).
Trocas Gasosas
As trocas gasosas nos insetos ocorrem através de um sistema de traquéias. Um par
de espiráculos se localiza geralmente acima do segundo e do terceiro pares de pernas ou
somente acima do ultimo par. Os primeiros sete ou oito segmentos abdominais possuem
um espiráculo em cada superfície lateral. Conseqüentemente existe um numero máximo
de dez espiráculos. Os espiráculos traqueais, em sua forma mais simples, são meramente
orifícios no tegumento interno, como alguns Apterygota. No entanto, na maioria dos
insetos, os espiráculos se abrem em um buraco ou átrio, a partir do qual surgem traquéias.
O espiráculo é geralmente provido com um mecanismo de fechamento, e em muitos
55
insetos terrestres, o átrio contém dispositivos filtradores. O mecanismo de fechamento do
espiráculo reduz a perda hídrica, e as estruturas filtradoras impedem a entrada de pó e de
parasitas, bem como reduzem a perda de água.
O padrão de sistema traqueal interno é variável, mas um par de troncos longitudinais
com conexões transversais forma o plano fundamental da maioria das espécies. As
traquéias são sustentadas por anéis espirais de cutícula espessados (os tenídios), Os
anéis resistem a compressão (ou seja, evitam o colapso), mas permitem o esticamento do
tubo. A epicutícula das traquéias não tem o componente céreo típico do exoesqueleto
externo. As próprias traquéias raramente são uniformes em tamanho, mas se alargam em
vários locais, formando sacos aéreos internos, especialmente nos insetos capazes de vôo
rápido. Os sacos aéreos providenciam tanto o armazenamento de oxigênio como a
ventilação.
Acreditava-se que a troca através das traquéias ocorresse primariamente por
difusão; no entanto, os espiráculos encontram-se fechados a maior parte do tempo, e a
troca é provavelmente um resultado tanto da difusão como da ventilação. Os estudos
recentes demonstram que os espiráculos se abrem muito brevemente (200 milissegundos)
e nem todos imediatamente em resposta a uma redução localizada na pressão
hemocélica. O espiráculo é literalmente aspirado aberto, e engole-se um “gole” de ar. A
queda da pressão resulta da contração muscular intersegmentar e encontra-se sob
controle do sistema nervoso, que por sua vez pode ser regulado pela pressão de
oxigênio/dióxido de carbono do sangue. A maioria dos espiráculos se encontram abertas
durante o vôo em vez de quando o inseto se encontra em repouso (Barnes e Ruppert,
1984).
Como inseto deve equilibrar a exigência de oxigênio com relação ao risco de perda
hídrica, o numero e a duração de espiráculos abertos são geralmente mantidos no nível
mais baixo possível.
Os gradientes da pressão ventilatória resultam dos movimentos
corporais,
predominantemente abdominais, que acarretam a compressão dos sacos aéreos, e a
extensão e a contração longitudinais da traquéias. A ventilação é facilitada pela seqüência
na qual são abertos e fechados determinados espiráculos.
Insetos Sociais
A organização colonial evoluiu em vários filos de animais, mas somente entre poucas
aranhas e alguns insetos e vertebrados encontram-se indivíduos funcionalmente
interdependentes, ainda que morfologicamente separados. A condição é, portanto,
geralmente descrita como uma organização social.
As Organizações sociais evoluíram em duas ordens de insetos: os Isopteras (que
compreendem os cupins) e os Hymenoptera (que incluem formigas, abelhas e vespas).
Em todos os insetos sociais, nenhum indivíduo pode existir fora da colônia, e nem pode
ser membro de qualquer colônia, mas somente daquela na qual se desenvolveu. Existe um
cuidado de incubação cooperativo e uma sobreposição de gerações. Todos os insetos
sociais exibem certo grau de polimorfismo, e os diferentes tipos de indivíduos em uma
colônia são chamados de casta. As principais castas são os machos, a fêmea (ou rainha)
e os operários. Os machos funcionam para a inseminação da rainha, que produz novos
indivíduos para a colônia. Os operários proporcionam a sustentação e manutenção da
colônia. A determinação das castas é um fenômeno de desenvolvimento regulado pela
presença ou ausência de determinadas substâncias fornecidas nos estágios imaturos por
outros membros da colônia (Holldobler e Wilson, 1990).
Os cupins vivem em um cupinzeiro geralmente construído no solo e, em muitas
espécies, o cupinzeiro pode ser resistente e estruturalmente complexo. Os cupins diferem
dos hymenópteros sociais (formigas, abelhas e vespas) pois os operários são indivíduos
estéreis de ambos os sexos e como os cupins são hemimetábolos, os operários podem
ser juvenis ou adultos. O Macho reprodutor é um membro permanente da colônia. Esta é
construída e mantida pelos operários e pode incluir a casta de soldados. Os soldados têm
cabeças e mandíbulas grandes e defendem a colônia. Os operários e os soldados não
tem asas: estas estão presentes nos macho e nas rainhas somente durante um breve vôo
nupcial, durante o qual ocorrem o pareamento e a dispersão.
Exceto quanto às espécies que cultivam fungos, a maioria dos cupins depende de
celulose como fonte alimentar e de flagelados simbióticos para digestão de celulose. Como
56 os simbiontes são obtidos por meio de secreções anais passadas de um cupim para outro,
a simbiose foi provavelmente um fator importante na evolução do comportamento social
nos cupins. (Barnes e Ruppert, 1984).
Termorregulação e Ventilação em Cupinzeiros
O modelo utilizado para explicar como se dá o processo de regulação da
temperatura e das quantidades de O2 e CO2 em cupinzeiros foi baseado no trabalho de
Korb (2003) onde ele aborda estes aspectos no cupim Macrotermes Bellicosus (Fig.2), que
ocorre na África e Ásia, tanto nas savanas como nas Florestas tropicais daqueles
continentes. São animais de aproximadamente 1cm que constroem ninhos 1000 vezes
maiores do que eles. Estes animais vive em relação de ectosimbiose com um fungo do
gênero Termitomyces, cujo ambiente ideal para viver obrigatoriamente deve ter
temperatura de 30ºC e baixo nível de concentração de CO2 (Wood and Thomas 1989,
McComie and Dharajan 1990 apud Korb 2003). Logo, as necessidades do fungo são
primordiais para que os animais possam alimentar-se.
Figura 2. M Bellicosus – Soldado(esquerda); Fungos do gênero Termitomyces (direita).
Existem diferenças entre os montes construídos na savana e na floresta (Fig.3),
tanto em relação ao tamanho quanto em relação aos métodos utilizados para ventilar e
termorregular o ninho. Esta diferença se deve ao fato das flutuações de temperaturas em
cada ambiente. Nas florestas elas são mais sutis, enquanto nas savanas a amplitude
térmica chega, em seu máximo, a 30ºC. Os montes construídos nas savanas são grandes,
atingindo mais de 8m de altura, enquanto nas florestas, podem surgir montes médios (2m)
ou pequenos.
57
Figura 3. Humano Adulto como Parâmetro de tamanho par um monte (esquerda);
Tamanho do monte: a - savana; b e c- floresta.(direita; modificado de Korb 2003).
A arquitetura dos montes pode variar dos mais simples, com uma entrada e uma
saída de ar até aos maiores e mais elaborados sistemas de ventilação (Fig.4),
principalmente encontrados nas savanas. O tamanho do monte está intimamente ligado
com sua arquitetura, tanto interna quanto externa, a fim de que o calor possa ser dissipado
ou conservado, além de manter os níveis de O2 e CO2 em padrões ótimos para o fungo.
Temperatura e ventilação estão intimamente ligadas, pois a ventilação é um dos
principais fatores de regulação da temperatura. A arquitetura do monte e o calor
metabólico também são responsáveis pelo controle de temperatura e umidade do monte.
Fatos essenciais quando estamos tratando de uma espécie que depende da produção de
um fungo altamente especializado nos quesitos temperatura e concentração de CO2.
Figura 4. Exemplo de ninho com uma entrada de ar central (esquerda); Exemplo de ninho
com entradas múltiplas de ar (direita).
O sistema de ventilação é estruturado em passagens de ar através de túneis onde os
cupins podem transitar e efetuar correções do mesmo em relação ao vento. Estes animais
utilizam a direção do vento para obter uma corrente de ar que atravessa o monte trazendo
O2 e levando o CO2. Porém isto causa um problema, pois o ar frio vindo de fora abaixa a
temperatura do jardim de cultivo (30°C) para 28ºC e uma variação de 2ºC pode diminuir
drasticamente a produção do fungo (McComie and Dharajan 1990 apud Korb 2003). Outro
fator a ser considerado é o calor metabólico produzido tanto pelos fungos quanto pelos
cupins. Experimentos realizados demonstraram que um monte sem fungos e sem animais
tem sua temperatura media em 28ºC. Logo temos uma diferença de 2ºC, que é
compensada pelo calor metabólico dos indivíduos.
Colônias muito grandes, como as das savanas, produzem muito calor metabólico, e
para perdê-lo utilizam-se da corrente de ar. Então chegamos a um ponto crucial. Colônias
pequenas conseguem manter-se sem maiores problemas mantendo o calor metabólico, e
as medias e grandes precisam perder um pouco deste calor. A solução encontrada pelos
animais foi fazer com que o ar entrasse e saísse através da convecção, ou seja, o ar frio
desde e o ar quente sobe (Fig.5). Isso fez com que os montes aumentassem a
complexidade de construção de acordo com seu tamanho.
58 Figura 5. Interação entre o tamanho da colônia, a estrutura do monte e o sistema de
ventilação (adaptado de Korb 2003).
Como os cupins conseguem dimensionar isso é um assunto pouco conhecido, mas
estudos apontam para um comportamento/conhecimento que eles já possuem, pois são
capazes de modificar as condições de seu monte de acordo com as exigências do
ambiente. Korb 2003 sugere que novas pesquisas devem ser realizadas para que essa
questão seja respondida.
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59
Ecofisiologia e ciclos de vida complexos
Monique Simon ([email protected]) – Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia
Evolutiva
1. Definição de Ciclos de Vida Complexos
As histórias de vida de muitos animais desenvolvem-se como fases discretas (ou
seja, não contínuas) que exibem características morfológicas, fisiológicas,
comportamentais e/ou ecológicas contrastantes. Estas histórias de vida foram
denominadas como ciclos de vida complexos (CVCs). Os CVCs são constituídos por
algum grau de metamorfose, fenômeno que medeia a transição abrupta (em um curto
período de tempo) entre as fases discretas. Os ciclos de vida constituídos por uma única
fase estática ou que muda continuamente (humanos, por exemplo) são considerados
como simples.
A definição exata de um CVC é complicada pois a escolha das características que
devem apresentar diferenças discretas entre as fases de vida do animal depende da
abordagem: se ecológica ou evolutiva (com ênfase em desenvolvimento). Os
pesquisadores da área ecológica consideraram como CVCs aqueles nos quais as fases
discretas ocorrem em diferentes nichos (onde vive o organismo, o que faz -como
transforma energia, como se comporta e reage ao meio físico e biótico -e como se
relaciona com outras espécies). Ou seja, um organismo com CVC muda de nicho
simultaneamente à metamorfose. Como o conceito de nicho é muito amplo, os ecólogos
deram ênfase no uso de diferentes recursos alimentares em cada fase do ciclo.
A aplicação da definição ecológica é criticada em casos nos quais a comparação
entre os recursos alimentares, nas diferentes fases do ciclo, é complicada. Estes casos
incluem invertebrados marinhos que apresentam larvas que não se alimentam e insetos
que apresentam adultos que não se alimentam. Além destes casos, em muitos animais
uma dramática mudança de uso de recursos alimentares existe em uma idade ou tamanho
particular, mas seus ciclos de vida não são considerados complexos.
A definição evolutiva considera como um CVC um ciclo de vida que contenha duas
ou mais fases pós-embriônicas diferindo discretamente na morfologia. Ou seja, em cada
fase, o organismo possui aspectos morfológicos (como a forma do corpo) distintos. Os
pesquisadores em desenvolvimento admitem, entretanto, que casos intermediários podem
existir, nos quais a transição entre fases não é tão abrupta. É bastante provável que exista
um gradiente entre ciclos simples e complexos na natureza, com mudanças morfológicas
menos ou mais marcantes.
2. Evolução dos Ciclos de Vida Complexos
Muitos pesquisadores observaram que a maioria dos animais multicelulares
(Metazoa) apresenta CVCs. Este fato é válido tanto para a definição ecológica quanto para
a definição evolutiva de CVC. Dentre os metazoários, grupos de organismos marinhos, de
água doce, terrestres e parasitas possuem CVCs, mostrando a independência deste
fenômeno diante das condições ambientais. Os CVCs, portanto, são presentes em animais
que habitam uma grande gama de habitats.
Em grupos tipicamente considerados de CVCs como anfíbios e insetos
holometábolos (aqueles que possuem 4 estágios de desenvolvimento: ovo – larva – pupa
– adulto), a distribuição filogenética de CVC junto de evidências fósseis indica sua
existência há 200 milhões de anos atrás! Em invertebrados marinhos, os CVCs são ainda
mais antigos. Possivelmente, nos metazoários como um todo, o ciclo de vida primitivo é
um CVC com uma larva que sofre metamorfose para tornar-se um adulto. Dados de
homologia (mesma origem embrionária) entre larvas de diferentes filos em combinação
com dados paleontológicos implicam que os CVCs devem datar aproximadamente 550
milhões de anos, na época da radiação do Cambriano.
A alta proporção de espécies animais com CVCs é devida principalmente ao sucesso
adaptativo (sucesso na sobrevivência e na reprodução) destas espécies e não devido a
uma alta freqüência de origens de CVCs. Provavelmente a origem de larvas e adultos
como fases discretas separadas por metamorfose ocorreu apenas uma única vez no
ancestral de todos os Holometabola e de todos os Amphibia.
As teorias para a origem e persistência de CVCs podem ser agrupadas em três
grupos. A primeira é uma perspectiva ecológica iniciada pelo pesquisador Istock em 1967:
60 CVCs são mecanismos para uma mudança adaptativa entre maneiras alternativas de
alocar recursos. Estes recursos são traduzidos em alimentação e fatores que influenciam a
sobrevivência das espécies. Este modelo sugere que em ambientes heterogêneos ou
variáveis, os organismos com CVCs teriam vantagem, pois aproveitariam como recurso
alimentar o que está em maior abundância, ou maior facilidade de acesso.
Outros pesquisadores adotaram o modelo de Istock, considerando que os CVCs são
adaptações para a exploração de oportunidades transientes de crescimento. Wassersug
(1975) argumentou que o estágio larval (girinos) de anfíbios anuros (grupo de sapos, rãs e
pererecas) é adaptado para explorar recursos alimentares transientes, particularmente em
ambientes aquáticos com alta produtividade primária (poças d’água, por exemplo). Wilbur
(1980) enfatiza que um ambiente de alta produtividade permite um rápido crescimento e
alta densidade populacional, e que o fato de poças d’água serem efêmeras elimina a
existência de predadores de grande tamanho, como peixes e alguns invertebrados.
A segunda teoria que procura explicar a origem e persistência dos CVCs também é
de perspectiva ecológica e se assemelha à primeira teoria: CVCs são adaptações para a
existência de fenótipos (expressão de um genótipo, de um conjunto de genes, em
interação com o ambiente) discretos especializados em funções distintas. A contribuição
de cada fase para a aptidão (‘fitness’ – sucesso adaptativo) do organismo envolve
características reprodutivas, seleção de habitat ou dispersão, e não somente maneiras
alternativas de alocação de recursos alimentares como a teoria de Istock. Segundo este
modelo, existe, por exemplo, uma fase adaptada para a dispersão, e outra para
crescimento. Isto ocorre com anfíbios (girinos crescem e adultos dispersam), alguns
insetos (larvas crescem e adultos alados dispersam), e em alguns invertebrados marinhos
(larvas dispersam e adultos sésseis crescem).
A terceira e última teoria contrasta com as duas anteriores: CVCs não são
adaptativos, mas resultam de constrições (comprometimento) de desenvolvimento.
Segundo esta perspectiva evolutiva, os CVCs existem não porque foram selecionados,
não porque trazem vantagem adaptativa aos organismos, mas porque são necessários
como parte de vias de desenvolvimento inflexíveis. Os organismos estão comprometidos
com programas de desenvolvimento complexos, que envolve muitos genes e precisão na
seqüência dos eventos. Estes processos interligados restringem as respostas à seleção
natural, e a teoria das constrições de desenvolvimento sugere que a metamorfose diminua
estas restrições por tornar alguns processos de desenvolvimento mais independentes uns
dos outros, e, portanto mais responsivos à seleção natural.
3. Ecofisiologia dos Ciclos de Vida Complexos
Os organismos de CVCs que mudam de nicho após a metamorfose sofrem
diferentes pressões ambientais em cada fase do ciclo. Isto porque em cada fase o
organismo ocupa um habitat distinto e realiza diferentes interações com o meio e os
demais organismos. A mudança de nicho provoca alteração do nível trófico ocupado na
teia alimentar, do grau de competição sofrido (e portanto da densidade de competidores),
do grau de predação e identidade dos predadores, além de possíveis alterações do meio
físico, como do clima (temperatura, umidade, pH). Todas estas mudanças na vida do
organismo trazem também novas respostas fisiológicas e comportamentais, que são
selecionadas para tornar o organismo adaptado ao seu novo habitat. Sendo assim, a
metamorfose provoca alterações do aparelho bucal (que se torna adaptado ao novo tipo
de alimentação – herbívoro, carnívoro, filtrador, insetívoro), da maneira de locomoção (ex:
larvas natantes para adultos saltadores em anfíbios, ou larvas terrestres para adultos
voadores em insetos), de resistência a fatores físicos (como temperatura) e de outras
características fisiológicas.
Em experimentos de tolerância térmica em anfíbios anuros foi observado que as
larvas resistem a maiores temperaturas que os juvenis e adultos. Isto está relacionado às
diferentes temperaturas nas quais os organismos em diferentes fases são expostos por
ocuparem nichos distintos. Os girinos vivem em ambientes aquáticos mais expostos a
altas temperaturas, enquanto os juvenis e adultos, que são terrestres, podem
termorregular (controlar sua temperatura corpórea) através de comportamentos como se
esconder em frestas de rochas ou locais sombreados.
Muitos pesquisadores de animais com CVCs estudam as alterações que ocorrem na
duração do estágio larval em resposta a dicas ambientais. As taxas fisiológicas de
61
crescimento e de desenvolvimento de larvas são bastante afetadas por fatores ecológicos
como temperatura, densidade, predação e pH. As larvas de alguns invertebrados marinhos
tornam-se aptas à metamorfose em um certo ponto de seu desenvolvimento, significando
que se tornam responsivas a dicas ambientais externas que podem desencadear a
metamorfose em habitats apropriados para o crescimento e sobrevivência dos juvenis. Na
ausência destas dicas, o estágio larval pode ser prolongado, e as larvas continuam a
crescer, mas a taxa de desenvolvimento é desacelerada.
Entretanto, um pesquisador chamado Jan A.Pechenik observou que existem larvas
de invertebrados marinhos que atrasam sua metamorfose, ou seja reduzem sua taxa de
desenvolvimento, mesmo estando aptas para a transformação. Este fenômeno ocorre em
ascídias, crustáceos, moluscos bivalves, poliquetos (vermes), e outros grupos. Pechenik
também observou que esta habilidade de atrasar a metamorfose variava bastante entre
espécies e dentro da mesma espécie. Alguns indivíduos atrasavam e outros não, em
resposta ao mesmo estímulo.
As larvas de anfíbios anuros também são capazes de alterar sua taxa de
desenvolvimento em resposta a fatores ambientais. Muitos exemplos são provindos de
animais que habitam ambientes extremos, como desertos, nos quais o ambiente larval
(aquático) é bastante efêmero. Foi observado que girinos de espécies desérticas são
capazes de adiantar a metamorfose em resposta a fatores ambientais que indicam a
proximidade de deterioramento do ambiente larval. Pesquisadores mostraram que a taxa
de desenvolvimento pode ser acelerada em resposta ao aumento da temperatura da água
e até mesmo à redução do nível da água, simulando a secagem gradual das poças. Assim
como Pechenik observou para os invertebrados marinhos, algumas larvas de anfíbios não
responderam à redução do nível de água.
A capacidade de acelerar ou atrasar a metamorfose demonstra uma plasticidade
fenotípica, ou seja, uma capacidade de alterar a fisiologia e/ou a morfologia em
decorrência de sua interação com o ambiente. Espécies com grande potencial para
plasticidade em caracteres ligados à sobrevivência apresentam vantagens adaptativas em
ambientes instáveis, heterogêneos ou de transição, como muitos ambientes larvais de
animais com CVCs.
4. A metamorfose é um novo começo?
Considerando-se as duas primeiras teorias para a existência de CVCs, de que eles
são adaptações para maneiras alternativas de alocação de recursos alimentares ou de que
cada fase é adaptada para exercer uma função diferente (reprodução, crescimento,
dispersão), alguns pesquisadores sugeriram a hipótese de desacoplamento entre as fases
pré e pós-metamórficas. Esta hipótese considera que as diferentes fases dos CVCs são
independentes quanto à sua evolução, sendo que as pressões ambientais sofridas por
uma fase, e as conseqüências fisiológicas e comportamentais resultantes, não interferem
na próxima fase.
A existência de uma independência entre as fases dos CVCs significa que a
metamorfose representa um novo começo para os organismos ao longo de sua história de
vida. Um maior sucesso adaptativo poderia ser obtido com esta independência de fases,
pois cada fase teria um fenótipo somente respondendo às pressões de seu nicho, e não ao
conjunto de pressões de todos os nichos que ocupar ao longo de sua vida, que podem ser
pressões opostas. A independência de fases permitiria uma otimização do desempenho do
organismo em cada fase.
A hipótese de desacoplamento sugere que não existam correlações genéticas entre
características das fases pré e pós-metamórficas, reduzindo a possibilidade de ocorrência
de ‘tradeoffs’. Tradeoff significa uma ligação entre dois ou mais caracteres, que afetam a
aptidão relativa de um genótipo e portanto são suscetíveis à seleção natural, que impede a
evolução independente dos mesmos. Existem vários tipos de tradeoffs que representam a
ligação de diferentes caracteres. Um exemplo fácil é o tradeoff especialista-generalista,
que mostra que um organismo não pode ser especializado em um ambiente e também ser
um generalista. Um organismo que se torna altamente adaptado para possuir bom
desempenho a altas temperaturas, não terá um bom desempenho também a temperaturas
mais amenas ou baixas. Outro exemplo é no caso de seres humanos: um atleta de
resistência não pode ser ao mesmo tempo um atleta de velocidade. As características
musculares e cardiovasculares adaptam-se para um fenótipo ou o outro.
62 Apesar das vantagens que os autores da hipótese de desacoplamento sugerem, da
independência entre as fases dos CVCs, muitos estudos recentes mostram que esta
hipótese não é verdadeira para diversos grupos de animais. Estes estudos demonstraram
que as experiências larvais interferem nas fases seguintes, indicando uma dependência
entre as fases dos CVCs. Nos últimos 25 anos, efeitos deletérios do atraso da
metamorfose têm sido demonstrados para um grande número de diferentes espécies e
diferentes filos, e outras experiências larvais que influenciam o sucesso das fases pósmetamórficas foram descobertas: estresse nutricional, estresse osmótico, exposição à
radiação ultravioleta, além de exposição a concentrações subletais de poluentes.
A interferência de eventos larvais nas fases seguintes foi denominada de efeito
latente ou efeito de alastramento (‘carryover effect’), indicando que eventos que se
originam na fase larval manifestam-se apenas nos estágios juvenil ou adulto. Diversos
experimentos em laboratório com invertebrados marinhos mostraram existência de efeitos
latentes ou alastrantes. Larvas do briozoário Bugula stolonifera e da ascídia Diplosoma
listerianum, organismos que formam colônias, foram induzidas a atrasar a metamorfose
em 2 a 10 horas. Como efeito latente, a taxa de desenvolvimento das colônias foi bastante
reduzida. Este efeito pode durar por semanas, nas quais o desenvolvimento é lento e a
maturidade sexual é atrasada.
O estresse nutricional de larvas através de privação de alimento também produziu
efeito latente no molusco gastrópoda (que produz concha) P. sibogae. A criação das larvas
em água do mar filtrada resultou em menor massa corpórea juvenil, menor peso na
maturidade sexual e maior tempo médio para chegada à maturidade sexual. Entretanto, a
sobrevivência e longevidade dos adultos não foram afetadas, mostrando que pode ocorrer
uma recuperação no estágio adulto destes efeitos deletérios.
A exposição de invertebrados marinhos a poluentes também pode gerar efeitos
latentes. Larvas do briozoário Watersipora subtorquata foram expostas à concentração
subletal de cobre por 6 horas e, posteriormente, as colônias resultantes destas larvas
permaneceram 11 semanas em ambiente natural, sem poluentes. Mesmo após todo esse
tempo em ambiente despoluído, as colônias tiveram sua sobrevivência reduzida, ou seja, o
efeito latente ainda se manifestou 12 a 14 semanas mais tarde!
Interessante notar que os efeitos latentes podem explicar pelo menos uma parte da
variação nos tipos de resposta existentes nos indivíduos de uma mesma espécie, por
exemplo, em taxas de crescimento, na sobrevivência, em tolerâncias ao calor, à poluição e
à desidratação.. As respostas diferenciadas podem surgir da variação na qualidade do
ambiente de ovos e embriões em diferentes microhabitats ou nascidos em tempos
diferentes.
Diversos tipos de efeitos latentes e de tradeoffs entre caracteres larvais e estágios
subjacentes também foram descobertos em anfíbios anuros. Dois pesquisadores suíços,
Res Altwegg e Heinz-Ulrich Reyer, manipularam a duração do estágio larval e o tamanho
de larvas de rãs aquáticas na metamorfose através de sua criação em diferentes
densidades, presença ou ausência de predadores (larvas de libélula) ou em diferentes
regimes de secagem da água. Estes fatores do ambiente larval foram variados para
produzir juvenis de diferentes tamanhos, que foram observados por três anos em ambiente
natural cercado. Os juvenis foram marcados e recapturados regularmente para se
determinar a sobrevivência e caracteres morfológicos como comprimento corporal e da
tíbia. Os pesquisadores observaram que um maior tamanho de larva na metamorfose
sempre levou a maior sobrevivência dos juvenis e que uma maior taxa de desenvolvimento
sempre levou a maior taxa de crescimento dos juvenis. Altwegg e Reyer mostraram
empiricamente que juvenis maiores possuem maior sobrevivência, provavelmente pela
correlação positiva entre maior tíbia e melhor desempenho locomotor, um tradeoff
conhecido para anfíbios anuros. Ou seja, juvenis maiores pulam mais e tem maior chance
de escapar de predadores e capturar alimento.
Seguindo a hipótese de que experiências larvais afetam o desempenho de juvenis e
adultos, um pesquisador americano, James R. Vonesh, examinou os efeitos de predadores
de ovos e de larvas da rã africana Hyperolius spinigularis no desempenho larval, no
tamanho das larvas na metamorfose e na predação de juvenis. Vonesh quis determinar o
quanto que reduções na densidade larval, devida à predação de ovos, afeta a
sobrevivência larval e a massa corpórea na metamorfose. Ele também quis verificar o
quanto que diferenças no tamanho dos juvenis (resultantes das diferenças na massa das
63
larvas) afeta sua sobrevivência diante de seu predador, uma aranha pescadora. Vonesh
percebeu que a ação de predadores em estágios iniciais afeta os subseqüentes por alterar
a densidade de indivíduos destes estágios, e portanto, alterar a força de competição por
alimento. A predação dos ovos reduziu a densidade larval inicial, e a predação das larvas
reduziu a densidade ainda mais, resultando em um aumento da massa na metamorfose de
91%, em comparação com ambientes de maior densidade! Os juvenis maiores tiveram
maior sobrevivência nos encontros com as aranhas aquáticas por conseguirem escapar
mais vezes que juvenis menores. Vonesh também verificou que os juvenis menores não
tiveram um crescimento compensatório para tornarem-se adultos maiores, e este resultado
difere do visto em alguns invertebrados marinhos nos quais os adultos conseguiram
aumentar sua taxa de crescimento.
Um outro estudo realizado em 2005 também mostrou que o tamanho de um
organismo em um estágio interfere na sobrevivência dos estágios seguintes na rã Rana
arvalis. Os pesquisadores observaram que um maior investimento materno, que resulta em
ovos de maior tamanho (com mais substrato energético para os embriões), resulta em
larvas de maior massa que sobrevivem melhor em ambientes ácidos do que larvas
menores. Este estudo mostra que até mesmo carateres maternos podem interferir no
desempenho de larvas, aumentando a abrangência dos efeitos latentes.
Todos estes estudos científicos realizados em invertebrados marinhos e em anfíbios
anuros revelam que existe um acoplamento entre as fases pré e pós-metamórficas em
organismos com CVCs, ao menos nestes grupos estudados. Portanto, a metamorfose não
é um novo começo para estes animais. A descoberta de efeitos latentes ressalta para a
importância de se estudar mais de uma fase dos CVCs para se compreender as respostas
geradas por organismos que os possuem.
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64 Fisiologia da Estivação
Isabel Cristina Pereira ([email protected]) – Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia
Evolutiva
Em certos grupos de animais a sobrevivência durante o período de estiagem está
associada ao comportamento de estivação (Abe, 1995; Storey & Storey, 1990; Pinder et
al., 1992). Estivação é um conjunto de estratégias adotadas para sobrevivência em
condições áridas, mas também pode estar associado com a falta de alimentação e com
altas temperaturas. É um fenômeno complexo que pode ser influenciado por reajustes
metabólicos para otimizar as funções do organismo durante os meses de dormência.
Essas mudanças incluem uma maior dependência da oxidação de reservas de lipídeos e
uma baixa taxa de gluconeogênese de glicerol ou aminoácidos para manter o suplemento
de glicose no organismo (Fuery et. al., 1998). Particularmente em anfíbios anuros, a
estivação é também caracterizada por uma drástica redução na respiração cutânea com
conseqüente redução da perda de água (Guppy & Withers 1999; Abe, 1995; Guppy, et. al.,
1994; Hochachka & Guppy 1987).
A estivação também é caracterizada pela redução da taxa metabólica, processo
aparentemente desencadeado em resposta a diminuição da disponibilidade de recursos
tróficos, hídricos ou a exposição à altas temperaturas que acompanham a seca, e parece
contribuir para manutenção do balanço energético no organismo como um todo,
promovendo sua sobrevivência durante esta fase (Pinder at. al., 1992). Para certos grupos
de animais, o hipometabolismo que acompanha a estivação é tipicamente caracterizado
pela diminuição dos movimentos, da alimentação, dos batimentos cardíacos e da atividade
cerebral, (Secor, 2005; Storey & Storey, 1990; Pinder et. al., 1992), assim como parece
estar diretamente associado a importantes modificações nos processos bioquímicos em
diversos tecidos (Hochachka & Somero, 1984). Um dos ajustes metabólicos mais visíveis
está relacionado com o acúmulo prévio de reservas energéticas em adição à redução da
taxa metabólica, o que parece sustentar não somente a fase depressiva, mas também a
retomada da atividade durante a re-hidratação (Pinder et. al., 1992; Storey & Storey,
1990).
Esta depressão metabólica associada a estiagem é relatada para vários organismos,
incluindo bactérias e fungos. Os esporos de bactérias podem sofrer um estado de
dormência desencadeado por altas temperaturas e diminuição de recursos hídricos, e uma
depressão metabólica similar é relatada para esporos de fungos (Guppy & Withers, 1999).
Os anelídeos também respondem a diminuição de recursos hídricos com a diminuição da
taxa metabólica e algumas espécies formam um tipo de “casulo” que mantem a umidade
do microhabitat e juntamente com a formação do “casulo” diminuem o metabolismo. Entre
os moluscos há casos extremos como o da Aspatharia chaiziana, um bivalve que
sobrevive doze meses imerso. Para os crustáceos também são relatados longos períodos
de dormência que podem atingir um ano em Streptocephalus torvicornis. Foram
encontrados exemplares de Biomphalaria tenagophila estivando em dois municípios do
Estado de São Paulo (Brasil): Ubatuba e Conchas. Os caramujos estavam enterrados em
fendas do solo ressecados, e, em laboratório, voltaram a exibir atividade depois de
colocados em água (Teles & Marques, 1989). O estado de estivação do molusco Achatina
fulica caracteriza uma das principais estratégias de sucesso na sobrevivência e ocupação
da espécie nos diversos ambientes, é uma espécie invasora que se adaptou a diversos
ambiente utilizando essa estratégia. A razão pela qual Achatina fulica entra em estivação é
a mesma que os demais gastrópodes, uma vez que as condições ambientais se tornam
desfavoráveis o caramujo seleciona um local protegido, se retrai no interior da concha e a
fecha com o epifragma. O epifragma vai sendo formado a partir do perístoma, sendo
composto basicamente de carbonato de cálcio. Dessa forma, diminuem a exposição da
área do corpo sujeita a evaporação e às atividades fisiológicas, garantindo a manutenção
das reservas energéticas e da água corporal em níveis compatíveis a sua sobrevivência.
Nos insetos a estivação pode ocorrer em diferentes fases do ciclo de vida, como ovo,
pulpa, larva ou mesmo nos adultos. Particularmente nos insetos o estágio de dormência
desencadeado pelo calor ou até mesmo pelo frio recebe o nome de diapausa, durante
esse período o crescimento é interrompido para evitar gastos energéticos. Os ovos de
alguns insetos chegam a sofrer uma depressão metabólica de 50%, enquanto outros
parecem não sofrer uma depressão maior que 3%.
65
A tartaruga Clemmys guttata parece em verões mais quentes enterram-se na lama
dos charcos e passam por um período de estivação até que as condições estejam mais
amenas. O cágado-mediterrânico Mauremys leprosa é um réptil autóctone bastante
comum em terras lusitanas. Esse cágado, da família Bataguridae, habita preferencialmente
charcos, albufeiras, ribeiras e rios, é um réptil de hábitos diurnos, que podem hibernar nas
épocas mais frias ou apresentar períodos de estivação durante o verão intenso e neste
período ele se enterra na lama próximo a onde vive.
Para entrar neste estado hipometabólico os organismos seguem sinais externos,
como temperatura, umidade, pressão atmosférica e mudanças no fotoperíodo. Outros
seguem ainda o nível da água, como é o caso dos peixes pulmonados, que dependendo
da profundidade do corpo de água onde vivem, podem se enterrar na lama e entrarem em
estivação. A taxa metabólica destes animais durante a estivação é de aproximadamente
um terço da taxa metabólica durante o período de atividade. Durante a época das chuvas
o peixe cresce e acumula reservas energéticas, e com a chegada da estiagem e,
conseqüentemente, com a baixa das águas, deixa de se alimentar e mergulha na lama,
cavando um canal de aproximadamente um metro de profundidade no lodo e esta galeria
termina numa ampla câmara que varia de tamanho de acordo com as dimensões do peixe
e permanece tornando-se pouco ativo, em estado hipometabolico. Normalmente os peixes
pulmonados ficam menos de seis meses em estivação, mas podem permanecer neste
estado até quatro anos sob condição de hipometabolismo forçado. Os lipídeos são as
principais reservas, mas quando acabam, as proteínas passam a serem utilizadas, como
no peixe Synbranchus marmoratus que após 15 e 45 dias de estivação artificial induzida,
teve consumo de reserva lipídica substituído pelo consumo de reserva protéica. Peixes
pulmonados Lepidosiren paradoxa capturados durante o período em que estão enterrados
na lama (estivação) têm alta capacidade anaeróbica dos músculos esquelético e cardíaco
durante este período, quando as enzimas representativas da via aeróbia mostram níveis
bastante inferiores (indicando supressão metabólica) em relação aos animais ativos.
Durante o estado de atividade o principal combustível para o metabolismo é o
glicogênio para o metabolismo aeróbio ou anaeróbio e o lipídeo para o metabolismo
oxidativo, o glicogênio é depositado em todos os tecidos, mas nos vertebrados costuma
ser encontrado em maior quantidade no fígado. Em adição ao lipídeo e ao glicogênio, os
aminoácidos são utilizados. Durante a estivação de peixes pulmonados não há acúmulo de
corpos cetônicos e as proteínas são mobilizadas do músculo branco.
Na rã Neobatrachus wilsmorei, o consumo de oxigênio é reduzido em 80 à 85%
durante o período de inatividade quando comparado aos valores observados durante o
estado normal de atividade nos meses de chuva (Hand & Hardewing, 1996). Assim, essa
drástica redução do metabolismo aeróbio contribui para o balanço hídrico no organismo
como um todo, especialmente nas espécies terrestres (Abe, 1995). Bufo alvarius,
Ceratophrys ornata e Pyxicephalus adspersus apresentam uma redução de 20% na taxa
metabólica quando induzidos à estivação (Secor, 2005). Adicionalmente, ajustes
específicos sobre as vias de metabolização de substratos energéticos modulam a
mobilização desses compostos em adequação a demanda dos tecidos (Guppy, et. al.,
1994). Durante a estivação do sapo Scaphiopus couchii, os estoques hepáticos de
glicogênio são amplamente preservados durante a fase hipometabólica, o que sugere uma
baixa utilização de carboidratos durante este período (Storey & Storey, 1990). Estudos in
vitro em fígado de Neobratrachus centralis, um sapo estivador do deserto australiano,
indicam uma diminuição de 67% da síntese de proteínas durante a estivação. O anfíbio
Dermatonotus muelleri constrói uma câmara subterrânea onde permanece em estivação
durante o período de seca e imediatamente após as condições voltarem a serem
favoráveis ele retorna a atividade tendo uma reprodução explosiva. A maioria das espécies
que utilizam as estratégias de estivação possui reprodução explosiva, devido ao fato de
aproveitarem o curto período de chuva para se reproduzirem.
Já com relação aos estoques de lipídeos, pouco é conhecido do ponto de vista
energético sobre as alterações sazonais desses compostos em anuros que estivam,
especialmente pela limitada capacidade de armazenamento nesses animais, muitas vezes
restrita aos tecidos hepático e muscular (Duelman & Trueb, 1986), entretanto, algumas
espécies de anfíbios anuros e lagartos possuem estoques de lipídeo na forma de corpos
gordurosos, que podem estar localizados geralmente na parte posterior do abdômen. A
ciclagem sazonal de lipídeos parece desempenhar um importante papel durante a
66 reprodução, o que está associado não somente à formação das reservas para os embriões
nas fêmeas, mas também com a manutenção da atividade nos machos durante o período
de vocalização (Wells, 2001). Já em lagartos Tupinambis merianae, um grupo diferente,
mas que também passa por um processo de dormência, estudos realizados mostram que
durante a fase de dormência os lipídeos constituem o principal substrato energético para
os tecidos (Carvalho et. al., 1996) e que durante este estado há uma depressão
metabólica de 75 a 85%, que pode durar de três a quatro meses, período no qual o
organismo é mantido aerobicamente, pelo uso de lipídeos como substrato energético,
ocorrendo um aumento no depósito de glicogênio no cérebro e músculo cardíaco
(Carvalho, 1999).
É provável que um dos grandes desafios para a sobrevivência em condições
adversas seja, na verdade, a fase de recuperação e saída do estado inativo (Hochachka e
Guppy, 1987). A fase final da estivação em condições naturais apresenta problemas
fisiológicos adicionais aos animais, particularmente em locais onde as estações chuvosas
são imprevisíveis (Pinder et. al., 1992). Os anfíbios estivadores dessas regiões possuem
um comportamento reprodutivo oportunista, baseado na rápida saída do estado
hipometabólico nos primeiros dias de precipitação de chuva, quando estes tornam-se
aptos à reprodução (Pinder et. al., 1992). Essa preparação para à reprodução inclui tanto a
ovogênese quanto o ciclo espermatogênico, processos estes que dependem de
considerável investimento energético. Indivíduos de Rana temporaria apresentam
espermatogênese normal durante a estivação, mas o prolongamento desse período pode
afetar profundamente esse processo (Jorgensen, 1992). Além disso, o sucesso reprodutivo
depende diretamente da manutenção dos níveis protéicos durante o período de
reprodução, e o emprego de proteínas na manutenção da homeostase energética durante
a fase hipometabólica pode comprometer o desempenho em condições normais (Pinder et.
al., 1992; Guppy et. al., 1994). Como a síntese protéica possui um alto custo energético,
esta é conseqüentemente inibida durante a estivação para evitar gastos energéticos (Hand
& Hardewing, 1996), porém é amplamente ativada na fase pós-depressiva em anuros
estivadores (Duellman & Trueb, 1986). Em condições adequadas de estoque de
nutrientes, os organismos tendem a manter a quantidade de proteínas relativamente
constante durante a estivação, como observado em moluscos da espécie Helix apersa
durante a depressão metabólica (Pakay at. al., 2002). Entretanto, se a fase prévia de
preparação para a entrada em dormência for prejudicada e os estoques energéticos
estiverem limitados, as reservas endógenas de proteínas se tornam a mais importante
fonte de energia (Hochachka & Somero, 1984). Sob condições extremas o estoque
protéico pode representar uma fonte essencial de combustível para o animal (Guppy et.
al., 1994; Hochachka & Somero, 1984). Assim, o conjunto dessas evidências sugere que
os ajustes fisiológicos relacionados com a estivação em anuros estão intimamente
relacionados com a modulação dos processos que produzem e utilizam ATP de um modo
geral no organismo, a fim de garantir a sobrevivência nas espécies mais dependentes da
disponibilidade de água.
Durante a estivação, o organismo deixa de receber a quantidade de oxigênio
suficiente, fazendo com que os tecidos entrem em isquemia (deficiência da circulação do
sangue no órgão) ou hipóxia. Depois, quando o sangue volta a oxigenar os tecidos, ocorre
um processo de consumo excessivo de oxigênio – causando o estresse oxidativo e
conseqüente produção de radicais livres, mas esse fenômeno fica minimizado pelo
aumento do número de enzimas antioxidantes produzidas nos tecidos desses animais.
No Brasil determinadas espécies de anuros que se mantêm em atividade durante os
meses de estiagem, adotam estratégias alternativas para evitar a perda excessiva de água
neste período. A rã Corythomantis greening, possui a pele da cabeça co-ossificada, o que
lhe confere proteção e auxilia secundariamente na economia de água, ela não se enterra,
mas fica entre fendas nas rochas em estado hipometabólico (Jared, et. al., 2004). Bufo jimi
mantém suas atividades mesmo durante a seca, fato que pode estar associado à camada
de grânulos de cálcio (Toledo & Jared, 1993), que aparentemente, só não estão presentes
na região dorsal próxima à virilha, local por onde os animais obtêm água do ambiente
(NAVAS, C. manuscrito em preparação). Além disso, estes animais usualmente procuram
proteção em microhabitats úmidos e são ativos apenas à noite quando a temperatura
corpórea e as perdas de água são diminuídas (Abe, 1995). Alguns sapos, como os da
espécie Proceratophrys cristiceps, se enterram durante o período de seca a profundidades
67
que podem muitas vezes ser maior que 1 metro (Navas, et. al., 2004), mas não se sabe se
esses animais realmente estão em estado hipometabolico. Outras espécies pertencentes
aos gêneros Pleurodema, Physalaemus e Ceratophrys também já foram encontradas
enterradas a grandes profundidades em leitos secos de rios perenes na região da
Caatinga (JARED, C. e NAVAS, C. comunicação pessoal), mas o comportamento de
estivação foi verificado apenas em Ceratophrys, as outras espécies ainda estão sendo
estudadas para confirmação do uso desta estratégia durante o período de estiagem.
Entretanto para o sucesso dessa estratégia algumas variáveis físicas no solo são
importantes como a temperatura, a quantidade de água, a concentração de gases
respiratórios e o tipo de solo (Pinder et. al., 1992). Além dessas variáveis os animais
enterrados no solo podem sofrer com a carência de oxigênio, levando a um estado típico
de hipóxia. Estes animais precisam sofrer ajustes comportamentais, um aumento na
captação da água através da pele (anfíbios não bebem água), aumento no volume da
bexiga, habilidade para sobreviver sem corpos de água, formação de uma capa (casulo)
para proteção contra perda de água. Rana temporaria apresenta uma redução na atividade
de enzimas do metabolismo energético no músculo esquelético, mostrando uma
reorganização da produção energética durante a depressão metabólica (St-Pierre &
Boutlier, 2001). Em Bufo paracnemis a diminuição da temperatura corpórea e as respostas
fisiológicas à hipóxia contribuem para a manutenção da homeostase do organismo durante
a seca ou quando há escassez de alimento (Bicego-Nahas et al., 2001). Os anfíbios
também toleram muito bem a desidratação, chegando a suportar uma taxa de até 30%,
enquanto para mamíferos esta taxa chega a 12%. Para sapos do deserto que estivam, a
taxa de desidratação chega a 50%. Como para os sapos do deserto do Arizona, que se
alimentam por aproximadamente três meses e se enterram pelos outros nove meses do
ano, e durante esse período eles precisam enfrentar altas taxas de desidratação.
As maiorias dos anfíbios estivadores passam mais tempo na terra do que na água,
mas um pequeno grupo faz o contrário, e para esses animais a umidade do solo é
extremamente importante durante o período de estivação. Este é o caso de animais como
os anuros Xenopus da África, Ceratophrys, da América do Sul e Hyla da Austrália. Esses
animais se enterram em pontos nos quais geralmente seriam encontrados durante a
estação chuvosa, como leito de rios e lagos.
Apesar de todo o conhecimento existente sobre a estivação em anfíbios anuros e
outros vertebrados ectotérmicos, ainda não são claros os mecanismos utilizados por estes
animais para lidarem com a imprevisibilidade típica do ambiente da Caatinga, onde as
chuvas podem não ocorrer, ou podem ainda chegar de forma totalmente imprevisível. Os
indivíduos dessa espécie, assim como outros já vistos na Caatinga (Navas, et. al., 2004),
se enterram em grandes profundidades onde, aparentemente, é mantida certa umidade
relativa no microhabitat construído.
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69
A importância dos mecanismos osmorregulatórios na
conquista dos diferentes ambientes: Um enfoque em
Crustacea
Bruno Blotta-Baptista ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia de Crustáceos
Simplificadamente os seres vivos podem ser descritos como sistemas bioquímicos
complexos que para uma atividade ótima devem possuir uma concentração de solutos e
volume mantidos a limites estreitos. No entanto, as concentrações adequadas dos fluidos
corpóreos dos animais diferem das concentrações encontradas no meio ambiente. Dessa
forma os animais devem constantemente manter as concentrações iônicas apropriadas do
meio interno em contraposição a tendência de diminuição dos gradientes entre o animal e
o meio externo e ao equilíbrio entre essas concentrações (SCHMIDT-NIELSEN, 2002)
O surgimento de uma “barreira”, uma estrutura que delimitasse um meio interno e
outro externo foi o primeiro passo para a existência de um gradiente. A membrana
plasmática por ser seletiva, ou seja, possuir alta permeabilidade a moléculas hidrofóbicas
e água (leia sobre “aquaporinas” em HARRIS & ZEIDEL, 1993; GONEN, & WALZ, 2006) e baixa
permeabilidade a íons e moléculas hidrofílicas permitiu uma compartimentalização, criando
um ambiente intracelular diferente do meio extracelular e externo (ALBERTS et al., 2002).
Os desafios para a manutenção do meio interno são diferentes conforme o ambiente
em que o animal habita (marinho, água salobra, água doce e terrestre) e serão abordados
separadamente.
1.Padrões de Regulação Osmótica (Florkin, 1960 ; PÉQUEUX, 1995)
a. Regulação Isosmótica Intracelular (osmoconformação)
Os mecanismos envolvidos nesse processo ajustam os níveis de osmólitos para
manter o meio intracelular isosmótico com o meio extracelular (i.e. hemolinfa) evitando a
geração de gradientes osmóticos e de fluxos de água. Apesar de isosmóticos, os meios
não são iso-iônicos, gerando gradientes de concentração e com isso uma diferença de
potencial que permitem movimentos passivos dos íons entre os meios. Por exemplo, na
maioria das células animais, os principais íons do fluido extracelular são o Na+ e o Cl-,
enquanto o K+ é o principal íon intracelular. Alguns organismos quando expostos a
variação na concentração do meio não são capazes de manter a concentração do líquido
extracelular constante e acompanham essas variações. Com isso, as células desses
animais estão diretamente expostas as variações externas e devem constantemente
reajustar sua concentração osmótica com a do meio, através do influxo ou efluxo de
osmólitos. Esses organismos são ditos osmoconformadores.
b. Regulação Anisosmótica Extracelular (osmorregulação)
Alguns organismos possuem a capacidade de manter praticamente constante a
concentração do líquido extracelular. Com isso, suas células estão quase sempre expostas
a um meio extracelular constante, o que auxilia na manutenção da concentração do meio
intracelular. Esses organismos têm uma maior independência das variações do meio
externo. São ditos osmorreguladores. Quando a concentração da hemolinfa é mantida
acima da concentração do meio o animal é dito um hiperregulador, em oposição a
concentração da hemolinfa menor que a do meio, é dito hiporregulador. Apesar dessas
definições, quando submetemos um animal a variações no meio externo, podemos
observar diferentes padrões de regulação. O que acontece é que muitos organismos se
comportam como osmorreguladores em uma determinada faixa de salinidade, e a partir de
um ponto passam a comporta-se como osmoconformadores, ou então são
hiperreguladores em determinada salinidade e hiporreguladores em outra. Dessa forma,
podemos encontrar num mesmo organismo todas as combinações entre hipohiperreguação e osmoconformação. A figura 1 ilustra essas possibilidades.
70 Linha isosmótica
2
Osmolalidade da
hemolinfa
4
3
6
1
5
Osmolalidade do meio
Figura 1. Alguns padrões de regulação em crustáceos decápodas. A linha diagonal indica uma relação
isosmótica (mesmas concentrações) entre a hemolinfa e o meio. (1)Osmoconformador eurialino.
(2)Osmorregulador estenoalino. (3)Forte hiper-hiporregulador. (4)Isosmótico em altas salinidades, forte
hiperregulador em baixas salinidades. (5)Isosmótico em altas salinidades, fraco hiperregulator em
baixas salinidades. (6)Hiper-hiporregulador moderado. (MODIFICADO DE MANTEL & FARMER, 1983 –
Todos os direitos reservados)
c. Faixas de Sobrevivência
Tanto animais osmorreguladores quanto osmoconformadores podem estar expostos
a variações na concentração do meio externo. Isso é mais evidente no ambiente estuarino
(manguezais) conforme elucidado abaixo. Essa variação pode ser uma situação de
estresse (salino) que limita a sobrevivência dos animais nos ambientes. Animais que
toleram grandes variações na concentração do meio (> 600 mOsm.Kg H2O-1 ) são
chamados de eurialinos. Animais que têm uma sobrevivência mais limitada em relação a
concentração do meio são chamados de estenoalinos.
2. O ambiente aquático
A superfície terrestre é coberta por aproximadamente 71% de água, sendo que
desses, menos de 1% é água doce. Toda a água possui solutos, e a quantidades de
solutos dissolvidos é utilizada para diferenciar os ambientes aquáticos. A água do mar
possui 35g de solutos por litro (salinidade 35‰, 1500 mOsm.Kg H2O-1), enquanto a água
doce possui quantidades próximas a zero (salinidade 0‰, <0,5 mOsm.Kg H2O-1). A água
salobra ocorre em regiões litorâneas onde a água do mar está misturada em quaisquer
proporções com a água doce dos rios. É importante do ponto de vista fisiológico, pois
representa uma barreira para a distribuição de animais marinhos, bem como de água doce
e ao mesmo tempo constitui uma transição interessante entre esses ambientes.
a. O ambiente marinho e seus desafios
A maioria das espécies marinha mantém-se isosmóticas ao meio. Dessa forma
evitam a perda/ganho de água passivos (osmose). No entanto, esses animais não são iso-
71
iônicos, o que significa que as concentrações de alguns íons podem variar em relação as
concentrações iônicas do meio. Como estão em um ambiente concentrado, a
disponibilidade de íons não é problema para essas espécies. Alguns caranguejos
grapsídeos, isópodos e pitus são hiposmóticos ao meio. Com isso existe uma tendência de
efluxo de água, que parece ser compensada pela ingestão de água e excreção do excesso
de sais pelas brânquias (como ocorre em peixes teleósteos)(ROBERTSON, 1960).
Curiosamente esses animais não possuem a capacidade de eliminar íons pela urina,
através da secreção pelas glândulas antenais, exceto para o Mg2+ que está cerca de 8
vezes mais concentrado na urina dos crustáceos quando comparado a hemolinfa.
b. A osmorregulação e a invasão dos ambientes de água salobra e dulcícola
Os ambientes de água doce e salobra são semelhantes em relação aos seus
desafios osmóticos: representam uma diluição da água do mar, porém em graus
diferentes. Enquanto a água salobra pode variar de 0,5 a 30‰, a água doce representa o
extremo da diluição, com concentrações muito próximas a zero. Com isso, os mesmos
mecanismos e estratégias selecionados evolutivamente são válidos para ambos
ambientes.
Quando um crustáceo osmoconformador de água marinha é colocado em meio
diluído há uma perda generalizada de íons pela superfície corpórea e urina, a
concentração intracelular de íons é perturbada e ocorre influxo de água para as células. Se
esses efeitos não forem revertidos, o animal morrerá. Dessa forma, muitos crustáceos
marinhos não toleram diluições do meio superiores a 25%(água do mar a 75%) e esse
limite representa os níveis nos quais espécies estritamente marinhas estão adaptadas.
Considerando o número de ordens, famílias e gêneros de crustáceos que habitam a água
salobra e doce, é evidente que a evolução dos mecanismos necessários que permitem a
colonização desses ambientes surgiram várias vezes ao longo da escala filogenética
(LOCKWOOD, 1967). O mecanismo selecionado ao longo da evolução desses organismos é
a capacidade de manter constante a concentração iônica da hemolinfa frente as variações
na concentração osmótica do meio (osmorregulação). Os processos envolvidos nessa
regulação são: redução na permeabilidade da superfície corpórea, transporte ativo de íons,
produção de urina hiposmótica(diluída) e hiperregulação.
ƒ Absorção ativa de íons: muitos crustáceos que vivem em água salobra e todos
que vivem em água doce mantêm-se hiperosmótcos em relação ao meio. Para isso,
devem absorver íons contra um gradiente de concentração, o que só é possível com a
participação de transportadores transmembrânicos que utilizam energia(ATP). Uma das
características do transporte ativo de íons é apresentar uma cinética saturável, ou seja,
atingida uma certa concentração do meio externo não existe aumento na velocidade de
transporte do íon. Para esse tipo de transporte podemos definir uma constante (Km), que é
utilizado como medida de afinidade do transportador pelo íon. Para o transporte de cálcio
realizado por uma cálcio ATPase de membrana plasmática (PMCA), lagostins de água
doce apresentam uma maior afinidade pelo íon do que lagostas marinhas (WHEATLY,
1999). Dessa forma, podemos especular que evolutivamente ocorreu um aperfeiçoamento
desse mecanismo em animais de água doce, uma vez quer habitam um meio com menor
disponibilidade (concentração) de íons quando comparados com animais de água do mar
(LOCKWOOD, 1967).
ƒ Redução da permeabilidade: a hiperregulação é um balanço entre a tomada ativa
de íons e a perda desses íons. Uma redução nessa perda ocasiona um menor gasto
energético em sua tomada. A taxa de perda depende da permeabilidade da superfície
corpórea aos íons e água, e do gradiente mantido entre a concentração da hemolinfa e
meio. Nos animais marinhos a permeabilidade é mais alta, uma vez que as concentrações
iônicas do meio e hemolinfa são semelhantes e também permitem uma obtenção de água
para produção de urina. A permeabilidade corpórea de animais de água salobra é menor
que de animais de água do mar, enquanto os de água doce apresentam as menores
permeabilidades. Ainda não é claro como ocorre o controle da permeabilidade, mas ele
parece estar relacionado a cutícula (uma camada do exoesqueleto) e com as células
epiteliais. Essas últimas participariam em alterações na permeabilidade iônica através do
controle dos gradientes eletroquímicos (pro exemplo, -40 mV ao longo da parede corpórea
do animal dobrariam o influxo passivo de cátions monovalentes (LOCKWOOD, 1967).
72 ƒ Produção de urina diluída: em espécies hiperosmóticas em relação ao meio
existe um influxo passivo de água que deve ser eliminado através da urina,
conseqüentemente acarretando uma perda de íons. Já nas espécies hiposmóticas existe
uma tendência de influxo de íons que devem ser eliminados. No entanto, em crustáceos
não é comum a produção de urina diluída (na caso dos hiperreguladores) e a concentrada
(no caso dos hiporreguladores). Todos os decápodos marinhos e estuarinos produzem
urina isosmótica. Alguns anfípodas estuarinos e lagostins (água doce) possuem a
capacidade de produzir urina diluída: com isso, ocorre a eliminação do excesso de água e
auxílio na conservação de íons. Essa capacidade parece estar associada a uma estrutura
diferenciada na glândula antenal (órgão excretor) desses animais que possuem um ducto
longo (canal nefridial) além da participação da bexiga na reabsorção de Na+ e Cl(LOCKWOOD, 1967; MANTEL & FARMER, 1983).
3. O ambiente terrestre
A grande vantagem fisiológica da vida terrestre é a fácil obtenção de oxigênio. A
maior desvantagem é perigo de desidratação (. Por isso alguns crustáceos são
dependentes de locais úmidos, principalmente para obtenção de oxigênio, já que suas
brânquias devem estar sempre úmidas. Outro fator que os torna dependentes da água é o
período reprodutivo, no qual as fêmeas liberam seus ovos/prole na água (braquiúros). Os
isópodes terrestres (tatuzinhos-de-jardim) são verdadeiramente terrestres, pois não
dependem da água para a reprodução.
a. Desafios e adaptações
A maioria dos animais que habitam o ambiente terrestre (Protozoa, Turbellaria,
Annelida, e vertebrados) parecem ter derivado de ancestrais que viveram em água doce.
Em contraposição, os crustáceos terrestres parecem ter invadido esse ambiente
diretamente do mar.
Quando consideramos a regulação da concentração dos fluidos corporais, os
crustáceos terrestres estão expostos aos dois extremos hídricos: excesso de água
(chuvas, alagamentos, etc) e desidratação. O excesso de água não é um problemas para
animais derivados de água doce, pois esses devem ter herdado dos seus ancestrais a
capacidade de elimina-lo. Como a maioria dos crustáceos marinhos não possue a
capacidade de produzir urina hiposmótica, é provável que os crustáceos terrestres quando
eliminam água pela urina, não sejam capazes de conservar íons. Em água doce/salobra
esses íons seriam facilmente recuperados pela reabsorção ativa do meio e/ou urina. No
entanto a perda de sais não pode ser reposta tão facilmente no ambiente terrestre e deve
ser compensada pela retirada de sais do alimento, tornando-se o epitélio digestório um
importante local de regulação iônica.
Crustáceos não possuem a camada de cera presente em insetos e dessa forma
perdem água por evaporação. Possuem adaptações comportamentais como, por exemplo,
permanecerem em locais úmidos durante o dia e são ativos durante a noite, quando a
umidade relativa do ar é maior.
Existe perda de água pela eliminação de compostos nitrogenados, que
primariamente é a amônia nos crustáceos aquáticos. Nos terrestres não existe uma
tendência a eliminação de compostos nitrogenados que exijam menor quantidade de água
(guanina, ácido úrico). Em isópodes existe uma redução na produção compostos
nitrogenados. Outros crustáceos parecem armazenar ácido úrico ao invés de excretá-lo
(LOCKWOOD, 1967).
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74 Efeitos de poluentes e respostas ecofisiológicas em
divesos níveis tróficos diante de estressores
ambientais
Tiago Gabriel Correia ([email protected]) - Laboratório de Metabolismo e Reprodução de
Organismos Aquáticos
1. Introdução: Poluentes, organismos e ecossistemas.
A presença de substâncias estranhas de origem antrópica nos ambientes aquáticos
acarretam em alterações sobre a integridade abiótica dos ecossistemas e também sobre
os organismos residentes. Estas substâncias, poluentes ou estressores, podem afetar
diversos níveis de organização biológica (celular, individual, populacional), entretanto, sua
ação deletéria sobre os ecossistemas está relacionada à capacidade destes de
autodepuração e a mecanismos de detoxificação apresentado pelos organismos.
A aplicação de ferramentas adequadas para estudos de impacto sobre os ambientes
aquáticos varia de acordo com o tipo de hábitat, seja ele, estuarino, marinho ou dulcícola;
além disso, uma resposta a um determinado poluente, seja ela, fisiológica, celular,
bioquímica ou ecológica pode ser diferente entre os táxons, entre as espécies e até
mesmo durante o ciclo de vida.
Alguns atributos inerentes aos ecossistemas aquáticos, tais como, a produção
primária, os nutrientes, a diversidade de espécies, as manifestações patológicas e a
estrutura da composição biótica são extremamente importantes para a detecção de
modificações causadas por poluentes (Elliott, 2002); da mesma forma, considerar a
reprodução, sendo este um dos mais importantes aspectos, a tolerância ao estresse, à
capacidade de aclimatação e as atividades metabólicas e enzimáticas, por exemplo, são
apenas alguns poucos parâmetros empregados nos estudos voltados a avaliar aos efeitos
tóxicos e deletérios dos poluentes sobre o biótopo e a biocenose, e embora as agressões
aos ambientes não cessem, tais estudos são importantes para que ações sejam voltadas a
preservação da biodiversidade e busquem modificar as taxas de extinções.
A permanência de uma espécie em um ecossistema está em grande parte
relacionada à sua capacidade reprodutiva. Em situações em que o ambiente encontra-se
alterado pela presença de poluentes, todos os mecanismos de detoxificação, bem como os
que forneçam tolerância são fundamentais para a sobrevivência da espécie, entretanto, a
continuidade de cada espécie nos ambientes poluídos, não apenas refere-se à capacidade
de permanecer no ambiente, mas também pela sua capacidade de se reproduzir na
presença dos poluentes.
As respostas fisiológicas e a influência das variáveis ecológicas podem não ser às
mesmas entre as diferentes espécies de organismos aquáticos presentes num mesmo
hábitat, como também entre os indivíduos, pois embora dentro de uma mesma espécie, as
características biológicas sejam comuns entre os membros, as respostas às variáveis
ambientais são intrínsecas a cada organismo, sem considerar o fato de que as diferentes
etapas do ciclo de vida possuem diferentes níveis de suscetibilidade à um determinado
poluente, ou seja, cada fase de desenvolvimento possui uma (MCTA) máxima
concentração de toxicidade aceitável, sendo os estágios embrionários, larvais e juvenis,
geralmente os mais sensíveis.
As alterações observadas sobre a capacidade reprodutiva dos organismos
aquáticos, pela presença de poluentes ou qualquer outro estressor antrópico pode resultar
em variações sobre os índices de abundância de uma população, e sendo isto um fato não
natural, desequilíbrios e perturbações manifestam-se ao longo de toda cadeia trófica.
Inicialmente, quanto aos problemas reprodutivos, embora sejam mais facilmente
observáveis e quantificáveis sobre os indivíduos, o mesmo não se aplica sobre a estrutura
populacional de uma espécie, pois os sintomas que acometem uma população quanto ao
aspecto reprodutivo, nem sempre podem estar associados aos poluentes, mas também a
vários fatores ambientais, tais como, temperatura, fotoperíodo, pluviosidade, variações de
salinidade, eutrofização, oxigenação, disponibilidade de alimento, áreas para
acasalamento e desova, presença de predadores ou demais aspectos relacionados à
biologia de cada espécie.
Diante de agentes antrópicos, os distúrbios populacionais relacionados à reprodução
em peixes, por exemplo, podem se manifestar através de insucessos na reprodução,
75
diminuição das taxas de fecundidade, perda de áreas de desova, distúrbios
comportamentais sexuais, como o não reconhecimento ou a diminuição nos números de
encontros entre machos e fêmeas para o acasalamento, produção de ovos inférteis,
embriões e larvas frágeis, fracos ou inviáveis, e até mesmo, deformidades genéticas.
Peixes de água doce, da família Poeciliidae, são animais vivíparos e ovovivíparos,
entre os quais muitos membros desta família constituem-se em indicadores ambientais
amplamente utilizados em ensaios ecotoxicológicos. A espécie Poecilia reticulata, com
ampla distribuição na região neotropical é comumente encontrada em áreas sujeitas a todo
tipo de poluentes químicos e orgânicos; nestas condições, o desenvolvimento embrionário,
é um eficiente indicador do efeito deletério da poluição. Estudos realizados em ensaios de
toxicidade, demonstraram embriões com acentuadas deformidades físicas, saco vitelínico
pequeno (baixo estoque de energia) e menor número na progênie, chegando esta a ser,
cerca de 80% menor, quando comparada a populações distribuídas em áreas não
poluídas.
É difícil separar os efeitos dos poluentes dos fatores ambientais naturais que
influenciam a capacidade reprodutiva de uma população, sendo assim, assumir uma
postura ou outra requer modelos de estudo que possuam predizer, ou avaliar os efeitos
dentro de cada população.
É importante identificar os processos que conectam os diferentes níveis de
organização biológica para assim tentar determinar e entender como as respostas
toxicológicas no indivíduo podem ser transferidas e manifestadas para outros níveis
tróficos, especialmente sobre as comunidades.
Uma vez exposto a um poluente (estressor), ou até mesmo a alterações
manifestadas no ambiente, sendo que estas não necessariamente necessitam estar
relacionadas à presença de uma substância de origem antrópica, as respostas biológicas
podem ser detectadas em diversos níveis de organização biológica, ou seja, tais respostas
podem ser perceptíveis em nível de indivíduo, sejam elas sistêmicas, celulares ou
bioquímicas, como também ao longo da estrutura de uma cadeia trófica, abrangendo as
populações e finalmente a comunidade como um todo (Walker et al, 1996). Todavia,
investigar tais processos sobre as comunidades são extremamente complexos, devido ao
grande número de variáveis naturais como também antrópicas que atuam no ecossistema
(Depledge, 1993).
2. Ação dos poluentes sobre os organismos
Os poluentes, de acordo com suas categorias químicas pertencem a diferentes
classes: metais, pesticidas, xenobióticos, desreguladores endócrinos, detergentes,
poluentes orgânicos, derivados do petróleo, radiação, pH ácido, entre outros.
Independente de sua natureza estrutural ou química, os poluentes quase sempre são
letais, tóxicos, ou de alguma forma lesivos e adversos a qualquer forma de vida.
Quando a poluição ocorre na água, nem sempre os organismos conseguem escapar
ou evitar o simples contato, o que impõe a co-existência; fato que culmina com sofrimento,
doença ou distúrbios fisiológicos sub-letais, comportamentais, ou acarretam em morte e
extinções. Todos estes eventos ocorrerão perante uma série de variáveis ambientais,
ecológicas e fisiológicas, que estão sempre relacionadas à capacidade de aclimatação e
adaptação dos animais.
A amplitude dos efeitos lesivos dos poluentes sobre a fisiologia dos animais é tão
extensa a ponto de ser impossível uma abordagem satisfatória, contudo, apresento alguns
dos efeitos que considero mais relevantes para uma compreensão inicial do assunto,
sendo mais representativo neste contexto os efeitos sobre os peixes teleósteos de água
doce.
Os poluentes no ambiente aquático afetam todos os organismos que nele vivem
como todos os animais que destes organismos se alimentam. Os peixes absorvem
compostos químicos principalmente pelas brânquias, cuja ação sobre sua fisiologia é muito
extensa (Heath, 1995).
As conseqüências fisiológicas nos peixes causadas pela poluição acarretam
prejuízos em todos os sistemas fisiológicos com acentuada atividade na respiração,
osmorregulação e integração do sistema motor. Os poluentes afetam também os sistemas
sensoriais como o olfativo e a eletrorrecepção (algumas espécies) e finalmente resultam
76 em problemas reprodutivos que podem impedir a continuidade da espécie no ambiente
causando o seu desaparecimento e desequilíbrios na cadeia trófica.
Alguns poluentes, ao serem absorvidos, causam nos peixes sérias perturbações
endócrinas, metabólicas, ou ainda afetam a reprodução, sendo estes distúrbios,
principalmente devido aos desajustes no eixo hipotálamo-hipófise-gônadas. Os compostos
químicos que causam estes desajustes são conhecidos na literatura como “endocrine
disruptors factors” (Sumpter, 1999).
A composição química de cada poluente encontrado no ambiente aquático determina
uma conseqüência específica sobre a fisiologia dos animais.
Os poluentes orgânicos afetam os ambientes aquáticos principalmente por causarem
uma redução drástica nos níveis de O2 e promoverem a liberação de gases como o
metano e o sulfídrico, afetando dessa forma a respiração. Além disso, constituem uma
fonte de nutrientes (fósforo e nitrogênio) que possibilitam o crescimento de
microorganismos que consomem o oxigênio dissolvido, processo conhecido por
eutrofização. Entre as classes de poluentes orgânicos, os compostos nitrogenados, como
a amônia e o nitrito estão entre os mais tóxicos.
Muitos outros poluentes, como, por exemplo o DDT (Dicloro-Difenil-Tricloro-etano) e
os metais pesados, não são biodegradáveis e constituem um grupo de agentes químicos
que podem afetar não apenas a comunidade aquática, mas também, outros componentes
da cadeia trófica através de bioacumulação (Bartone and Davis, 1994).
A grande maioria dos poluentes causa alterações em vários aspectos da reprodução,
tais como redução no tamanho das gônadas (ovários e testículos), lesões nas células de
Leydig, demonstrado em experimentos com bagres de água doce, (Heath, 1995), e
alterações na incorporação de vitelo em oócitos. Na maior parte dos casos, os efeitos dos
poluentes refletem com maior intensidade sobre o sistema hormonal.
Entre os efeitos dos poluentes sobre o eixo endócrino pode-se destacar
modificações nas concentrações de vitelogenina e gonadotropinas com conseqüente
aumento nos níveis de dopamina e diminuição dos esteróides e do colesterol (Karels et
al,.1998). São relatadas também elevações nos níveis de cortisol em tilápias, (Foo and
Lam, 1993) e manifestação de situações de estresse com o impedimento e/ou atraso no
amadurecimento de espermatogônias em espermatócitos de Oncorhynchus mykiss, além
da elevação e diminuição dos níveis de esteróides fora do período reprodutivo e inibição
da síntese de gonadotropinas com simultâneo bloqueio sobre as gônadas de responderem
à ação destas.
Em alguns casos específicos, com determinados tipos de poluentes, como por
exemplo, os efluentes de indústrias de papel, há a masculinização de fêmeas em
Gambusia affinis, (Howell et at., 1980) além da manifestação de características sexuais
masculinas secundárias (Drysdale and Bortone, 1989), também nas fêmeas e ainda
testículos produzindo oócitos (inviáveis) em Gambusia affinins (Bartone and Davis, 1994).
A acidez da água induz os peixes ao estresse, (aumento nos níveis de glicose e
cortisol) (Waring et al., 2002) e ao aumento no consumo de oxigênio, como também
declínio sobre a produção de ovos e incorporação de vitelo. Ainda sobre o efeito do pH
ácido, destacam-se inibição da desova, supressão da espermatogênese, atresia de oócitos
e mudanças anormais na concentração de estrógenos (Tam et al., 1996).
3. Efeitos sobre populações e comunidades
A dinâmica de qualquer população estará sujeita a uma variação em resposta a
alterações causadas por poluentes, e como conseqüência atinge a sobrevivência e as
taxas de reprodução. O sucesso de cada indivíduo em ambientes com perturbações
antrópicas é influenciado pela sua idade ou fase do desenvolvimento devido a diferentes
necessidades e suscetibilidades ao meio (Rothschild, 1986).
As respostas populacionais podem ser demonstradas através da aplicação de uma
Matriz de Leslie. Desenvolvido em 1945, este modelo descreve o crescimento da parte
fêmea de uma população animal dividida em faixas etárias (Usher, 1972).
Entre os efeitos da poluição sobre as populações, sem dúvida merece destaque os
que marcadamente interferem sobre os processos reprodutivos. Alterações no habitat, ou
mesmo os poluentes podem reduzir o sucesso reprodutivo, o que certamente afetará a
densidade populacional. Entre as mudanças mais marcantes estão aquelas que afetam a
77
riqueza, as áreas de desova, biomassa, crescimento e a relação entre as taxas de
nascimento e mortalidade.
A tolerância de cada indivíduo, aos efeitos adversos do meio, irão determinar a
condição de preservação ou de degradação na estrutura de uma comunidade (Turnpenny,
1998).
As possíveis tendências esperadas dentro de uma comunidade em que suas
populações estejam sujeitas a algum tipo de estressor poderá ser verificada sobre a
ciclagem de nutrientes, estrutura e organização, dinâmica energética e processos que
estejam sujeitos à variação sazonal. O turnover de nutrientes pode ser afetado, bem como
o tamanho dos indivíduos, pois os processos de crescimento fatalmente estarão
comprometidos ou alterados. As áreas de alimentação também podem ser impactadas
devido à redução no fluxo de energia; todos estes fatores cooperam para uma alta
sensibilidade ao estresse em predadores, diminuição da diversidade de espécies e
aumento de parasitismo e outras relações ecológicas similares.
A competição intraespecífica e interespecífica também estão sujeitas a modificações,
que indiretamente se relacionam a fatores demográficos e até mesmo a outras variáveis
ecológicas.
Muitos organismos ainda podem apresentar modificações morfológicas, fisiológicas,
genotípicas (resistência) e até mesmo nas características fenotípicas, mas as
perturbações causadas por poluentes podem até mesmo agir como pressões seletivas do
ambiente e interferir sobre a história natural das espécies e marcadamente sobre os
diversos tipos de comportamento, sendo mais acentuados sobre: O comportamento
migratório, alimentar, comportamento de interação intraespecífica, incluindo competição,
comportamento de interação interespecífica, incluindo a relação predador-presa,
mimetismo e simbioses, descanso e período de atividade, como também sobre o
comportamento reprodutivo.
Ainda não há um modelo padrão de estudo dos efeitos dos poluentes sobre as
espécies com uma abordagem ecológica, pois existe uma série de variáveis que sempre
deverão ser consideradas para cada ecossistema; sendo assim, os estudos mais comuns
são aqueles que se referem aos organismos. Em vista da dificuldade de se construir
modelos de estudo que possam predizer os efeitos deletérios da poluição sobre os
ecossistemas, quando estes efeitos são registrados, normalmente em ensaios conduzidos
com os indivíduos, poderá ser tarde demais para reverter os impactos sobre os
ecossistemas.
Referências
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78 Ecofisiologia de metais pesados em organismos
aquáticos
Marina Granado e Sá ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia de
Crustáceos
A poluição de ecossistemas aquáticos por metais pesados é um sério problema
ambiental devido sua persistência e alta toxicidade para os muitos organismos.
Ecossistemas aquáticos são usualmente monitorados através da presença de metais
pesados poluidores utilizando abordagens químicas e biológicas. O critério para avaliação
da qualidade da água em relação aos metais pesados considerarefeitos do ambiente e
organismo relacionados com a toxicidade do metal.
O homem, desde os tempos mais remotos, tem tido contato com os metais pesados
que se encontram naturalmente no solo e água e que, provavelmente provocaram os
primeiros envenenamentos. Os metais presentes nos utensílios domésticos, tubulações de
água entre outros, aumentam os riscos de intoxicação (Miranda, 1993). O advento da era
industrial e a mineração em alta escala, possibilitaram o aparecimento de enfermidades
relacionadas com os diversos metais tóxicos (Gerhardsson & Skerfving, 1996; Miranda,
1993).
O problema da contaminação do meio ambiente por estes metais, alcança hoje
dimenções mundiais, sendo observado tanto em países desenvolvidos como naqueles
subdesenvolvidos. A ausência de controle dos efluentes contaminados por metais
pesados, alterou o solo, a água e o ar, trazendo como consequência a contaminação dos
sistemas aquáticos, continentais e marinhos.
Estudos recentes têm detectado a toxidade do cádmio (Cd), que juntamente com o
chumbo (Pb) e o mercúrio (Hg) são os elementos que têm concentrado a atenção dos
pesquisadores devido a toxidez e a recente penetração nos ecossistemas, como resultado
do desenvolvimento tecnológico. Quando introduzido no organismo via oral, o cádmio é
pouco absorvido, sendo que 95% é eliminado (Gerhardsson & Skerfving, 1996). Porém, o
restante é acumulado nos rins e figado, onde foi detectado que sua meia vida biológica é
de 10 anos (Tavares & Carvalho, 1992). Este risco em potencial sucitou pesquisas na área
de alimentos, uma vez que este contaminante tem caráter cumulativo na cadeia biológica
da qual o homem faz parte (Miranda, 1993). Como resultado do fenômeno de
bioacumulação, as quantidades subtóxicas presentes no meio ambiente podem atingir
níveis de risco nos elos finais da cadeia trófica (Volesck, 1990a).
Vestígios de metais, incluindo os metais pesados são originados de indústrias e
atividades mineiras e são descartados em águas costeiras e estuarinas de diversas
localidades. Invertebrados e vertebrados presentes nesses ambientes estão
potencialmente expostos às altas concentrações de diversos metais.
Crustáceos e peixes são frequentemente utilizados como bioindicadores e
biomarcadores em diversos sistemas aquáticos. Uma das razões é que constituem
grupos de sucesso evolutivo, distribuídos em um número grande de habitats incluindo o
marinho, estuarino, dulcícola e terrestre (Rinderhagen, M et al, 2000). Os peixes são os
únicos entre os vertebrados que possuem 2 rotas de aquisição de metal pesado (dieta e
água) (48 a).
Um biomarcador ou bio-indicador é um organismo que não “sinaliza” apenas uma
exposição química direta e o acúmulo de um metal pesado, mas também efeitos adversos
ecologicamente potentes (Bryan et al, 1985). Um indicador biológico pode ser definido
como variação bioquímica, celular, fisiológica ou comportamental, podendo ser medido em
tecidos e fluidos celulares, ou o nível no organismo ou população que prova evidência da
exposição e efeito de um ou mais poluentes (Depledge e Fossi, 1994).
Organismos marinhos são continuamente expostos à concentrações variáveis de
metais na água do mar. Com isso, moluscos, crustáceos e outros invertebrados são
conhecidos por acumular altos níveis de metais pesados em seus tecidos e ainda
sobreviver (50 a). Tal tolerância depende da habilidade destes animais de regular a
concentração dos metais pesados dentro das células e ainda acumular o excesso destes
sob formas não tóxicas.
Três mecanismos de homeostase foram identificados em células de animais
marinhos invertebrados: (1) através de metalotioneína (classe de proteinas de baixo peso
79
molecular e que possuem alta afinidade com os metais pesados. Detoxificam o excesso
de metais que penetram nas células e sua síntese é aumentada de acordo com o aumento
da concentração do metal pesado, embora hormônios e stress podem estimular a
neossíntese (50 a)), (2) compartimentalização através dos lisossomos, (3) formação de
precipitados insolúveis como concreções de Ca e Mg ou grânulos de Ca e S. Esses
sistemas demonstram variação de níveis de eficiência nos diferentes organismos e nos
diferentes tipos celulares do mesmo organismo.
As vias de absorção nos tecidos destes animais podem ser compartimentalizadas e
a taxa de acúmulo pode variar amplamente entre as espécies, até mesmo em baixas
concentrações do metal pesado em ambiente limpo. Adicionalmente, as concentrações de
metais pesados em tecidos e no corpo do animal podem variar dependendo, desse modo,
também das vias de excreção (Rainbow, 1998).
Os efeitos tóxicos podem ser vistos com o excesso acumulado de metais, tornando
desestabilizados os processos celulares dos animais.
Metais pesados são captados e acumulados pelos organismos aquáticos, através da
interação do meio com as fontes de alimento. Muitos metais pesados exercem funções
esenciais no metabolismo, e todos eles têm grande potencial para causar efeitos tóxicos.
O acúmulo de meitas traço, portanto, requerem da detoxificação fisiológica, tipicamente
pela ligação de alta afinidade em grânulos inorgânicos, frequentemente com base fosfato,
ou numa detoxificação protéica como por metalotioneína ou ferritina (Rainbow, 1997).
A relativa importância das diferentes rotas de tomada dos metais pode também
depender de outros aspectos da fisiologia dos crustáceos, não se esquecendo de
relacionar com o ciclo na muda, que estes apresentam (Rainbow, 1997).
A superfície dos crustáceos (carapaça) é coberta por uma cutícula secretada pelas
células para o lado de fora do epitélio. Pequenos crustáceos são tipicamente permeáveis
por si só, enquanto que malacostradas podem ter a permeabilidde restrita à regiões como
as brânquias. Metais traço são “transportados” através de superfícies permeáveis dos
crustáceos e cutícula permeável não é considerada uma barreira siginificativa para a
captação dos metais (Rainbow, 1997).
Abaixo da cutícula, a membrana celular do epitélio atua como barreira para entrada
de metais, como de fato é a entrada de químicos em qualquer célula, protegendo as vias
bioquímicas derivadas do ambiente. A membrana da célula possui uma bicamada de
lipídios, com grupos hidrofóbicos direcionados para o interior da membrana e grupos
hidrofílicos para o exterior. A membrana celular também contém muitas proteínas e essas
são a chave para a passagem através da membrana de moléculas hidrofóbicas e ions,
incluindo os metais.
Têm sido descritas diversas rotas pra o transporte de metais através da membrana
citoplasmática e exemplificaremos 4 mais importantes aqui (Rainbow, 1997; Tessier et al,
1994):
•
Transporte mediado por cadeia onde o ion metal se ligará com a proteína
da membrana e assim será transportado através desta. Já no lado citosólico, o
metal é complexado em biomoléculas não difusas (geralmente proteínas) e se
prendem cineticamente à célula (Williams, 1981). Os metais traço continuam
entrando passivamente na célula, uma vez que a concentração interna total de
metal é mais alta do que a concentração externa deste.
•
Transporte através de canais protéicos pelos quais os ions metalicos são
transportados em baixas concentrações ligados a proteínas com essência
hidrofílica.
•
Difusão passiva de formas metálicas lipossolúveis os quais dissolvem na
membrana bi-lipídica e penetra na célula.
•
Endocitose quando uma região invaginada da célula engulfa a partícula
metálica e transfere para uma vesícula intracelular.
Essas duas últimas rotas são, provavelmente, as de menor importância para a típica
tomada de metais presentes na solução pelos organismos aquáticos.
Os canais têm a importante característica baseada na seletividade de interações
entre desidratação e hidratação dos ions metais, uma vez ligados e liberados dos grupos
hidrofílicos na parede do canal (Simkiss, 1996).
Ions de metais muito pequenos não atravessam a membrana porque quando
hidratados são muito grandes e quando desidratados necessitam de grande
80 desprendimento energético. Ions muito grandes são intrinsicamente maiores para entrar
através do canal, mesmo quando desidratados (Frausto da Silva & Williams, 1991).
A determinação do gradiente de concentração minima, pela qual os metais entram
pode ser alternativamente por processo passivo de ligações intracelulares de alta afinidade
(essencialmente mantendo concentrações mínimas intracelularmente), ou por bombas
ativas dos ions de metais fora da célula propriamente dita. Por exemplo, a NaK ATPase na
membrana basal da célula dos ionócitos das brânquias dos crustáceos decápodas mantém
as concentrações de Na intracelulares baixas o suficiente, permitindo que o Na entre
apicalmente do meio mais concentrado para o menos, via canal de sódio. Na verdade, a
ATPase ligada à membrana pode ser considerada como um dos casos de hidrólise de ATP
do canal de membrana para assim prover energia para movimentar os ions de metais
contra a concentração do gradiente, gerando e mantendo assim o gradiente iônico
(Lippard & Berg, 1994).
A maior distinção, no entanto, é agora entre os mecanismos pelos quais a
concentração do gradiente do metal é realizada através da membrana apical das células
epiteliais das brânquias, como oposição para diferenças fundamentais entre proteínas
carreadoras e bombas ativas situadas na membrana. Então, metais que possuem grande
afinidade por sítios com S ou N, por exemplo em proteínas, entrarão passivamente pelo
gradiente de concentração do ion metal livre mantido pela estreita ligação em grandes
moléculas não difusas, uma vez que a concentração intracelular do metal é mais alta do
que a extracelular. Por outro lado, cátions dos grupos IA e IIA como Na e Ca possuem
grande afinidade por proteínas, e ao invés de entrar pelos canais, tomam caminhos
diferentes. No caso do sódio em crustáceos, o gradiente estipulado é pela ação da NaK
ATPase da membrana basal dos ionócitos branquiais, uma energia que requer um
processo ativo.
A maior parte dos metais, entram na célula passivamente, transportados através da
membrana apical da célula por sistema de carreamento (canais de membrana) os quais
possuem sítios de grande afinidade. Geralmente é assumido que existam canais
específicos para cada ion metal essencial, mas há potencial para a entrada de qualquer
metal via outros canais de acordo com as características seletivas desses canais, o
tamanho da molécula do metal e baseado se é hidratado ou desidratado, o custo da
desidratação, etc. Claramente, metais não essenciais também entram nas células e
assume-se que frequentemente entram via canais que predominantemente transportam
metais essenciais ou de fato, ions como Ca. O ion cádmio, tem um radical iônico muito
próximo do Ca, e então entra através de canais de cálcio, mas é claro que esta não é a
única via de entrada do cádmio. Ions de manganês podem também atravessar pelos
canais de calico, assim como canais de chumbo, mas outras vias podem ser abertas para
os metais.
Fora da membrana apical da célula, o metal precisa ter composição química
apropriada para entrar pelo canal de membrana ou se ligar com proteínas de transporte de
membrana. Geralmente, é considerado que a forma biodisponível da maioria dos metais é
a forma de íon, embora exista também a forma hidratada. Desta maneira, é a forma não
complexada do metal (inicialmente hidratada) que tem características físicas e químicas
apropriadas para entrar no canal, sofrendo desidratação e passando através do canal
antes da reidratação.
Na água do mar, cátions do grupo IA e IIA permanecem não complexados como ions
de metais livres, mas metais dissolvidos no mar como partição no equilíbrio entre
(predominantemente) agentes orgânicos e inorgânicos.
A concentração do metal livre será alterada com as mudanças na concentração total
do metal, correspodendo ao aumento ou diminuição da proporção de tomada pelos
crustáceos.
Reduções de salinidade necessariamente reduz as concentrações de cloreto do
meio com concomitantemente redução da complexação dos metais como ions zinco e
cádmio, e aumenta a disponibilidade dos ions livres. Se a proporção da tomada, é
determinado pela disponibilidade externa do metal, diminuição da salinidade deve produzir
aumento da tomada do metal.
Mudanças na salinidade não causam somente alterações físico-químicas no meio.
Também podem apresentar efeitos fisiológicos nos crustáceos. No caso de crustáceos
estuarinos expostos a salinidades reduzidas, os fluidos corpóreos sã hipertônicos em
81
relação ao meio e a água entra osmoticamente. Os crustáceos respondem tipicamente ao
aumento da produção de urina; a urina é isotônica em relação ao sangue e há assim o
aumento da expulsão da água é associada com a perda concomitante da maioria dos ions
pela urina (Na, Ca). Essa perda é balanceada pela tomada da maioria dos ions pelos
ionócitos das brânquias.
Prognósticos da toxicidade dos metais que não são baseados na concentração total
do metal mas na atividade do ion livre são mais adequados. Um caminho para que isso
seja realizado é utilizando o BLM (modelo de ligante biótico), que expressa a toxicidade
em termos da atividade do ion livre e efeitos competitivos no ligação (ligamento) do metal
com os sítios do organismo. A toxicidade do metal é considerada sendo proporcional à
quantidade de metal ligada nesses sítios. A vantagem da expressão da toxicidade em
termos de concentração em tecidos é que os efeitos de diferentes cenários e tempo de
exposição são integrados. No entanto, vários organismos têm desenvolvido diversas
estratégias para lidar com os metais, incluindo estoque interno e eliminação ativa destes.
A primeira estratégia talvez resulte num excesso de acúmulo de metais sem o
desenvolvimento da toxicidade
A osmorregulação é a habilidade de ativamente manter as concentrações osmóticas
nos fluidos extracelulares, apesar da salinidade (osmolaridade que circunda o meio) e
consiste em uma adapção fisiológica fundamental dos animais que habitam os ambientes
estuarinos (Rinderhagen, M et al, 2000).
Dessa maneira, mesmo com diversos estudos sobre o tema, mais pesquisas são
necessárias para que haja uma interligaçao entre todos os fatores que atuam nos
mecanismos de detoxificação de metais pesados dos organismos aquáticos.
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82 Efeitos da disponibilidade de oxigênio na fisiologia de
organismos aquáticos com ênfase em peixes
Renato Massaaki Honji ([email protected]) – Laboratório de Metabolismo e Reprodução de
Organismos Aquáticos
A Terra possui em torno de 510x106 Km2 de superfície terrestre, dos quais 310x106
Km2 são cobertos pelos oceanos, além disso, uma pequena fração dessa superfície (se
comparado com os oceanos) é coberta por rios, lagos, calota e gelo polar. Com base
nesses dados, aproximadamente 71% da superfície da Terra são cobertos por água e,
neste sentido, o ambiente aquático oferece assim mais espaço habitável se comparado
com o ambiente terrestre (Wooton, 1990; Moyle & Cech, 2003).
Quando nos referimos aos habitantes encontrados no ambiente aquático, lembramos
rapidamente dos teleósteos (peixes ósseos), que são o mais numeroso e diverso grupo de
vertebrados (Nelson, 1994; Wooton, 1990; Moyle & Cech, 2003). Os peixes representam
aproximadamente 50% dos vertebrados, englobando cerca de 28.000 espécies viventes
que ocupam ambientes aquáticos os mais diversos, ocorrendo desde as altas latitudes até
as fossas submarinas dos oceanos (Nelson, 1994; Moyle & Cech, 2003). Em relação à sua
distribuição, 58% são marinhos, 41% são dulciaqüícolas e 1% vivem entre esses dois
ambientes, ou seja, essas espécies realizam migrações entre o ambiente marinho e o
ambiente de água doce (Wooton, 1990). Além da importância como fonte alternativa de
alimento, os peixes também constituem uma rica fonte de material biológico que podem
ser utilizados como modelos para entender os controles dos processos biológicos
(Blázquez et al., 1998).
Com esse enorme número de espécies existentes, a constantes descobertas de
novas espécies e a distribuição mundial, esse sucesso do grupo é atribuído a uma série de
adaptações fisiológicas, anatômicas, morfológicas entre outras características
relacionadas aos processos de reprodução, nutrição, osmorregulação, flutuação e
principalmente a respiração (Hoar, 1969; Wooton, 1990; Moyle & Cech, 2003; ZavalaCamin, 2004).
Em relação à fisiologia respiratória em peixes podemos encontrar os seguintes tipos
de respiração: respiração aquática e respiração aérea (facultativa e obrigatória). A maioria
das espécies de peixes apresenta respiração branquial (aquática). As brânquias são
geralmente ventiladas com um fluxo unidirecional de água, sendo que, a simples abertura
da boca e do opérculo, adicionado ao deslocamento do animal na água, faz com que haja
um fluxo em uma única direção (mais pronunciada principalmente em peixes migradores,
como os atuns e albacora), a grande parte dos peixes apresenta musculatura esquelética
na cavidade bucal e opercular, que mantém o bombeamento ativo da água nas brânquias,
mantendo assim um suplemento regular de O2 (figura 01) (Withers, 1992; Graham, 1997;
Randall et al., 2000; Schmidt-Nielsen, 2002; Graham, 2006).
83
Figura 01: A água é bombeada sobre as brânquias de um peixe por um sistema duplo de
bombeamento. Com o auxílio de válvulas adequadas, as bombas provêm um fluxo
unidirecional da água sobre a superfície da brânquia (adaptado de Schmidt-Nielsen, 2002).
As brânquias dos peixes consistem geralmente de quatro arcos branquiais e desses
arcos estendem-se duas fileiras de filamento branquiais, dos quais, cada filamento possui
várias lamelas que são estruturas achatadas e densamente enfileiradas onde ocorrem as
trocas gasosas. Conforme a água flui entre essas lamelas em uma direção, o fluxo
sanguíneo flui em direção oposta, esse tipo de fluxo é denominado contracorrente (figura
02). Desta forma, quando o sangue está saindo das lamelas, o mesmo encontra a água
cujo oxigênio ainda não foi removido e conforme a água passa entre as lamelas, ela
encontra o sangue com uma pressão de oxigênio sempre abaixo e, portanto continua
liberando mais oxigênio. Essa disposição anatômica permite que, depois de passar pelas
brânquias, a água possa ter perdido mais ou menos 80 a 90% de seu conteúdo de
oxigênio (Withers, 1992; Graham, 1997; Randall et al., 2000; Schmidt-Nielsen, 2002;
Graham, 2006).
84 Água
150
120
90
60
30
140
110
80
50
20
Sangue
Figura 02: Diagrama do fluxo contracorrente nas brânquias de peixes. Os números indicam as
pressões parciais de oxigênio (Po2) na água e no sangue. O sangue entra na brânquia com uma
Po2 baixa (neste exemplo, 20mmhg) e o oxigênio difunde-se da água para o sangue. À medida
que o sangue flui ao longo da lamela, mais oxigênio é captado da água e, assim que sai da
lamela, alcança aproximadamente a Po2 da água que entra, rica em oxigênio. A água, fluindo em
direção oposta, perde gradualmente mais e mais oxigênio e deixa a brânquia depois de ter
perdido a maior parte de seu conteúdo de oxigênio (adaptado de Schmidt-Nielsen, 2002).
Quando o ambiente aquático apresenta baixa concentração de oxigênio dissolvido
(ambiente hipóxico), é possível observar que muitas espécies de peixes sobem até a
superfície, com o intuito de ventilar as brânquias com a fina camada de água oxigenada.
Esta fina camada de água oxigenada é obtida pela difusão do oxigênio atmosférico na
água. Este comportamento apresentado pelos teleósteos é conhecido como “Aquatic
Surface Respiration” (ASR).
Este comportamento (ASR) é freqüentemente observado em viveiros de cultivo de
peixes (pisciculturas). A figura 03 apresenta uma espécie de peixe neotropical (Piaractus
mesopotamicus) que apresenta este comportamento (ASR). Além disso, este teleósteo
desenvolve uma projeção do lábio inferior da mandíbula, com o intuito de captar mais
eficientemente esta fina camada de água oxigenada.
B
A
Figura 03: A-B) “Aquatic surface respiration – (ASR)” A) Duas espécies de peixes teleósteos
que apresentam o comportamento (ASR) quando esses animais são expostos a condições de
hipóxia. Poecilia reticulata e Piaractus mesopotamicus. B) Comportamento ASR apresentado
pelo pacu (Piaractus mesopotamicus). Notar a projeção do lábio inferior da mandíbula
(adaptado de Jobling, 1994).
85
Além das brânquias, muitas espécies de peixes apresentam estruturas capazes de
realizar trocas gasosas como, por exemplo: vesícula gasosa, intestino, estômago, esôfago
e até pulmões, entre outras estruturas, esses animais são chamados de peixes com
respiração aérea (figura 04). A maioria das espécies de peixes com respiração aérea
habita ambientes aquáticos no qual em algum período do dia ou estação, a concentração
de oxigênio é muito baixa ou em ambientes hipóxicos, ou seja, são locais no qual o nível
de oxigênio é reduzido. Esses peixes responderão a diminuição da concentração de
oxigênio na água, nadando até a superfície para sorver uma bolha de ar pela boca, o que
resulta num melhoramento no suprimento de oxigênio. A respiração aérea pode ser
facultativa ou obrigatória. Na respiração facultativa, se o ambiente não estiver hipóxico, o
animal consegue retirar da água toda quantidade de oxigênio necessária para a sua
manutenção, apenas bombeando a água através das brânquias. Quando o ambiente
estiver hipóxico, essas espécies retiram uma parte do oxigênio necessário para a sua
manutenção da atmosfera (Val et al., 1996; Graham, 1997; Hochachka & Somero 2002;
Schmidt-Nielsen, 2002; Graham, 2006).
A
B
Figura 04: A-B) Peixes com respiração aérea (obrigatória e facultativa). A) Arapaima
gigas (pirarucu), vesícula gasosa modificada para a respiração aérea (obrigatória). Foto
do autor. B) Hypostomus sp. (cascudo), troca gasosa realizada também pelo intestino
(facultativo). Cortesia de Renata Guimarães Moreira.
Os rios da Amazônia são bons exemplos de ambiente aquático, que se observa uma
variação de concentração de oxigênio durante a estação de seca (Val et al., 1996). Muitos
Siluriformes apresentam esse tipo de respiração aérea facultativa (figura 04b). As espécies
de peixes com respiração aérea obrigatória são aquelas que necessitam subir até a
superfície da água para respirar ar atmosférico, no qual, sorvem uma bolha de ar e o
oxigênio é absorvido pelas estruturas relacionadas acima. Quem disse que peixe não
morre afogado!!! Neste caso, se o peixe com respiração aérea obrigatória for impedido de
subir até a superfície da água, ele morre afogado sim (como por exemplo, Arapaima gigas,
pirarucu – figura 04a).
No que diz respeito aos aspectos relacionados às trocas gasosas realizadas pela
vesícula gasosa (“bexiga natatória”) em teleósteos, poucos estudos têm sido realizados.
Sabe-se que a vesícula gasosa é formada a partir de uma evaginação do trato digestório
(origem embriológica) e, em teleósteos é possível identificar dois tipos de vesícula gasosa.
Alguns teleósteos conhecidos como “fisóstomos”, mantêm uma conexão entre a vesícula
gasosa e o esôfago, conseguindo encher a vesícula “tomando” ar na superfície. No outro
tipo, conhecido como “fisóclisto”, o ducto degenera e não há conexão da vesícula gasosa
com o meio externo, assim, os gases no interior da vesícula são provenientes do sangue
(Wooton, 1990; Schmidt-Nielsen, 2002; Moyle & Cech, 2003; Zavala-Camin, 2004). Os
mecanismos fisiológicos envolvidos na troca gasosa entre o sangue e a vesícula gasosa
são discutidos na literatura especializada (Wooton, 1990; Schmidt-Nielsen, 2002; Moyle &
Cech, 2003; Zavala-Camin, 2004).
Ainda em relação a respiração aérea, existem seis espécies de peixes com
respiração pulmonar, uma espécie australiana, Neoceratodus forsteri (Família
86 Ceratodontidae), outra espécie sul-americana, Lepidosiren paradoxa (Família
Lepidosirenidae) e quatro espécies africanas, Protopterus sp. (Família Protopteridae).
Protopterus sp. e Lepidosiren sp. vivem em águas paradas e em lagos, nos quais na
falta de chuvas pode ocasionar o ressecamento total do seu habitat (Graham, 2006).
Essas espécies estivam até a próxima estação chuvosa, quando elas saem dos seus
casulos que estavam enterrados na lama. A espécie australiana habita rios e corpos de
água lênticos, estivando também em períodos de seca (Val et al., 1996; Graham, 1997;
Schmidt-Nielsen, 2002; Graham, 2006). A figura 05 apresenta a porcentagem de troca
pelos pulmões e brânquias nessas espécies de peixes com respiração pulmonar (SchmidtNielsen, 2002).
Na figura 05 é possível observar que, apesar das três espécies de peixes
apresentarem pulmões, as brânquias ainda apresentam funções nas trocas gasosas
nessas espécies. Vale ressaltar, que na espécie Lepidosiren paradoxa (América do Sul) a
maior porcentagem de troca gasosa é realizada através dos pulmões. Já na espécie
australiana (Neoceratodus forsteri) a maior porcentagem de troca gasosa é realizada pelas
brânquias.
Neoceratodus
(Austrália)
Protopterus
(África)
Lepidosiren
(América do Sul)
Figura 05: Funções relativas das brânquias (gráfico superior) e dos pulmões (gráfico
inferior) nas trocas de gases respiratórios em três espécies de peixes pulmonados
quando mantidos na água e com acesso ao ar (adaptado de Schmidt-Nielsen, 2002).
Neste contexto, em relação à fisiologia respiratória em peixes podemos encontrar os
seguintes tipos de respiração: respiração aquática e respiração aérea (facultativa e
obrigatória) como mencionado anteriormente. Desta forma, levando em consideração
essas informações sobre o ambiente aquático e a diversidade de peixes, enfocamos a
nossa discussão na fisiologia da respiração de peixes ao longo da evolução desses
87
animais, além de analisar as interações e adaptações fisiológicas apresentada pelos
teleósteos nos vários ambientes aquáticos (ambiente marinho, ambiente dulciaqüícola,
região equatorial, regiões tropicais, regiões polares, regiões profundas e regiões de
grandes altitudes); além de analisar as interações e adaptações fisiológicas apresentadas
pelos teleósteos nos vários ambientes aquáticos (Prosser, 1991; Levinton, 1995; Val et al.,
1996; Graham, 1997; Hochachka & Somero 2002; Schmidt-Nielsen, 2002; Graham, 2006).
Desta maneira, durante a apresentação oral, será demonstrada a importância dos
estudos fisiológicos utilizando-se modelos biológicos como os peixes, que são recursos
alimentares de extrema importância para os seres humanos, além da importância
ecológica desses organismos para o ambiente aquático.
Referências
Blázquez, M.; Bosma, P. T.; Fraser, E. J.; Van Look, K. J. W. & Trudeau, V. L. 1998. Fish as models for the
neuroendocrine regulation of reproduction and growth. Comparative Biochemistry and Physiology (C) 119: 345364.
Evans, D. H. & Claiborne, J. B. 2006. The physiology of fish. Taylor & Francis. 3ed. 601p.
Graham, J. B. 1997. Air-Breathing Fishes. Evolution, Diversity and Adaptation. Academic Press.299p.
Graham, J. B. 2006. Aquatic and aerial respiration. 85-118. In: Evans, D. H. & Claiborne, J. B. 2006. The physiology of
fish. Taylor & Francis. 3ed. 601p.
Hoar, W. S. 1969. Reproduction. 1-72. In: Hoar, W. S. & Randall, D. J. 1969. Fish physiology. Academic Press. New
York and London. 485p.
Hoar, W. S. & Randall, D. J. 1969. Fish physiology. Academic Press. New York and London. (Vários números).
Hochachka, P. W. & Somero, G. N. 2002. Biochemical adaptation. Mechanism and process in physiology evolution.
Oxford University Press. 466p.
Jobling, M. 1994. Fish Bioenergetics. Chapman & Hall. Fish and Fisheries. Serie 13. 309p.
Levinton, J.S. 1995. Marine biology: function, biodiversity, ecology. Oxford.420p.
Moyle, P. B. & Cech, J. J. 2003. Fishes. An Introduction to Ichthyology. Prentice Hall, Upper Saddle River. New Jersey.
590p.
Nelson, J. S. 1994. Fishes of the world. Ed. New-York: John Wiley & Sons, INC. 3rd edition. 600p.
Prosser, C. L. 1991. Environmental and metabolic animal physiology. Copyright. Wiley-Liss. 578p.
Randall, D.; Burggren, W. & French, K. 2000. Fisiologia Animal. Mecanismos e Adaptações. Guanabara Koogan. 729p.
Schmidt-Nielsen, K. 2002. Fisiologia Animal. Adaptação e Meio Ambiente. Santos, Livraria e Editora. São Paulo – SP.
600p.
Val, A. L.; Almeida-Val, V. M. & Randall, D. J. 1996. Physiology and biochemistry of the fishes of the Amazon. InpaManaus. 402p.
Withers, P. C. 1992. Comparative Animal Physiology. Fort Worth. Saunders Publ. 949p.
Wootton, R. J. 1990. Ecology of teleost fishes. London – New York. Chapman and Hall. 404 p.
Zavala-Camin, L. A. 2004. O planeta água e seus peixes. Edição do autor. 326p.
88 FISIOLOGIA NA ERA DA BIOLOGIA
MOLECULAR
Introdução - Biologia molecular como instrumento para
o estudo de processos fisiológicos
Lucile Maria Floeter-Winter
Tripanossomatídeos
([email protected])
-
Laboratório
de
Fisiologia
de
Em março de 1953, dois pesquisadores comemoravam ruidosamente em um pub da
Universidade de Cambridge (UK), aquilo que eles denominaram a descoberta do “segredo
da vida”. A publicação em abril daquele ano, na revista Nature relatava a estrutura do
DNA, descrita pelo americano James Watson e pelo britânico Francis Crick, com base na
imagem de raios X obtida pela também britânica Rosalind Franklin, que trabalhava com
Maurice Wilkins. A descrição faria ficar famosa a molécula em formato de dupla hélice, e
daria um premio Nobel aos seus autores, alguns anos mais tarde. A estrutura da molécula
de DNA mostra como a informação está organizada, como é mantida, como é transmitida
e como pode ser executada.
Era o início da biologia molecular, e realmente, o elegante modelo descrito por
Watson e Crick além de explicar as propriedades físico-químicas da molécula, também
contemplava o entendimento do segredo da vida. Foi a primeira descoberta de uma série,
que mudava o entendimento dos seres vivos e levava a um avanço fenomenal da biologia,
abrindo a possibilidade da clonagem, da manipulação do conteúdo gênico ou engenharia
genética, ao seqüenciamento e conhecimentos que contribuem para a sua utilização na
melhoria da vida.
Em 1944, Avery, McCarthy e MacLeod haviam feito pela primeira vez uma
transformação bacteriana mostrando que o DNA era a molécula informacional.
Posteriormente, Chargaff mostrava que em DNA de qualquer organismo era mantida a
relação na concentração de nucleotídeos [A] = [T] e [G] = [C]. Essa proporção, conhecida
como regra de Chargaff e o conhecimento dos dados de cristalografia foram fundamentais
para a elucidação da estrutura da molécula.
O modelo de Watson e Crick apresenta a molécula de DNA como um polímero em
que os monômeros, os nucleotídeos, são ligados por uma reação fosfodiester entre o
fosfato ligado ao carbono 5’ da pentose e o carbono 3’ do nucleotídeo adjacente, formando
uma cadeia de nucleotídeos com sentido 5’-3’. A pentose no caso é uma desoxiribose,
diferente do que acontece no RNA em que o açúcar é uma ribose (ver figura 1).
Figura 1: Açúcares presentes em ácidos nucleicos. À esquerda uma desoxiribose, com um
H no carbono 2’ e à direita uma ribose com uma hidroxila no carbono 2’.
Duas cadeias interegem por ligações de pontes de hidrogênio, formadas entre as
bases nitrogenadas, região hidrofóbica que fica assim voltada para dentro da molécula. A
interação segue uma regra de pareamento na qual o par de bases formado é único, uma
pirimidina e uma purina, um C com um G; um T com um A. Além disso, para manter a
estabilidade e a homogeneidade da estrutura as fitas são anti-paralelas (ver figura 2).
89
Figura 2: Para de bases na estrutura do DNA, indicando as pontes de hidrogênio, que
mantém a dupla hélice.
A longa molécula explica o comportamento viscoso de um DNA em solução e o
conjunto de pontes de hidrogênio, mantendo a dupla fita, constitui uma ligação cooperativa
que pode ser visualizada em ensaios de desnaturação do DNA. Dessa forma, as principais
propriedades fisico-químicas também são contempladas.
O segredo da vida é a complementariedade das bases nitrogenadas nas fitas de
DNA. Assim o modelo explica a propriedade biológica mais importante da molécula. Ao
abrir a dupla fita, pode ocorrer a replicação da molécula, pois apenas uma base pode ser
complementar à fita molde. Dessa forma fica garantida a exatidão na duplicação da
informação que deve ser passada às células filhas.
A complementariedade explica ainda como a informação pode ser transcrita para
uma molécula mais instável, o RNA, que também é constituído por nucleotídeos ligados
covalentemente por ligação fosfodiester entre o fosfato ligado ao carbono 5’ e o carbono 3’
do açucar, que nessa molécula é uma ribose. O RNA, no entanto é uma molécula fita
simples, mas sua síntese se dá pela complementariedade com a fita molde de DNA, a
partir da qual a informação está sendo transcrita. O RNA por sua vez leva a informação até
o local da síntese de proteína, a proteína é a expressão da informação. Sua estrutura e
função, em última análise informada no DNA, vai constituir o fenótipo da célula.
Para que a síntese proteica ocorra é necessário que o RNA mensageiro se posicione
no ribossomo. Dessa forma a sequência de nucleotídeos da mensagem será traduzida,
utilizando o código genético, no qual cada três nucleotídeos (códon) corresponde a um
aminoácido. Evidentemente, como em qualquer tradução, a necessidade da ação de um
tradutor. Quem desempenha esse papel na célula é o RNA transportador. Como tradutor,
essa molécula é capaz de falar as duas línguas da informação genética, nucleotídeos e
aminoácidos. Novamente vemos a complementariedade em ação: o tRNA carregando um
aminoácido pareia com o mRNA na região correspondente ao códon desse aminoácido,
pois apresenta em sua molécula a região anti-códon, complementar ao códon do mRNA
(figura 3).
Os estudos sobre como a informação esta armazenada, sobre como é lida e
executada foram aparecendo e rendendo prêmios Nobel aos seus autores. A elucidação
do código genético, feita por Khorana e Nirenberg; o mecanismo de replicação da
molécula determinado por Ocha e Kornberg e a estrutura gênica e replicação de virus por
Delbück, Hershey e Luria, são alguns dos estudos que podemos destacar (ver a lista ao
final, do prêmio Nobel relacionados à Biologia Molecular).
Um outro marco na biologia molecular foi a descrição das enzimas de restrição, por
Arber, Nathan e Smith. A possiblidade de cortar o DNA de um organismo em locais
específicos e dessa forma reproduzir os fragmentos obtidos fez com que conteúdos
gênicos pudessem ser melhor conhecidos. A ligação desses fragmentos à vetores de
replicação independente, com vírus ou plasmídeos, permite que bactérias transformadas
com esse DNA chimera, produzam o fragmento em grande quantidade. Assim surgem os
métodos de análise que levam tanto à expressão do produto clonado, como a
determinação da seqüência de nucleotídeos no fragmento em estudo. A técnica de
seqüenciamento desenvolvida por Sanger, associada ao automatismo que foi
paralelamente desenvolvido, culmina com a determinação dos conteúdos gênicos dos
organismos. O genoma de Haemophylus influenza, o de Saccharomices cerevidae e
90 depois o do Caenorhabditis elegans servem de treino para a determinação do genoma
humano, publicado em 2000.
Figura 3: Estrutura de um tRNA e a associação com o mRNA – códon e anti-códon
(retirado de Alberts e cols).
A metodologia de seqüenciamento se utiliza também da estrutura do DNA, de modo
que a replicação in vitro possa ser controlada na produção de tantos fragmentos quantas
bases compõem o fragmento em estudo. O “truque” utilizado por Sanger foi a utilização de
um nucleotídeo modificado (didesoxirribonucleotídeo) na mistura de dNTP, que aborta o
crescimento da molécula aleatoriamente. Como a posição do iniciador é conhecida, os
fragmentos gerados correspondem à posição da base em que ocorreu a parada em
relação ao iniciador.
Quase simultaneamente à descrição da técnica de seqüenciamento, uma outra
técnica somou-se à revolucão na biologia molecular. Também baseada na reação de
replicação, Mullis propõe uma reação em cadeia de polimerização. Novamente a
possibilidade de automação e a utilização de DNA polimerase termo-estável, e depois
ainda melhorada geneticamente, faz com que a PCR promova uma invasão da biologia
molecular, tanto na produção de fragmentos de DNA, agora sem a necessidade de
enzimas de restrição, que podem ser utilizados tanto para fins de clonagem e estudos de
organização gênica e expressão em massa de proteínas, como na obtenção de
sensibilidade de testes de identificação de DNA, que permitem encontrar material genético
de um patógeno, ou detectar mutações em DNA genômico, identificar a alteração de
genes em tumores, aumentando a sensiblidade de testes diagnósticos, como também em
medicina forense, na identificação de indivíduos em circunstâncias várias como teste de
paternidade, identificação de vítimas de acidentes e implicação de suspeitos em crimes
como estupro ou mesmo assassinato.
A era pós-genômica faz com que a fisiologia retome o estudo organísmico, se
utilizando agora de instrumentos moleculares. A possibilidade de manipulação gênica
permite a construção de mutantes, com genes específicos alterados e assim, as
funções/mecanismos fisiológicos podem ser diretamente implicadas à alteração. Ocorre
então a possibilidade de abordar aspectos distintos na determinação de funções e
mecanismos fisiológicos, bem como o de entender como se deram as adaptações
evolutivas a determinadas condições ambientais.
Um capítulo do estudo do funcionamento dos genes é aquele relacionado à
regulação de expressão, tanto ao longo do desenvolvimento e na diferenciação dos
diferentes tecidos e órgãos, como em resposta a diferentes estímulos ou condições
ambientais. Jacob e Monod, dois pesquisadores franceses, receberam o premio Nobel
pela descrição da regulação de um conjunto de genes que permite a utilização de lactose
como fonte de carbono em E.coli. A pesquisa daqueles pesquisadores definiu a existência
de um repressor de transcrição, que impedia a ligação da RNA polimerase ao sítio
promotor e assim impedia a produção do mRNA na ausência do açúcar no meio de
cultura. Ao se adicionar lactose ao meio, o repressor se desliga do sítio repressor no DNA,
ativando o promotor de RNA polimerase e permitindo a transcrição do operon lac e
conseqüente utilização do açúcar. Ao se esgotar a fonte de carbono, a repressão ocorre
91
novamente pela ligação do repressor ao seu sítio no operon. Devemos enfatizar que em
procariotos o processo transcrição-tradução é acoplado, uma vez que está ocorrendo num
mesmo local.
A regulação da expressão em eucariotos ganha uma extensão maior uma vez que a
existência do núcleo compartimentaliza a transcrição, desacoplando a tradução, que
agora, para ocorrer necessita que RNA transcrito no núcleo seja transportado ao
citoplasma da célula. A maturação desse pré-mRNA, por sua vez, necessita de mais
reações, como a proteção das extremidades da molécula pela adição de CAP e de poli A,
mas surpreendentemente, encontram-se regiões transcritas que são retiradas de dentro da
molécula, por um mecanismo que se chamou “splicing”. A retirada dos introns consiste em
mais um passo modulatório da regulação da expressão gênica em eucariotos, inclusive
com a possibilidade de gerar diversidade pelo “splicing”alternativo, que pode ser período
específico ou tecido específico.
Além da maturação do pré-mRNA, os pontos possíveis de regulação estão na
própria transcrição, pela exposição dos promotores e pela existência de diferentes fatores
de ligação à maquinaria de transcrição e região promotora. A estrutura da cromatina,
expondo ou não os sítios promotores, ou mesmo modificações do DNA, como metilação
ou acetilação de bases no promotor, ampliam as possibilidades de modulação da
regulação de expressão gênica.
As descobertas mais recentes, acopladas ao desenvolvimento de novas tecnologias,
residem na participação de pequenos RNAs que são capazes de regular a meia vida do
mRNA a ser traduzido, regulando em outro ponto a expressão de genes.
Lista de Premios Nobel relacionados a Biologia Molecular:
2006 - Roger D. Kornberg - “for his studies of the molecular basis of eukaryotic
transcription” Química
1993 - Kary B. Mullis, Michael Smith – “for contributions to the developments of
methods within DNA-based chemistry"; KM - "for his invention of the polymerase chain
reaction (PCR) method"; MS - "for his fundamental contributions to the establishment of
oligonucleotide-based, site-directed mutagenesis and its development for protein studies"
Química
1989 - Sidney Altman, Thomas R. Cech – “for their discovery of catalytic properties of
RNA” Química
1982 - Aaron Klug – “for his development of crystallographic electron microscopy and
his structural elucidation of biologically important nucleic acid-protein complexes” Química
1980 - Paul Berg - "for his fundamental studies of the biochemistry of nucleic acids,
with particular regard to recombinant-DNA" and Walter Gilbert, Frederick Sanger - "for
their contributions concerning the determination of base sequences in nucleic acids"
Química
1958 - Frederick Sanger – “for his work on the structure of proteins, especially that of
insulin" Química
2006 - Andrew Z. Fire, Craig C. Mello – “for their discovery of RNA interference gene silencing by double-stranded RNA” Medicina e Fisiologia
2002 - Sydney Brenner, H. Robert Horvitz, John E. Sulston – “for their discoveries
concerning 'genetic regulation of organ development and programmed cell death'” Medicina
e Fisiologia
2001 - Leland H. Hartwell, Tim Hunt, Sir Paul Nurse – “for their discoveries of key
regulators of the cell cycle” Medicina e Fisiologia
1999 - Günter Blobel – “for the discovery that proteins have intrinsic signals that
govern their transport and localization in the cell” Medicina e Fisiologia
1993 - Richard J. Roberts, Phillip A. Sharp – “for their discoveries of split genes”
Medicina e Fisiologia
1989 - J. Michael Bishop, Harold E. Varmus – “for their discovery of the cellular origin
of retroviral oncogenes" Medicina e Fisiologia
1987 - Susumu Tonegawa – “for his discovery of the genetic principle for generation
of antibody diversity” Medicina e Fisiologia
1986 - Stanley Cohen, Rita Levi-Montalcini – “for their discoveries of growth factors
Medicina e Fisiologia
92 1983 - Barbara McClintock - “for her discovery of mobile genetic elements” Medicina
e Fisiologia
1978 - Werner Arber, Daniel Nathans, Hamilton O. Smith – “for the discovery of
restriction enzymes and their application to problems of molecular genetics” Medicina e
Fisiologia
1975 - David Baltimore, Renato Dulbecco, Howard M. Temin – “for their discoveries
concerning the interaction between tumour viruses and the genetic material of the cell”
Medicina e Fisiologia
1969 - Max Delbrück, Alfred D. Hershey, Salvador E. Luria – “for their discoveries
concerning the replication mechanism and the genetic structure of viruses” Medicina e
Fisiologia
1968 - Robert W. Holley, H. Gobind Khorana, Marshall W. Nirenberg – “for their
interpretation of the genetic code and its function in protein synthesis” Medicina e Fisiologia
1965 - François Jacob, André Lwoff, Jacques Monod – “for their discoveries
concerning genetic control of enzyme and virus synthesis” Medicina e Fisiologia
1962 - Francis Crick, James Watson, Maurice Wilkins – “for their discoveries
concerning the molecular structure of nucleic acids and its significance for information
transfer in living material” Medicina e Fisiologia
1959 - Severo Ochoa, Arthur Kornberg – “for their discovery of the mechanisms in the
biological synthesis of ribonucleic acid and deoxyribonucleic acid” Medicina e Fisiologia
1958 - George Beadle, Edward Tatum – “for their discovery that genes act by
regulating definite chemical events" and Joshua Lederberg - "for his discoveries
concerning genetic recombination and the organization of the genetic material of bacteria"
Medicina e Fisiologia
Referências
Alberts, B., Bray, D., Lewis, J., Raff,M., Roberts, K., Watson, J. D., Trad. Simonetti, A. B.; “Biologia Molecular da
a
Célula”. 3 edição. Porto Alegre, 1997.
Lewin, B. Genes V. Oxford University Press. 1995, 1296p.
Sambrook, J.; Fritsch, E.F.; Maniatis, T. Molecular cloning, a laboratory manual. Cold Spring Harbor (USA): Cold Spring
Harbor Laboratory Press, 1989.
Watson, J.D.; Hopkins, N.H.; Roberts, J.W.; Steitz, J.A.; Weiner, A.M. Molecular biology of the gene. Menlo Park
(California, USA): The Benjamin/Cummings Publishing Company, Inc., 1987.
93
Manipulação gênica no estudo da fisiologia
Emerson Augusto Castilho Martins ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia
de Tripanossomatídeos
O estudo da fisiologia sempre ocupou destaque dentre os diversos ramos das
ciências naturais, pois traz o conhecimento do funcionamento dos diversos sistemas de
resposta dos organismos às diferentes condições do meio em que vivem, nas diferentes
fases de suas vidas. A fisiologia comparativa aparece, então, procurando mecanismos
comuns a diferentes organismos, esclarecendo padrões de resposta frente a condições
semelhantes. No entanto, Goldstein & Pinshow (2006) levantam um paradigma: como
estabelecer condições controladas em estudos em campo? Nesse sentido, a evolução das
técnicas de biologia molecular aparece de maneira a acrescentar novas perspectivas no
estudo da fisiologia comparativa. Através dessas técnicas foi possível, por exemplo, a
descrição de mecanismos genéticos de controle de pressão arterial (Khalil 2006), detectar
mecanismo de expressão gênica em peixes induzido por hipóxia (Nikinmaa & Rees 2005),
compreender múltiplos fatores que levam à ingestão de alimentos (Seeley & Moran 2002)
e mecanismos de transporte de íons inorgânicos (Werner & Kinne 2001), além de vários
outros exemplos.
1. Clonagem
A clonagem é o processo que leva à obtenção de cópias idênticas de uma molécula,
célula ou organismo. É realizada há anos nos processos de obtenção de mudas de
vegetais, mas o termo ganhou destaque na mídia com o aparecimento da clonagem de um
mamífero.
1.1 Clonagem Molecular
Também conhecida como tecnologia do DNA recombinante, é uma técnica
desenvolvida no início dos anos 70 (Alberts 2002). Consiste basicamente em isolar um
fragmento de DNA, colocá-lo em uma célula de modo a permitir sua replicação, produzindo
milhões de cópias idênticas do fragmento em poucas horas. Para isso, é necessária a
utilização de vetores de clonagem. Existem diversos tipos de vetores, mas a utilização de
plasmídeos ou de bacteriófagos são as mais comuns.
Essas técnicas permitem não só a identificação, mas também a expressão de genes
de diferentes espécies em modelos unicelulares, permitindo a descrição de sistemas de
controle da homeostase. Akabane et al. (2007) mapearam um gene de aquaporina de um
anfíbio anuro, e clonaram o mesmo para ser expresso em oócitos da rã Xenopus. Com
isso, observaram que a presença da proteína em questão aumentou em 8 vezes a
permeabilidade à água dos oócitos transfectados; Gilmour et al (2007) clonaram a proteína
anidrase carbônica IV encontrada em cações-esporão Squalus acanthia e descreveram
uma via auxiliar na excreção de CO2; Bewley et al. (2006) avaliaram um aumento de 10
vezes na condutibilidade de cloreto na presença de um receptor de peptídeo vasoativo
intestinal clonado a partir do mesmo cação e expresso em oócitos de Xenopus.
1.1.1 Clonagem Molecular com Plasmídeos
Para a utilização de plasmídeos como vetores, é necessário que os mesmos
apresentem algumas características conhecidas: a) um sítio de origem de replicação, que
torna possível sua multiplicação pela célula que o recebeu; b) a presença de sítios de
restrição únicos, que permitem com que a digestão utilizando-se enzimas de restrição
linearize o plasmídeo, e então seja possível a ligação do gene de interesse (inserto) no
vetor; c) presença de marca de seleção, como por exemplo, a resistência a antibióticos.
Desta forma, é possível fazer com que somente as células que receberam o vetor cresçam
no meio de cultura, sob pressão de seleção; d) presença de um gene marcador de
inserção e a presença de uma região promotora. Esse gene reporter será interrompido no
processo de ligação do inserto. Assim, consegue-se distinguir os clones que receberam o
vetor com o inserto daqueles que o receberam sem o inserto.
1.1.2 Clonagem Molecular com Bacteriófagos
Outro vetor bastante utilizado para a clonagem molecular é o bacteriófago,
comumente chamado de “fagos”. São vírus que infectam bactérias e, desta forma,
94 permitem a clonagem de fragmentos maiores de DNA. Enquanto que com os plasmídeos é
possível a clonagem de fragmentos com tamanho de até 5000 pares de base, com a
utilização dos fagos é possível a transfecção de fragmentos de até 40000 pares de bases
(Brown 1990).
1.2 Clonagem Celular
Consiste em obter uma população de células idênticas a partir de uma única célula.
A técnica é muito simples para organismos unicelulares, bastando acrescentá-los a um
meio de cultura adequado, com todos os fatores estimulatórios de crescimento e assim
ocorrerão divisões mitóticas levando a um aumento no número de células por reprodução
assexuada. No entanto, quando se deseja clonar células de organismos mais complexos,
algumas características peculiares devem ser consideradas: as células normais tendem a
apresentar um limitado número de divisões, parando então sua divisão ou entrando em
apoptose. Isso torna difícil a manutenção desses tipos celulares para cultura de tecidos in
vitro. Uma alternativa para solucionar esse problema é a utilização de células originárias
de carcinomas, que não entram em apoptose.
A cultura de tecidos in vitro, além de permitir estudos de resposta celular a diferentes
tipos de tratamentos também permite identificar o funcionamento das células em um
sistema isolado, abrindo perspectivas para a elucidação de mecanismos fisiológicos.
1.2.3 Clonagem de Organismos
É o nome dado à obtenção de cópias idênticas de indivíduos pluricelulares. Embora
a humanidade já faça isso há centenas de anos com plantas (processo de reprodução por
muda), o termo ganhou enorme destaque na mídia somente após o anúncio de
pesquisadores do Roslin Institute, na Escócia, terem anunciado a clonagem de uma ovelha
(Wilmut et al. 1997). A clonagem em animais existe desde meados do século passado.
Briggs e King (1952) transferiram núcleos de blástula para um óvulos enucleado de sapos
e conseguiram obter embriões completos. Gurdon (1966) demonstrou a totipotência da
informação gênica, transferindo núcleos de células de alguns tecidos para óvulos
enucleados de Xenopus, conseguindo também o desenvolvimento de girinos completos.
Atualmente os processos de clonagem de animais envolvem a transferência de
núcleo de célula somática para um óvulo enucleado. Hoje, 10 anos após o anúncio do
nascimento da Dolly, o processo de transferência ainda apresenta obstáculos que
impedem que a tecnologia seja aplicada em massa. A eficiência da obtenção de clones
nascidos através desse processo não passa de 3 a 5% das tentativas, e mesmo dentre os
nascidos, não se pode considerá-los completamente desenvolvidos e saudáveis (Fulka &
Fulka 2007). No entanto, as perspectivas para o processo ainda são promissoras: seria
possível, por exemplo, obter um tecido para transplante do próprio paciente, portanto, não
passível de rejeição, se o núcleo de célula do mesmo for transferido para uma célula
tronco.
Independente da utilização terapêutica da clonagem, o processo em si também
facilita estudos com modelos de animais que apresentam características genéticas
interessantes, que poderiam passar por reprodução in vitro em massa e, com isso, difundir
o modelo para se aumentar os estudos, além da questionável aplicação na reprodução de
espécies em extinção (Trounson 2006).
2. Transgênese
Animais transgênicos, também conhecidos como OGM (organismos geneticamente
modificados), são animais que apresentam fragmentos de DNA estranhos ao seu genoma,
ou que apresentam modificações induzidas artificialmente em seu genoma (Melo et al.
2007).
2.1 Histórico
Os primeiros animais transgênicos datam da década de 70; eram camundongos
transfectados com vírus para desenvolverem leucemia (Jaenisch et al. 1975). A técnica de
utilização de vírus para a inserção de material genético em células é bastante comum
ainda hoje, embora ela apresente limitações como por exemplo o fato de transfecções com
vírus gerarem animais quiméricos, sem capacidade reprodutiva (Melo et al. 2007). Um
aperfeiçoamento desta técnica utiliza a transfeção viral em células germinativas. Essa
95
técnica consegue até 4,5% de sucesso na progênie e gera indivíduos férteis (Nagano et al.
2001).
2.2 Métodos Atuais
Outros métodos de transgênese incluem o uso de biobalística, onde o DNA é
bombardeado juntamente com partículas metálicas; eletroporação, onde células recebem
um pulso elétrico que desestabiliza a membrana plasmática e permite a entrada do
material genético; ou o uso de vetores de transposons, que permitem a inserção do
material genético em locais específicos do genoma.
Conhecendo-se a seqüência na qual o material genético deve ser introduzido, podese fazer uma construção que, através de recombinação homóloga, passará a ocupar
aquele local. Com isso, é possível inativar a expressão de determinados genes (nocautes)
ou aumentar a expressão de genes através do aumento do número de cópias do mesmo
no genoma. É possível também modificar um gene existente para que o organismo
produza proteínas modificadas. Com essa tecnologia é possível, por exemplo, a produção
de proteínas humanas em leite, saliva, urina, sangue ou líquido seminal (Dyck et al. 2003).
Assim, é possível direcionar a expressão do gene inserido adicionando-se o mesmo em
promotores tecido-específicos, fazendo com que o produto seja encontrado apenas em um
único local, diminuindo os riscos de alteração fisiológica letal no animal.
2.3 Aplicações dos Transgênicos
Dentre algumas aplicações da transgênese animal, uma que se destaca é a
obtenção de modelos animais para o estudo de patologias genéticas humanas. Dessa
forma, foi possível, por exemplo, a obtenção de porcos expressando a proteína regulatória
do complemento CD54 humana. Estes animais foram analisados até os 18 meses de vida
e expressaram o transgene, embora não apresentaram nenhum quadro patológico
associado à presença da proteína humana (Deppenmeier et al. 2006).
Uma outra aplicação, que gera uma controvérsia ainda maior, é o uso de animais
geneticamente modificados, com a intenção de substituir a população de animais vetores
de doenças. Assim, mosquitos Anopheles geneticamente modificados de modo a não
permitir o desenvolvimento do parasita, poderiam ser utilizados em controle de malária em
áreas endêmicas (Catteruccia 2007).
3. Células-tronco
São células que apresentam a capacidade de se dividir e o potencial para gerar
outros tipos de células, ditas diferenciadas. Apresentam diversos tipos, classificados de
acordo com a sua capacidade de diferenciação:
Células Totipotentes, encontradas nos embriões, antes da fase de blastocisto. Nesse
ponto, o embrião ainda não foi implantado, e as células apresentam a capacidade de se
diferenciarem tanto em células de anexos embrionários, como a placenta, e os demais
tecidos do organismo.
Células Pluripotentes, encontradas no blastocisto e que podem originar todos os
tipos celulares dos tecidos, como neurônios, células do sangue, fígado, dentre outros.
Células Multipotentes, que podem dar origem a células diferentes dentro de uma
mesma linhagem, como por exemplo, as células hematopoiéticas, que dão origem a
diversos tipos celulares sangüíneos. São encontradas em adultos, e seu uso terapêutico
está sendo comumente realizado em alguns países.
3.1 Células-tronco de indivíduos adultos
São encontradas em diversos tecidos, sendo as mais comumente utilizadas as
encontradas na medula óssea, no tecido adiposo, glândulas mamárias, fígado, dentre
outras descritas ou ainda não descritas.
As possibilidades e limitações na utilização para a regeneração de tecidos são
controversas: enquanto alguns pesquisadores supõem que essas linhagens celulares
apresentam capacidade limitada de diferenciação, trabalhos são feitos e resultados
promissores são conseguidos através da indução da diferenciação destes tipos celulares
em outras linhagens (Verfaillie 2005; Beltrami et al. 2007).
Embora ainda não esteja claro o potencial das células-tronco adultas, pesquisas e
mesmo tratamentos com estes tipos celulares não passam por conflitos éticos muito
96 grandes na maioria das culturas, já que as células podem ser obtidas do próprio indivíduo,
sem a necessidade do descarte de embriões.
3.2 Células-tronco de anexos embrionários
São células encontradas principalmente na placenta, cordão umbilical e, também
descobertas recentemente, no líquido amniótico (De Coppi et al. 2007). Com isso, é
possível a criação de bancos de células-tronco obtidas de anexos embrionários, o que
facilitaria encontrar células compatíveis com pacientes que necessitem do implante.
3.3 Células-tronco embrionárias
Obtidas à partir de embriões de até 14 dias, essas células são pluripotentes e
apresentam grande perspectiva na terapia celular. Podem se diferenciar em qualquer tipo
de tecido, e portanto dão esperança para a cura de doenças degenerativas, como o Mal de
Alzheimer e Mal de Parkinson, ou ainda na regeneração de tecidos cardíacos pós-infarto,
leucemia, distrofia muscular e acidentes com rompimento da medula espinal.
O uso de células-tronco embrionárias em pesquisas gerou uma discussão ética, já
que foi levantada a questão da utilização de embriões para fins não reprodutivos. É de se
estranhar que essa questão tenha sido levantada somente agora, quando surgiu uma
perspectiva para a utilização de embriões rotineiramente descartados em clínicas de
assistência à reprodução. No entanto, estas questões têm sua importância por nos levar a
refletir sobre o papel da ciência, bem como sua relação com a sociedade.
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97
98 A expressão de proteínas heterólogas
Maíra Natali Nassar
Tripanossomatídeos
([email protected])
-
Laboratório
de
Fisiologia
de
O entendimento da regulação da expressão gênica permitiu, entre outras coisas, a
possibilidade de manipulação gênica na qual vetores de expressão são construídos
colocando genes sob o controle de um dado promotor, cuja expressão pode ser indutível
ou contínua. A descoberta de diferentes promotores e repressores específicos tanto do
genoma de E. coli, como de vírus de E. coli ou mesmo de células eucarióticas permitiu a
que a célula hospedeira reconheça o sinal e a expressão das proteínas heterólogas
ocorra. O primeiro, e mais comumente usado, sistema de expressão de proteínas
heterólogas em E. coli é baseado no operon lac (Figura 1). Neste sistema, o DNA de
interesse é clonado em fago (no caso de biblioteca de cDNA de expressão) ou plasmídeo
contendo o lacI (repressor), lacP (promotor) e lacZ (gene estrutural transcrito para mRNA
da β -galactosidase). A indução da transcrição é obtida pela adição de um análogo de
lactose sintético e não degradável (isopropiltio-β-D-galactosídeo, IPTG), o qual se associa
ao repressor e inibe-o, deixando o promotor livre para a interação com a RNA polimerase e
conseqüente transcrição do gene (Jacob e Monod, 1961).
A célula hospedeira mais utilizada para expressão de proteínas heterólogas é a E.
coli. O sistema E.coli/vetor de expressão para essa bactéria é amplamente difundido
devido à facilidade e baixo custo de se cultivar E. coli, e pela reprodutibilidade e
abundância de proteína que produz. Além disso, modificações nos vetores e linhagens de
E. coli são freqüentemente feitas no sentido de aumentar a eficiência e versatilidade do
sistema original. Com isto, e com o advento de novos sistemas de expressão em células
de eucariotos (levedura, insetos, mamífero), a expressão de proteínas tornou-se uma
abordagem poderosíssima que vem revolucionando os estudos de estrutura, função,
purificação e identificação de novas proteínas. Nesses outros sistemas, o recombinante a
ser introduzido no hospedeiro alvo pode ser facilmente construído e amplificado em E. coli.
Por isso os plasmídeos de levedura, mamífero, etc. são construídos por fusão de uma
porção de um plasmídeo de E. coli (origem de replicação e resistência a um antibiótico)
com seqüências específicas para se obter expressão em célula eucariótica, o chamado
plasmídeo “suttle” (Alberts, 2002; Berg, 2001, Griffiths, 1999; Lehninger, 1995)
Figura 1: operon de lactose em Escherichia coli. A regulação se dá por um mecanismo de
repressão. Na ausência de lactose (painel de cima), o repressor LacI (azul) ocupa lacO
(vermelho) e impede a transcrição dos genes estruturais Z,Y,A. Quando lactose (laranja)
ou seu análogo (IPTG) estão presentes (painel de baixo), o repressor se modifica
estruturalmente o que diminui a afinidade por lacO permitindo a transcrição dos genes.
Gene codificador do repressor lac (LacI), P: promotor, O: seqüência operadora (lacO),
Z,Y,A: genes codificadores de proteínas que utilizam lactose, Z: galactosidase, Y:
permease, A: transacetilase (retirado de Mills, 2001).
99
O uso de E. coli para a obtenção de proteína em quantidade suficiente para o estudo
da estrutura e função da mesma ou para aplicações clínicas ou industriais é hoje
disseminado e constitui-se em um marco na história do nosso conhecimento de estrutura
de proteínas.
O procedimento de clonagem de um fragmento de DNA para expressão é
exatamente igual a qualquer clonagem, no entanto, deve se ter em mente que o propósito
será obter a proteína correta. Para tanto, é necessário respeitar o sinal de tradução de
genes procarióticos (sinal de Shine-Dalgarno), em outras palavras, o DNA deve ser
clonado de maneira que sua fase de leitura correta fique em fase com o ATG iniciador
(Alberts, 2002).
Além disso, um vetor para expressão em E. coli deve apresentar as seguintes
características:
• Origem de replicação: seqüência de reconhecimento e ligação da DNA polimerase
para o início da replicação, independente da replicação do cromossomo bacteriano.
• Marcador para seleção: gene que confere resistência a antibióticos como
ampicilina, tetraciclina, cloranfenicol, neomicina. Ex. o gene da -lactamase que confere
resistência a ampicilina.
• Um promotor para transcrição: como os vetores de expressão são normalmente
projetados no sentido de produzir proteína em abundância, o DNA codificador da proteína
deve ser colocado sob o comando de um promotor forte (exemplos: lacZ, tac (trp+lacZ),
-pR,
-pL, p 10 do bacteriófago T7) e regulável, isto é, contendo um repressor para
manter os níveis basais de expressão do gene insignificantes até a indução, o que se faz
geralmente por adição de IPTG, no caso por ex. do repressor lacI, ou choque térmico, no
caso do repressor cIts857.
• Sinal de terminação da transcrição: permite a maturação do mRNA.
• Seqüências para controle da tradução, como por ex., um sítio de ligação ao
ribossomo para a iniciação da tradução (Shine-Dalgarno) e um ATG iniciador. Um sinal de
terminação da tradução (códon de terminação) também deve estar presente no vetor ou no
inserto a ser clonado, ou deve ser adicionado.
• Um MSC (sítio múltiplo de clonagem): para facilitar a inserção do gene de
interesse na orientação correta.
Uma vez construído, o vetor de expressão contendo a seqüência codificadora da
proteína de interesse é introduzido em E.coli por transformação.
Ao planejar uma subclonagem para a expressão de proteína, além de se respeitar a
fase de leitura correta, deve-se também tentar à medida do possível fazer a clonagem
unidirecional do inserto. Na clonagem unidirecional utilizam-se duas enzimas de restrição
para digerir o vetor e o DNA inserto. Na bidirecional utiliza-se uma única enzima, de modo
que as pontas são iguais, permitindo a inserção do fragmento em ambas as orientações.
Assim, em uma clonagem bidirecional há teoricamente, 50% de probabilidade de se obter
os recombinantes na orientação correta (sense) e 50% na orientação invertida (antisense).
A análise de DNA plasmidial para a seleção dos subclones corretos era feita por
digestão com enzimas de restrição, hoje, no entanto, a possibilidade de se desenhar
iniciadores específicos permite obter o fragmento de interesse por PCR. A confirmação
final da construção se dá por seqüenciamento (Alberts, 2002; Berg, 2001, Griffiths, 1999;
Lehninger, 1995).
Expressão em Escherichia coli
De maneira ideal, quando se pensa em expressão heteróloga, espera-se que a
proteína de interesse seja estável, não tóxica para a bactéria, solúvel, produzida em
grande quantidade e possa ser facilmente purificada. Um procedimento muito utilizado é o
de expressar a proteína de interesse em fusão com um "tag" específico que permita a fácil
purificação da mesma através de cromatografia por afinidade em resinas às quais se
encontram acopladas ligantes, aos quais o "tag" possa se ligar especificamente. Uma
outra vantagem óbvia de se produzir uma proteína híbrida, ou de fusão, é no caso da
expressão de polipeptídeos pequenos ou mesmo peptídeos, os quais, sem fusão, seriam
instáveis e rapidamente degradados na célula.
Em geral projeta-se ainda um sítio sensível a uma determinada protease (ex: fator
Xa, trombina), inserido imediatamente acima do sítio de clonagem, de maneira que a
100 proteína híbrida possa ser clivada liberando a proteína clonada que pode então ser
facilmente purificada utilizando-se a mesma coluna de afinidade. A coluna reterá a
proteína de fusão e eliminará no "void", a proteína de interesse (Alberts, 2002; Lehninger,
1995).
O procedimento de proteólise é relativamente trabalhoso e nem sempre eficiente, por
isso quando não há interferência da parte fundida, se utiliza a própria proteína híbrida, por
exemplo, para experimentos funcionais, produção de anticorpos, etc. Note que neste caso
pode ser estratégico ter o mesmo DNA clonado em dois sistemas de fusão diferentes. Isto
permitirá que anticorpos produzidos contra uma proteína híbrida sejam purificados por
afinidade contra a outra, purificando-se assim apenas anticorpos cujos epítopos localizamse na proteína clonada.
Dentre os vetores utilizados com sucesso para a produção de proteínas híbridas
podemos citar:
• pGEX: apresenta a glutationa-S-transferase de Schistosoma japonicum (26 kDa)
como proteína de fusão, permitindo a purificação da proteína de fusão em coluna de
agarose-glutationa
• pMAL: apresenta a proteína ligante de maltose (PLM) de bactéria (42 kDa) como
fusão, permitindo a purificação da proteína de fusão em coluna com amilose acoplada
• pQE: apresenta um "tag" de 6 resíduos de histidina como fusão e permite a
purificação das proteínas de fusão em colunas quelantes de Ni2+
• pUR: cuja fusão é um fragmento da -galactosidase.
• pUC, pTZ, pSK, pBluescript, pGEM: baseados no operon lac (Messing, 1993;
Norander et al., 1993; Yanish-Perron et al., 1985).
A produção de proteínas híbridas é geralmente muito simples, eficiente e de baixo
custo, podendo suprir de imediato necessidades da pesquisa básica, tais como, produção
de anticorpos e purificação destes por afinidade, sondas em experimentos variados e para
estudos funcionais e estruturais da proteína expressa. Permite, também, a expressão em
grande escala, para fins industriais ou clínicos de enzimas, hormônios, anticorpos, etc.,
quando a atividade da proteína é preservada. Além disto, é possível se obter, por
mutagênese, proteína com a atividade de interesse potenciada e livre de efeitos adversos
ou atividades indesejadas.
É importante estar alerta de que a situação ideal exposta acima nem sempre é
atingida. Na realidade, na grande maioria das vezes, proteínas de eucarioto produzidas em
bactéria não são solúveis; às vezes podem ser tóxicas para a célula; algumas são
expressas em baixos níveis; algumas interferem com a sua fusão inibindo-a de se ligar à
resina de afinidade e tornando a purificação menos eficiente; outras formam agregados
extremamente insolúveis mesmo na presença de SDS/ -mercaptoetanol; algumas têm a
sua atividade biológica plenamente recuperada, porém outras são inativas.
Assim, dentre os problemas mais comuns que ocorrem com a produção de proteínas
heterólogas em E. coli, podemos citar:
• Proteínas tóxicas: algumas proteínas são tóxicas para a célula hospedeira. Neste
caso, pode-se proceder a secreção. Uma alternativa à produção de proteína
citoplasmática, é a produção de proteínas que são secretadas. Para tanto basta clonar o
DNA de interesse em fusão com uma seqüência codificadora para um peptídeo sinal de
procarioto. Esse peptídeo é clivado pela peptidase sinal quando a proteína é secretada
para o periplasma. Embora esse método freqüentemente traga problemas com o
rendimento ou a clivagem do peptídeo sinal, há vantagens em alguns casos: no caso de
proteínas tóxicas para a bactéria; algumas proteínas degradadas por protease no
citoplasma são estáveis no periplasma; algumas que são inativas quando produzidas
intracelularmente são ativas quando secretadas; a proteína produzida já tem a sua
metionina N-terminal processada. Um exemplo de sucesso é a expressão do hormônio
fator de crescimento epidermal humano (hEGF) sob o comando do promotor da fosfatase
alcalina (phoA) e com a seqüência sinal desta. A indução é obtida sob privação de fosfato
do meio.
• Proteínas instáveis: isto pode ser resolvido reduzindo-se a temperatura de
crescimento ou mudando-se para uma linhagem de bactéria deficiente em uma ou mais
proteases. Mesmo assim é comum se obter algum nível de fragmentação da proteína
expressa.
101
• Baixos níveis de expressão: pode ocorrer pelas razões acima dentre outras, como,
por exemplo, instabilidade do mRNA, término prematuro da mensagem, tradução
ineficiente.
• Proteínas insolúveis: proteínas de eucariotos produzidas em bactéria são
geralmente precipitadas na forma de corpos de inclusão e requerem procedimentos
adicionais de desnaturação para solubilizá-las e de renaturação para mantê-las solúveis e
funcionais. Isto nem sempre é um problema, pois a formação de corpos de inclusão pode
proteger a proteína contra a degradação por proteases bacterianas e também facilitar a
purificação, uma vez que são corpos densos, precipitados à baixa velocidade de
centrifugação, enquanto a maior parte das proteínas bacterianas permanecem no
sobrenadante. Mas algumas vezes não se consegue renaturação adequada da proteína
purificada. Nesse caso deve-se tentar atenuar a formação de corpos de inclusão alterando
as condições de expressão, por exemplo, crescendo-se a cultura a temperatura mais baixa
após a indução ou utilizando um promotor mais fraco (Alberts, 2002; Berg, 2001;
Sambrook, 2001; Griffiths, 1999 Lehninger, 1995).
Expressão em células de inseto
Sistemas de expressão que utilizam como vetor baculovírus, um tipo de vírus que
infecta apenas células de inseto. O Bac-to-BacTM da Life Technologies é um dos sistemas
comerciais que têm sido utilizados para produção de proteínas recombinantes de interesse
médico e veterinário. Nos últimos anos foram utilizados na produção de prolactina
humana, leptina humana, as glicoproteínas gC e gD do envelope do Herpesvirus (Berg,
2001).
Para a produção de proteínas através desse sistema, utilizam-se células de inseto,
que por serem eucariotos são capazes de executar as modificações pós-tradução,
gerando proteínas estruturalmente idênticas ou muito semelhantes às encontradas in vivo
nas células de mamíferos.
As células de inseto mais comumente usadas são células epiteliais do ovário da
lagarta Spodoptera frugiperda, linhagens conhecidas como Sf9 e Sf21, além de células
ovo de Trichoplusia ni, comercializada com o nome de High FiveTM. Para fazer com que
essas células produzam a proteína de interesse, elas são transfectadas com o genoma
viral recombinante de um baculovírus. A transfecção gera partículas virais recombinantes
que são exportadas para o exterior das células, transformando o meio de cultura em um
inóculo contendo o baculovírus recombinante que é usado para infectar novas células e
produzir a proteína de interesse. As vantagens deste sistema são:
• As células de inseto processam proteínas complexas, produzindo-as do mesmo
modo que são produzidas in vivo, ou de modo bastante semelhante.
• Se a proteína produzida tiver um peptídeo sinal de secreção, que seja reconhecido
pelas células de inseto, será exportada para o sobrenadante da cultura. Como já existem
células de inseto adaptadas ao cultivo em meio sem soro fetal bovino, a proteína
secretada pode ser purificada a partir do meio de cultura com facilidade.
• Pelo fato do baculovírus ser específico para insetos, não há risco de contaminação
dos seres humanos envolvidos.
• O nível de produção é elevado, se comparado com os níveis obtidos quando se
utiliza outros sistemas de expressão (Sambrook, 2001).
Expressão em Saccharomyces cereviseae
Entre os eucariotos, as leveduras são organismos particularmente convenientes para
engenharia genética. As razões são as mesmas para E.coli como um organismo
experimental: a genética da levedura é uma disciplina bem desenvolvida; o genoma da
levedura mais utilizada, Saccharomyces cereviseae, contém apenas 14x10 6 pares de
bases (um genoma simples para os padrões eucarióticos); finalmente a levedura é um
microorganismo que é muito fácil de manter e crescer em larga escala. Os vetores de
levedura têm os mesmo princípios que os vetores de E.coli (Alberts, 2002; Lehninger,
1995).
Um dos problemas no manuseio de leveduras é a dificuldade em atravessar a
parede celular para introdução do material genético. Esse problema foi contornado com
métodos que acoplavam a degradação enzimática parcial da parede celular com um
tratamento por polietilenoglicol-cálcio, tornando as células suficientemente poderosas para
102 a captação do DNA. O sistema genético do organismo tem sido explorado em 2 caminhos
importantes, nenhum dos dois requer grande produção de proteínas heterólogas: 1- devido
a grande variedade de mutantes de S. cereviseae que podem ser complementados pela
expressão de proteínas homólogas de mamíferos, leveduras podem ser usadas como
hospedeiros para isolar cDNAs de mamíferos por complementação; 2- o poder genético de
leveduras tem sido explorado para desenvolver sistemas seletivos para isolar genes que
codificam proteínas interativas (Alberts, 2002; Berg, 2001, Griffiths, 1999; Lehninger,
1995).
Expressão em células de mamíferos
Um certo número de vírus eucarióticos algumas vezes integra o seu material
genético em um cromossomo na célula hospedeira. Alguns deles, em particular certos
retrovírus têm sido modificados para agirem como vetores virais. Os vírus possuem os
seus mecanismos próprios para introduzirem ácido nucléico nas células. Quando o vírus
entra na célula, o seu genoma de RNA é convertido em DNA pela transcriptase reversa e é
então integrado num genoma hospedeiro numa reação mediada pela integrase viral. As
seqüências terminais de repetição (LTR) são necessárias para integração do DNA
retroviral no cromossomo hospedeiro e uma seqüência ψ é necessária para empacotar o
RNA viral nas partículas virais. Para montar os vírus com a informação genética
recombinante, o DNA deve ser introduzido nas células de cultura de tecido que estão
infectadas com um vírus auxiliar que possui os genes para produzir as partículas virais,
mas não possui a seqüência ψ necessária para empacotamento. Dentro das células o
DNA recombinante é transcrito e o RNA empacotado. As partículas virais resultantes,
portanto, contém apenas o RNA viral recombinante e podem agir como vetores para
introduzir esse RNA nas células-alvo. Assim que o genoma viral construído estiver dentro
da célula, essas enzimas criam uma cópia de DNA do genoma RNA viral e a integram num
cromossomo hospedeiro.O DNA recombinante integrado torna-se efetivamente, uma parte
permamente do cromossomo pelo fato de o vírus não possuir os genes necessários para
produzir cópias de RNA do seu genoma e empacotá-las em novas partículas virais
(Alberts, 2001; Lehninger, 1995).
Expressão em Bacillus subtilis
B. subtilis tem um sistema secretor bastante desenvolvido, e proteínas
recombinantes podem muitas vezes ser entregues ao meio em forma ativa e solúvel.
Entretanto, isto não é necessariamente uma grande vantagem desde que B. subtilis
também secrete um grande número de proteases com alto poder de degradação. O
alcance de vetores é bastante limitado, e há poucos exemplos de proteínas que podem ser
expressas mais eficientemente em B. subtilis do que em E. coli (Sambrook, 2001).
Referências
th
Alberts, B.; Johson, A.; Lewis, J.; Raff, M.; Roberts, K.; Walter, P. (2002) Molecular Biology of the cell. 4 ed. Garland
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th
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York.
th
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Nucleotide sequences of M13mp18 and pUC vectors. Gene 33: 103-119.
103
Sistemas para diminuir ou anular a expressão gênica
Marcos Gonzaga dos Santos ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia de
Tripanossomatídeos
A análise de mutantes é uma abordagem comumente utilizada para se entender o
funcionamento de genes in vivo, particularmente, quando amutação provoca a diminuição
ou anula a expressão do gene de interesse. O paralelo que pode ser feito à essa
abordagem é a de um engenheiro tentando entender como funciona um mecanismo
complexo. Esse engenheiro poderia então ir retirando, uma a uma, as peças da máquina,
e analisando como essa se comporta na ausência da peça retirada. Dependendo do
comportamento observado, ele pode chegar a uma conclusão sobre a função e a
importância da peça no funcionamento correto da máquina. A análise de organismos
mutantes segue o mesmo raciocínio, só que ao invés de se analisar uma máquina,
analisa-se um organismo vivo, enquanto ao invés de peças existem os genes que
codificam os produtos funcionais.
Antes de se desenvolverem as técnicas de interrupção de um gene específico, a
análise de mutantes se restringia a mutações que acontecem espontaneamente na
natureza, e que apresentam fenótipos facilmente detectáveis. Essas mutações também
podem ser induzidas aleatoriamente através de fatores externos como compostos
químicos mutagênicos ou radiação. Mesmo com essas limitações, foi possível a
identificação da função de diversos genes em um grande espectro de organismos. Um
exemplo clássico é o gene Antennapedia, em Drosophila melanogaster, gene que quando
mutado, faz com que as moscas adultas tenham patas no lugar de antenas (Lewis 1978).
Essa observação levou a apontar o gene como um regulador, gene que controla a
expressão de um conjunto de outros genes. Muitos genes responsáveis por doenças
genéticas também foram determinados através da análise de mutantes espontâneos,
assim como o gene da anemia falciforme e da leucemia mielogênica crônica.
O surgimento de técnicas para interrupção gênica e mutação sítio dirigida facilitou o
estudo da função fisiológica dos genes in vivo, e pôde ser imediatamente utilizada para
interferir no genoma de organismos unicelulares, como leveduras. Essa técnica permite
que um alvo seja modificado no genoma do organismo, interrompendo-o ou substituindo-o,
e assim impedindo sua expressão. Nessa abordagem, uma vez que o gene deixa de existir
em sua forma selvagem no genoma do organismo, esse não pode mais ser transcrito
normalmente, o que impede sua expressão.
Para tanto, insere-se na célula a ser modificada um fragmento de DNA sintetizado in
vitro, sendo esse uma construção que possui porções do gene alvo que se deseja
modificar e que irão guiar a recombinação homóloga. Também é inserida na construção
uma marca de seleção, que permite acessar rapidamente as células que receberam a
inserção (Dorin, Inglis et al. 1989). Esse DNA inserido na célula sofre recombinação
homóloga com o genoma da célula, guiada pelas seqüências do gene alvo presentes na
construção. Dependendo da ordem das seqüências utilizadas na construção, pode ocorrer
uma substituição, na qual a célula perde um fragmento de seu genoma, ou uma inserção,
onde a construção é inserida no gene interrompendo-o, conforme mostrado na figura 1.
Essa técnica foi inicialmente empregada em diversos organismos unicelulares como
levedura (Rothstein 1983) e leishmania (Cruz, Coburn et al. 1991), e que não necessitam
de um passo para a seleção de mutantes com linhagens germinativas modificadas.
104 Figura 1 – Construções utilizadas na interrupção gênica. Em A, construção que irá levar a
uma interrupção do gene alvo. Em B, construção que irá levar a uma inserção no gene
alvo. Figura retirada de (Thomas and Capecchi 1987).
Em mamíferos, a interrupção gene específica foi possível atacando-se o gene alvo
no genoma de células tronco embrionárias (Thomas and Capecchi 1987). Células retiradas
de embriões em estágios iniciais do desenvolvimento, e que mantém a pluripotência, são
modificadas geneticamente por recombinação homóloga, conforme desejado, e reinseridas
em um embrião em estágio inicial do desenvolvimento. Por manter a pluripotência, essas
células participam na formação das linhagens de células do organismo, podendo inclusive
participar da formação linhagem germinativa. Os organismos que possuem suas células
reprodutivas modificadas são selecionados e utilizados em cruzamentos para a obtenção
de mutantes que possuem todas as células de seu corpo modificadas.
Para a obtenção da célula que possui o gene alvo modificado, é necessária a
utilização de condições estringentes para a seleção do mutante, uma vez que a freqüência
de recombinação é muito baixa. Essa estringência pode ser conseguida com a utilização
de uma marca de seleção, normalmente um gene que confere resistência a um antibiótico,
assim como feito com organismos mais simples. Uma vez que para a seleção das células
se faz necessária a expressão desse gene de resistência, deve-se sempre levar em
consideração que a presença do mesmo pode alterar o fenótipo das células de maneira
imprevisível. Esse problema é particularmente sério quando se está investigando a função
de regiões reguladoras do genoma, como promotores, repressores e “enhancers”, uma vez
105
que a marca de seleção normalmente carrega seu próprio promotor e sinais para o
amadurecimento do mRNA.
A utilização de um sistema de recombinação derivado de bacteriófago permite que a
marca de seleção seja removida do genoma após a seleção das células que sofreram
recombinação. Esse sistema se baseia na utilização da enzima Cre, uma recombinase de
bacteriófago que reconhece uma seqüência de 34 nucleotídeos chamada loxP (Sauer and
Henderson 1988). Se uma seqüência de DNA é flanqueada por dois sítios loxP na mesma
orientação, a enzima Cre retira essa seqüência do DNA, deixando um único sítio loxP em
seu lugar. Se esse sítio for considerado como inerte, dessa maneira é possível se realizar
remoções “limpas” de seqüências do genoma da célula (revisado em (Rajewsky, Gu et al.
1996)).
Figura 2 – Estratégia para se conseguir um exon flanqueado por seqüências loxP. Em 1,
construção a ser inserida na célula, possuindo uma marca de seleção (neo) flanqueada
por duas seqüências loxP (pontas de setas), que por sua vez são flanqueadas por dois
exons que irão direcionar a recombinação homóloga e à montante dessa construção, um
terceiro sítio de loxP. Essa construção é inserida na célula (2) para que haja recombinação
homóloga, resultando na inserção da construção no genoma da célula (3). Após a seleção
das células modificadas, é feita uma expressão transiente da recombinase Cre, que pode
resultar em um cromossomo sem o exon a montante, ou em um cromossomo sem a marca
de seleção, no qual o exon a montante encontra-se flanqueado por sítios loxP (4).
Figura retirada de (Rajewsky, Gu et al. 1996).
Embora inicialmente idealizada com o objetivo de realizar remoções que não
expressassem uma marca de seleção, o sistema Cre-loxP possui um aspecto ainda mais
importante que remoções limpas de fragmentos de DNA: as recombinações controladas.
Recombinações controladas são interessantes, pois permitem a supressão de genes que
seriam essenciais nos estágios iniciais do desenvolvimento, e possibilitam a análise de
genes expressos em grupos específicos de células, que pelo nocaute clássico geram
mutantes com fenótipo complexo demais para ser analisado. Recombinações controladas
também permitem a simulação de doenças genéticas adquiridas, como descrito em (Alisky
2006), onde os autores descrevem um modelo para a doença de Alzheimer.
A estratégia para se conseguir um nocaute condicional, consiste em inserir sítios
loxP flanqueando um gene ou segmento do gene no genoma do organismo, através do
protocolo clássico de recombinação em células tronco embrionárias e posterior deleção da
marca de seleção através da expressão transiente da recombinase Cre. O nocaute
condicional é então conseguido ao se cruzar esse animal com outro que expresse a
recombinase Cre da maneira desejada. A primeira possibilidade é a da recombinase ser
expressa em todas as células do animal gerado, resultando em um fenótipo igual ao
conseguido através do nocaute clássico, onde todas as células do organismo estão
nocauteadas. Outra possibilidade é a da recombinase Cre ser expressa em um tipo
106 específico de célula, resultando em um fenótipo em que somente esse tipo de célula
possui o gene modificado. Também é possível se utilizar um promotor indutível para a
expressão da recombinase, o que permite o controle no tempo, de quando as células
serão modificadas. Assim, esse sistema é tão flexível quanto se pode controlar a
expressão da recombinase. Outras formas de aplicação da técnica podem ser encontradas
em (Rajewsky, Gu et al. 1996) e (Tronche, Casanova et al. 2002).
Outra técnica utilizada no silenciamento gênico é a interferência de RNA, que
permite o silenciamento pós transcricional do gene a ser estudado, não sendo necessário
nesse caso, interferir diretamente em seu genoma. Esse fenomeno foi inicialmente descrito
no organismo Caenorhabditis elegans, quando a injeção de RNA dupla fita (dsRNA)
nesses organismos, inesperadamente levaram a um silenciamento gene específico,
resultando em um fenótipo igual ao encontrado em mutantes nocauteados pelo protocolo
clássico (Fire, Xu et al. 1998). Surpreendentemente, esse silenciamento se espalhou por
quase todas as células do organismo, e podia ser transmitida às gerações seguintes. Após
a descrição em C.elegans, seguiu-se a descrição do fenômeno de interferência de RNA
em diversos outros organismos, como Drosophila, Planaria e Hydra (revisado em (Sharp
1999)).
O fenômeno de RNAi parece estar envolvido com uma defesa natural das células
contra virus e mobilização de transposons (Tijsterman, Ketting et al. 2002). O mecanismo
pode ser dividido em duas etapas. Na primeira etapa, o dsRNA é reconhecido pela
maquinaria de RNAi da célula e clivado em pequenos RNAs dupla fita (siRNA) de
aproximadamente 21 pares de nucleotídeos (Elbashir, Lendeckel et al. 2001). Esses
siRNAs, participam na segunda etapa do processo servindo como guia na degradação de
RNAs simples fita que possuam a mesma seqüência. Dessa maneira o mecanismo leva ao
silenciamento do gene alvo através da degradação de seu mRNA, o que impede sua
tradução.
A descoberta do fenômeno trouxe a para a comunidade científica uma arma
poderosa para a determinação da função de genes de maneiras simples e rápida.
Particularmente, C. elegans se mostrou um modelo extremamente bom para se aplicar
essa técnica, pois o RNAi nesses organismos pode ser induzido em praticamente todas as
suas células, simplesmente colocando-os em uma solução de RNA dupla fita (Tabara,
Grishok et al. 1998), ou alimentando-os com bactérias que expressam o RNA dupla fita
(Timmons and Fire 1998), e o silenciamento possui uma longa durabilidade (Fire, Xu et al.
1998). No entanto, em outros organismos nos quais o RNAi foi descrito, sua utilização é
mais trabalhosa e envolve a injeção ou eletroporação do dsRNA, ou a transfecção de
vetores que levem à expressão do dsRNA nas células.
Particularmente em mamíferos, a utilização de RNAi é mais trabalhosa pela
impossibilidade de se utilizar dsRNAs com mais de 70 pares de bases. Quando um dsRNA
muito longo é introduzido em células de mamíferos, esse ativa uma via de degradação
inespecífica de RNA, ativada por interferon-γ, que acaba levando à morte da célula. Essa
limitação foi contornada utilizando-se diretamente siRNAs no silenciamento gênico, que
entram na segunda etapa da via de silencimento, evitando assim a ativação da via de
interferon-γ.
O silenciamento pode ser prolongado em mamíferos através da utilização de vetores
com promotores de RNA polimerase III, que expressam pequenos grampos de RNA
(shRNA). Esses grampos são processados pela maquinaria de RNAi em siRNAs, que
levam à degradação do mRNA do gene alvo.
Hoje, RNAi é amplamente utilizado no estudo da função fisiológica de genes in vivo.
A facilidade de utilização da técnica combinada com a determinação do genoma, permitiu
a análise funcional de genes em escala cromossômica e até mesmo genômica, como feito
com C. elegans (revisado em (Barstead 2001)) e Trypanosoma brucei (Subramaniam,
Veazey et al. 2006). Com isso, a utilização de RNAi permite uma primeira abordagem
rápida e fácil à função do gene in vivo, e embora as comparações feitas entre mutantes
por RNAi com mutantes clássicos não demonstrem diferenças, o nocaute clássico não
deixará de existir, pois permite a análise mais detalhada de mutações em diferentes alelos,
e obtem-se realmente uma supressão total da expressão do gene, que não ocorre no
RNAi.
Referências
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107
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homologous recombination." Science 243(4896): 1357-60.
Elbashir, S. M., W. Lendeckel, et al. (2001). "RNA interference is mediated by 21- and 22-nucleotide RNAs." Genes Dev
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Tijsterman, M., R. F. Ketting, et al. (2002). "The genetics of RNA silencing." Annu Rev Genet 36: 489-519.
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Tronche, F., E. Casanova, et al. (2002). "When reverse genetics meets physiology: the use of site-specific
recombinases in mice." FEBS Lett 529(1): 116-21.
108 PCR EM TEMPO REAL
Rafaella Marino Lafraia ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia
Tripanossomatídeos
Natália Nour Obeid ([email protected]) - Laboratório de Pigmentação
de
Reação Em Cadeia Da Polimerase (PCR)
A reação em cadeia da polimerase (PCR) é um método rápido e sensível que
permite amplificar uma seqüência alvo-específica de DNA ou cDNA, utilizando os
elementos básicos da replicação natural, sendo uma forma de obter-se cópias in vitro de
DNA (BRUCE 1999). Para que tal reação ocorra é necessário a presença dos seguintes
reagentes: o DNA molde, iniciadores (primers), a enzima Taq DNA polimerase, cofator da
enzima (MgCl2) e desoxinucleotídeos trifosfato (dNTPs). Devido à grande variação térmica
que ocorre na PCR, é inevitável a utilização da enzima Taq DNA polimerase, pois essa é
termoestável. Para o funcionamento dessa enzima faz-se necessário a presença do seu
cofator (magnésio em solução).
A amplificação do DNA molde ocorre através de ciclos múltiplos de alternância de
temperatura conforme a seguintes etapas: desnaturação (varia de 94° a 96° C, sendo que
tais valores são ideais para a separação da dupla-hélice), associação dos iniciadores
(temperatura entre 37° a 65°C, definida pelo T’m, para que os “primers” se liguem por
complementariedade às fitas simples de DNA) e polimerização (72°C, ocasionando a
extensão das novas fitas no sentido 5’ para 3’utilizando os dNTPs presentes na reação).
Para aumentar a especificidade da reação de PCR, tanto convencional quanto em
tempo real, realiza-se uma modificação química na molécula da Taq polimerase de modo
que essa só inicie a replicação da fita de DNA complementar à da seqüência em que o
“primer” parear em uma temperatura elevada, denominada “hot start”. Desta forma,
dificulta-se a formação de produtos inespecíficos, que são gerados pelo pareamento
incorreto do “primer” e extensão da fita complementar pela polimerase antes do inicio da
reação(RUSSELL 2001).
Analisando essa técnica é possível verificar fases distintas, que se baseiam no
aumento da quantidade do número de cópias presentes em determinado ciclo, que pode
variar de reação para reação, e que se denominam: inicial, que é determinada por
apresentar uma maior quantidade de “primers” em relação ao DNA molde; intermediária,
representada pelo acúmulo exponencial de fitas de DNA e platô, quando há limitação dos
reagentes e há competição dos produtos gerados com os “primers” ainda existentes (Kainz
2000). Após a quantidade pré-estabelecida de ciclos, obtém-se um aumento exponencial
do DNA produto. Devido à ampla eficiente da técnica de PCR, essa apresenta uma gama
extensa de aplicações, das quais serão citadas somente duas.
FORMATOS DA PCR
Multiplex PCR
É a mesma técnica de PCR descrita a cima, mas é uma forma mais econômica, pois
permite a utilização de vários iniciadores, possibilitando a amplificação de seqüências
distintas do mesmo DNA molde e, a partir da análise dos seus produtos em gel de agarose
visualiza-se bandas de tamanhos diferentes (Persson, Hamby et al. 2005). Esses
conjuntos de “primers” devem possuir um T’m parecido.
No PCR em tempo real essas reações são permitidas quando os espectros de
emissão de fluorescência são devidamente combinados, utilizando diferentes marcadores
(de seqüência-específica) para a molécula alvo e controle, possibilitando, assim,
quantificar ambos simultaneamente numa única reação e num mesmo tubo, podendo
identificar mais de uma seqüência alvo ao mesmo tempo (Holland, Abramson et al. 1991).
Uma grande desvantagem dessa técnica é a limitação das concentrações da
seqüência alvo e controle (numa proporção 1000 vezes uma em relação à outra), na qual é
atribuída, em parte, à sobreposição de espectro dos marcadores repórteres disponíveis,
sendo aconselhável, então, utilizar marcadores com a mínima sobreposição do espectro
de fluorescência nessas reações. Devido tal característica, sua utilização é recomendada
para: detecção de polimorfismo na espécie humana (paternidade), pesquisa de doenças
genéticas, pesquisa de mutações que levam ao câncer, detecção e tipagem de HPV, etc.
109
RT-PCR
É a utilização de dois tipos de reações distintas em seqüência, de forma a obter uma
amplificação da expressão de algum gene. A primeira reação consiste na transcrição
reversa (RT), se baseia na obtenção de fitas simples de DNA, complementares ao RNA
utilizado nessa reação, conseguindo-se desta forma, o cDNA (Freeman, Walker et al.
1999). Segue-se a amplificação desse primeiro produto, empregando então a PCR, sendo
que não se pode fazer essa em primeira instância porque a DNA polimerase não utiliza
RNA como “template”, mas sendo utilizada posteriormente essa reação se procede como
já descrita.
A reação de transcrição reversa utiliza como reagente as seguintes substâncias:
Oligo dT (primer composto por 18 nucleotídeos T sendo usado para RNA mensageiro, pois
pareia na cauda poliA, característica típica do mRNA) (Lakey, Zhang et al. 2002) , Enzima
transcriptase reversa (responsável pela formação das fitas simples de cDNA), dNTP
(nucleotídeos que serão utilizados na extensão das novas fitas), tampão da enzima,
variação de temperatura (inicialmente eleva-se à temperatura para desnaturação do RNA,
em seguida esfria-se para manter o RNA desnaturado, depois se eleva à temperatura para
a ótima da enzima e, posteriormente eleva-se mais para desnaturar a enzima) e RNA total
(para servir de molde).
PCR EM TEMPO REAL
É a técnica similar à PCR convencional, porém permite a quantificação do produto
amplificado em cada ciclo pelo aumento da emissão fluorescente dos fluoróforos
utilizados. A PCR em tempo real requer uma plataforma de instrumentação que contém
um termociclador para a reação que monitora as variações de intensidade do comprimento
de onda emitido pelo fluoróforo marcador em cada replicação da molécula alvo
(http://www.dbc.uem.br/ docentes/cida/Sem1PCRtemporeal.pdf, 2007). Existe um canhão
que emite raios laser direcionados, por fibras ópticas, para cada um dos 96 poços
presentes na placa, onde estarão as amostras de interesse. O comprimento de onda dos
raios laser excitará o fluoróforo(s) marcador (es) da amplificação, fazendo com que este(s)
emita(m) seu(s) comprimento(s) de onda(s). Assim, essa intensidade luminosa seguirá o
caminho inverso do laser até chegar a câmara CCD, que analisará a quantidade de fótons
recebida e plotará os dados em um gráfico exponencial.
O gráfico resultante da quantificação, obtido pelo computador acoplado ao
termociclador, apresenta quatro fases distintas:
1) linha basal, fase em que não se detecta fluorescência, devido a maior quantidade
de “primers” em relação ao DNA;
2) fase exponencial ou intermediária, marcada pelo acúmulo exponencial do produto
em cada ciclo. Permite a quantificação do número inicial de moléculas devido à fórmula:
Nf = No (1+Y)n, sendo que Nf é o número final de cópias de dupla fita da seqüência alvo,
No, o número inicial de cópias em dupla fita de “template”, Y, a eficiência da extensão do
“primer” por ciclo e n, o número de ciclos;
3) fase linear, na qual se inicia o esgotamento dos reagentes;
4) fase platô, estabilização e término da produção de cópias do DNA molde, na qual
ocorre a limitação dos reagentes.
A curva padrão é um passo essencial para utilização da PCR em tempo real. Essa é
obtida utilizando na reação, concentrações distintas e conhecida de DNA molde. Na
análise dos resultados obtidos no gráfico, no qual as diferentes curvas devem apresentam
uma proporcionalidade por causa da diferença de concentração utilizada, será possível a
determinação dos Cts de cada curva. Esse Ct é o ponto de fluorescência, dado pelo
computador, em que todas as amostras estejam na fase exponencial. Esse valor é
importante, pois é a partir dele que, nas reações com as amostras de interesse, se poderá
determinar o número de cópias inicial, ou seja, a partir desse valor poderá ser feita a
quantificação relativa e absoluta (Heid, Wessels et al. 2004; Gibson, Heid et al. 1996).
A alta especificidade, a ausência de uma manipulação posterior do produto da
reação, a sensibilidade em detectar e amplificar amostras contendo quantidades baixas,
rapidez, alta eficiência, e a possibilidade de conhecimento do número inicial de moléculas
tornam-se as principais vantagens do uso do PCR em tempo real. Porém isto só é possível
através do emprego de diversos tipos de marcadores fluorescentes, sendo que os que
possuem sondas são seqüência-específica, as quais são utilizadas nas reações multiplex.
110 Vários são os fluoróforos
marcadores disponíveis para análises por Real-time
PCR:
•
•
•
•
•
•
•
Syber green (2 oligonucleotídeos iniciadores)
TaqMan (2 oligonucleotídeos iniciadores e 1 sonda)
FRET (2 oligonucleotídeos iniciadores e 2 sondas)
Beacons (2 oligonucleotídeos iniciadores e 1 sonda)
Scorpions (1 oligonucleotídeo iniciador e 1 oligo/sonda)
Sunrise primers (2 oligonucleotídeos iniciadores)
LUX primers (2 oligonucleotídeos iniciadores).
1.SISTEMA TaqMan
Essa técnica baseia-se na amplificação de uma seqüência alvo utilizando uma
sonda, que consiste em um oligonucleotídeo seqüência-específico, de hibridização não
extensível. A sonda, ainda intacta, apresenta em sua estrutura química duas partes
distintas: um REPORTER, na extremidade 5’ e um INIBIDOR, na extremidade 3’. Assim, a
emissão de fluorescência é inibida pela proximidade física entre eles. Quando ocorre a
degradação da sonda de hibridização pela atividade exonucleásica da polimerase (5’->3’),
durante a fase de extensão dos ciclos, as partes são liberadas e o sinal luminoso do
repórter é detectado. Essa emissão luminosa tem um aumento exponencial durante o
processo de amplificação da seqüência alvo específica (Heid, Stevens et al. 1996).
O uso de marcador passivo de fluorescência (ROX) é essencial neste ensaio, pois
ele é quem mede as flutuações de florescência não relacionadas ao PCR, estas são
excluídas para determinar a linha de base.
Esse sistema apresenta um alto custo e a necessidade de uma sonda para cada
produto analisado. Em contra partida, é mais especifico para determina a presença ou
ausência de seqüências específicas (Holland, Abramson et al. 1991) e permite a análise
de mais de um produto por amostra.
2.Syber green
Esta substância possui uma importante característica, a de se intercalar na dupla fita
de DNA, e assim, portanto, quando há aumento do número de fitas duplas de DNA
(produto) há um aumento proporcional da intensidade de fluorescência emitida por ciclo
(Vitzthum, Geiger et al. 1999).
Suas principais vantagens são: o baixo custo, facilidade no uso, sensibilidade e a
possibilidade de aplicação em qualquer produto. Contudo há a possibilidade de se detectar
uma reação inespecífica (Ririe, Rasmussen et al. 1997) e apenas um único produto pode
ser analisado por vez.
O sucesso do PCR em tempo real possibilitou as seguintes aplicações:
- Grande potencial na Medicina Forense.
- Quantificação da expressão gênica e do padrão de expressão gênica por RNA
total;
- Detecção e quantificação de organismos geneticamente modificados em alimentos
e ingredientes alimentares;
- Detecção e quantificação de microorganismos patógenos no hospedeiro;
- Detecção e tipagem de HPV;
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112 Uso de bibliotecas combinatórias para seleção de
peptídeos ou oligonucleotídeos específicos para o
estudo da interação de moléculas
Maria Fernanda Laranjeira da Silva ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia
de Tripanossomatídeos
Bibliotecas combinatórias têm sido amplamente utilizadas em estudos envolvendo
interações de moléculas, a fim de identificar ligantes específicos para o desenvolvimento
de quimioterápicos alternativos e a caracterização de relações intermoleculares em
estudos fisiológicos. O desenvolvimento de aptâmeros e Phage Display são duas das
técnicas amplamente utilizadas na identificação desses ligantes específicos, sendo que a
primeira utiliza bibliotecas de ácidos nucléicos e a segunda de peptídeos ou proteínas.
Essas duas técnicas, apesar de relativamente recentes, já foram bastante
desenvolvidas, estabelecendo-se como alternativas potentes para estudos em diferentes
áreas biotecnológicas. Algumas das aplicações desses métodos são: a descoberta de
moléculas terapêuticas com alta especificidade e afinidade pelo alvo, o desenvolvimento
de vetores para terapêuticos, o desenvolvimento de técnicas para diagnósticos, o uso em
separação ou purificação de moléculas por afinidade, em estudos de doenças infecciosas
e, de forma mais geral, em estudos de interações moleculares.
Phage Display
Em 1985, Smith (Smith 1985) estabeleceu um método para a apresentação de
polipeptídeos na superfície de fagos filamentosos – um vírus que infecta Escherichia coli –
originando a técnica conhecida como Phage Display, que tem sido eleita para responder a
um amplo espectro de questões com abordagens distintas. Após mais de duas décadas de
buscas em bibliotecas de fagos, essa tecnologia consagrou-se como uma técnica
poderosa para selecionar polipeptídeos com propriedades biológicas e fisicoquímicas
específicas (Paschke 2006).
Phage display é um sistema em que um peptídeo ou proteína é apresentado na
superfície de um fago fundido a uma proteína da cápsula desse vírus, sem que a proteína
do vírus perca sua função, para isso o DNA exógeno que codifica esse peptídeo ou
proteína é inserido no virion (http://www.cf.ac.uk/phrmy/PCB/Page PhageDisplay.htm).
Os fagos filamentosos de E. coli mais usados são da classe Ff, as linhagens M13, fd
e f1. Esses fagos são constituídos por uma única molécula de DNA circular simples-fita
que é encapsulada em um longo tubo composto por milhares de cópias de uma proteína
principal de superfície (pVIII), com mais quatro proteínas minoritárias nas pontas desse
capsídeo (Figura 1). As cinco proteínas da cápsula já foram usadas na técnica de Phage
Display para apresentar peptídeos/proteínas fundidos a elas, mas as mais usadas são as
proteínas pVIII e pIII (Mullen, Nair et al. 2006).
Figura 1 – Dimensões e arquitetura de um bacteriófago filamentoso fd. O número de
cópias de cada proteína está entre parênteses (Mullen, Nair et al. 2006).
As bibliotecas combinatórias de peptídeos podem ser completamente ou
parcialmente aleatórias. Entre essas parcialmente aleatórias, as mais comumente
utilizadas têm como estrutura geral CXNC, expressando N aminoácidos randômicos
113
flanqueados por duas cisteínas, o que gera peptídeos cíclicos apresentados na superfície
dos fagos da biblioteca (Sergeeva, Kolonin et al. 2006).
Geralmente, as bibliotecas usadas são compostas por aproximadamente 109 clones,
sendo que cada clone está representado por 100 partículas, podendo ser amplificada para
milhões de cópias infectando novas bactérias hospedeiras (Smith and Petrenko 1997). As
bibliotecas Phage Display são construídas usando vetores baseados na seqüência natural
do fago Ff (vetores de fago) ou usando fagomídeos. Os fagomídeos são híbridos de
vetores de fago e plasmídeos, possuem uma origem de replicação do fago Ff, uma origem
de replicação plasmidial de E. coli, o gene III e/ou VIII para a formação da fusão, um sítio
de clonagem e um gene de resistência a antibiótico. Esses fagomídeos não têm todos os
outros genes de fago necessários para produzir um fago completo, no entanto fornecem
tudo o que é necessário para a formação de um fago, podem se multiplicar como
plasmídeos em E. coli e empacotar como um fago Ff de DNA recombinante com a ajuda
de um “helper phage” (Russel, Lowman et al. 2004).
Os peptídeos que podem ser expressos nos fagos vão desde pequenas seqüências
de aminoácidos a fragmentos de anticorpos, proteínas, hormônios, enzimas e outros
(http://www.cf.ac. uk/phrmy/PCB/Page PhageDisplay.htm).
Clonando-se um grande número de seqüências de DNA nos fagos, produz-se
bibliotecas com um repertório de muitos bilhões de proteínas únicas apresentadas pelos
fagos. Posteriormente, selecionam-se os clones que apresentam peptídeos/proteínas
capazes de se ligar especificamente à molécula alvo através de um processo denominado
“biopanning” (http://www.cf.ac.uk/phrmy/PCB/PagePhage Display.htm) (Figura 2).
Figura 2 – Um ciclo de seleção por afinidade de uma biblioteca de Phage Display (Mullen,
Nair et al. 2006).
No processo de “biopanning”, os fagos são selecionados de acordo com a afinidade
ao alvo imobilizado, capturando os fagos que se ligaram ao alvo e lavando os que não se
ligaram; em seguida, os fagos ligantes são eluídos, explorando a estabilidade dos fagos a
pH extremos, força iônica, desnaturantes e até a maioria das proteases (Russel, Lowman
et al. 2004). A etapa seguinte é a de amplificação na qual os fagos selecionados se
multiplicam quando reinfectados em células de E. coli. A população de fagos amplificada é
então submetida a diversos passos de “panning” consecutivos (geralmente 3),
possibilitando o enriquecimento e a amplificação seletiva de fagos, e então finalmente
esses fagos selecionados poderão ser individualmente analisados (Paschke 2006),
inclusive a fim de determinar a seqüência de aminoácidos do peptídeo selecionado através
do genoma dos fagos.
Além disso, pode-se realizar a seleção in vivo, dessa forma a biblioteca de fagos e
administrada intravenosamente no animal de interesse que após um período de repouso é
submetido a uma perfusão para remover os fagos que não se ligaram, e posteriormente o
tecido de interesse é cirurgicamente removido para eluição dos fagos que se ligaram ao
alvo (Sergeeva, Kolonin et al. 2006).
Duas das grandes vantagens desse método são: a possibilidade em manter uma
ligação física entre o peptídeo/proteína exibido e a sequência de DNA que o codifica, ou
seja, a ligação fenótipo-genótipo; e a disponibilidade de usar bibliotecas contendo bilhões
114 de peptídeos/proteínas únicos. Mas, inicialmente, a técnica parecia ter algumas limitações
quanto à conformação de algumas proteínas apresentadas pelos fagos, mas esses
problemas foram superados com a evolução do método (Mullen, Nair et al. 2006). No
entanto, ainda existem alguns obstáculos, por exemplo, alguns peptídeos/proteínas podem
ser recalcitrantes para serem apresentados devido a propriedades individuais, podendo,
por exemplo, apresentar toxicidade a E. coli ou interferir com a produção do fago (Russel,
Lowman et al. 2004).
Quanto as aplicações, originalmente a técnica de Phage Display foi inventada para a
seleção por afinidade de fragmentos de proteínas expressos por fragmentos de cDNA
(Smith 1985; Parmley and Smith 1988). Subseqüentemente, bibliotecas de Phage Display
foram construídas para a seleção por afinidade de peptídeos e anticorpos (Devlin,
Panganiban et al. 1990; McCafferty, Griffiths et al. 1990; Scott and Smith 1990; Barbas,
Kang et al. 1991; Breitling, Dubel et al. 1991; Hoogenboom, Griffiths et al. 1991; Marks,
Hoogenboom et al. 1991). A partir daí, a tecnologia de Phage Display conquistou novas e
inumeráveis aplicações.
Uma das aplicações de Phage Display bastante explorada atualmente é em estudos
de interações proteínas-ligantes. Essa abordagem é interessante no estudo das relações
pátogeno-hospedeiro em doenças infecciosas (Mullen, Nair et al. 2006), na identificação
de peptídeos agonistas e antagonistas de receptores (Pillutla, Hsiao et al. 2002;
Magdesian, Nery et al. 2005), entre outros. Um exemplo em estudo de parasitoses é o
trabalho com Plasmodium de Gosh em 2001 (Ghosh, Ribolla et al. 2001), neste trabalho
identifica-se um peptídeo capaz de se ligar ao mesmo receptor que o parasita se liga no
tubo digestivo e nas glândulas salivares do inseto vetor da malária, Anopheles,
comprometendo o desenvolvimento do Plasmodium no vetor e, conseqüentemente, a
transmissão da doença.
Além disso, outra possibilidade bastante utilizada é a identificação de peptídeos e
proteínas com funções específicas. Essa aplicação permite o desenvolvimento de novas
drogas e veículos terapêuticos (Sergeeva, Kolonin et al. 2006), vacinas (Wang and Yu
2004), a produção e manipulação de anticorpos recombinantes, o mapeamento de
epítopos (Azzazy and Highsmith 2002; Ladner, Sato et al. 2004; Mullen, Nair et al. 2006) e
outros.
Uma estratégia bastante interessante, unindo as idéias de peptídeo endereçador e
peptídeo ativo, foi descrita em 2004 por Kolonin e colaboradores (Kolonin, Saha et al.
2004) e consiste na formação de um peptídeo quimera. Os autores produziram um
peptídeo químera com propriedades capazes de reverter obesidade em camundongos.
Inicialmente, selecionou-se um peptídeo capaz de se ligar a vasculatura subcutânea e
peritoneal da gordura branca, esse peptídeo foi então ligado a um peptídeo já descrito
anteriormente (Ellerby, Arap et al. 1999) capaz de induzir apoptose. A químera resultante
foi capaz de induzir a morte celular dos vasos sanguíneos do tecido adiposo, levando à
reabsorção da gordura e perda de peso pelos camundongos.
Atualmente muitos laboratórios estão usando Phage Display na tentativa de achar
novos marcadores, alvos e/ou tratamentos para cancêr. Nesse sentido, muitos estudos
mostram que na superfície de células tumorais ou células associadas a tumores há
diversos receptores superexpressos que poderiam servir para diagnóstico e tratamento da
doença (Sergeeva, Kolonin et al. 2006).
As possibilidades de utilização desse método são inúmeras e crescentes. Inclusive,
pretende-se futuramente usar esse método também para a costrução de “interactomes”,
usando o mesmo conceito de genomas e proteomas, esses seriam mapeamentos de
interações proteícas nas células; essa abordagem poderia auxiliar a comunidade científica
indicando novos alvos terapêuticos (Sergeeva, Kolonin et al. 2006).
Aptâmeros de DNA e RNA
Na década de 90, três grupos separadamente usaram diferentes enfoques de
seleção in vitro para isolar moléculas de DNA e RNA capazes de se ligar a diversas
proteínas e corantes orgânicos (Bunka and Stockley 2006); um laboratório usou o termo
SELEX (“systematic evolution of ligands by exponential enrichment”) para o processo de
seleção de RNAs ligantes à T4 DNA polimerase (Tuerk and Gold 1990), o outro usou o
termo seleção in vitro para o mesmo processo contra diversos corantes orgânicos e, além
disso, também criou o termo “aptamer” (do Latim, aptus, significando “to fit”) para esses
115
ácidos nucléicos ligantes (Ellington and Szostak 1990); dois anos depois, esse segundo
laboratório e um terceiro grupo, Gilead Sciences, utilizaram esses mesmos esquemas de
seleção in vitro para selecionar moléculas de DNA simples fita que se ligavam a corantes
orgânicos e a trombina, respectivamente (http://en.wikipedia.org/wiki/Aptamer).
Provavelmente, essas descobertas foram possíveis graças ao novo entendimento da
estrutura e função do RNA que, no início dos anos 80, provou-se como um participante
ativo de catálises nas células vivas e não simplesmente um carregador passivo da
informação genética (Bunka and Stockley 2006).
Apesar de serem produzidos em laboratórios de biotecnologia, a existência de
aptâmeros naturais só foi descoberta em 2002, quando Ronald Breaker e colaboradores
descobriram um elemento composto por ácidos nucléicos para regulação genética
chamado “riboswith”. Esse elemento possue propriedades de reconhecimento similar aos
aptâmeros produzidos artificialmente e adicionou evidências a noção de um mundo de
RNA nos tempos da origem da vida na Terra (Bunka and Stockley 2006).
Logo, aptâmeros são oligonucleotídeos específicos de DNA ou RNA, com estrutura
terciária definida, e graças a essa estrutura, os aptâmeros podem ser produzidos para se
ligarem à determinada molécula alvo. Como diversas formas estruturais dessas moléculas
podem existir, devido às inúmeras combinações diferentes de nucleotídeos possíveis,
pode-se obter aptâmeros capazes de se ligar a um vasto espectro de moléculas alvos:
proteínas, carboidratos, lipídeos, nucleotídeos e outras moléculas, até pequenas
moléculas,
ou
complexos
como
vírus
(http://www.people.cornell.edu/
pages/yc224/aptamer.htm).
Os aptâmeros são selecionados a partir de bibliotecas de ácidos nucléicos sintéticos
através de um processo repetitivo de adsorção, recuperação e reamplificação, processo
esse chamado SELEX (Tuerk and Gold 1990) (Figura 3). O processo de SELEX começa
com uma biblioteca com seqüências aleatórias obtida por síntese química combinatória, é
importante notar que nessa biblioteca cada membro é um oligômero linear com seqüência
única. A complexidade, ou diversidade molecular, da biblioteca é dependente do número
de posições para inserção aleatória dos nucleotídeos. Tipicamente, a complexidade de
uma biblioteca aleatória de oligonucleotídeos é limitada a 1014 a 1015 seqüências
individuais (Jayasena 1999).
Na maioria dos casos, as bibliotecas são parcialmente randômicas, pois as
construções com as seqüências aleatórias são flanqueadas por regiões constantes que
serão usadas posteriormente para ligação de primers, inclusive facilitando a etapa final de
análise das seqüências selecionadas. A região da seqüência aleatória classicamente é
composta por 15 - 75 nucleotídeos; essa região é dita aleatória, pois as quatro bases
podem ser incorporadas com mesma probabilidade (Jayasena 1999; Ulrich, Alves et al.
2001).
Para a construção de bibliotecas de oligonucleotídeos de RNA o “pool” de uma
biblioteca de DNA é transcrito para formação de RNAs usando a T7 RNA polimerase.
Nesse caso, é necessário um locus promotor de T7 na extremidade 5’ do “pool” molde de
DNA (Ulrich, Alves et al. 2001).
Na etapa de seleção do processo, a biblioteca de oligos aleatória é incubada com o
alvo de interesse e a pequena fração de seqüências individuais que interagem com o alvo
são separadas do resto da biblioteca por meio de técnicas de separação física. No caso de
alvos protéicos usam-se filtros de nitrocelulose; já quando o alvo é composto por
moléculas pequenas, essas podem ser imobilizadas em um suporte sólido para gerar uma
matriz de afinidade na qual as seqüências que não interagirem com o alvo não se ligarão
sendo removidas facilmente em uma etapa de lavagem (Jayasena 1999). No processo de
seleção, a cada passo aumenta-se a estringência com o intuito de aumentar a
especificidade dos ligantes selecionados (Ulrich, Alves et al. 2001).
Então, a população de seqüências selecionada é isolada e amplificada para
obtenção de uma biblioteca enriquecida para ser utilizada em um próximo ciclo de
seleção/amplificação. Após vários passos de seleção/amplificação, geralmente de 8 a 15,
atinge-se a saturação de afinidade, a biblioteca enriquecida então é clonada e
seqüenciada para as moléculas serem caracterizadas individualmente quanto à habilidade
de se ligar ao alvo (Jayasena 1999).
116 Figura 3 – Esquema de um ciclo único de SELEX (Bunka and Stockley 2006).
Os aptâmeros são altamente específicos às moléculas contra as quais foram
selecionados; podem discriminar diferenças estruturais sutís entre as moléculas para as
quais são expostos, como presença ou ausência de grupos metil ou hidroxilas, e
enantiomeros D- e L-. Devido à alta especificidade dos aptâmeros, criou-se o processo de
“counter-SELEX”, para aproveitar essa característica e usá-la para efetivamente descartar
ligantes que se ligam ao alvo tão bem quanto análogos estruturais relacionados ao alvo. A
diferença desse processo é que se adiciona um passo de eluição com os análogos
estruturais do alvo. Essa variante do processo original é importante para casos em que,
por exemplo, objetiva-se identificar aptâmeros contra um único alvo de uma mistura
complexa, como um epítopo exclusivo da superfície de células cancerosas e não presente
em células saudáveis; nesse caso, as células do tecido sadio seriam usadas para remover
as seqüências que poderiam gerar inespecificidade (Jayasena 1999).
Uma das potencialidades dos aptâmeros é o uso dessas moléculas como agentes
terapêuticos, para isso, são essenciais algumas modificações químicas que tornem os
aptâmeros resistentes as nucleases presentes no organismo. As modificações mais
usadas para conferir estabilidade à molécula são a adição de fosforotioatos ou a
substituição dos grupos 2´-OH das pirimidinas da molécula por 2´-F, 2´-NH2, ou 2´-OMe
(Ulrich, Alves et al. 2001). Outras alternativas para melhorar a estabilidade dos aptâmeros
são: o uso de 4´-tiol pirimidinas, nucleotídeos compostos por L-riboses, “caps”
dinucleotídicos com ligação 3´-3´, a circularização ou adição de ligações dissulfídicas das
moléculas (Bunka and Stockley 2006; Fattal and Bochot 2006).
Além disso, aptâmeros são moléculas pequenas (5-25 kDa), rapidamente eliminadas
pelo organismo; portanto, também com o objetivo terapêutico em vista, pode-se ligar ao
aptâmero moléculas de polietilenoglicol ou colesterol, por exemplo, que funcionam como
grupos ancora melhorado a disponibilidade e os parâmetros farmacocinéticos dessas
moléculas no organismo (Fattal and Bochot 2006).
Recentemente, os aptâmeros foram colocados como rivais dos anticorpos devido a
diversas vantagens que apresentam, tais como: são produzidos in vitro não dependendo
de animais, células ou outras condições in vivo; os parâmetros de seleção podem ser
manipulados de acordo com as propriedades desejadas; por ser um processo de síntese
química é extremamente preciso e reprodutível; sofrem desnaturação reversível, são
estáveis por longos períodos e podem ser transportados a temperatura ambiente
(Jayasena 1999); outra possibilidade, é a adição de grupos repórter ao aptâmero no
nucleotídeo desejado do aptâmero (Jayasena 1999; Ulrich, Alves et al. 2001). Os
117
aptâmeros ainda podem ser modificados fundindo-os a ribozimas, a seqüências de
endereçamento, marcadores fluorescentes e outros.
Outra aplicação desse método é o desenvolvimento de aptâmeros que funcionem
como sensores moleculares, para isso o desafio é transformar a ligação alvo-aptâmero em
um evento detectável. Nesse sentido diversas técnicas foram desenvolvidas, sendo que o
principal é a detecção via fluorescência. Algumas estratégias de detecção são: conjugar
um repórter ao aptâmero; conjugar uma molécula que catalise uma reação fluorogênica; o
uso de polímeros que quando conjugados ao aptâmero formam complexos que mudam de
cor dependentemente da presença do alvo (Jayasena 1999; Liu and Lu 2005) e outros.
Com esse tipo de estratégia, foi desenvolvido um aptâmero anti-cocaína que quando se
liga a essa muda de conformação e emite fluorescência (Stojanovic, de Prada et al. 2001).
Além disso, é realmente significativa a colaboração de aptâmeros no estudo de
patologias que envolvem interações celulares, como câncer e doenças que requerem a
invasão celular do hospedeiro por parasitas, tais como: Trypanosoma cruzi (Ulrich, Alves
et al. 2001; Ulrich, Magdesian et al. 2002). Com essa abordagem, em 2002 Ulrich
selecionou aptâmeros de RNA que se ligavam a receptores de adesão celular do T. cruzi
da célula hospedeira, levando a inibição da invasão celular (Ulrich, Magdesian et al. 2002).
Concluindo, a versatilidade dessa tecnologia é refletida no fato de que há poucas
áreas da pesquisa em que aptâmeros não seja aplicável. O desenvolvimento de
aptâmeros pode ser usado como técnica alternativa para: purificação de proteínas;
produção de biosensores para novas técnicas de diagnóstico; descoberta de novos
terapêuticos, inclusive no combate de doenças infecciosas ou que envolvam interações
celulares, como câncer; e outros. Todos os resultados com o uso de aptâmeros mostram
que essa tecnologia não é simplesmente uma ferramenta de pesquisa, mas que também
tem um enorme potencial comercial (Bunka and Stockley 2006). Além disso, o uso dessas
bibliotecas combinatórias pode ser vantajoso no desenvolvimento de drogas terapêuticas
contra patógenos, quando comparadas à abordagem com o desenho racional de drogas,
pois a seleção de aptâmeros não requer a compreensão de todo o processo de infecção
pelo patógeno (Ulrich, Magdesian et al. 2002).
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119
120 NEUROFISIOPATOLOGIA
Aula Inaugural
Merari de Fátima Ramires Ferrari ([email protected]) - Laboratório de Neurotransmissão e
Modulação Neural da Pressão Arterial
O funcionamento do sistema nervoso central (SNC) é fascinante e misterioso tanto
para os mais leigos quanto para os estudiosos do assunto. O SNC é composto por células
neuronais e gliais que interagem entre si para seu correto funcionamento, estas células
são morfológica e fisiologicamente diferentes, mas complementares. Com os avanços na
tecnologia está sendo possível desvendar os mistérios do SNC através dos estudos destes
tipos celulares e de sua relação com comportamentos e funções vegetativas.
Os comportamentos e as funções vegetativas são regulados por grupamentos
celulares distribuídos por todo o encéfalo. Dependendo da região onde estes núcleos se
encontram, a função será predominantemente vegetativa, comportamental ou mista. A
posição anatômica ou mesmo a presença ou ausência de determinado grupamento celular
pode ser modificado de acordo com a classe animal, por isso a neuroanatomia comparada
nos dá dicas sobre os possíveis papéis dos diversos núcleos encefálicos para a
manutenção do equilíbrio fisiológico do organismo.
Uma das principais funções do SNC é fazer com que o organismo responda
coerentemente aos estímulos do meio ambiente, seja através de ajustes vegetativos ou
através de comportamentos. Um ajuste bastante importante é o da pressão arterial, que ao
ser danificado pode desencadear a hipertensão.
O SNC pode sofrer outros transtornos como a neurodegeneração, por exemplo, e
enquanto não há cura para este tipo de doença, diversos profissionais desenvolvem
abordagens terapêuticas para a reabilitação dos indivíduos acometidos pela
neurodegeneração.
Drogas psicoativas como os opióides, o álcool, a nicotina, dentre diversas outras que
interagem sobre núcleos específicos do SNC geram sensações prazerosas, alucinações,
depressão, etc... Algumas destas drogas agem no circuito de reforço o que desencadeia
comportamento de busca freqüente pelo entorpecente podendo caracterizar o vício.
121
Biologia molecular e celular aplicadas à neurofisiologia
Merari de Fátima Ramires Ferrari ([email protected]) - Laboratório de Neurotransmissão e
Modulação Neural da Pressão Arterial
No início do século XVII o pesquisador inglês Robert Hook descreveu o que chamou
de “célula”. Muito embora o que Hook tivesse observado não fosse uma célula como a
conhecemos hoje, seu achado deu base para a evolução da pesquisa celular. Schleiden e
Schwann, em 1839, propuseram a teoria celular que tinha como princípio o fato de a célula
ser a unidade básica de constituição dos organismos. A descoberta dos experimentos
genéticos de Mendel, em 1900, e a elucidação da molécula de DNA por Watson e Crick
(1953) tornaram possível desvendar do código genético e evidenciar sua importância nas
respostas e reações do organismo em relação ao meio.
A partir destas descobertas e anseios pela busca de respostas mais específicas
quanto ao funcionamento da célula, que de modo geral geram a resposta final do
organismo, houve o desenvolvimento da série de experimentos que culminou com o que
conhecemos hoje como biologia celular e molecular.
O Sistema Nervoso Central (SNC) apresenta grande fascínio devido aos mistérios
que a ele, ainda hoje, são atribuídos. É realidade que o SNC ainda não é completamente
entendido, mas a biologia celular e a molecular podem nos auxiliar a entender a
neurofisiologia.
O SNC é composto por células gliais e neuronais que interagem entre si e
comandam o funcionamento encefálico, e possuem características distintas, o que será
discutido rapidamente.
Os neurônios antigamente eram reconhecidos como principais células do Sistema
Nervoso. No entanto, esta visão vem se modificando à medida que se conhecem melhor
as demais células que compõem o SNC. Atualmente tem-se que todas as células do SNC
são igualmente importantes para seu correto funcionamento.
Os neurônios são, de longe, as células mais estudadas, pois o interesse por seu
estudo vem anteriormente ao das células gliais (desde Santiago Ramón y Cajal em 1888).
Os neurônios são células eletricamente excitáveis responsáveis pela transmissão da
informação em cadeia, integração do estímulo e elaboração da resposta.
As células gliais compreendem a maioria das células presentes no sistema nervoso e
dividem-se em 5 categorias: astrócitos, oligodendrócitos, microglia, células de Schwann e
células ependimárias.
Os astrócitos, antes designados como meras células de sustentação do sistema
nervoso central, hoje são reconhecidos como sendo os grandes colaboradores dos
neurônios no que diz respeito à neurotransmissão. Estas células participam da síntese e
metabolismo de diversos neurotransmissores como é o caso, por exemplo, do glutamato.
Além disso, os astrócitos são os grandes responsáveis pela barreira hemato-encefálica,
pois envolvem vasos sanguíneos com seus prolongamentos e permitem a entrada seletiva
de moléculas do sangue para o Sistema Nervoso Central.
Os oligodendrócitos e as células de Schwann são responsáveis pela formação da
bainha de mielina, que envolve os axônios neuronais do encéfalo e coluna espinal,
respectivamente, a fim de aumentar a velocidade da transmissão elétrica dos neurônios.
A microglia possui papel importante na manutenção da estabilidade imunológica do
Sistema Nervoso Central. Estas células migram do sangue para o SNC durante os
primeiros estágios do desenvolvimento encefálico e estão envolvidas em uma série de
doenças neurodegenerativas como, por exemplo, a Esclerose Lateral Amiotrófica.
As células ependimárias localizam-se principalmente na borda dos ventrículos
encefálicos e do canal central, na medula espinal. São células ciliadas que parecem ter
função de células-tronco podendo originar outras células gliais e neurônios,
especificamente em casos de danos celulares.
A Figura 1.1 exemplifica os diversos tipos celulares encontrados no SNC (com
exceção das células de Schwann), assim como a relação entre elas.
122 FIGURA 1.1: Demonstração da morfologia, localização e interação entre os neurônios e os
diferentes tipos de células gliais no sistema nervoso central (retirado de
http://academic.kellogg.cc.mi.us/herbrandsonc/bio20
1_McKinley/Nervous%20System.htm).
Alguns sistemas de neurotransmisão são bastante didáticos no que diz respeito à
ilustração da função de cada tipo celular, colaborando para o entendimento da importância
da relação neurono-glial. O sistema glutamatérgico, por exemplo, necessita da
participação ativa dos astrócitos para que o glutamato liberado na fenda sináptica não se
torne tóxico, já que estas células gliais recaptam o neurotransmissor na sinapse. Além
disso, os astrócitos fazem a transformação do glutamato em seu precursor, glutamina,
disponibilizando-a para o neurônio voltar a sintetizar glutamato (Figura 1.2).
O sistema angiotensinérgico também é um bom exemplo da cooperação entre estes
dois tipos celulares (neurônios e astrócitos) já que muito provavelmente os neurônios não
produzem todos os componentes para a formação das angiotensinas (neurotransmissores)
(Figura 1.3).
123
Com o advento da biologia molecular, tornou-se mais fácil o entendimento da
contribuição dos diferentes tipos celulares nas situações de normalidade e patologia. É
através deste conjunto de ferramentas da biologia molecular que os passos de
determinada cadeia de eventos podem ser desvendados, para então interferir
especificamente no ponto de interesse e, com isso, alterar a resposta final. Entre as
técnicas mais conhecidas e avançadas em biologia molecular, este curso abordará
especialmente a hibridização in situ, o western blotting, o PCR (reação em cadeia de
polimerase), a terapia gênica, microarrays, e RNA de interferência aplicados à
neurofisiologia.
capilar
NH3
astrócito
Glutamina sintase
Gln
Glu
Gln Glutaminase
Glu
Receptor de
Glutamato
Glu
Neurônio pós-sináptico
Neurônio pré-sináptico
FIGURA 1.2: Esquema da síntese e degradação do glutamato ilustrando a
compartimentalização do sistema. Glu: glutamato; Gln: glutamina; NH3: grupo amina.
Modificado de Daikhin e Yudkoff (2000).
AOGEN
AOGEN
REN
REN
A NG I
A NG I
AT1R
AOGEN
ECA
ECA 2
astrócito
ECA
ECA
A N G II
ECA 2
ANG II (? PA)
ECA 2
ANG 1-7 (? PA)
ANG 1-7
Mas
neurônio
FIGURA 1.3: Esquema do sistema renina-angiotensina no sistema nervoso central. A
explicação detalhada encontra-se no texto. As interrogações indicam incerteza sobre a
etapa. Abreviaturas: AOGEN: angiotensinogênio; ANG: angiotensina; AT1R: receptor tipo 1
124 de angiotensina II; ECA: enzima conversora de angiotensina, Mas: receptor de
angiotensina 1-7. Baseado em Lavoie e Sigmund (2003), McKinley e colaboradores
(2003), Santos e colaboradores (2003) e Warner e colaboradores (2004).
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125
Neuroanatomia
Karen Lisneiva Farizatto ([email protected]) e Sérgio Marinho da Silva
([email protected]) - Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão
Arterial
Sistema nervoso
O sistema nervoso é o responsável pela interação do organismo com o ambiente,
sendo quem interpreta e produz respostas para estímulos gerados pelo próprio organismo
e pelo meio. Este pode ser dividido em Sistema Nervoso Central – composto pelo encéfalo
e medula espinal – e Sistema Nervoso Periférico – composto por nervos e gânglios
difundidos por todo o organismo.
Qual é a unidade estrutural básica do sistema nervoso?
Assim como qualquer outro órgão do corpo, o encéfalo é composto de células que
têm diferentes formatos e tamanhos, os neurônios e as glias, responsáveis pelos
processos que conduzem impulsos nervosos para o corpo e do corpo para a célula
nervosa.
Os impulsos nervosos são reações físicoquímicas verificadas nas superfícies dos
neurônios e seus processos. Podemos chamá-lo de comunicação celular, que consiste
em: envio de informações, sua integração e resposta. Reações semelhantes ocorrem em
muitos outros tipos de células, mas são mais notáveis nos neurônios, cujos caracteres
estruturais se destinam a facilitar a transmissão dos impulsos ao longo de grandes
distâncias. O neurônio é constituído por corpo celular, dendrito, axônio e telodendro
(Figura 2.1).
Não só os neurônios fazem parte do tecido nervoso, mas também as células gliais e
ependimárias, cujas funções básicas são é de preenchimento, nutrição e sustentação do
Sistema Nervoso.
A maioria das conexões do encéfalo com o resto do corpo ocorre através da medula
espinal - situada dentro do canal vertebral – derivada do tubo neural, estrutura embrionária
que também origina o encéfalo.
Figura 2.1: Principais estruturas de um neurônio. Fonte: www.afh.bio.br.
Desenvolvimento do Sistema Nervoso
O tubo neural consiste em um longo tubo com um canal central, composto
basicamente por neurônios e células gliais. Durante o desenvolvimento embrionário, este
canal (canal do epêndima) é cercado por três tipos de tecidos, denominados camadas
126 ependimária (canal do epêndima), do manto e marginal (que envolve externamente o tubo
neural).
No final do estágio embrionário, no momento em que surge o tecido que originará o
sistema nervoso, a região ventral do canal espinal começa a se diferenciar, sendo possível
notar o espessamento de três regiões: o prosencéfalo, o mesencéfalo e o rombencéfalo
(Figura 2.2).
A primeira região espessada da coluna espinal, o prosencéfalo, dará origem ao
telencéfalo – o cérebro propriamente dito – e ao diencéfalo – região que engloba o tálamo,
hipotálamo, glândula pineal, e outras estruturas.
A segunda região espessada, o mesencéfalo – encéfalo médio –, continuará
indiferenciada e igualmente denominada.
A terceira região espessada, rombencéfalo, se diferenciará em metencéfalo - parte
que se transformará em cerebelo - e mielencéfalo, que se tornará o bulbo encefálico.
Como o encéfalo está organizado?
Podemos classificar as estruturas que revestem o encéfalo de fora para dentro da
seguinte forma; crânio (proteção mecânica), meninges: dura-máter (camada mais externa),
aracnóide (camada média), e a pia-máter (mais interna). Entre a aracnóide e a pia-máter
há o líquido cerebroespinal, que nutre o encéfalo, além de fornecer proteção mecânica.
Figura 2.2: Estruturas do encéfalo durante a embriogênese. 1- Prosencéfalo, 2mesencéfalo, 3- robencéfalo, 4 – futura medula espinal, 5- Diencéfalo, 6- Telencéfalo, 7Mielencéfalo (futuro bulbo), 8- Medula Espinal, 9- Hemisfério cerebral, 10- Lóbulo Olfatório,
11- Nervo Óptico, 12- Cerebelo, 13- Metencéfalo. Fonte:www.afh.bio.br.
O encéfalo corresponde ao telencéfalo (cérebro), diencéfalo, cerebelo, e tronco
encefálico, que se divide em: bulbo (situado caudalmente), mesencéfalo (situado
cranialmente) e ponte (situada entre ambos) (Figura 2.3).
127
Figura 2.3: Divisões do encéfalo humano em corte sagital. Fonte:www.afh.bio.br.
O telencéfalo ou cérebro é dividido em dois hemisférios, bastante desenvolvidos nos
mamíferos, nos quais situam-se as sedes da memória e dos nervos (sensitivos e motores).
O líquido cerebroespinal circula entre os hemisférios e Sistema Nervoso Central através de
canais e reservatórios (os ventrículos). Ao todo, são dois ventrículos laterais, o terceiro e o
quarto ventrículos, localizados no encéfalo e tronco encefálico.
A camada externa do cérebro é conhecida como córtex, formada pela substância
cinzenta. O nome córtex, que significa casca em latim, lhe foi dado por sua aparência
rugosa e também pelo fato de recobrir a maior parte do restante do cérebro.
O córtex de cada hemisfério é dividido em quatro lobos, denominados a partir dos
ossos cranianos localizados acima deles. O lobo temporal está localizado nas partes
laterais do crânio, é relacionado primariamente com o sentido de audição, possibilitando o
reconhecimento de tons específicos e intensidade do som. O lobo frontal, que se localiza
na frente do encéfalo, abaixo do osso frontal do crânio, é responsável pela elaboração do
pensamento, planejamento, programação de necessidades individuais e emoção. O lobo
parietal, localizado dorsalmente, atrás do lobo frontal, é responsável pela sensação de
dor, tato, gustação, temperatura, pressão. Também está relacionado com a lógica
matemática. O lobo occipital, localizado na região da nuca, é responsável pelo
processamento da informação visual (Figura 2.4).
Em meio a substância branca, sob o telencéfalo, há grupos de corpos celulares
neuronais que formam os núcleos da base, relacionados com o controle do movimento.
128 Figura 2.4: Divisão anatômica do encéfalo. Fonte: www.afh.bio.br
O diencéfalo localiza-se sob o telencéfalo. Nele encontramos importantes estruturas,
como o hipotálamo - constituído por substância cinzenta - o principal centro integrador das
atividades dos órgãos viscerais, sendo um dos principais responsáveis pela homeostase
corporal. Ele faz ligação entre o sistema nervoso e o sistema endócrino, atuando na
ativação de diversas glândulas. É o hipotálamo que controla a temperatura corporal, regula
o apetite, o balanço de água no corpo e o sono, além de estar envolvido na emoção e no
comportamento sexual. Tem amplas conexões com as demais áreas do prosencéfalo e
com o mesencéfalo. Aceita-se que o hipotálamo desempenhe, ainda, papel nas emoções:
especificamente as partes laterais parecem envolvidas com o prazer e a raiva, enquanto a
porção mediana parece mais ligada à aversão, ao desprazer e à tendência ao riso
(gargalhada) incontrolável. De modo geral, contudo, a participação do hipotálamo é menor
na gênese (“criação”) do que na expressão (manifestações sintomáticas) dos estados
emocionais.
Todas as mensagens sensoriais, com exceção das provenientes dos receptores do
olfato, passam pelo tálamo antes de atingir o córtex cerebral. Esta é uma região de
substância cinzenta localizada entre o tronco encefálico e o cérebro. O tálamo atua como
estação retransmissora de impulsos nervosos para o córtex cerebral. Ele é responsável
pela condução dos impulsos às regiões apropriadas do cérebro onde devem ser
processados. O tálamo também está relacionado com alterações no comportamento
emocional que decorrem, não só da própria atividade, mas também de conexões com
outras estruturas do sistema límbico (que regula as emoções).
Situado atrás do cérebro está o cerebelo (Figura 2.5), que é primariamente um
centro para o controle dos movimentos iniciados pelo córtex motor (possui extensivas
conexões com o cérebro e a medula espinal). Como o cérebro, também está dividido em
dois hemisférios. Porém, ao contrário dos hemisférios cerebrais – que controlam o lavo
inverso do corpo (contralateral) – os hemisférios cerebelares estão relacionados aos
movimentos do mesmo lado do corpo (ipsilateral).
O cerebelo recebe informações do córtex motor e dos núcleos da base sobre todos
os estímulos enviados aos músculos. A partir das informações do córtex motor sobre os
movimentos musculares pretendidos e de informações proprioceptivas - que recebe
diretamente do corpo (articulações, músculos, áreas de pressão do corpo, aparelho
vestibular e olhos) – o cerebelo avalia o movimento realmente executado. Após a
comparação entre desempenho e aquilo que se teve em vista realizar, estímulos corretivos
são enviados de volta ao córtex para que o desempenho real seja igual ao pretendido.
Dessa forma, o cerebelo relaciona-se com os ajustes dos movimentos, equilíbrio, postura e
tônus muscular a cada instante.
O tronco encefálico (Figura 2.6) interpõe-se entre a medula e o diencéfalo, situandose ventralmente ao cerebelo. Possui três funções gerais; (1) receber informações
sensitivas de estruturas cranianas e controla os músculos da cabeça; (2) contém circuitos
nervosos que transmitem informações da medula espinal até outras regiões encefálicas e,
em direção contrária, do encéfalo para a medula espinhal (lado esquerdo do cérebro
controla os movimentos do lado direito do corpo; lado direito de cérebro controla os
movimentos do lado esquerdo do corpo); (3) regular a atenção, função esta que é mediada
pela formação reticular. Além destas 3 funções gerais, as várias divisões do tronco
encefálico desempenham funções motoras e sensitivas específicas.
Na constituição do tronco encefálico entram corpos de neurônios que se agrupam
em núcleos e fibras nervosas. Muitos dos núcleos do tronco encefálico recebem ou emitem
fibras nervosas que participam da constituição dos nervos cranianos, que emergem
diretamente do encéfalo.
129
Figura 2.5: Estruturas do cerebelo. Fonte: www.afh.bio.br
Figura 2.6: Estruturas do tronco encefálico. Fonte: www.afh.bio.br
Medula espinal
A medula espinal é um tecido de formato cilíndrico, ocupando a maior parte do canal
vertebral. Em corte transversal, observa-se uma região interna mais escura, em formato de
H. Esta é a região denominada substância cinzenta. A região em sua volta, mais clara, é
denominada substância branca. A substância cinzenta é originária do canal do manto e de
células da camada ependimária, enquanto as células da substância branca são originárias
da camada marginal.
A substância cinzenta é formada por neurônios não-mielinizados, encontrando-se
nela principalmente corpos celulares de neurônios, seus dendritos e células gliais. Já a
substância branca é formada por células mielinizadas e é onde encontramos os axônios
em conjunto formando tratos.
Na região dorsal da substância cinzenta, nos chamados cornos dorsais,
encontramos neurônios principalmente sensoriais – aferentes, encaminham o estímulo ao
130 encéfalo - enquanto nos cornos ventrais encontramos neurônios principalmente motores –
eferentes, encaminham o estímulo ao órgão efetor.
Na região dorsal da substância branca, os tratos que existem correm em direção ao
encéfalo, enquanto na região ventral os tratos correm em direção ao corpo. Já a região
lateral possui tratos em direção aos dois sentidos.
Na medula espinal, os corpos celulares das células nervosas agrupam-se nas
colunas cinzentas dorsais e ventrais, que são contínuas por toda sua extensão. No
encéfalo, ao contrário, os corpos celulares funcionalmente relacionados aglomeram-se na
superfície do cérebro e cerebelo onde formam o córtex desses órgãos ou juntam-se em
massas descontínuas no interior do encéfalo. Um conjunto desse tipo é denominado
núcleo, mas também pode receber o nome de centro ou corpo.
Sistema nervoso autônomo
O Sistema Nervoso Central está conectado ao resto do corpo por meio de fibras
nervosas. Estas fibras se conectam aos receptores sensoriais, a órgãos internos e
músculos. Todas essas fibras nervosas que irradiam do encéfalo e da medula espinal são
denominadas Sistema Nervoso Periférico.
Dentro do Sistema Nervoso (Figura 2.7), temos o Sistema Nervoso Autônomo.
Este é a parte relacionada ao controle da vida vegetativa, ou seja, controla funções como a
respiração, circulação do sangue, controle de temperatura e digestão. No entanto, ele não
se restringe a isto. Ele é o principal responsável pelo controle automático do corpo frente
às diversidades do ambiente. Dessa maneira, pode-se perceber que o organismo possui
um mecanismo que permite ajustes corporais mantendo assim o equilíbrio do corpo,
também chamado homeostase. Apesar de se chamar Sistema Nervoso Autônomo ele não
é independente do restante do Sistema Nervoso.
Sabe-se que o Sistema Nervoso Autônomo é constituído por um conjunto de
neurônios que se encontram na medula e no tronco encefálico. Estes, através de gânglios
periféricos, coordenam a atividade da musculatura lisa, da musculatura cardíaca e de
inúmeras glândulas exócrinas. O Sistema Nervoso Autônomo divide-se em Simpático e
Parassimpático. Os neurônios pré-ganglionares do sistema Simpático emergem dos
segmentos toracolombares (da região do tórax e logo abaixo), ao passo que os do sistema
parassimpático emergem dos segmentos encefálicos e sacrais (da região da cabeça e
logo acima dos glúteos).
Figura 2.7: Divisão básica do sistema nervoso.
Características do sistema nervoso por classes:
O encéfalo dos peixes varia muito, devido ao grande número de gêneros de peixes
existentes. De modo geral, o telencéfalo não é dividido, havendo apenas um canal, ao
invés de canais laterais como nos mamíferos.
O encéfalo dos anfíbios é notavelmente não especializado. Os hemisférios cerebrais
são mais separados entre si que nos peixes, de modo que quase não possuem um
ventrículo comum. O corpo estriado é pequeno e os lobos ópticos apresentam dimensões
pequenas a moderadas. O cerebelo ainda é rudimentar.
O encéfalo dos répteis é estreito, alongado e quase reto. Os bulbos olfativos tendem
a ser menores que os dos peixes. Os tratos olfativos são longos e o cerebelo é grande em
função da expansão.
131
O encéfalo das aves são relativamente grandes, uniformes e peculiares. Os bulbos e
tratos olfativos são, de modo geral, menores do que nos outros vertebrados. O hemisfério
cerebral das aves é superado em tamanho apenas pelo de alguns mamíferos, devido ao
enorme desenvolvimento do corpo estriado com seu neocórtex. Os nervos, tratos e
quiasmas ópticos são grandes. Nas aves e mamíferos, o cerebelo é muito volumoso,
lobulado e convoluto, formando giros e sulcos. As porções superficiais do córtex são
delgadas e a substância cinzenta tornou-se externa. Nas aves, o cerebelo é maior do que
nos outros vertebrados, salvo alguns mamíferos.
Nos mamíferos, os bulbos e tractos olfativos variam de imensos a muito pequenos.
Embora menor que nos répteis e aves, o corpo estriado é bem desenvolvido. O amplo
neocórtex representa a característica dos mamíferos, dominando o encéfalo
estruturalmente e funcionalmente. Estes são lisos em mamíferos pequenos e convolutos
na maioria dos de grande porte. Uma nova comissura, corpo caloso, liga os hemisférios.
A cobertura dorsal do mesencéfalo, denominada teto, é o local onde encontramos
em todos os vertebrados, exceto nos mamíferos, o centro primário de percepção da visão.
Nos mamíferos, a percepção visual é migrada, em grande parte, para o cérebro, apesar do
teto do mesencéfalo ainda ser funcional na visão.
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www.afh.bio.br
132 Controle neural da pressão arterial e hipertensão
João Paulo de Pontes Matsumoto ([email protected]) - Laboratório de
Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial
A manutenção dos níveis pressóricos dentro de uma faixa de normalidade depende
de variações do débito cardíaco ou da resistência periférica ou de ambos. Diferentes
mecanismos de controle estão envolvidos não só na manutenção como na variação da
pressão arterial (PA), regulando o calibre e a reatividade vascular, a distribuição de fluido
dentro e fora dos vasos e o débito cardíaco. O estudo dos mecanismos de controle da PA
tem indicado grande número de substâncias e sistemas fisiológicos que interagem de
maneira complexa para garantir a PA em níveis adequados nas mais diversas situações.
Desta forma, a dinâmica da PA é efetuada por mecanismos neuro-humorais que
corrigem prontamente os desvios dos níveis basais da PA, para mais ou para menos
(Michelini, 2007). Sendo assim, estes mecanismos reguladores da PA agem como em um
arco-reflexo: envolve receptores, aferências, centro de integração, eferências e efetores
cardiovasculares, além das alças hormonais (id).
Entre os componentes que controlam a PA, os mecanorreceptores ou
barorreceptores são os principais responsáveis pela momentânea da PA. Localizados na
crossa da aorta e no seio carotídeo (Figura 3.1), são constituídos por terminações
nervosas livres situadas na adventícea, próximas à borda média – adventicial, que são
extensamente ramificadas e apresentam varicosidades e convoluções a espaços
irregulares (Krauhs, 1979; Chapleau et al., 2001), (Figura 3.2). Mecanorreceptores são
sensíveis a distensão ou deformação da parede vascular, deformações estas que são
geradas pela passagem do pulso de pressão. Os barorreceptores transduzem esse sinal
mecânico em sinal elétrico através de canais iônicos sensíveis a deformações,
pertencentes à família das degerinas/canais epiteliais de Na+ (DEG/EnaC) e presentes
nos terminais nervosos. Estes, durante a sístole, permitem o influxo de Na+ e Ca++ que
despolarizam os terminais na proporção direta da deformação, ou seja, quanto maior a
deformação, maior o influxo de íons, maior a despolarização e vice-versa (Figura 3.2c).
Esses sinais são transmitidos ao longo das fibras aferentes mielinizadas e nãomielinizadas.
As fibras barorreceptoras aórticas (Nervo Depressor Aórtico ou de Cyon) caminham
pelo nervo vago, enquanto as carotídeas (Nervo Sinusal ou de Hering) incorporam-se ao
nervo glossofaríngeo. Há diferenças interespécies quanto à distribuição anatômica do
nervo depressor aórtico, como exemplos no cão onde a região cervical é praticamente
inseparável do tronco vagal (que contém, igualmente, o simpático cervical) ou no coelho
em que este nervo corre isoladamente.
133
Figura 3.1: A- barorreceptores no seio carotídeo / B- barorreceptores no arco aórtico
Modificado de Boron & Boulpaep, 2007.
Na pressão basal, o nível de descarga dos mecanorreceptores é intermediário entre
as situações extremas (limiar e saturação); a atividade aferente é intermitente e sincrônica
com a expansão da aorta verificada durante o período sistólico (Irigoyen et al., 2005) e a
deformação diastólica não é suficiente para gerar uma descarga de potenciais de ação. O
nível de atividade das fibras aferentes carotídeas e aórticas são, portanto, função direta
das variações instantâneas da deformação e tensão vasculares induzidas pela PA. As
informações sobre os níveis de PA, fornecidas pela frequência de descarga dos
receptores, são conduzidas ao bulbo, ou mais especificamente ao núcleo do trato solitário
(NTS) (Dampney, 1994).
O NTS desempenha papel fundamental na regulação cardiovascular, não só por ser
o local de convergência das aferências periféricas (barorreceptores, quimioreceptores,
receptores cardiopulmonares), como de aferências suprabulbares (hipotalâmicas) em sua
primeira estação sináptica, mas também por distribuir as informações aferentes em tais
núcleos bulbares de integração primária (Michelini, 2007). Desta forma, estes núcleos
recebem informação do NTS (o núcleo dorsal motor do vago (DMV), o núcleo ambíguo
(NA) e o bulbo ventro lateral caudal (BVLc)). Entretanto, o BVLc, constituído por neurônios
inibitórios gabaérgicos (Figura 3.3), projeta-se para a mais importante fonte de estimulação
simpática, o bulbo ventro lateral rostral (BVLr).
134 Figura 3.2: Reconstrução tridimensional dos barorreceptores. Modificado de Michelini,
(2007).
A resposta neural comandada pelos barorreceptores é sumarizada da seguinte
maneira: quando há elevação da PA os barorreceptores são estimulados e promovem
aumento da geração de potenciais de ação, conduzidos pelas aferências (carotídeas e
aórticas) até o NTS, excitando-o, através da liberação do neurotransmissor glutamato
(Sved & Gordon, 1994). Por sua vez, o NTS através da liberação do neurotransmissor
glutamato, ativa os neurônios do NA e DMV que, via nervo vago, promove bradicardia
reflexa e redução do débito cardíaco. Concomitantemente à ativação do NA e DMV, os
neurônios inibitórios do BVLc são ativados, inibindo, via liberação do neurotransmissor
ácido γ-aminobutírico (GABA) no BVLr, a atividade simpática.
Em situação de hipotensão os efeitos são inversos à situação de alta pressão, ou
seja, diminuição da atividade vagal e aumento da atividade simpática. Porém, no NTS há
uma grande quantidade de neurotransmissores, neuromoduladores e receptores, cada um
com sua especificidade, como a angiotensina II, adenosina, vasopressina, ocitocina, óxido
nítrico entre outros; montando uma rede complexa de aferências, que aumenta sua
complexidade, plasticidade e acurácia na regulação momento a momento da pressão
arterial.
135
Figura 3.3: Visão esquemática sagital do bulbo de rato: ▲ neurônios excitatórios, ∆
neurônios inibitórios. Retirado de Colombari, (2001).
Estima-se que a parcela de hipertensos no Brasil seja da ordem de 15% a 20% da
população adulta, chegando a ser de aproximadamente 50% nos idosos (Sociedade
Brasileira de Hipertensão, 2001). Na hipertensão há aumento no padrão de disparos dos
barorreceptores causado pela elevação da PA. Este aumento causa saturação dos
barorreceptores, diminuindo a resposta reflexa em situações de mudanças abruptas da
PA. Porém, muitos anos atrás, Krieger e colaboradores (1982) demonstraram que os
barorreceptores, após dois dias de hipertensão, conseguem se adaptar ajustando seu
padrão de disparo, mesmo com a PA elevada, ou seja, nessa situação o novo regime de
pressão é reconhecido como “normal”, de forma que as mudanças abruptas da PA serão
corrigidas. Isso é possível porque os elementos elásticos na parede do vaso à qual os
barorreceptores estão ligados sofrem uma deformação devida suas propriedades
elásticas, diminuindo a tensão exercida nos barorreceptores, estes então, voltando à
conformação de níveis normais de PA (Figura 3.4).
136 Figura 3.4: Registro da ativação dos barorreceptores. Retirado de Michelini (2007).
Reis e colaboradores (1984) propuseram que a hipertensão arterial sistêmica deve
ser resultado de um desbalanço entre a rede neural central que ativa os neurônios
simpáticos vasomotores e aqueles que os inibem, favorecendo uma alta descarga
simpática, que acarreta em elevação dos níveis pressóricos. Ainda hoje os mecanismos
envolvidos na gênese da hipertensão arterial sistêmica não estão completamente
desvendados. Porém, houve muita evolução nos conceitos e no seu tratamento, mas há
ainda muito que pesquisar nesta área tão promissora.
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137
Treinamento físico aeróbio: adaptações e benefícios
cardiovasculares e parâmetros comportamentais em
animais e indivíduos hipertensos
Regiane Xavier de Moraes ([email protected]) - Laboratório de Neurotransmissão e
Modulação Neural da Pressão Arterial
Durante a maior parte da história escrita pelos homens, sempre houve
demonstrações de interesse em entender como o corpo funciona. Antigos escritos
egípcios, indianos e chineses descrevem tentativas realizadas por médicos para tratar
várias doenças e restaurar a saúde. Esterco de camelo e pó de chifre de carneiro podem
parecer terapias bizarras atualmente, mas devemos vê-las sob a perspectiva do que se
sabia sobre o corpo humano desde os primórdios.
A fisiologia (do grego physis, natureza e logos, palavra ou estudo) é o ramo da
biologia que estuda as múltiplas funções mecânicas, físicas e bioquímicas nos seres vivos.
De uma forma mais sintética, a fisiologia estuda o funcionamento do organismo. Aristóteles
(384 – 322 a.C.) usou a palavra, com o sentido amplo, para descrever o funcionamento de
todos os organismos vivos e não apenas do corpo humano. Entretanto, Hipócrates (460 –
377 a.C.), considerado o pai da medicina, usou a palavra para descrever “o poder curativo
da natureza” e, assim, este campo de estudo tornou-se intimamente associado à medicina.
No século XVI, na Europa, a fisiologia foi considerada como o estudo das funções vitais do
corpo humano, embora, hoje em dia, o termo seja aplicado também ao estudo das funções
dos animais e das plantas.
Dentre as subdivisões independentes da fisiologia (ecofisiologia, fisiologia vegetal,
fisiologia animal, eletrofisiologia) está a neurofisiologia, que estuda a fisiologia do sistema
nervoso e a fisiologia do exercício, que se aplica aos estudos voltados aos efeitos do
exercício físico sobre o organismo.
Para tratarmos ferimentos e doenças de forma apropriada, devemos conhecer o
funcionamento do corpo humano no seu estado saudável. Desta forma, quanto maior a
compreensão dos mecanismos que guiam as funções fisiológicas dos organismos vivos,
com as suas peculiaridades e a ampla gama de detalhes e variáveis, com mais precisão
serão descobertos e efetuados os tratamentos e, concomitantemente, novas terapias
surgirão.
Neste tópico será abordada a relação do exercício físico com a hipertensão arterial,
além de atualidades e tendências em pesquisa na área da fisiologia do exercício e
doenças cardiovasculares. Além disso, será também elucidada a importância do
treinamento físico na alteração de características e hábitos comportamentais.
O sedentarismo é o principal fator de risco de mortes em função de doenças
cardiovasculares e pode contribuir para o aparecimento e/ou agravamento de doenças
cardiovasculares como a hipertensão arterial. A hipertensão arterial é uma das doenças de
maior prevalência na população brasileira e mundial. No Brasil, a Sociedade Brasileira de
Hipertensão (SBH) estima que haja 30 milhões de hipertensos, cerca de 30% da
população adulta. Entre as pessoas com mais de 60 anos, mais de 60% são acometidos.
No mundo são 600 milhões de hipertensos, segundo a Organização Mundial de Saúde.
Não se deve desprezar também a prevalência desta patologia em crianças e adolescentes.
A SBH estima que 5% da população com até 18 anos seja hipertensa, o que corresponde
a 3,5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros. Diversos estudos levantaram a
prevalência da hipertensão juvenil. No Rio de Janeiro, por exemplo, ela está em torno de
7%. Em Belo Horizonte e Florianópolis, 12% e em Salvador, 4% das crianças e
adolescentes são acometidas. Assim, é interessante analisarmos o fato de que como
ainda não há cura para a hipertensão arterial, a detecção precoce e o controle adequado
para a vida inteira são desafios para a saúde pública.
Durante os últimos tempos, o exercício físico, bem como as suas implicações e
conseqüências, tem sido extensamente estudado por cientistas de todo o mundo.
Usualmente, os exercícios aeróbicos e/ou de resistência mais recomendados e utilizados
são a caminhada, a corrida, a natação, a musculação e o ciclismo. Em animais, as
metodologias normalmente utilizadas são a roda de corrida espontânea, além da corrida
induzida em esteiras rolantes adaptadas e a natação forçada. No entanto, rodas de corrida
espontânea é o método de treinamento animal mais indicado para o estudo de parâmetros
138 fisiológicos por não causar estresse e injúria aos animais. As pesquisas buscam
compreender as ações do exercício no organismo, quais os mecanismos centrais e
periféricos que as norteiam e, principalmente, quais os benefícios que poucas horas de
mudança na rotina diária podem causar, tanto para uma pessoa ou animal saudável como
para os acometidos por patologias.
A realização do exercício físico provoca uma série de respostas fisiológicas nos
diversos sistemas corporais, em particular no cardiovascular e nervoso. Objetivando
manter a homeostasia celular, diante do aumento das necessidades metabólicas, há
incremento do débito cardíaco, redistribuição do fluxo e aumento da perfusão sanguínea
para a musculatura em atividade.
Sabe-se que exercícios físicos regulares, quando são adequadamente prescritos, e
de baixa intensidade podem provocar alterações autonômicas importantes que influenciam
o sistema cardiovascular. Entre estas, a atenuação da hipertensão arterial tanto em
humanos quanto em ratos espontaneamente hipertensos. A atividade física contribui para
a melhora do controle barorreflexo e para a redução de aproximadamente 8 e 11 mmHg
das pressões arteriais sistólica e diastólica, respectivamente, em indivíduos hipertensos
(Hagberg et al., 2000). Estudos mostram que a diminuição da pressão arterial deve-se à
diminuição do débito cardíaco que está associado à diminuição da freqüência cardíaca
pós-exercício (bradicardia de repouso) (Véras-Silva et al., 1997). Entretanto, alguns
autores propõem que exercícios crônicos provocam queda na resistência vascular
sistêmica e, consequentemente, redução da pressão arterial (Nelson et al.,1986). O
treinamento físico normaliza o tônus simpático, que controla a freqüência cardíaca em
ratos espontaneamente hipertensos (Gava et al.,1995) e diminui a atividade nervosa
simpática em humanos, ou seja, estes resultados sugerem que a atividade física pode
modular a atividade nervosa simpática para o coração e vasos periféricos explicando, em
partes, a queda pressórica.
específicas da freqüência cardíaca durante o exercício constituem um mecanismo
muito preciso de manutenção do suprimento do fluxo sanguíneo para o cérebro, coração,
pele e músculos em atividade.
Alguns neurotransmissores possuem importantes funções que garantem condições
necessárias para a realização da atividade física. Entre estes estão a vasopressina e a
ocitocina. A vasopressina e a ocitocina são produzidas em neurônios magnocelulares do
núcleo paraventricular do hipotálamo, que envia e recebe projeções do núcleo do trato
solitário. Ambos os núcleos são importantes centros de controle cardiovascular (Michelini e
Morris, 1999).
A vasopressina facilita a resposta taquicárdica durante a atividade física.
Contraditoriamente, a ocitocina diminui a taquicardia e contribui para a bradicardia. Desta
forma, estes neurotransmissores possuem efeitos específicos e opostos no controle da
freqüência cardíaca. Este balanço entre o estímulo excitatório (vasopressinérgico) e
inibitório (ocitocinérgico) provê a eficiência do ajuste fisiológico requerido
momentaneamente, já que a taquicardia é necessária para suprir a maior demanda de
fluxo sanguíneo e a maior taxa metabólica da musculatura em atividade durante o
exercício físico. Assim, no núcleo do trato solitário de animais treinados, a vasopressina e
a ocitocina atuam como moduladores da freqüência cardíaca durante a atividade física por
potencializar ou moderar, respectivamente, a taquicardia (Michelini, 2001).
É importante enfatizar que as vias vasopressinérgicas e ocitocinérgicas do tronco
encefálico não são os únicos mecanismos centrais envolvidos na gênese da taquicardia.
Assim, projeções descendentes vasopressinérgicas e ocitocinérgicas do núcleo
paraventricular do hipotálamo para o núcleo do trato solitário são parte do mecanismo
central de modulação do reflexo barorreceptor no controle da freqüência cardíaca durante
o exercício e outras condições ambientais (Michelini, 2001).
Podem ser observadas ainda outras alterações cardiovasculares decorrentes do
treinamento físico, tais como a hipertrofia cardíaca. Exercícios aeróbicos, por meio do
aumento de volume sanguíneo, podem estimular adaptações na morfologia cardíaca,
metabolismo energético e funções. Estes podem produzir hipertrofia cardíaca excêntrica,
na qual o aumento da massa ventricular é proporcional ao aumento da câmara cardíaca
(Frohlic et al., 1992). Trata-se de uma resposta fisiológica e compensatória fundamental
para suportar o aumento da carga de trabalho. Estas alterações estruturais, morfo-
139
funcionais e metabólicas do coração, induzidas pelo exercício, resultam em maior volume
de ejeção sistólica (que se torna mais vigorosa) e em maior esvaziamento ventricular.
Entretanto, a hipertrofia cardíaca pode se instalar em resposta a certos estados
patológicos crônicos como e hipertensão arterial. Na hipertrofia concêntrica o aumento da
massa ventricular não é proporcional ao aumento da câmara cardíaca. Desta forma, o
trabalho cardíaco é feito contra uma excessiva resistência ao fluxo sanguíneo. O coração
hipertrofiado pode falhar e tornar-se incapaz, em casos mais graves, de prover o fluxo
sanguíneo normal para o indivíduo hipertenso.
Vários são os fatores desencadeantes da hipertensão arterial. Entre eles, o excesso
de peso, a alimentação rica em gordura e sal e pobre em frutas, verduras e legumes, o
tabagismo, o alcoolismo e os fatores genéticos. Outros fatores importantes são os
relacionados aos comportamentos e à capacidade de reação em diversas situações
cotidianas. Assim, os comportamentos que atualmente acometem quase a totalidade das
pessoas entre crianças e adultos, como o estresse e a ansiedade, podem desencadear ou
acentuar o estado hipertensivo. A ansiedade, o estresse e a hiperatividade são acentuadas
características comportamentais de ratos espontaneamente hipertensos. Desta forma,
surgiu a necessidade de verificar as ações do exercício físico espontâneo (em rodas de
corrida) sobre parâmetros fisiológicos cardiovasculares e sobre parâmetros
comportamentais, na ânsia de analisar como o treinamento físico pode ajudar e colaborar
para a melhora da qualidade de vida de animais e indivíduos acometidos pela hipertensão
arterial. Interessantemente, foi observado em 2005 (Moraes, R.X. in dissertação de
mestrado) que ratos espontaneamente hipertensos efetivamente treinados em rodas de
corrida espontânea apresentam diminuição do medo/ansiedade, estresse e hiperatividade.
Para este fim, neste mesmo estudo foi padronizado um protocolo de treinamento físico em
rodas de corrida espontânea, um dado até então ausente na literatura, para que fosse
possível verificar as ações do treinamento físico espontâneo sobre tais parâmetros.
Desde os primórdios, o estudo da psicopatologia experimental tem se ocupado com
os transtornos de ansiedade e depressão através de modelos animais de tais patologias.
Considera-se que a ansiedade e a depressão são exacerbações não adaptativas da
reação de defesa (Graeff, 1994). A reação de defesa é o conjunto de diversas estratégias
comportamentais selecionadas ao longo da evolução que amplia as possibilidades de
sobrevivência em situação de perigo. Entre mamíferos, os padrões de resposta a estas
situações são parecidos em sua topografia e aparentados em seus mecanismos
fisiológicos de deflagração (Blanchard et al., 1993).
A reação de defesa apresenta-se como uma seqüência de passos na qual a
proximidade do estímulo aversivo ambiental determina variações topográficas e
fisiológicas observáveis e que podem ser classificadas em três níveis, relacionados com
substratos neurais diferenciados, que podem caracterizar as seguintes emoções:
apreensão ou ansiedade generalizada no nível um, medo no nível dois e pânico no nível
três (Blanchard e Blanchard, 1988). Estes níveis relacionam-se com quatro estratégias:
imobilização (freezing), fuga, agressão defensiva ou submissão (Zangrossi Jr, 1996;
Blanchard e Blanchard, 1988).
O primeiro nível de defesa ocorre quando o perigo é incerto, como em situações de
novidade do ambiente ou quando estímulos potencialmente perigosos ocorreram
anteriormente no ambiente. Neste nível, o comportamento comum do animal é uma
aproximação lenta, receosa e tímida do estímulo aversivo. No segundo nível de defesa,
um estímulo aversivo e potencialmente danoso é identificado e está a uma distância crítica
do animal. Entre os comportamentos observados inclui-se o congelamento, que é a
inibição de comportamentos coerentes e a fuga ou esquiva do ambiente. O terceiro nível
implica em contato estrito do animal com o estímulo aversivo. O principal comportamento
observado neste nível é o de fuga desabalada ou agressão defensiva (Blanchard et al.,
1986).
A manutenção destes mecanismos básicos em praticamente todas as espécies de
mamíferos indica o seu alto valor adaptativo. A expressão destes mecanismos, no entanto,
pode ser moldada por situações ambientais diversas, tais como, fatores ligados ao
desenvolvimento, familiaridade com o estímulo ou ainda por ações de variáveis
fisiológicas, como níveis de hormônios ou drogas, lesões, fatores genéticos, etc.
(Blanchard e Blanchard, 1988). Isto dá a estes comportamentos a capacidade de serem
140 extremamente plásticos, podendo ser modulados de acordo com situações vivenciadas
pelos animais ou com estímulos como o treinamento físico, por exemplo.
Para abordar experimentalmente aspectos que representem mecanismos ou
sintomas ansiosos em animais de laboratório, que correspondam ao que é encontrado na
ansiedade humana, foram desenvolvidos inúmeros modelos animais comportamentais.
Estes modelos, geralmente, têm como objetivo enfocar aspectos comuns de
ansiedade/medo e defesa encontrados em seres humanos e animais, tais como alteração
na defecação e micção, reações de sobressalto, alterações na resposta de latência,
piloereção, tremores, aumento da PA, entre outros (Wise e Taylor, 1990).
Em animais de laboratório, o estado de ansiedade eliciado pelos modelos
experimentais é avaliado com base nos mesmos parâmetros utilizados na avaliação da
ansiedade humana, ou seja, na intensidade, duração, freqüência e/ou padrão das
respostas defensivas.
Entre os modelos animais de ansiedade mais utilizados estão o labirinto em cruz
elevado e o labirinto em T elevado.
O labirinto em T elevado, validado farmacologicamente por Graeff e colaboradores
(1998), representa um derivado do labirinto em cruz elevado, que foi modificado a fim de
testar simultaneamente o medo condicionado e incondicionado no mesmo aparelho (Graeff
et al., 1993). Os resultados são obtidos separadamente em cada um dos braços do
aparato.
Trata-se de um modelo etologicamente fundamentado, no qual o pressuposto teórico
é a manipulação do medo incondicionado, ou seja, de medos inatos. Esses medos estão
relacionados com a sobrevivência do indivíduo como, por exemplo, no confronto com o
predador (Blanchard et al., 1986). É bem demonstrado que o fator motivacional crítico, no
qual este modelo etológico se baseia é a natureza aversiva aos braços abertos (Zangrossi
e Graeff, 1997).
Este modelo experimental foi desenvolvido para investigar os efeitos de drogas
ansiolíticas e analisar diferentes tipos de ansiedade e, ao mesmo tempo, verificar a
memória (Viana et al.,1994). Também permite mensurar respostas relacionadas com
medos condicionados ou inatos no mesmo animal, além de permitir simultânea verificação
da memória para estes comportamentos (Conde et al.,1999).
Com este teste é possível analisar a esquiva inibitória no braço fechado, que
representa o medo condicionado, e a fuga, nos braços abertos, que representa o medo
inato ou incondicionado. Colocar o animal várias vezes no braço fechado proporciona a
exploração do labirinto e o aprendizado da esquiva inibitória dos braços abertos. Por outro
lado, colocar o animal no final do braço aberto proporciona uma resposta de fuga para o
braço fechado. A re-exposição dos animais a estas situações após um intervalo de tempo,
permite verificar a memória para estes comportamentos emocionais (Conde et al. 1999).
Estudos em humanos e animais têm revelado alterações comportamentais e
neuropsicológicas associadas aos exercícios físicos regulares. O treinamento físico
melhora o humor e tem efeitos ansiolíticos e antidepressivos sobre as fobias e a
depressão de pacientes (Simons e Birkimer, 1988; Dimeo et al., 2001). Estes resultados
são de grande valia, sobretudo pelo fato de que a depressão e a ansiedade são desordens
comportamentais que atingem a sociedade como um todo. Nos últimos anos, o avanço
tecnológico, assim como as pressões sociais, políticas e econômicas, têm contribuído para
o aumento de problemas mentais de ordem emocional. Em situações emocionais, o ser
humano pode experimentar basicamente três emoções principais, em resposta a uma
situação ameaçadora; raiva dirigida para fora (equivalente à cólera), raiva dirigida contra si
mesmo (depressão) e ansiedade ou medo (McGauch et al., 1977). Encontrando-se em um
estado de alerta, o organismo exibe uma resposta de luta ou fuga ao agente estressante.
Ocorre que a prática de exercícios físicos aeróbios pode produzir efeitos antidepressivos,
ansiolíticos e proteger o organismo dos efeitos deletérios do estresse na saúde física e
mental (Salmon, 2001).
Exercícios voluntários em rodas de corrida por quatro semanas alteraram o perfil
comportamental de camundongos levando a uma diminuição da ansiedade e impulsividade
de forma a proteger o organismo dos efeitos deletérios do estresse (Binder et al., 2004).
Ainda sobre os aspectos psicobiológicos, a literatura relata forte correlação entre a
melhora da capacidade aeróbia e a melhora das funções cognitivas, como melhor tempo
141
de reação, maior força muscular, agilidade motora, melhora do humor e memória,
especialmente em idosos (Williams e Lord, 1997).
Por fim, o exercício físico crônico de intensidade baixa a moderada possui
implicações clínicas importantes já que pode reduzir ou mesmo abolir a necessidade de
uso de medicamentos anti-hipertensivos, diminuindo, desta forma, o custo do tratamento,
extinguindo efeitos colaterais e, principalmente, promovendo melhora do quadro clínico de
indivíduos hipertensos. Assim, pode ser tido como uma importante conduta não
farmacológica no tratamento e controle da hipertensão arterial. Somam-se a estas
descobertas o fato de que o treinamento físico colabora não só para a manutenção e
conquista da saúde cardiovascular mas também para a saúde mental, já que atua
beneficamente na redução de comportamentos maléficos e deletérios, que prejudicam os
sistemas corporais e podem levar à graves patologias psicossomáticas. Finalmente, uma
mudança na rotina diária para o desenvolvimento da prática de esportes, além de ser
prazeroso e desestressante, colabora para a melhora na qualidade de vida bem como para
a manutenção e ganho da saúde física e mental de indivíduos hipertensos e saudáveis.
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142 Neurofisiologia do abuso de drogas
Andreas Betz ([email protected]) - Laboratório de Neurotransmissão e Modulação
Neural da Pressão Arterial
O que são drogas? Parece uma resposta fácil. Porém, para definir que substância é
considerada droga, ela precisa ter pelo menos algumas características. Você pode dizer
que é considerada droga a substância que altera a fisiologia de um organismo. Porém, só
isso não basta, já que vitaminas, por exemplo, possuem esta propriedade. Pode-se dizer
também que drogas são substâncias tóxicas, mas também esta definição não basta. A
melhor maneira de definir uma substância como droga seria, portanto, a soma de algumas
propriedades e também usar a intuição para taxar uma substância como tal.
Todas drogas tem nomes químico, genérico e comercial. Como exemplo, irei usar
uma droga tranqüilizante bem conhecida: o diazepam. Diazepam é o nome genérico do 7cloro-1-metil-5-fenil-1,3-dihidro-2H-1,4-benzodiazepin-2-ona (nome químico) ou Valium®
(nome comercial). A mesma droga pode ter alguns nomes comerciais, por causa da
presença de várias empresas vendendo o mesmo produto.
As drogas possuem várias vias de administração. Através da via oral, a droga é
ingerida e absorvida pelo sistema digestório. Na via subcutânea, a droga é administrada
sob a pele ou embaixo do tecido cutâneo. Na via intramuscular, a droga é administrada
através da inserção de uma agulha no músculo esquelético, geralmente escolhidos como
alvo o deltóide ou o glúteo máximo. Na via intraperitoneal, a droga é administrada através
de uma agulha inserida na região abdominal onde se localizam os órgãos viscerais. Na via
intravenosa, a droga é administrada através da veia do indivíduo, diretamente na corrente
sanguínea. Ainda podemos citar a administração de drogas via inalação, onde a droga é
absorvida diretamente pelos pulmões; injeções intracerebroventriculares, nas quais a
droga é injetada diretamente nos ventrículos cerebrais e também injeções intracerebrais,
na qual a droga é administrada diretamente em alguma área do cérebro.
A maioria das drogas é metabolizada no fígado, podendo se transformar em
subprodutos que podem ou não serem ativos. A maioria delas também é excretada pelo
corpo através dos rins, fezes, suor e saliva.
Quando uma droga é desenvolvida, ela passa por vários testes até ser aprovada
para o consumo humano, se for considerada funcional e segura. Um método muito usado
para verificar as propriedades terapêuticas das drogas é a utilização de animais
experimentais e vários protocolos diferenciados. Através destes protocolos pode-se
verificar, por exemplo, alterações no comportamento e em estruturas cerebrais que podem
levar a um entendimento maior sobre a substância a ser analisada.
As drogas podem gerar estados de tolerância, sensibilização e abstinência. A
tolerância é um fenômeno que ocorre através da administração, que faz com que o
indivíduo necessite de maior quantidade de substância para conseguir o efeito esperado
da droga. Ainda não se sabe qual o mecanismo responsável por este fenômeno, porém,
sabe-se que após a descontinuidade do uso, a tolerância desaparece.
A sensibilização é uma situação na qual a repetida administração da droga leva a um
aumento nos efeitos dela, ou seja, uma ação inversa à descrita na tolerância. Sua
ocorrência não é muito comum. Como na tolerância, a sensibilização desaparece após a
descontinuidade do uso.
A abstinência se dá através da descontinuidade ou diminuição do uso de drogas que
levam à mudanças na fisiologia do indivíduo. Ela pode ocorrer alguns minutos depois da
última administração da droga ou após algum tempo sem a utilização da mesma. Um dos
mais conhecidos sintomas da abstinência é a “ressaca”.
Como as drogas agem? As drogas atuam principalmente na neurotransmissão
encefálica. Elas alteram e modulam a comunicação entre os neurônios, através de
interações com os neurotransmissores e seus receptores. Neurotransmissores são
substâncias como monoaminas e peptídeos, entre outros, que são os responsáveis pela
comunicação entre as células do sistema nervoso. A maioria dos neurotransmissores se
encontra em vesículas sinápticas, presentes em terminais axônicos, próximos da fenda
sináptica (Tabela 5.1).
143
Acetilcolina
Monoaminas
Adrenalina
Noradrenalina
Dopamina
Serotonina
Histamina
Aminoácidos
Glicina
Glutamato
Prolina
Ácido gama-aminobutírico (GABA)
Peptídeos
Substância P
Fatores neurotróficos
Outros
Encefalinas
Endorfinas
Vasopressina
Insulina
Prolactina
Hormônio do crescimento (GH)
Tabela 5.1 – Alguns neurotransmissores do Sistema Nervoso Central
As drogas podem atuar de várias maneiras agindo, por exemplo, como agonistas de
neurotransmissores, mimetizando a ação de neurotransmissores endógenos (nicotina);
inibindo a recaptação de neurotransmissores, ou seja, fazendo com quem eles
permaneçam por mais tempo nas fendas sinápticas (cocaína); bloqueando receptores e,
consequentemente, inibindo a ação dos neurotransmissores (Prozac) entre outras formas.
A maioria das drogas causa o vício. O vício é uma é uma síndrome comportamental
na qual a procura pela droga e o seu uso dominam o comportamento do indivíduo. A droga
de abuso (droga usada sem fim terapêutico) possui um grande poder motivacional, pelo
prazer e euforia que pode proporcionar, porém suas conseqüências podem ser danosas
aos seus usuários e familiares.
A principal via relacionada com o vício de drogas é a mesolímbica de reforço. Ela é
composta por dois núcleos principais: a área tegmental ventral e o nucleus accumbens. A
área tegmental ventral possui neurônios dopaminérgicos que se projetam para o nucleus
accumbens, liberando dopamina neste núcleo, o que inicia o processo de adição (Figura
5.1).
144 Figura
5.1:
Via
mesocorticolímbica
www.humanillnesses.com/.../Addiction.html
de
reforço.
Fonte:
Após a ativação deste sistema, há a interação de vários outros núcleos encefálicos
que vão interpretar e modular uma resposta ao estímulo apresentado. Entre os principais
núcleos, destacam-se a amígdala (relacionada com aprendizado associativo) e o córtex
pré-frontal (relacionado com o comportamento motivacional). A interação destes núcleos
leva ao comportamento de busca e abuso de drogas.
Há uma gama enorme de drogas que são utilizadas tanto para abuso quanto para
fins terapêuticos e, muitas vezes, a diferença entre um e outro se deve apenas à
quantidade da droga ingerida.
Estimulantes Psicomotores
Os estimulantes psicomotores são drogas que agem principalmente sobre sinapses
adrenérgicas, noradrenérgicas, dopaminérgicas e serotoninérgicas. Entre eles, os mais
conhecidos são: metilfenidato (Ritalina®), cocaína, anfetamina, metanfetamina e efedrina
(Franol®). Cocaína e efedrina são encontradas na natureza, enquanto o metilfenidato é
sintetizado em laboratório.
Estas drogas são administradas via injeção intravenosa e intramuscular, inalação ou
via oral. Elas atravessam rapidamente a barreira hemato-encefálica alterando a
neurotransmissão do indivíduo. A anfetamina, metanfetamina e efedrina atuam inibindo a
recaptação de dopamina pelos neurônios e também aumentando a liberação de
neurotransmissores. A cocaína atua somente inibindo a recaptação de dopamina pelos
neurônios. Elas são muitas vezes consumidas com outras drogas, o que leva a um
aumento do seu efeito prazeroso.
As drogas estimulantes causam sensação de bem-estar e excitação, e levam à
mudanças fisiológicas como vaso e broncodilatação, taquicardia, insônia, irritabilidade,
perda de apetite, agressividade, psicose, entre outros sintomas. Elas podem levar à morte
por depressão de núcleos respiratórios centrais, causando parada cardio-respiratória.
Álcool
O álcool é uma das drogas mais usadas no mundo. Foram encontradas evidências
de sua fabricação na China há mais ou menos 9.000 anos (McGovern et. al., 2004). O
álcool é produzido por fermentação ou destilação, sendo que as bebidas destiladas
possuem maior teor alcoólico (em torno de 40%). Ele é administrado oralmente e sua
absorção é feita através do sistema digestório. A maioria das moléculas de álcool é
metabolizada no fígado e o restante é eliminado pelo organismo junto com o suor, urina e
fezes, entre outros.
O álcool altera vários sistemas de neurotransmissão como o serotoninérgico
(receptor 5-HT3), GABAérgico, glutamatérgico e opióide (Froehlich & Li, 1993).
145
Alguns efeitos do álcool são: vasodilatação periférica, euforia, desinibição, diurese e
letargia; atua como sedativo, levando indivíduos a terem mais sono (porém diminui o
tempo de sono REM), altera a visão e o tempo de reação, além de também causar perda
de memória.
Opióides
São drogas derivadas da papoula. Possui dois ingredientes ativos: a morfina e a
codeína. A heroína é uma droga derivada da morfina e tem capacidade de chegar ao
cérebro mais rápido e em maior concentração do que a morfina. Hoje em dia existe uma
enorme quantidade de opióides sintéticos, geralmente utilizados por hospitais, como
potentes anestésicos.
A heroína foi produzida pela primeira vez em 1898. Após a sua administração, que
pode ser nasal, intravenosa e por vapor de fumaça (broncoaspiração), ela atua no cérebro,
principalmente em áreas relacionadas com a dor e necessidades básicas do indivíduo,
agindo em receptores opióides, que se ligam normalmente à endorfinas e encefalinas.
Os opióides causam sensação de bem estar, acompanhada de vários efeitos
colaterais como náusea, vômito, constipação, alterações na visão e audição, alucinações,
além de deprimir núcleos bulbares responsáveis pelo controle respiratório e cardíaco,
podendo levar o individuo a morte.
Nicotina
A nicotina é um alcalóide encontrado nas folhas de tabaco e é um dos maiores
responsáveis por mortes de causas não naturais e em todo o mundo.
Ela causa aumento da pressão arterial, da frequência cardíaca, da atividade motora,
vasoconstrição, náusea, diminuição do apetite, entre outros sintomas (McBride et. al.,
1998).
A nicotina atua como agonista de receptores nicotínicos de acetilcolina, alterando a
maquinaria cerebral. Ela atravessa a barreira hemato-encefálica e chega ao cérebro em
torno de dez segundos após sua administração. Uma única exposição à nicotina aumenta
a liberação de dopamina no nucleus accumbens por mais de uma hora (DiChiara &
Imperato, 1998) através da estimulação, via receptores nicotínicos de acetilcolina, de
neurônios dopaminérgicos da área tegmental ventral (circuito de recompensa).
Esta droga também causa alterações na concentração, memória e humor.
A nicotina pode causar aterosclerose, câncer de pulmão, boca e garganta, entre
outros sintomas que, normalmente, só aparecem após longo período de uso.
Maconha
A maconha é utilizada há muito tempo (em torno de 6.000 anos). O ingrediente ativo
da maconha é o delta-9-tetrahidrocanabinol. Ela é encontrada em três espécies de plantas:
Cannabis sativa, Cannabis indiana e Cannabis ruderalis (Grinspoon & Bakalar, 1997).
A maconha pode ser administrada oralmente (o que resulta em um efeito mais lento)
ou fumada (que causa um efeito rápido). Ela age no sistema canabinóide cerebral, que
responde pelos canabinóides endógenos anandamida e 2-araquidonilglicerol. Porém é
muito mais potente que os canabinóides endógenos.
A maconha causa euforia, alteração na sensibilidade auditiva, visual e tátil (R. T.
Jones, 1978), perda da percepção de tempo e alteração na criatividade. Seus efeitos
adversos podem ser: olhos vermelhos, boca seca, fome, aumento da freqüência cardíaca
e temperatura corporal, náusea, insônia e dores de cabeça, déficit de atenção e até
reações psicóticas.
Contudo, pode ter efeitos terapêuticos em casos clínicos como glaucoma (Grinspoon
& Bakalar, 1997) bem como em problemas motores e espasticidade (Braude & Szara,
1979, vol 2).
Alucinógenos
Os mais conhecidos membros deste grupo de drogas são o LSD (dietilamida do
ácido lisérgico), a mescalina (derivada de cactos) e o ecstasy. Estas drogas agem no
sistema nervoso central, na neurotransmissão serotoninérgica e dopaminérgica. Elas
podem ser administradas por via oral, sublingual, injetadas ou inaladas, e praticamente
não produzem efeitos físicos.
146 O LSD geralmente é consumido na dose de 100 a 300µg. Cerca de 1% da dose
chega ao cérebro. É degradado pelo fígado e eliminado pelas fezes. Os efeitos variam
bastante, podendo provocar ilusões, alucinações, grande sensibilidade sensorial (cores
mais brilhantes, percepção de sons imperceptíveis), “flashbacks”, paranóia, alteração da
noção temporal e espacial, confusão, sentimento de bem-estar, experiências de êxtase,
psicose por “má viagem” entre outros.
Estas drogas possuem uma grande tolerância quando administradas repetidamente.
Porém, não apresentam abstinência, já que raramente são administradas por muito tempo.
Drogas psicoterápicas
Entre as drogas psicoterápicas, há três grupos principais: os tranqüilizantessedativos, os antidepressivos e os antipsicóticos.
Tranqüilizantes-sedativos: existem dois grupos principais – os barbitúricos e os
benzodiazepínicos. Os barbitúricos foram as primeiras drogas tranqüilizantes
desenvolvidas, porém, apresentavam alguns efeitos não desejáveis e tinham uma potente
ação depressora em núcleos bulbares que, com uma dose mais elevada, poderia levar o
individuo à morte. Com o desenvolvimento dos benzodiazepínicos, os barbitúricos foram
praticamente deixados de lado. Os benzodiazepínicos mais conhecidos são o diazepam
(Valium®), clonazepam (Rivotril®) e um de grande interesse é o flunitrazepam (Rohypnol®
ou “boa noite Cinderela”) por seu uso não medicinal.
Estas drogas agem no sistema nervoso central potencializando as sinapses
GABAérgicas, ou seja, inibindo a comunicação do sistema nervoso podendo também, em
alguns casos, alterar a recaptação de adenosina, outro receptor inibitório. Seus efeitos
incluem diminuição da atenção, perda de memória e de habilidades motoras em geral.
Antidepressivos: existem vários tipos de antidepressivos. Entre eles destacam-se os
inibidores de monoamina-oxidase (MAOis), os tricíclicos (ATCs), os inibidores de
recaptação de serotonina (SSRIs) e os inibidores de recaptação de noradrenalina (SNRIs).
Todos eles agem de acordo com a teoria de depressão das monoaminas, na qual a
depressão seria o resultado de uma menor ativação dos sistemas monoaminérgicos no
cérebro. Entre esses vários tipos, os mais conhecidos e difundidos no mercado são a
sertralina (Zoloft®) e a fluoxetina (Prozac®). Além destes, o lítio é usado no tratamento de
transtornos bipolares. A fluoxetina pode também ser usada em tratamento de
personalidade obsessivo-compulsiva (Gitlin, 1993).
A taxa de absorção destas drogas varia bastante e a maior parte delas é degradada
pelo fígado.
Os efeitos reportados mais comuns do uso de antidepressivos são: boca seca,
constipação, tontura, arritmia cardíaca, náusea, dor de cabeça, redução do sono REM e
suor excessivo. Alguns pacientes reportaram sintomas extrapiramidais.
Alguns SSRIs parecem ser eficientes no tratamento do vício em outras drogas,
inclusive o alcoolismo.
Antipsicóticos: existem várias hipóteses sobre a psicose, porém, a mais aceita é a
dopaminérgica, a qual preconiza que a esquizofrenia é o resultado do excesso da
atividade da dopamina no cérebro.
Os antipsicóticos são drogas chamadas, às vezes, de grandes tranqüilizantes.
Existem dois grupos de antipsicóticos – os típicos (ex: chlorpromazina; haloperidol), que
atuam bloqueando os receptores D2 de dopamina e os atípicos (ex: clozapina; risperidona;
quetiapina), que atuam bloqueando os receptores D3 e D4 de dopamina além do receptor
5-HT2A de serotonina.
A esquizofrenia (transtorno psicótico) é caracterizada pela falta de contato com a
realidade. A pessoa parece ficar em um mundo à parte, não consegue interpretar eventos,
e é acometida por alucinações.
Os efeitos dos antipsicóticos variam muito. Entre eles podemos citar os sintomas da
doença de Parkinson (efeitos extrapiramidais) causados em 40% dos pacientes que usam
medicamentos típicos, os movimentos constantes compulsivos (acatesia) e os distúrbios
de movimento (discinesia); além de alterações na frequência cardíaca, pressão arterial e
possíveis ataques epiléticos, entre outros. A clozapina está relacionada com uma doença
fatal chamada agranulocitose. Porém, os antipsicóticos não são drogas letais, sendo
praticamente impossível obter uma overdose.
147
Referências
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McKim W. Drugs and Behavior: An Introduction to Behavioral Pharmacology (6th Edition),
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Jersey:
Prentice Hall, 2006.
148 Fisiologia aplicada
neurodegenerativas
a
reabilitação
de
doenças
Fernanda Beatriz Monteiro Paes Gouvêa ([email protected]) - Laboratório
de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial; Colaboração do Prof. Dr.
Leandro Cortoni Calia – Professor titular da disciplina de Neurologia da Faculdade de
Medicina da Universidade de Santo Amaro.
6.1. Introdução ao Sistema Nervoso
O Sistema Nervoso é dividido funcionalmente em Somático e Visceral. O Sistema
Nervoso Somático pode ser aferente ou eferente, enquanto o Visceral pode ser aferente,
eferente simpático e eferente parassimpático. O Sistema Nervoso também é dividido em
Periférico e Central, como mostra a figura 6.1:
Figura 6.1: Divisão funcional do Sistema Nervoso
O sistema Nervoso Somático relaciona o organismo com o ambiente. A parte
aferente leva impulsos dos receptores periféricos aos centros nervosos. O componente
eferente leva a informação dos centros nervosos aos músculos estriados esqueléticos,
gerando movimentos. Por sua vez, o componente Visceral, através da parte aferente, leva
informações das vísceras para áreas específicas do Sistema Nervoso, e a eferente
transmite impulsos gerados em centros nervosos até as vísceras (Figura 6.2).
149
Figura 6.2: Sistema Nervoso Somático.
Os nervos unem o Sistema Nervoso Central aos órgãos. Quando a união é feita com
o encéfalo, chamamos nervos cranianos; se a ligação é feita com a medula, chamamos
nervos espinais. Gânglios são células nervosas agrupadas, localizadas nas proximidades
do Sistema Nervoso Central, ou próximo/dentro das paredes das vísceras. Muitas fibras
têm origem em neurônios ganglionares. Os nervos espinais são originados em neurônios
medulares ou ganglionares. Podem ser sensitivos (gânglios das raízes dorsais) ou motores
(raízes ventrais). Já os nervos cranianos são originados em núcleos encefálicos ou em
gânglios próximos do crânio (Figura 6.3).
O Sistema Nervoso Central manda informação para músculo esquelético, músculo
cardíaco, músculos das paredes das vísceras e glândulas. No alvo, o impulso é
transformado em ações que liberam energia: contração muscular ou secreção glandular.
O Sistema Nervoso Central possui envoltórios que protegem mecanicamente contra
choques e nutrem, além de propiciar meio ótimo para o funcionamento neural: são as
chamadas meninges (Figura 6.5).
150 Figura 6.3: Nervos cranianos. Fonte: http://www.afh.bio.br/nervoso/nervoso4.asp#medula
Figura 6.4: Sistema Nervoso Autônomo. Fonte: LOPES, SÔNIA. Bio 2. São Paulo, Ed.
Saraiva, 2002 in www.afh.bio.br/nervoso/nervoso4.asp#medula
151
Figura 6.5: Meninges. Fonte: www.nenosolar.com.br/escolademediuns/caixacran.jpg
No Sistema Nervoso existem dois tipos de fibras e também dois tipos de áreas: a
chamada substância branca, com maior concentração de fibras nervosas envoltas por
gordura e a substância cinzenta que possui maior concentração de fibras nervosas sem
envoltório gorduroso.
Figura
6.6:
Segmento
da
http://pt.wikipedia.org/wiki/Nervos_raquidianos
http://thalamus.wustl.edu/course/spinal.html
medula
espinal.
Fontes:
e
No córtex cerebral e cerebelar a substância cinzenta é exterior à branca. Em outras
regiões é o oposto.
6.1.1. Unidades estruturais e funcionais do Sistema Nervoso.
6.1.1.1. Neurônios
O neurônio produz e veicula sinais capazes de codificar tudo o que sentimos dentro
e fora do organismo e tudo o que pensamos. Operam em grandes conjuntos (circuitos) nos
quais cada neurônio faz uma coisa e todos realizam juntos uma função.
As informações aferentes saem por axônios e vão para outras células do circuito
neural. Por isso, o axônio tem modificações que se ligam aos dendritos de outros
neurônios. Os axônios de neurônios semelhantes por vezes se juntam em tratos ou feixes
no Sistema Nervoso Central ou nervos no Sistema Nervoso Periférico.
Cada neurônio possui vários prolongamentos que recebem informações, mas
apenas um que as manda. Sua membrana plasmática é especializada em produzir e
propagar impulsos elétricos. Possui diferentes tipos de canais iônicos (macromoléculas
embutidas na membrana, capazes de filtrar seletivamente a passagem de íons para dentro
e para fora da célula).
152 Figura 6.7: Neurônio. Fonte:www.geocities.com/malaghini/neuron2.gif
Durante um potencial de repouso, o interior da célula tem carga elétrica negativa em
relação ao meio extracelular e esta diferença é mantida pelo fluxo constante de íons.
Quando ocorre inversão da polaridade da membrana, através da abertura de canais de
sódio, seguida pela abertura dos canais de potássio, que se propaga ao longo do axônio,
temos um potencial de ação – sinal elétrico utilizado como unidade de informação.
Figura
6.8:
Membrana
celular
e
Fonte:www.cerebromente.org.br/n10/fundamentos/pele2b.gif
canais
iônicos.
Os neurônios são formados pelo soma, axônios e dendritos. O soma é formado por
citoplasma e membrana citoplasmática. O citoplasma possui meio denso (citosol) e
proteínas que formam o citoesqueleto. O Citoesqueleto mantém a forma, permite a
mobilidade de neurônios jovens durante o desenvolvimento; emite e retrai prolongamentos
neuronais e transporta moléculas sinalizadoras, nutrientes, fatores tróficos e vesículas
membranosas. É formado por três estruturas principais: microtúbulos (tubulina e MAP),
neurofilamentos (diferentes proteínas enroladas em trança) e microfilamentos (actina)
responsáveis pelos movimentos celulares.
Como possuem intensa atividade protéica, o retículo endoplasmático rugoso é bem
pronunciado nos neurônios. O DNA nuclear de neurônios adultos fica disperso no núcleo e
não se agrupa. No núcleo ocorre a síntese do RNAm, que forma réplicas do DNA para a
síntese de proteínas. O RNAm sai do núcleo para o citoplasma e se junta aos ribossomos.
Alguns desses ribossomos se ligam à superfície externa do retículo endoplasmático
rugoso enquanto outros se associam ao RNAm. Essa união entre RNAm e ribossomo é
chamada polissomo, e é onde ocorre a síntese de proteínas.
Algumas proteínas sintetizadas voltam ao núcleo, algumas ficam no citosol e outras
153
são armazenadas no retículo endoplasmático rugoso para posterior transporte. Do retículo
endoplasmático rugoso saem pequenas vesículas que depois se fundem com o aparelho
de Golgi que emite, por sua vez, vesículas transportadas pelos microtúbulos dos axônios e
dos dendritos. Tanto o retículo endoplasmático rugoso quanto o aparelho de Golgi contêm
enzimas que regulam a síntese de neurotransmissão pelos próprios neurotransmissores e
também por componentes da membrana plasmática. Do Golgi também saem pequenas
organelas citoplasmáticas (os lisossomos) com enzimas capazes de decompor moléculas
já utilizadas pela célula em unidades menores para serem usadas na síntese de novas
moléculas.
No soma também estão a mitocôndria, que realiza a fixação do oxigênio e a síntese
de ATP, e o peroxissomo – organela que contém proteção contra o peróxido, subproduto
altamente oxidante que resulta da degradação molecular.
Figura 6.9: Fenda sináptica. Fonte: BEAR, M; CONNORS, B; PARADISO, M.
Neurociências: desvendando o sistema nervoso. Porto Alegre: Artmed, 2002.
Os dendritos que saem do soma formam, por vezes, algo semelhante a uma árvore
em torno do soma; aumentam a superfície da célula, possibilitando maior contato entre
neurônios. Alguns tipos de neurônios ainda emitem espinhas dos ramos dendríticos. Essas
espinhas são pequenas projeções com esférula na extremidade, onde se formam contatos
sinápticos. Além de aumentarem a superfície celular, têm importância funcional, pois
constituem microcompartimentos privilegiados, nos quais se concentram íons e pequenas
moléculas que influenciam na transmissão de informações entre neurônios. O padrão de
espinhas de um neurônio se modifica dinamicamente com a aprendizagem e com certas
doenças mentais, o que nos permite supor que elas desempenham papel importante nas
funções neurais.
Nos dendritos estão presentes praticamente todas as substâncias do soma; em
ramos mais finos, desaparecem ou diminuem o retículo endoplasmático rugoso, aparelho
de Golgi e os microtúbulos do citoesqueleto.
O axônio sai do soma através do cone de implantação, região muito excitável na qual
aparece o impulso nervoso, conduzido pelo axônio. As diferentes partes da célula estão
em constante comunicação: existe um fluxo contínuo de moléculas e organelas através do
citoplasma, que pode ser do soma em direção às extremidades do axônio (anterógrado) ou
das extremidades para o soma (retrógrado).
Muitos axônios são revestidos por uma cobertura isolante feita de lipídios e
proteínas, chamada bainha de mielina. No Sistema Nervoso Central, a bainha de mielina é
produzida pelos oligodendrócitos e no Sistema Nervoso Periférico pelas células de
154 Schwann. Nos axônios de neurônios do Sistema Nervoso Central existem proteínas que
bloqueiam o crescimento regenerativo após lesões; o que explica a regeneração de
axônios periféricos, mas não de axônios centrais.
Figura 6.10: Estrutura do nervo. Fonte: http://www.esec-lousa.rcts.pt/sist_nervoso.htm
Cada axônio pode se ramificar em sua extremidade distal, e cada ramificação pode
ter múltiplos botões sinápticos que se ligam ao soma, ao dendrito ou ao axônio de outros
neurônios, formando as sinapses.
6.1.1.2. Células gliais
As glias são células não neuronais com diferentes funções, que garantem a infraestrutura necessária para o funcionamento dos neurônios. Suas funções incluem alimentar
o neurônio, lidar com sinais químicos que orientam o crescimento e a migração dos
neurônios durante o desenvolvimento, fazer a comunicação entre neurônios na vida adulta;
absorver substâncias dos meios vizinhos e transformar em substâncias úteis; isolar a
membrana dos axônios; têm função de defesa, reconhecimento de condições patológicas,
além de outras. Estão divididas em dois grandes grupos, macroglias e microglias. As
macroglias são formadas por astrócitos e oligodendrócitos, que têm mesma origem
embrionária que os neurônios (ectoderme). As microglias são formadas por microgliócitos
ramificados e amebóides, e têm origem embrionária mesodérmica.
155
Figura
6.11:
Células
http://www.uff.br/fisiovet/imagens/sistema_nervoso_6.JPG
gliais.
Fonte:
Os astrócitos têm seus prolongamentos ramificados, ocupam espaços
interneuronais, envolvem sinapses e nós de Ranvier, formam envoltório em capilares
sangüíneos do sistema nervoso e revestem internamente as cavidades intracerebrais e
meninges. Morfologicamente, os astrócitos são diferentes na substância branca e na
cinzenta, mas até então suas funções não foram diferenciadas de forma significativa. São
marcados pela presença de GFAP (proteína ácida fibrilar glial), uma proteína que forma o
citoesqueleto, expressa exclusivamente por astrócitos, identificada por anticorpos
monoclonais fluorescentes ou coloridos.
Seus prolongamentos envolvem as sinapses do Sistema Nervoso Central, e
possuem receptores de membrana para certos neurotransmissores, como GABA (ácido
gama-aminobutírico) e glutamato, transformando-os em glutamina, a qual é transportada
para os neurônios e permite a ressíntese das duas substâncias e controla o excesso de
neurotransmissores nas sinapses.
156 Figura 6.12: Células nervosas. Fonte: www.afh.bi.br/nervoso/img/Nervos49.jpg
Nos nós de Ranvier, onde ocorrem potenciais de ação, os pedículos dos astrócitos
participam do restabelecimento do gradiente eletroquímico normal, pois possuem grande
quantidade de canais de K+ e proteínas transportadoras de íons.
As paredes dos capilares cerebrais também são revestidas por ramificações
astrocísticas, que facilitam a existência da barreira hematoencefálica, importante
mecanismo protetor do Sistema Nervoso Central.
Quando ocorrem lesões no tecido nervoso, os astrócitos se proliferam e se deslocam
para as proximidades da lesão, formando uma cicatriz glial, que seria equivalente ao
processo inflamatório de outros tecidos. Como produzem fatores tróficos e apresentam
antígenos, os astrócitos desempenham dois papéis importantes para o local lesado: os
fatores tróficos contribuem para a sobrevida dos neurônios atingidos e os antígenos
provocam ação defensiva dos linfócitos T.
Os oligodendrócitos possuem menos prolongamentos que os astrócitos e são
divididos em satélites e fasciculares. Os primeiros ficam próximos dos corpos celulares e
os fasciculares entre os axônios do Sistema Nervoso Central, cujos prolongamentos se
enrolam nos axônios para formar a bainha de mielina, elemento isolante que permite maior
velocidade de condução do impulso nervoso. Esta mielina do Sistema Nervoso Central
contém moléculas protéicas que bloqueiam a regeneração axônica, diferentemente da
mielina de axônios periféricos, produzida por células de Schwann, que permite
recuperação após lesões pela ausência deste componente bloqueador.
Os microgliócitos ramificados possuem corpo pequeno, alongado e com poucos
prolongamentos; em sua forma original, não se proliferam nem atuam em processos
patológicos. Já os microgliócitos amebóides, que também possuem corpo pequeno e
poucos prolongamentos, têm atividade fagocítica e se proliferam bastante na presença de
agressões e traumas do Sistema Nervoso Central. Se houver necessidade, monócitos
sangüíneos podem entrar no tecido nervoso e se transformar em microgliócitos
amebóides, assim como microgliócitos ramificados podem ser ativados, se proliferar e
assumir forma amebóide.
6.1.2. Transmissão de informações
A transmissão de informações entre neurônios acontece através de sinapses, que
podem ser elétricas ou químicas. As sinapses elétricas existem principalmente em
neurônios imaturos e gliócitos adultos, e sua estrutura é denominada junção comunicante,
uma região na qual duas células se aproximam e suas membranas ficam separadas por
um espaço muito pequeno (cerca de 3 nm). Nesta região, as membranas possuem canais
iônicos especiais, formados por subunidades protéicas idênticas e capazes de se
acoplarem quimicamente para formar poros que permitem a passagem de íons e
pequenas moléculas, de uma célula para outra. É uma transmissão muito rápida, pois não
utiliza intermediários químicos. As informações transmitidas por sinapses elétricas não são
modificadas entre uma célula e outra, e geralmente passam nos dois sentidos (entram e
saem), embora existam as junções retificadoras – que permitem a passagem da corrente
157
elétrica em apenas uma direção.
As sinapses químicas existem entre neurônios adjacentes de uma região
especializada, permitindo o contato por contigüidade. A estrutura é conhecida como fenda
sináptica e é bem maior que as junções comunicantes (cerca de 20nm). O espaço entre
uma membrana e outra é preenchido por matriz protéica adesiva que favorece a fixação e
a difusão de moléculas entre elas. A região sináptica da primeira célula é chamada
elemento pré-sináptico e é igualmente um terminal axônico. O elemento pós-sináptico,
região sináptica da segunda célula, é geralmente um dendrito.
Figura
6.13:
Sinapse.
www.ucs.br/ccet/defq/naeq/material_didatico/textos_interativos_37/sinapse.jpg
Fonte:
O terminal pré-sináptico tem como característica mais marcante a presença de
vesículas que se aglomeram nas proximidades da membrana, e de grânulos secretores,
esferas maiores com material elétron-denso, além de zonas de ativação. O potencial de
ação chega ao axônio pré-sináptico e causa liberação de substâncias na fenda sináptica.
Esta substância, armazenada nas vesículas, é o neurotransmissor, que se difunde até a
membrana pós-sináptica e gera novamente um potencial de ação. Estas conversões de
informação permitem que exista modificação durante o trajeto. Quem realiza estas
modificações são os neuromoduladores, presentes em quase todas as sinapses.
Portanto, os neurotransmissores são produzidos pelo neurônio, armazenados em
vesículas e liberados no espaço extracelular. Transmitem informações entre neurônios e
células próximas. Os neuromoduladores são produzidos pelo neurônio, atuam na sinapse,
modificando a ação de neurotransmissores.
As sinapses podem ser excitatórias ou inibitórias. As excitatórias despolarizam,
enquanto as inibitórias hiperpolarizam o terminal pós-sináptico. Os elementos pré e póssinápticos das sinapses inibitórias têm membrana de mesma espessura, e as vesículas
liberadas são achatadas, enquanto as sinapses excitatórias possuem elementos com
diferentes espessuras de membrana (membrana pós-sináptica mais espessa) e liberam
vesículas esféricas.
Devemos lembrar que cada célula pode fazer milhares de sinapses. Assim, o
resultado final de uma informação depende da interação dos potenciais de ação de todas
essas sinapses, conhecida como integração sináptica.
As informações são passadas entre os neurônios através de poros ou canais na
membrana, que permitem a passagem seletiva de íons, gerando sinais elétricos. Canais
iônicos são glicoproteínas, proteínas de membrana incrustadas na bicamada lipídica, com
capacidade de deixar passar íons de modo seletivo, de forma continuada ou em resposta a
estímulos elétricos, mecânicos ou químicos.
-canais abertos: deixam passar íons continuamente;
-canais controlados por comportas: só abrem em resposta a estímulos específicos.
Podem ser:
a) dependentes de voltagem: abertos por alteração da voltagem da membrana;
158 b) dependentes de ligantes: abertos por substâncias específicas, como
neurotransmissores, neuropeptídeos e hormônios;
c) dependentes de energia mecânica que incida diretamente sobre a membrana.
Os canais iônicos têm três estados funcionais: repouso (está fechado mas pode ser
aberto), ativo (está aberto e permite fluxo iônico) e refratário (está fechado e não pode ser
ativado). Depois de um potencial de ação, o axônio fica refratário. Isto garante que o
potencial de ação seja propagado em uma única direção.
Existem interações específicas entre os íons e radicais da parede dos canais, que
funcionam como filtro molecular, permitindo a passagem de uma espécie iônica em cada
tipo de canal. As diferenças de concentração iônica (elétrica e química) existentes entre os
meios intra e extracelular fornecem energia potencial para o movimento dos íons do local
de maior concentração para o de menor.
Os canais de passagem livre são muito mais simples que os controlados. As
proteínas possuem a propriedade de assumir conformações espaciais diferentes, chamada
alosteria. Dependendo da conformação, não permitem a passagem de íons pela
membrana. Porém, na presença de estímulos específicos, suas subunidades protéicas se
modificam, permitindo a passagem iônica. Nos canais dependentes de voltagem,
alterações no potencial elétrico da membrana podem causar mudança da estrutura. Em
canais dependentes de ligantes, ocorre reação química não permanente entre um ligante
(neurotransmissor, por exemplo) e a parte extracelular da proteína de membrana. Por fim,
nos canais mecânicos, um estiramento da membrana causa abertura das comportas.
Os neurotransmissores podem ser aminas, aminoácidos e purinas, sendo que alguns
aminoácidos podem atuar como neuromoduladores. Já os neuromoduladores podem ser
gases e peptídeos, sendo que alguns peptídeos podem atuar como neurotransmissores.
Cada neurotransmissor é formado por uma substância específica em um local
específico, e o conhecimento de sua síntese é de grande importância para os psiquiatras e
neurologistas, pois algumas doenças atingem diretamente este processo, como o
parkinsonismo e alguns tipos de depressão.
O potencial de ação, quando chega ao terminal sináptico, alcança zonas ativas,
regiões ricas em canais de Ca2+ voltagem-dependentes. O potencial de ação provoca
abertura dos canais de Ca2+, e este passa em grande quantidade para o interior do
terminal, aumentando a concentração intracelular deste íon. A quantidade aumentada de
Ca2+ no interior do terminal sináptico faz com que as vesículas sinápticas ancorem nas
zonas ativas, liberando seu conteúdo na fenda sináptica através de exocitose. O
neurotransmissor age no receptor específico, situado na membrana pós-sináptica e gera
potencial de ação.
Existem dois tipos de receptores sinápticos: metabotrópicos e ionotrópicos (fig.7.13.).
Os ionotrópicos são os canais iônicos dependentes de ligantes, e são mais rápidos. Os
receptores metabotrópicos estão ligados à proteína G ou à ação enzimática intracelular do
próprio receptor. Como não são canais iônicos, a transmissão é mais lenta e indireta, feita
por reações químicas intracelulares, iniciadas pela proteína G, que ativa proteínas efetoras
que geralmente são canais iônicos. Estes canais, ao se abrirem, permitem que ocorra um
potencial de ação. Além disso, a proteína G pode atuar em proteínas de membrana que
produzem mensageiros químicos (segundos mensageiros). Esses mensageiros podem
agir em locais distantes da membrana ou no interior da célula pós-sináptica,
desencadeando cascatas enzimáticas, aumentando o tempo que um potencial de ação
leva para ser gerado, ou mesmo nem desencadeando um potencial de ação (apenas
modificando o metabolismo e função neuronais). Quando ocorrem modificações, mas não
necessariamente é desencadeado um potencial de ação, dizemos que houve
neuromodulação. Chamamos co-transmissão quando dois neurotransmissores são
utilizados na mesma sinapse e co-ativação quando dois receptores diferentes são
ativados.
O fim da transmissão sináptica ocorre fundamentalmente através de dois
mecanismos: a recaptação e a degradação enzimática do neurotransmissor. A recaptação
é feita pelas proteínas transportadoras específicas da membrana do terminal pré-sináptico
ou por astrócitos. É um mecanismo influenciado por drogas de vários tipos como cocaína,
alguns antidepressivos e anticonvulsivantes. A degradação enzimática ocorre em sinapses
colinérgicas e peptidérgicas. O neurotransmissor é quebrado e suas partes se difundem no
159
meio extracelular ou são recaptadas para o interior do terminal e utilizadas na síntese de
novas moléculas.
Figura 6.14: Receptores ionotrópicos. Fonte: www.sistemanervoso.com
6.1.3. Neurotransmissores
6.1.3.1. Glutamato
O glutamato, um aminoácido, é sintetizado pelo cérebro a partir de glicose e outros
nutrientes e é o principal neurotransmissor excitatório do cérebro. Quantidades muito
pequenas de glutamato podem desencadear potenciais de ação. Existem três tipos de
receptores de glutamato: AMPA, NMDA e Kainato.
Figura 6.15: Glutamato. Fonte: www.saha.org.ar
6.1.3.2. GABA
É sintetizado a partir da descarboxilação do glutamato, catalizada pela glutamato
descarboxilase, presente em muitas terminações do cérebro, assim como as células B, do
pâncreas. Os neurônios que secretam GABA são chamados de GABAérgicos. É o
principal neurotransmissor inibitório do sistema nervoso central.
160 Figura 6.16: Neurônios GABAérgicos. Fonte: www.benzo.org.uk
6.1.3.3. Acetilcolina
É o neurotransmissor utilizado pelos neurônios que inervam os músculos, resultando
em contração. Junto com a noradrenalina, a acetilcolina é o principal neurotransmissor do
sistema nervoso simpático. É provável, apesar de não estar ainda muito claro, que sua
função no cérebro tenha ligação com a aprendizagem e a vigília.
Sua síntese depende da enzima colina acetiltransferase, que é sintetizada no soma e
transportada até o terminal axonal. Para certas doenças, caracterizadas por deficiência na
transmissão sináptica de acetilcolina, suplementos de colina são administrados na dieta,
objetivando aumentar os níveis encefálicos do neurotransmissor.
Figura 6.17: Neurônios colinérgicos. Fonte: www.bayer.cl
7.1.3.4. Catecolaminas
161
São formadas a partir do aminoácido tirosina e possuem estrutura química
denominada catecol. Neurônios catecolaminérgicos são encontrados em regiões do
sistema nervoso envolvidas na regulação do movimento, humor, atenção e funções
viscerais. São neurônios que contêm a enzima tirosina hidroxilase, que cataliza o primeiro
passo da síntese das catecolaminas: converte a tirosina em dopa, que será convertida em
dopamina pela enzima dopa descarboxilase. A dopa descarboxilase existe em grande
quantidade nos neurônios catecolaminérgicos, e a quantidade de dopamina sintetizada
depende da quantidade de dopa disponível.
Uma vez dentro dos terminais axonais, as catecolaminas podem ser novamente
transportadas para as vesículas e serem reutilizadas ou ser degradadas pela enzima
monoaminoxidase (MAO) da membrana externa da mitocôndria.
Figura 6.18: Síntese de catecolaminas. Fonte: www.sistemanervoso.com
6.1.3.4.1. Dopamina
Os corpos celulares dos neurônios que utilizam a dopamina estão principalmente na
substância negra e na área tegmental ventral.
6.1.3.4.2. Noradrenalina
Tanto no sistema nervoso simpático quanto no cérebro, encontra-se perifericamente.
A maioria dos neurônios noradrenérgicos tem seu corpo celular no locus coeruleus (tronco
cerebral).
Neurônios que utilizam noradrenalina como neurotransmissor contêm, além de
tirosina hidroxilase e dopa descarboxilase, a enzima dopamina β-hidroxilase, conversora
de dopamina em noradrenalina.
6.1.3.4.3. Adrenalina
Neurônios adrenérgicos contêm a enzima feniletanolamina N-metil-transferase, que
converte noradrenalina em adrenalina. Além de servir como neurotransmissor no encéfalo,
a adrenalina é liberada pela glândula adrenal para a circulação sangüínea, e atua em
receptores no corpo todo, produzindo resposta visceral coordenada.
6.1.3.5. Serotonina
Em humanos, a serotonina tem sido associada à depressão, ansiedade,
comportamento agressivo, obesidade e outros distúrbios de alimentação, enxaqueca,
disfunção sexual e dor crônica. É derivada do aminoácido triptofano. Neurônios
serotonérgicos existem em menor quantidade.
162 Figura 6.19: Síntese de serotonina. Fonte: www.sistemanervoso.com
7.1.3.6. Fatores de crescimento
São peptídeos que transmitem sinais para os neurônios via receptor de tirosina
quinase. Podem ser produzidos por células gliais ou pelos próprios neurônios. Participam
do desenvolvimento, divisão e crescimento neuronal e ajudam a prevenir a morte da
célula. As neurotrofinas são fatores de crescimento que apóiam a diferenciação e
sobrevivência de conjuntos específicos de neurônios. Entre elas estão: o fator de
crescimento nervoso (NGF), o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF) e as
neurotrofinas 3 e 4/5. Todas podem ser liberadas de qualquer lugar no cérebro.
7.1.4. Gênese e diferenciação
Toda célula ectodérmica tem potencial para se transformar em neurônio, a chamada
neuralização. O ectoderma tem proteínas que bloqueiam o desenvolvimento neural
(proteínas morfogenéticas – BMPs – subgrupo dos fatores tróficos transformantes –
TGFs). Quando um neurônio pára de se dividir, torna - se um “neurônio juvenil” e migra se
arrastando através de prolongamentos lançados pela membrana.
Figura 6.20: Diferenciação celular. Fonte: www.educacaopublica.rj.gov.br
A notocorda produz proteína que se difunde no sentido dorsal pelo tubo neural,
reconhecida pelas células juvenis que emitem sinais intracelulares capazes de modificar a
expressão gênica. O sinal varia com a concentração desta proteína – perto da “fonte”
(mais ventral) as células do tubo neural se transformam em motoneurônios. Mais distante,
as células se transformam em interneurônios e reconhecem diferentes BPMs, e podem se
transformar em diferentes tipos de neurônios, de acordo com o tipo de BMP.
Fatores indutores e morfogenéticos mesodérmicos atuam no SNC embrionário
163
ativando genes homeóticos distintos em diferentes lugares, que sintetizarão proteínas
responsáveis pela diferenciação celular, permitindo o aparecimento de diferentes núcleos.
Durante a migração, o neurônio juvenil PODE emitir um axônio que cresce numa
certa direção (célula alvo) e estabelece contatos especializados. O axônio surge como um
prolongamento do corpo celular, forma um cone de crescimento na extremidade, com
actina (proteína contrátil), e lança projeções capazes de reconhecer pistas químicas e
também de se locomover. Uma das coisas que essas pistas fazem é polimerizar o
citoesqueleto do cone, alongando o axônio ou formando ramos colaterais.
Uma mesma molécula pode atuar de diferentes formas em axônios, dependendo do
receptor da membrana do cone. Várias substâncias atuam na diferenciação neural, por
exemplo: lamininas, fibronectina e proteoglicanos são inibidores de crescimento axônico;
moléculas de adesão celular direcionam o crescimento do cone, como caderinas
(glicoproteínas que dependem da concentração intracelular de cálcio, reconhecidas por
outras caderinas do cone de crescimento) e imunoglobulinas, reconhecidas hemofílica ou
heterofilicamente pelos cones de crescimento.
Vários neurônios são formados no embrião, mas o número de células que
permanecem vivas após o nascimento é determinado pela quantidade de tecido alvo.
Existem fatores neurotróficos que garantem a sobrevivência dos neurônios juvenis.
Fatores tróficos são produzidos pelo alvo e captados pelas células com as quais fazem
contato sináptico, e atuam dobre o DNA bloqueando o processo de apoptose (várias
células têm a mesma direção alvo; as que conseguem estabilizar sinapses recebem
quantidade suficiente de fator neurotrófico e sobrevivem. As outras morrem).
6.1.5. Envelhecimento e morte do Sistema Nervoso
O processo evolutivo (desenvolvimento, amadurecimento e envelhecimento) é
caracterizado por modificações permanentes, desde a fecundação do óvulo até a morte.
Estas modificações podem ser morfológicas, fisiológicas ou de conduta e são diferentes
em cada um dos estágios da vida.
O processo de envelhecimento, apesar de ter características comuns nos seres
humanos, pode variar de acordo com interferências ambientais, como condições de vida,
higiene, alimentação e índice de mortalidade de uma determinada população.
Em muitos países, legalmente, a idade considerada como início da velhice é de 65
anos.
Além das mudanças físicas (pele, cabelos, dimensões corpóreas), ocorrem
modificações mentais. Estas mudanças são mais subjetivas e, portanto, mais difíceis de
avaliar. Ocorre redução da função sexual (climatério), diminuição da tolerância glicídica,
das funções renal e respiratória, diminuição do índice cardíaco, força muscular e da
velocidade de condução neuronal, além de diminuição da acuidade sensorial (visual,
auditiva, gustativa, olfativa), redução na capacidade isoimunitária e aumento da reação
auto-imunitária. Cresce a vulnerabilidade ao estresse, injúrias e doenças em geral. Nos
últimos anos, as melhoras no sistema sanitário, higiene, alimentação, qualidade da
medicina e ambientação social contribuíram para o declínio desta vulnerabilidade.
Contudo, ainda existem diferenças acentuadas entre populações, o que denota tanto a
desigualdade de acesso aos recursos modernos quanto a provável existência de fatores
genéticos no envelhecimento, que diferenciam populações.
Os processos de desenvolvimento são identificados pela capacidade adaptativa do
organismo. O envelhecimento é caracterizado por respostas adaptativas insuficientes ou
inadequadas. Ocorrem diminuições da massa protéica, do tecido orgânico de ossos e
vísceras, ocorre rigidez de certos tecidos, como o das artérias, do cristalino e da pele;
surgem pontos de hiperpigmentação na pele, vísceras e Sistema Nervoso, devido ao
acúmulo de lipofuscina. Gorduras são acumuladas e há redução de massa mineral. Os
processos mitóticos ficam reduzidos e há declínio do metabolismo basal, no conteúdo de
água celular, débito cardíaco e capacidade vital pulmonar.
O envelhecimento é um fenômeno multifatorial. Somam-se ao fator genético, o
aparecimento de mutações aleatórias do DNA de células somáticas - que são
acumulativas – alterações imunológicas, o entrecruzamento molecular e a formação de
radicais livres.
Durante o envelhecimento, ocorrem modificações fisicoquímicas entre moléculas,
que ficam maiores, mais complexas e com digestibilidade reduzida, além de alta
164 estabilidade, o que torna o tecido rígido. A permeabilidade e o fluxo de substâncias ficam
alterados, assim como fica reduzida a integridade celular. A formação de radicais livres de
oxigênio e de peróxidos lipídicos origina aldeídos, causadores de ligações entrecruzadas
entre macromoléculas, gerando estas modificações. No indivíduo idoso, há maior
formação de radicais livres, que induzem a formação de mais ligações entrecruzadas.
Figura 6.21: Acúmulo encefálico de lipofuscina e formação de placas senis. Fonte:
www.fotciencia.fecyt.es
O processo de envelhecimento ocorre por insuficiências genéticas, metabólicas,
hormonais e imunológicas, como manifestação progressiva das alterações de função e
estrutura, que culminam na diminuição da capacidade de reagir às agressões.
Estas modificações podem ser determinadas por alterações genéticas na codificação
de proteínas que corrigem mutações sutis ou mesmo alterações na expressão do material
genético. Agentes como raios ultra-violeta, substâncias químicas e alguns tóxicos podem
desencadear mutações. Os mecanismos exatos de envelhecimento celular são pouco
conhecidos.
O Sistema Nervoso envelhece lentamente após a maturidade, e termina na morte da
pessoa e de seu cérebro. As causas do envelhecimento ainda não foram completamente
esclarecidas.
O cérebro de um idoso é menor e mais leve, com alguns giros mais finos, separados
por sulcos mais profundos. As cavidades são mais abertas e o córtex, portanto, menos
espesso. São sinais de atrofia que podem ser observados com técnicas de imagem, como
a tomografia computadorizada e a ressonância magnética. Ao ser observado no
microscópio, o espaço extracelular possui depósitos de fragmentos de neurônios – as
chamadas placas senis. Muitos neurônios possuem novelos de neurofibrilas no citoplasma.
O número de neurônios diminui, assim como o número de sinapses e de substâncias
químicas produzidas (principalmente enzimas que sintetizam e degradam
neurotransmissores). Surgem proteínas anômalas nas placas senis; a principal é a ßamilóide. Ocorrem modificações como lapsos de memória, diminuição da velocidade de
raciocínio, confusões passageiras, dificuldade de locomoção, falta de equilíbrio, tremor
distal, insônia noturna e sonolência diurna.
A velhice leva à deficiência no controle genético de produção de proteínas
estruturais, enzimas e fatores tróficos, que repercute na função das células nervosas,
dificultando a gênese, condução e a transmissão de impulsos nervosos. As células se
degeneram, rompem e liberam detritos que se acumulam em placas senis; com o aumento
das células anormais e a diminuição das normais, as neuroglias (sistema imunológico) são
incapazes de remover os detritos, aumentando a quantidade destas placas. A principal
degeneração é dos mecanismos de memória, neurônios e circuitos colinérgicos; porém,
ocorrem também alterações circulatórias, respiratórias, digestivas, etc. que contribuem
para a perda de função generalizada do organismo e acabam por levá-lo à morte.
Quando essas mudanças são tão pronunciadas que causam sintomas físicos e
165
psicológicos, chamamos de doença de Alzheimer (ou demência senil). As proteínas
fibrilares sofrem alterações degenerativas e se acumulam de forma desorganizada no
citoplasma.
Figura 6.22: Formação de placas senis. Fonte: www.biomed.uninet.edu
6.2. Adaptação Celular
O organismo é capaz de se adaptar frente a estímulos que fogem do seu normal
(basal) de funcionamento. Contudo, estímulos exagerados podem levar à sobrecarga, pois
os mecanismos adaptativos podem ser insuficientes ou limitados. Mesmo em situações
não exageradas de estímulos, o organismo pode apresentar resposta adaptativa
insuficiente. Ambas as ocorrências (exagero de estímulos e insuficiência de adaptação)
geram resposta orgânica inadequada, chamada patológica.
O estímulo estressor pode ser extracorpóreo, intracorpóreo ou intracerebral. Se for
maior que a capacidade adaptativa do organismo, pode causar lesão celular ou limitar o
sistema de adaptação neuro-endócrino-imune.
Quando um organismo é agredido, reage ativando o metabolismo oxibiótico e
energético, aumentando o consumo de oxigênio e ativando o sistema simpático-adrenal.
Ocorre resposta muscular conhecida como luta ou fuga: a luta é realizada por ativação dos
mecanismos muscular, imune, celular e metabólico-endócrino, que agem sobre o agressor
com a intenção de eliminá-lo; a fuga é o processo de distanciamento do agente agressor
(funções musculares esquelética e lisa, que expulsam, como a diarréia, os reflexos, a
tosse, espirro, aumento de secreções, etc.).
O mecanismo de luta ou fuga ocorre pela ativação do sistema neuro-endócrinoimune, com participação do locus coeruleus e de núcleos simpáticos hipotalâmicos, que
aumentam a secreção de catecolaminas e a ativação do Sistema Simpático eferente.
Quando esta ativação não é bem-sucedida em eliminar o agente agressor, o
organismo modifica suas estratégias de defesa, visando manter a vida. Poupa-se energia,
cai o consumo de oxigênio e o fluxo circulatório tecidual, e acumula-se energia para o
próximo estágio. Agora, o organismo produzirá inversão metabólica e circulatória liberando
energia e calor (febre), e aumentará a atividade fagocitária e imunológica, na tentativa de
eliminar o agente agressor e passar para a fase de recuperação.
A diferença entre lesão e adaptação celular é que na adaptação a célula enfrenta a
agressão atingindo um novo equilíbrio com o ambiente, modificado em relação ao basal,
enquanto na lesão o limiar adaptativo da célula é ultrapassado e ocorre alteração do
equilíbrio entre a célula e o meio.
6.3. Lesão Celular
A lesão celular pode ser encontrada em qualquer tipo de célula, e ocorre em quase
todos os mecanismos patológicos. As causas mais freqüentes de lesão são a isquemia,
166 lesão por agentes infecciosos e lesões de origem química. Os agentes nocivos afetam
principalmente a membrana celular, a síntese protéica, a integridade do genoma e a
respiração aeróbica, influenciando na fosforilação oxidativa e na produção de ATP.
Ocorrem modificações bioquímicas intracelulares que afetam o sítio de lesão e
também locais distantes, antes que as manifestações morfológicas letais se instalem. O
tamanho da lesão não depende somente do estímulo, mas também de sua duração,
intensidade e quantidade. Os mesmos mecanismos, em pequenas doses, podem causar
adaptação (reversível), enquanto que em grandes quantidades ou por tempo prolongado
podem causar morte celular. Contudo, os estados hormonal, nutricional e metabólico são
importantes durante os mecanismos de agressão, pois podem definir um quadro de lesão
reversível, irreversível ou morte celular.
As causas de lesão celular são inúmeras e vão desde trauma físico até agenesia de
enzimas metabólicas. A principal causa de lesão é a hipóxia (falta de oxigênio), que pode
ser primária ou secundária.
Os agentes físicos, químicos e fármacos, assim como agentes biológicos, também
são causas importantes de lesão celular. Entre as causas biológicas, destacam-se as
reações imunológicas, as alterações genéticas e o desequilíbrio nutricional.
Entre os fatores químicos mediadores que determinam a agressão celular destacamse os radicais livres, as aminas vasoativas, as proteases e os sistemas da cinina, do
complemento e fibrinolítico, além dos metabólitos do ácido aracdônico e constituintes
lisossomais, que provêm do plasma ou da própria célula e podem agir aumentando a
permeabilidade celular ou induzindo a liberação de outros produtos nocivos.
6.3.1. Aminas vasoativas
As aminas que atuam aumentando a permeabilidade da membrana celular, como a
histamina e a serotonina, são liberadas mediante algumas condições. O trauma, o calor
excessivo (queimaduras) e as reações imunológicas são algumas delas.
6.3.2. Sistema de proteases plasmáticas
São substâncias enzimáticas biológicas que atuam como hidrolisantes. O sistema de
cininas produz liberação de peptídeos biologicamente ativos, como a bradicinina, que atua
como vasodilatador e a calicreína, agente proteolítico. O sistema fibrinolítico, durante a
ativação do processo de coagulação, forma fibrinopeptídeos que aumentam a
permeabilidade vascular.
6.3.3. Sistema complemento
Atua nos processos imunes mediando reações biológicas, como o aumento da
permeabilidade vascular, quimiotaxia, opsonização e lise do organismo agressor. Sua
ativação começa pelo complexo antígeno-anticorpo e por estímulos não-imunes. Ambas as
formas de ativação geram produtos proteolíticos que lesam a célula.
6.3.4. Ácido aracdônico e seus metabólitos
Os metabólitos do ácido aracdônico são sintetizados e liberados durante a hipóxia e
sob ação de certos agentes físicos, químicos, drogas e neurotransmisores. Tais
metabólitos estão presentes nas reações de hipersensibilidade e inflamatórias. Estão
também implicados nos processos de hemostasia, trombose e patologias
cardiovasculares, pulmonares, renais e endócrinas.
As prostaglandinas, os tromboxanos, leucotrienos e hidroperóxidos são produtos
metabólicos fisiológicos do ácido aracdônico. São substâncias que atuam como hormônios
locais ou de ação parácrina e autócrina, cujos efeitos ocorrem em locais próximos do sítio
de liberação e logo em seguida são inativados espontânea ou enzimaticamente.
6.3.5. Radicais Livres
São produtos metabólicos de substâncias químicas, de drogas exógenas ou
endógenas (reações oxidativas que formam superóxido de O2, radical hidroxila e radical O2
singlet). Estes radicais são extremamente reativos, quimicamente instáveis, que iniciam
reações em cadeia e podem ser acelerados na presença de outros radicais livres.
Radicais livres são produzidos pelo processo de respiração celular, através da
reação entre o oxigênio molecular e um elétron. Também são ser produzidos por ação de
167
drogas, auto-oxidação de biomoléculas, efeitos poluentes ambientais, radiações ionizantes
e ação de algumas enzimas. Estes radicais podem lesar sistemas biológicos ou formar
peróxidos lipídicos ao se ligarem aos ácidos graxos polinsaturados.
Suas principais ações são a peroxidação lipídica, o envelhecimento, a inflamação e
morte microbiana.
Os agentes antioxidantes (vitaminas E e C, selênio, hidroquinona e compostos
sulfídricos) limitam a formação dos radicais livres, reduzindo a peroxidação lipídica.
A agressão por radicais livres ocorre em situações de estresse hiperoxidante ou
quando os sistemas antioxidantes estão diminídos ou impossibilitados de agir.
Quando um radical livre reage com um composto, pode desencadear reação de
formação de outros radicais livres, agindo em locais distantes.
Figura 6.23: Lesão celular por radical livre. Fonte: www.pierre.senellart.com
Figura
6.24:
Formação
de
www.geocities.com/bioquimicaplicada/Radica1.gif
168 radicais
livres.
Fonte:
O envolvimento dos radicais livres em diferentes patologias é atualmente difícil de
ser comprovado nos seres humanos, mas reprodutível em modelos animais. Contudo, nem
todos os achados são extrapoláveis à espécie humana.
O possível papel dos radicais livres no envelhecimento baseia-se no fato de as
espécies com vidas mais longas terem menor produção de radicais livres endógenos, e
maior quantidade de enzima superóxido-dismutase. Isto demonstraria que ocorre
diminuição da atividade antioxidante no organismo idoso por efeito somatório próprio do
envelhecimento e pela reduzida disponibilidade de elementos necessários para o correto
funcionamento dos antioxidantes.
Ocorrem diariamente muitos pontos de oxidação do DNA. Porém, a maioria é
efetivamente reparada. Os pontos nos quais não ocorre reparo oxidativo sofrem lesões
permanentes.
Os radicais livres de oxigênio participam do processo carcinogênico, principalmente
na fase de propagação. Assim, substâncias antioxidantes podem ter efeito
anticarcinogênico.
Existe também participação dos radicais livres no processo inflamatório.
A morte celular por formação de radicais livres também está associada à
excitotoxicidade. Os mecanismos celulares e moleculares deste evento ainda não foram
completamente elucidados; contudo, sabe-se que a estimulação excessiva e a liberação
de aminoácidos excitatórios causam aumento na excitação dos receptores
glutamatérgicos. Isto gera aumento excessivo de cálcio intracelular, que pode ativar
cascata autodestrutiva e peroxidação lipídica, responsável pela produção de mais radicais
livres.
6.4. Apoptose
O estresse em um indivíduo vulnerável geneticamente pode levar a aumentos
deletérios do fator de liberação da corticotropina, do hormônio adrenocorticotrópico e do
cortisol. O cortisol liga-se ao fator glucocorticóide e entra no núcleo, influenciando a
expressão genética. Os genes são levados a produzir proteínas que são úteis
imediatamente, mas que a longo prazo têm efeitos negativos sobre o neurônio. A vida e a
morte neuronal são mediadas por equilíbrio entre proteínas apoptóticas e antiapoptóticas.
O fator neurotrófico derivado do cérebro ativa o sistema MAP quinase e ocorre
aumento da produção da proteína Bcl-2, que induz o crescimento de axônios, desliga
enzimas destrutivas e mantém a integridade das membranas mitocondriais. Em
contrapartida, as proteínas apoptóticas (Bad, caspase, GSK-3b e Bax) promovem a morte
celular. O fator neurotrófico derivado do cérebro pode ativar a enzima PI-3 quinase, que
inibe proteínas apoptóticas. Contudo, a superativação de sistemas antiapoptóticos pode
levar a um crescimento celular excessivo, como o câncer, enquanto a ativação excessiva
de sistemas apoptóticos leva à degeneração celular.
Para estudar a integridade neuronal, utiliza-se a espectroscopia de ressonância
magnética, para identificar aspectos da composição química do cérebro, como o N-acetilaspartato, diminuído em pessoas com determinados distúrbios nervosos.
O estresse grave poderia levar à superativação da apoptose, deixando o indivíduo
mais vulnerável a outras lesões neurais. Algumas pessoas podem ter vulnerabilidade
genética para produzir substâncias apoptóticas em excesso ou não produzir substâncias
antiapoptóticas em resposta ao estresse.
Medicamentos antidepressivos reforçam as forças antiapoptóticas, assim como os
tratamentos eletroconvulsivos, que aumentam a quantidade de fator neurotrófico derivado
do cérebro e reforçam a neurogênese. Além disso, durante o estresse, as proteínas
chaperona funcionam como lixeiras, atuam levando proteínas danificadas para o retículo
endoplasmático para serem degradadas. Os antidepressivos e estabilizadores do humor
agem aumentando a expressão de proteínas chaperona.
6.5. Neuroplasticidade
Plasticidade é a capacidade do sistema de modificar sua reação ao meio. Pode ser
feita pela repetição de um estímulo incondicionado, pela soma de diferentes estímulos ou
pela compensação funcional (principalmente quando houver agressão).
A neuroplasticidade é componente fundamental da adaptação neuronal, e crescem
as evidências de que é um processo muito mais bioquímico que morfológico. A
169
plasticidade fica evidente ao constatarmos que o neurônio não é uma estrutura fixa em
quantidade de neurotransmissores que libera ou de sinapses que efetua. Também os
receptores são estruturas fluidas, cujas propriedades podem mudar de acordo com a
necessidade funcional.
O conhecimento acerca do cérebro e seu funcionamento ainda é muito pequeno.
Contudo, nos últimos anos houve algum sucesso em comprovar alterações potencialmente
relacionadas a algumas patologias.
A adaptabilidade do organismo às mudanças externas e internas depende
enormemente da flexibilidade funcional de estruturas celulares das diferentes áreas
encefálicas. É preciso levar em conta que a atividade funcional das estruturas não é
homogênea.
No caso de sinapses reforçadas após o aprendizado, a expressão gênica e a
chegada de uma nova proteína são utilizadas na construção de novas sinapses. A
memória de longa duração decai na mesma proporção em que diminui a quantidade de
sinapses. Contudo, mudanças estruturais após o aprendizado não precisam
necessariamente estar vinculadas ao aumento do número de sinapses. Existem limites
para a plasticidade estrutural no encéfalo adulto. O crescimento e a retração de axônios no
Sistema Nervoso Central estão restritos a pequenas áreas. O aprendizado e a memória
podem ser resultados de modificações na transmissão sináptica, e estas podem ser
causadas por conversão de atividade neural em segundos mensageiros.
Lesões que danificam ou seccionam axônios causam alterações degenerativas, mas
nem sempre causam a morte da célula. Alguns neurônios têm capacidade de regeneração
axonal. Contudo, lesões do corpo celular de um neurônio acarretam em morte da célula.
Após mortes neuronais, ocorrem alterações sinápticas e reorganização funcional do
Sistema Nervoso Central, além de alterações na liberação de neurotransmissores, que
auxiliam na recuperação da lesão.
No Sistema Nervoso normal, muitas sinapses parecem não ser usadas, a não ser
que ocorra lesão de outras vias, que acarrete em maior uso dessas sinapses silenciosas.
Muitas das moléculas responsáveis pela plasticidade neural durante o aprendizado estão
sendo identificadas como substâncias ativas nos processos de recuperação após lesões
cerebrais, como os receptores NMDA, íons Ca2+, substância P e neurotrofina.
Alterações em sinapses individuais no Sistema Nervoso Central adulto podem ter
grandes repercussões funcionais. Os mapas corticais podem ser modificados por
estímulos sensoriais, experiências e aprendizado após uma lesão cerebral.
A plasticidade torna possível a recuperação de lesões do sistema nervoso, porém é
fundamental que exista atividade para que a recuperação atinja seu máximo potencial.
A produção e a liberação de neurotransmissores são reguladas pela atividade
neuronal. Estimulações repetidas de vias somatossensoriais podem aumentar a
quantidade de neurotransmissores inibitórios, causando menor resposta cortical à
estimulação excessiva.
A manipulação genética influencia a neuroplasticidade e é potencialmente benéfica
para distúrbios neuroquímicos. Estão sendo desenvolvidos procedimentos que modifiquem
geneticamente os neurônios existentes, para que eles produzam e secretem compostos
químicos deficientes no encéfalo.
6.6. Degeneração
A mielina é de fundamental importância para a condução do impulso no Sistema
Nervoso. A resistência ao potencial de ação aumenta em áreas desmielinizadas, e o sinal
pode lentificar ou nem mesmo chegar ao local destinado.
A desmielinização do Sistema Nervoso Central envolve danos à bainha de mielina no
cérebro e medula espinal.
170 Figura 6.25: Desmielinização axônica. Fonte: www.manualmerk.net
Diferentemente de muitos outros tecidos, o Sistema Nervoso tem capacidade
limitada de reparação após ter sido lesado. Neurônios adultos não conseguem se
reproduzir e cada neurônio que morre representa um neurônio a menos que teremos para
“se conectar”. Porém, as células-tronco neurais existem tanto no Sistema Nervoso adulto
quanto em encéfalos ainda em desenvolvimento. São células indiferenciadas, precursoras
de neurônios e glias. Por maturação e diferenciação, podem dar origem a vários tipos
diferentes de células do Sistema Nervoso Central. Suas características incluem a
capacidade de auto-renovação, de diferenciação em muitos tipos de neurônios e células
gliais, além da capacidade de povoar regiões do Sistema Nervoso central em
desenvolvimento e em degeneração.
Em encéfalos de mamíferos adultos, existem locais de divisão celular de alta
densidade, possivelmente locais de células-tronco. Estas células são sensíveis ao
ambiente, o que lhes confere capacidade de se diferenciarem de acordo com a célula do
local em que se encontram. Além disso, sua proliferação responde ao estímulo de fatores
de crescimento.
Ainda não se conhece exatamente a função das células-tronco em encéfalos adultos.
Contudo, o papel delas em implantes cerebrais tem sido motivo para entusiasmo de
pesquisadores: as células-tronco, quando implantadas, sobrevivem e até mesmo se
proliferam, mesmo no Sistema Nervoso, e fazem conexão com neurônios pré-existentes.
Em todos os indivíduos ocorre uma lenta lesão cumulativa desencadeada por
subprodutos tóxicos do metabolismo celular, que provavelmente contribui para a morte
neuronal ao longo da vida. Essa perda de neurônios pode não ser impedida.
6.7. Genética molecular
Os humanos têm de 30 a 70 mil genes, distribuídos em 23 pares de cromossomos
(22 autossômicos e um par de cromossomos sexuais). Para cada gene, temos um alelo
em cada cromossomo. A molécula de DNA é usada como padrão para a replicação de
cópias adicionais durante a divisão celular, pela ligação de nucleotídeos livres com as
bases complementares da cadeia aberta de DNA, unidos pela enzima DNA-polimerase
numa nova dupla-hélice de DNA. Pequenas secções da molécula de DNA são usadas
como padrão para a síntese de RNA mensageiro, responsável pelo transporte de
mensagens para síntese de proteínas específicas. O RNAm é bem mais curto que a
molécula de DNA e possui uma cadeia simples (enquanto o DNA é duplo).
A conversão da informação codificada do DNA depende do código genético.
171
Seqüências de três nucleotídeos formam códons que, por sua vez, representam
aminoácidos que compõem a molécula de proteína. Vários aminoácidos podem ser
codificados por mais de um códon. Além disso, existem três stop códons, que encerram
transferências de informação.
Embora todas as células possuam o mesmo conjunto de genes, algumas células têm
genes especializados que codificam proteínas específicas para a síntese de transmissores
específicos, sob coordenação de proteínas reguladoras chamadas fatores de transcrição.
O controle da manifestação de enzimas responsáveis pelos sistemas
neurotransmissores é feito pelos fatores que operam durante o desenvolvimento
embrionário e pelo grau de atividade neuronal. Quanto mais ativo é o sistema nervoso,
maior a síntese de neurotransmissores importantes para o comportamento do organismo.
Algumas doenças são causadas por um único gene. Assim, se uma pessoa herda
dois alelos doentes, desenvolve a doença. Outras doenças são poligenéticas: genes
múltiplos trabalham juntos para transmitir o risco de um transtorno, sendo este maior
quanto maior for a quantidade de alelos doentes num indivíduo. Além do mais, a genética
pode interagir com fatores ambientais e complicar o quadro.
A hereditariedade é uma medida de quanto da variância de um traço pode ser
atribuído à genética. Quando a hereditariedade para um traço é alta, a quantidade de
variância no traço é determinada pela genética. Contudo, a hereditariedade não diz nada a
respeito do ponto no qual cairá a média da população, como também não impede os
efeitos do ambiente. Em humanos, é calculada a partir do estudo de gêmeos e pode ir de 0
a 1,0. Quando não há efeito da genética na variância, dizemos que ela é 0; quando a
genética comanda toda a variância, dizemos que é 1,0.
Graças aos avanços na genética molecular, hoje é possível identificar prováveis
genes ou regiões de cromossomos responsáveis por determinadas doenças.
Cromossomos são longos filamentos de DNA, feitos de quatro bases: timina,
guanina, adenina e citosina. Cada timina tem uma adenina complementar e cada guanina,
uma citosina. Entre os genes, existem trechos de DNA sem sentido, que nunca são
transcritos em RNAm nem traduzidos em proteínas. Mutações nesses trechos parecem
não ter efeito nas funções humanas. Assim, ao longo das gerações, desenvolvemos
inúmeras mutações nesses trechos, ao ponto de termos um DNA único. Essa é a base da
impressão digital de DNA: uma área única é chamada de “marcador”, e podem ter
seqüências muito diferentes entre os indivíduos.
Os principais estudos de genética molecular são os de associação e os de ligação.
Os estudos de associação são feitos entre pessoas que têm e que não têm uma
determinada doença, e que não possuem vínculo familiar (consangüineidade). É usado
para saber se o DNA na região do gene transportador é diferente entre essas pessoas, se
há polimorfismos nos acometidos que não ocorrem nos indivíduos sadios. Enzimas
específicas “cortam” o DNA em determinadas seqüências de bases, e este é
posteriormente colocado em gel e exposto a um campo elétrico. Os fragmentos mais
curtos se deslocarão mais no gel que os mais compridos. Assim, examinam-se os padrões
do gel dos dois tipos de indivíduos, para ver se existem polimorfismos diferentes.
Na maioria das vezes, não se sabe exatamente onde está o gene de interesse,
apenas que os polimorfismos em um marcador particular são diferentes nos dois grupos;
ou não se sabe quais genes estão ao redor do marcador ou, ainda, podem-se saber quais
genes estão em volta do marcador, mas não é possível identificar qual deles é o
responsável pela modificação. A possibilidade de erro aleatório em estudos de associação
é alta, e os estudos requerem muitas replicações antes que possam ser aceitos.
Os estudos de ligação envolvem descendência e duas ou mais características
associadas, para localizar os genes de interesse. Geralmente são usados marcadores cuja
localização já é conhecida, pois poucos traços humanos podem ser usados em estudos de
ligação. Além desta dificuldade, o estudo de ligação requer acesso não só ao indivíduo
acometido, mas aos membros de sua família, preferivelmente por várias gerações, o que
também não é fácil.
Uma das mais importantes áreas da genética molecular envolve as chamadas
seqüências regulatórias, seqüências específicas de bases que circundam genes e que são
ativadas ou desativadas por fatores específicos de transcrição.
Com a clonagem molecular, inúmeros novos receptores foram descobertos. É
possível determinar e distribuir regionalmente a localização celular do RNAm de
172 receptores, com grande especificidade, o que possibilita relacionar o local de transcrição
dos receptores e seus sítios de ligação funcionais.
O estudo da interação entre alterações gênicas e efeitos de fármacos também tem
despertado interesse. Já se reconhece que a resposta do Sistema Nervoso a
determinadas drogas pode decorrer da modificação da expressão gênica.
Técnicas de biologia molecular são freqüentemente empregadas na investigação de
sistemas neurais modificados por drogas. Os processos histoquímicos são usados para
identificar componentes químicos de células e tecidos, utilizando corantes, tinturas e
outras substâncias químicas, que se ligam ou reagem com cortes de tecido, possibilitando
visualizar a reação. São corados citoplasma e outras estruturas celulares, geralmente em
função do pH. Pode-se estudar também a estrutura e a organização cerebral por reações
químicas realizadas por neurônios. A fluorescência utiliza a propriedade de formar
produtos de condensação fluorescentes em presença de formaldeído, característica das
aminas primárias (como dopamina, noradrenalina, serotonina e histamina).
A citoquímica estuda a localização, as relações estruturais e as interações dos
conteúdos celulares através de microscopia eletrônica, fracionamento celular e técnicas
imunoquímicas. Atualmente é possível extrair partes homogêneas de proteínas e de
RNAm de receptores para neuropeptídeos, assim como enzimas de síntese e degradação
de neurotransmissores de tecidos, o que permite clonar, seqüenciar e expressar genes
para diferentes neurotransmissores e receptores.
6.8. Reabilitação
A integração das diversas áreas de conhecimento médico é uma realidade cada vez
mais presente e necessária na prática clínica, e requer uma abordagem terapêutica
diferenciada, com recursos multidisciplinares e a atuação da equipe de reabilitação,
interdisciplinar, em busca do melhor tratamento para cada paciente. A incapacidade
funcional relacionada aos distúrbios do aparelho locomotor, de qualquer natureza, é a
principal área de atuação da Medicina de Reabilitação.
Existem diversos componentes que, aliados, proporcionam ao paciente melhor
qualidade de vida, mesmo quando o prognóstico é ruim. A reabilitação dispõe de meios
físicos (termoterapia, eletroterapia, massagem, cinesioterapia), cuja utilização é embasada
na integração das fisiologias normal, da lesão e do meio físico utilizado. A farmacoterapia,
a nutrição, a fisioterapia, todas são modalidades complementares de uma mesma
categoria, que inclui ainda enfermagem, terapia ocupacional, assistência social, psicologia,
educação física e, claro, os cuidadores e pacientes.
A reabilitação de doenças neurodegenerativas passa por muitas outras áreas, que
não somente a neurológica, e delas depende para diagnóstico, tratamento e pesquisa.
Muitas perguntas ainda não têm respostas, e muitas respostas foram dadas por estudos
não necessariamente neurológicos (bioquímicos, ortopédicos, imunológicos, entre outros).
A reabilitação enfatiza o alívio da dor, o relaxamento muscular, cicatrização,
prevenção de deformidades, redução de edemas, prevenção de formação de fibrose, de
aderências e de contraturas, a excitomotricidade, o fortalecimento muscular, ganho de
amplitude de movimento, diminuição de espasmos musculares, adequação tônica, ou seja,
minimizar um padrão alterado e reduzir os danos causados por uma lesão ou preveni-los,
quando possível.
Para reabilitar, é preciso conhecer com profundidade o mecanismo patológico da
doença, assim como a fisiologia de reparo – quando possível – da lesão. As técnicas mais
avançadas incluem a extinção ou estabilização do mecanismo de lesão e a recuperação
funcional do indivíduo acometido, através de treinos específicos que contribuam com a
plasticidade, na tentativa de devolver o máximo possível do funcionamento normal das
áreas atingidas. Contudo, a medicina física ainda está um pouco amarrada, no sentido de
que as descobertas atuais não permitem total entendimento de certas disfunções, o que
prejudica a reabilitação. Muitos dos achados científicos em neurociências ainda são
suficientemente subjetivos para não permitir prognóstico exato de recuperação.
As doenças neurodegenerativas têm em comum a morte de células do Sistema
Nervoso. São várias as formas de lesão e morte neuronal, o que dificulta o controle, o
estudo e o entendimento da neurodegeneração. Progressos nos estudos dos mecanismos
de morte celular poderão permitir novas abordagens terapêuticas para doenças ainda
incuráveis.
173
Após uma lesão no encéfalo, a intensidade da reabilitação e também o tempo
decorrido entre a lesão e o começo da reabilitação influenciam a recuperação da função
neuronal. A privação prolongada de movimentos ativos após uma lesão cortical pode levar
à perda da função em regiões não lesadas, porém adjacentes à lesão.
Estes danos em áreas adjacentes podem ser evitados por movimentos de
retreinamento. Ocorrem, em alguns casos, reorganização neural e representação cortical
estendida às áreas adjacentes, não lesadas.
Contudo, o começo muito precoce de reabilitação vigorosa da função motora pode
aumentar as lesões neuronais causando, inclusive, ausência de crescimento ou
brotamento dos dendritos.
Uma das explicações possíveis para o aumento do tamanho da lesão é a
excitotoxicidade, causada por aumento da atividade cortical: os neurônios lesados são
responsáveis pela morte de outros neurônios, pois liberam grande quantidade de
glutamato que, apesar de ser essencial para as funções do Sistema Nervoso Central, em
quantidades aumentadas pode ser tóxico para os neurônios. A alta taxa metabólica
encefálica requer suprimento contínuo de oxigênio e glicose. Se o fluxo sangüíneo for
interrompido, a atividade neural cessa e, em minutos, serão provocados danos
permanentes. Sempre que um neurônio não consegue produzir ATP em quantidade
suficiente para manter funcionantes suas bombas iônicas, ocorre aumento exagerado de
Ca2+ intracelular, que dispara a liberação de glutamato. O glutamato se liga fortemente aos
receptores NMDA da membrana celular, e facilita indiretamente a liberação das reservas
internas de Ca2+, que não pode ser removido do citoplasma. Assim, ocorre saída de K+ da
célula, o que requer aumento da glicólise para fornecer energia para a bomba de Na+/K+.
Conseqüentemente ao aumento da glicólise, há liberação excessiva de ácido lático, que
reduz o pH intracelular e produz acidose capaz de decompor a membrana celular.
Além disso, níveis muito elevados de Ca2+ intracelular ativam proteases, que
decompõem proteínas celulares. O Ca2+ ativa enzimas protéicas que liberam ácido
aracdônico, produzindo substâncias que causam inflamação celular e produzem radicais
livres de oxigênio.
Por fim, o influxo iônico deflagrado resulta em influxo de água, que causa edema
celular. Todos estes eventos acabam por levar a célula à morte, e propagam os danos
neurais caso a célula libere glutamato e superexcite as células circunvizinhas.
A alta taxa metabólica encefálica requer suprimento contínuo de oxigênio e glicose.
Se o fluxo sangüíneo for interrompido, a atividade neural cessa e, em minutos, serão
provocados danos permanentes.
A excitotoxicidade do glutamato contribui para a progressão de doenças
degenerativas neurais, como a Esclerose Lateral Amiotrófica, e a doença de Alzheimer. O
futuro do tratamento farmacológico de doenças neurodegenerativas pode estar associado
ao bloqueio dos receptores de glutamato do tipo NMDA, impedindo a cascata de morte
celular relacionada à excitotoxicidade. Outros tratamentos, dirigidos ao bloqueio dos
efeitos do Ca2+ e dos radicais livres também podem ter resultado efetivo.
Ao entendermos as causas e os mecanismos de morte neuronal, talvez sejamos
capazes de planejar estratégias de prevenção de apoptose que sejam eficazes no
tratamento de muitas das doenças neurológicas.
Entre os recursos bastante utilizados na medicina física temos a crioterapia, inclusive
em casos de espasticidade e espasmos musculares, pois o frio diminui o limiar de disparo
neuronal e reduz, portanto, a estimulação aferente. Com isso, induz o relaxamento do
músculo, e permite a mobilização articular com dor reduzida ou sem dor e, assim, se
ganha amplitude de movimento. Outro recurso é o uso de calor, que pode ser superficial
ou profundo, e aumenta a extensibilidade do tecido colágeno e permite maior mobilidade
músculo-articular, além de auxiliar a diminuir o mecanismo de dor. Pode-se também utilizar
o laser de baixa intensidade (1 a 90mW), que estimula a produção de colágeno, altera a
síntese de DNA, acelera a cicatrização de feridas e causa analgesia.
Nas síndromes dolorosas miofasciais causadas por hipertonia muscular, a
massoterapia é bastante utilizada, pois busca o estiramento da musculatura e a inativação
de pontos dolorosos (pontos-gatilho). Contudo, não consegue atingir grupos musculares
mais profundos.
A eletroterapia atua basicamente alterando a polaridade das membranas celulares,
as quais são capazes de acumular cargas elétricas distintas ao longo da superfície, o que
174 as faz funcionar como o componente dielétrico de um capacitor. Pode também auxiliar a
reduzir a dor e atuar como produtora de contração muscular (usada para diminuir a
progressão de atrofias). Ainda é controverso se a estimulação elétrica muscular isolada
consegue provocar ganhos significativos em músculos denervados ou atrofiados. Alguns
autores defendem que a estimulação elétrica diminui ou retarda a atrofia; que aumenta o
volume muscular e diminui a formação de tecido conjuntivo fibroso nestes músculos
denervados. No entanto, outros autores mostram que esta mesma estimulação pode
retardar a reinervação, interferindo na germinação terminal do axônio motor. Assim, devese avaliar o caso, e usar a estimulação previamente quando se tratar de um prognóstico
mais demorado de reinervação (para evitar maiores danos e atrofia); e esperar para usá-la
após a reinervação em casos com prognóstico de recuperação mais imediato.
Um dos tipos de estimulação elétrica (a funcional, conhecida por FES), auxilia no
ganho de amplitude de movimento em musculaturas espásticas, através de estimulação do
grupo muscular antagonista, por mecanismo de inibição recíproca. Por retroalimentação,
pode favorecer a reorganização do ato motor (plasticidade) e auxiliar na reeducação
neuromuscular, estimulando a movimentação voluntária e a propriocepção. Responde bem
em casos de lesão do motoneurônio superir, mas não é tão eficar em lesões do
motoneurônio inferior, em miopatias degenerativas e em casos de espasticidade
acentuada.
O sistema motor está organizado em unidades motoras, que compreendem um
motoneurônio inferior e o conjunto de fibras musculares que ele inerva. Quanto maior a
precisão de movimentos, menor é o número de células musculares inervado por cada
axônio, ou seja, quanto mais grosseiro o movimento, mais fibras musculares serão
inervadas ao mesmo tempo por um mesmo axônio.
O limiar de excitabilidade dos motoneurônios inferiores varia de acordo com seu
tamanho: os menores (unidades motoras tônicas) têm um limiar mais baixo que os maiores
(unidades fásicas). A função muscular, para ocorrer adequadamente, depende da
aferência proprioceptiva, da inervação motora, da integridade das fibras musculares e
articulações. Se um destes componentes estiver alterado, o músculo passa a exercer uma
função anormal, adaptativa. As moléculas de colágeno fazem ligações cruzadas entre si, e
quanto maior a duração da função em sua forma adaptada, maior e mais resistente estará
o tecido colágeno, dificultando a volta da musculatura ao seu estado normal. Apesar de o
músculo ter a capacidade de voltar ao normal, sua recuperação dependerá de vários
fatores, como o tipo de patologia que o acometeu, o tempo de imobilização (quando
houver), as condições do músculo antes de ser acometido, a idade do indivíduo e as fibras
presentes no músculo em questão. Geralmente, o tempo de recuperação é mais longo que
o tempo que o músculo leva para fazer tal adaptação. Também devem ser consideradas
as seqüelas da adaptação anormal, que podem impedir a completa recuperação.
Figura
6.26:
Junção
neuromuscular.
http://www.anatomyatlases.org/MicroscopicAnatomy/Section06/Plate06118.shtml
Fonte:
175
Figura 6.27: Camadas dos tecidos epitelial, conectivo, muscular e nervoso. Fonte:
www.anatomyatlases.org/MicroscopicAnatomy/Section01/Plate0114.shtml
O controle e a coordenação motora são a última parte do movimento, pois dependem
da integridade de todas as outras funções envolvidas na produção deste, como força e
endurance musculares, amplitude de movimento articular, integridade do Sistema Nervoso
Central e dos centros de armazenamento e controle, além de suas conexões com órgãos
efetores periféricos e o fator psicológico (atenção, concentração, motivação). Controle
motor é a capacidade de ativar corretamente os agonistas primários de uma ação
específica, enquanto coordenação seria a integração do corpo e da atividade motora para
gerar um movimento harmônico.
Algumas doenças não afetam o Sistema Nervoso Central, mas levam à falta de
coordenação motora por déficit no órgão efetor ou por falta de treinos específicos para
aquela função. Neste caso, a função pode ser recuperada através de treino. No entanto,
patologias que lesem o Sistema Nervoso Central podem impossibilitar o restabelecimento
das conexões que permitiam a função original. Para estes casos, os exercícios
funcionariam como construtores de novas vias até as partes não lesadas do Sistema
Nervoso Central, permitindo o que chamamos de plasticidade. A repetição nos permite
estabelecer conexões cada vez mais sólidas e, com o passar do tempo, mais econômicas.
Além da repetição, quando não for possível realizar voluntariamente um movimento,
lançamos mão da utilização de reflexos como promotores ou iniciadores de uma certa
atividade, e também da estimulação elétrica e do biofeedback (demonstração visual ou
auditiva da capacidade de contração, através de eletrodos). Por exemplo, começar o
movimento através de um reflexo, mantê-lo com o auxílio da estimulação elétrica e
quantificar os ganhos do treino através do biofeedback.
6.8.1. Doença de Parkinson
A doença de Parkinson é a forma mais comum de parkinsonismo, que possui
diversas etiologias, inclusive o uso de fármacos.
A doença de Parkinson é o distúrbio mais comum dos núcleos da base e tem como
características a rigidez muscular, marcha de pés arrastados, postura encurvada, tremores
musculares rítmicos em repouso (em torno de 3 a 5 Hz) que desaparecem com a
movimentação voluntária e uma expressão facial em máscara (ausência de expressão ou
amimia), mas pode apresentar também bradicinesia, acatisia, festinação, congelamento,
cinesia paradoxal, micrografia, disartria e sialorréia, entre outros.
É causada pela degeneração das aferências da substância negra ao estriado, que
utilizam a dopamina como neurotransmissor. A dopamina facilita a alça motora direta ao
ativar células do putâmen. A falta de dopamina faz parar o sistema que alimenta a
atividade na área motora suplementar via núcleos da base.
A doença interfere nos movimentos voluntários e nos automáticos e é causada pela
morte das células produtoras de dopamina da substância negra e de células produtoras de
acetilcolina do núcleo pedúnculopontino, por motivos ainda desconhecidos. O começo das
mortes celulares ocorre muito antes de aparecerem os sinais clínicos da doença.
A etiologia do parkinsonismo pode ser identificada pelo quadro clínico (exame
neurológico e anamnese), mas precisa de exames complementares (ressonância
176 magnética encefálica, tomografia craniana, exame do líquido cerebroespinal) para sua
exata determinação. A tomografia por emissão de pósitrons (PET) identifica a insuficiência
dopaminérgica, mesmo em indivíduos assintomáticos, mas ainda é um método caro e nem
sempre acessível.
Figura
6.28:
Núcleos
da
base.
http://www.anatomyatlases.org/MicroscopicAnatomy/Section17/Plate17346.shtml
Fonte:
Figura
6.29:
Núcleos
da
base.
http://www.anatomyatlases.org/MicroscopicAnatomy/Section17/Plate17346.shtml
Fonte:
Na doença de Parkinson existe desequilíbrio entre as atividades dopaminérgica e
colinérgica. A maior parte dos tratamentos aumenta a atividade dopaminérgica. A morte de
aproximadamente 80% das células produtoras de dopamina da via direta dos núcleos da
base reduz a atividade nas áreas motoras do córtex cerebral, o que causa diminuição nos
movimentos voluntários. Já a perda das células pedúnculopontinas gera a desinibição dos
tratos reticuloespinal e vestibuloespinal, causando contração excessiva dos músculos
posturais.
O uso acidental de um narcótico sintético de procedência duvidosa, nas décadas de
70 e 80, fez médicos investigarem e concluírem que o parkinsonismo poderia ser
desenvolvido por indivíduos jovens, e que esta forma da doença estaria ligada ao MPTP
(1-metil-4-fenil-1,2,3,6-tetra-hidropiridona), componente químico que mata os neurônios
dopaminérgicos. A MPTP é transformada em MPP+ (1-metil-4-fenilpiridinium), e as células
dopaminérgicas confundem MPP+ com dopamina, acumulando seletivamente esta
substância. O problema é que, dentro da célula, a MPP+ bloqueia a produção de energia
pelas mitocôndrias e a célula acaba morrendo. Com isso, desenvolveu-se o raciocínio de
que a exposição crônica a algum produto químico tóxico pode levar ao desenvolvimento de
formas comuns da doença de Parkinson. A MPTP pode induzir uma forma de morte
neuronal programada na substância negra.
Existem duas categorias de tratamento da doença de Parkinson, uma voltada para o
controle das manifestações clínicas (terapia sintossomática) e outra, que tem como
objetivo proteger ou restaurar a função de neurônios (terapia neuroprotetora). A terapia
177
sintomática utiliza principalmente intervenções farmacológicas, mas inclui também
cirurgias estereotáxicas. Já aterapia neuroprotetora utiliza meios farmacológicos e também
implantes neurais e fatores de crescimento.
Uma das principais drogas administradas no tratamento da doença de Parkinson é a
levodopa (L-di-hidroxifenil-alanina), precursora de dopamina, que atravessa a barreira
hematoencefálica, e estimula a síntese de dopamina nas células ainda vivas da substância
negra. Contudo, o tratamento com a levodopa não altera o curso da doença nem o ritmo
de degeneração dos neurônios. Ainda temos como fármacos utilizados a selegina,
tolcapone e entacapone (bloqueadores da degradação de dopamina), agonistas
dopaminérgicos (bromocriptina, lisurida, pergolida, apomorfina, sabergolina, ropinirol,
pramipexol), anticolinérgicos e amantadina (bloqueador da recaptação de dopamina).
Usam-se também inibidores periféricos da dopa-descaboxilase (carbidopa e benzerazida)
para evitar que a dopamina seja dissipada antes de chegar ao Sistema Nervoso Central;
em contrapartida, estes inibidores causam efeitos colaterais que devem ser levados em
conta, como náusea, vômito, hipotensão postural, arritmia cardíaca. Já os inibidores da
MAO (monoamina-oxidase) tipo B, iclusive a seleginina, ativam mecanismos antioxidantes
e antiapoptóticos. Por fim, também são utilizados antagonistas do glutamato. Contudo,
alguns destes medicamentos ainda não têm efeito comprovado e nenhum é capaz de
estancar ou regredir a doença.
Usando informações relativas às vias neuronais e neuroplasticidade, novas técnicas
estão sendo desenvolvidas para o tratamento de distúrbios neurológicos. A estimulação
encefálica profunda, transplantes (implantes) neuronais e cirurgias estereotáxicas vêm
sendo empregados no tratamento de tremores e acinesia, presentes em distúrbios dos
núcleos da base que envolvam deficiência de dopamina.
A estimulação cerebral profunda usa estímulo de alta freqüência nos neurônios
talâmicos para tratar o tremor da doença de Parkinson. Através de uma estimulação
elétrica prolongada, inibe-se a descarga de um conjunto hiperativo de neurônios. A
estimulação é modulada e direcionada por gerador - implantado na tela subcutânea na
região torácica - que responde a estímulos externos. Apesar de suas vantagens, como a
reversibilidade do procedimento, a estimulação tem alto custo, requer ajustes periódicos e
tem risco de infectar.
O transplante neuronal consiste em colocação de células produtoras de dopamina de
um doador fetal, nos núcleos da base. Já o implante envolve a realocação de células
supra-renais da própria pessoa, nos núcleos da base, para que sintetizem dopamina.
Para alguns casos graves de tremor e acinesia, centros especializados em cirurgia
estereotáxica destroem uma pequena região de células talâmicas ou do globo pálido,
acarretando em melhoras funcionais ao eliminar populações celulares hiperativas. Entre as
cirurgias irreversíveis mais utilizadas estão a talamotomia, a palidotomia e a estimulação
do núcleo subtalâmico. A talamotomia interfere no núcleo intermédio ventral do tálamo e é
a mais eficiente para o controle do tremor. Contudo, seus efeitos sobre os mecanismos
geradores do tremor ainda não foram esclarecidos (sugere-se que esteja ligado à redução
da atividade autônoma no tálamo e à interrupção das vias palidofugal e contralateral do
cerebelo). Este procedimento não é recomendado bilateralmente pois além da disartria
que provoca em aproximadamente 25% dos casos, coloca em risco de alterações mentais
persistentes. Se for preciso intervir bilateralmente, utiliza-se a estimulação cerebral
profunda em pelo menos um lado.
A palidotomia é eficaz para o tremor e também para alívio de outros componentes,
como a oligocinesia, rigidez e discinesias. O alvo da cirurgia é a porção sensório-motora
do globo pálido interno. A indicação geralmente é feita para pacientes com quadros
avançados da doença e com complicações motoras causadas por fármacos agonistas
dopaminérgicos. Seus riscos são os mesmos da talamotomia e podem ocorrer aumento de
peso e leve distúrbio comportamental.
A intervenção sobre o núcleo subtalâmico tem maior abrangência e possibilita
melhoras de manifestações axiais da doença, relacionadas com suas eferências
glutamatérgicas direcionadas ao pálido interno e à substância negra reticulata, que se
conectam ao núcleo pedúnculopontino.
Os procedimentos cirúrgicos são feitos preferencialmente em pacientes sem
alterações cognitivas ou naqueles com mais de cinco anos de evolução da doença. Não há
limite de idade para indicação cirúrgica.
178 6.8.2. Esclerose múltipla
A esclerose múltipla decorre do processo de desmielinização central e parece ser
causada por doença auto-imune, na qual a mielina é atacada por anticorpos do próprio
indivíduo. A destruição de oligodendrócitos gera áreas de desmielinização (placas) na
substância branca do sistema nervoso central, causando lentificação ou bloqueio da
transmissão de sinais. É uma doença sem cura, sem meios de prevenção e etiologia
desconhecida. Ocorrem alterações reflexas, como transtornos da bexiga, impotência
sexual em homens e anestesia genital em mulheres, fraqueza muscular, distúrbios de
coordenação, cegueira parcial num dos olhos, visão dupla, visão fraca e distúrbios dos
movimentos oculares, além de distúrbios da sensação, como formigamentos, dormências
e sensações de agulhadas e fala arrastada. Pode haver alterações de memória e
emoções.
A Esclerose Múltipla pode ser compreendida como uma patologia imunológica
associada a fatores genéticos que predisporiam ou não ao desenvolvimento do quadro,
diante de outros aspectos facilitadores, como alimentação, fatores ambientais, agentes
infecciosos e outros. Em regiões de clima frio e temperado, o risco de contrair a doença é
maior do que nos trópicos; locais de latitude maior que 30º têm maior prevalência que
locais com mais baixa latitude.
A desmielinização provoca transtornos relativamente permanentes. Geralmente
ocorre entre os 20 e os 40 anos, mais em mulheres que em homens (3:1) e evolui por
anos, embora possa ter períodos de remissão. Cerca de 74% das lesões estão na
substância branca, 17% na junção entre o córtex e a substância branca , 5% no córtex e
4% na substância cinzenta. Quando as degenerações estão presentes no corpo caloso,
podem produzir uma série de alterações cognitivas, entre elas o prejuízo em tarefas que
exijam atenção sustentada e vigilância (sinais de desconexão interhemisférica). Porém,
buscar um padrão único para a natureza do déficit de memória na Esclerose Múltipla
parece difícil, pois a doença lesa áreas inespecíficas, altera diversos sistemas e funções,
além de comprometer diferentes vias, moduladas por diferentes neurotransmissores.
Figura 6.30: Á esquerda, substância branca normal. À direita, placa de desmielinização
recente:
macrófagos
xantomatosos.
Fonte:
www.fcm.unicamp.br/deptos/anatomia/bineuhistogeral.html
É recomendado aos pacientes que evitem altas temperaturas e esforços físicos
excessivos, pois aumentos na temperatura corporal são considerados nocivos aos
179
axônios, dificultando ainda mais a condução do potencial de ação.
A Esclerose Múltipla pode ser aguda, subaguda ou crônica, com períodos de
exacerbação e remissão. A consciência permanece normal e, raras vezes, o pensamento
e a memória são afetados.
Embora a causa exata desta doença ainda não seja bem conhecida, a causa dos
distúrbios sensoriais e motores está bastante clara. As bainhas de mielina dos feixes de
axônios do encéfalo, medula espinal e nervos ópticos são atacados, ocorrendo
endurecimento em seu redor, em muitos lugares do sistema nervoso ao mesmo tempo.
As lesões encefálicas causadas pela Esclerose Múltipla podem ser visualizadas
através da Ressonância Magnética. Além disso, o líquor mostra aumento de
imunoglobilinas e bandas oligoclonais. Contudo, o diagnóstico é elaborado principalmente
com base na história clínica.
Para começar a reabilitação deve-se esperar a relativa estabilização da doença, e
neste momento o médico neurologista é de fundamental importância, pois além de
diagnosticar, deve prescrever o tratamento medicamentoso mais adequado para seu
paciente. Algumas drogas são atualmente utilizadas, como o Interferon Beta (1a e 1b), e o
Acetato de Glatiramer. O médico fisiatra também pode prescrever medicamentos, e o
apoio constante do fisioterapeuta é importante não só para o sucesso do trabalho, mas
também para a manutenção e reformulação do plano de tratamento físico. Apesar de
importante no trabalho físico com o paciente, o fisioterapeuta terá que driblar diversas
dificuldades durante o tratamento, como excesso de fadiga causado por exercícios físicos,
sensibilidade ao calor, e possíveis combinações de déficits, como fraqueza muscular,
espasticidade, ataxia, déficits físicos e sensoriais. Algumas escalas são utilizadas para
auxiliar o trabalho físico, como a Medida de Independência Funcional – MIF, que avalia
atividades cotidianas e funcionalidade, direcionando o tratamento e também pontuando a
progressão da doença.
Devem haver, na equipe, psicólogos com diferentes especializações, que auxiliem o
paciente no curso da doença, especialmente ao utilizarem técnicas que auxiliem a reduzir
o sentimento de não aceitação da doença e das incapacidades, reduzir o sentimento de
impotência, de perda de controle, diminuir o estresse, a ansiedade e a depressão, e
aumentar a esperança e sensação de competência.
180 Figura 6.31: Esquema representando
http://eclerosemultipla.wordpass.com/
a
lesão
na
Esclerose
Múltipla.
Fonte:
Deve também ser feita psicoterapia individual e em grupo, principalmente familiar, e
o uso de técnicas de relaxamento é bem-vindo. A orientação vocacional também deve
entrar no programa de reabilitação, para auxiliar o paciente a tornar conscientes novas
habilidades, que poderão ser úteis para diversas funções, inclusive para recolocação no
mercado de trabalho – levando-se em conta que muitos dos pacientes são afastados de
suas funções iniciais por conta das incapacidades geradas pela doença – e em grupos
sociais.
O terapeuta ocupacional também é de fundamental importância, principalmente
conforme progride a doença, e deverá auxiliar o paciente inclusive em domicílio,
prescrevendo e preparando adaptações da moradia e de utensílios, promovendo máxima
independência.
Esclerose múltipla - Estudos recentes
O fumo é um dos fatores considerados como risco para a Esclerose Múltipla. Os
fumantes têm de 40 a 80% a mais de chance de desenvolver a doença que os não
fumantes. Além disso, quando já existe diagnóstico de Esclerose Múltipla, pacientes
fumantes têm cerca de três vezes mais risco de progredir para as formas mais graves da
doença. A justificativa parece ser os radicais livres produzidos pelo fumo, que causam
danos neuronais. Em indivíduos que já possuem mecanismo de lesão, este quadro pode
ser potencializado.
Existe, atualmente, estudo com Imagem do Tensor de Difusão e fascigrafia por
Ressonância Magnéticaβ, que permitem analisar a integridade dos feixes de substância
branca, o que fornece informações adicionais sobre a caracterização destes, em pacientes
com Esclerose Múltipla, o que não é possível com as técnicas convencionais de
Ressonância Magnética. A caracterização supracitada ainda está em fase de investigação
e estudo, mas é uma técnica promissora no que diz respeito ao diagnóstico da doença.
181
6.8.3. Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA)
A Esclerose Lateral Amiotrófica é uma doença progressiva limitada ao sistema motor
voluntário, que destrói apenas os tratos ativadores laterais e as células do corno anterior
da medula espinal (neurônio motor superior no cérebro, tronco encefálico e medula,
neurônio motor inferior nas regiões medulares espinal e periférica), núcleos motores do
tronco encefálico e córtex motor, causando sinais dos neurônios motores superior e
inferior.
A etiologia da doença ainda não foi esclarecida, e não existe, portanto, método
laboratorial para o diagnóstico. Os exames feitos são apenas para exclusão de outras
patologias, e o diagnóstico é feito baseando-se em achados clínicos, o que não permite
prevenir a ocorrência da doença. Contudo, alguns exames podem auxiliar o diagnóstico,
identificando algumas características histopatológicas (presença intraneuronal de
ubiquitina, gliose reacional, alterações morfológicas de motoneurônios, neurônios atróficos
com núcleo picnótico e presença de esferóides axonais).
Os músculos do Sistema Nervoso Somático são inervados por neurônios motores do
corno ventral da medula espinal, ou neurônios motores inferiores, que comandam a
contração e podem ser alfa ou gama. O motoneurônio alfa libera acetilcolina, que age em
receptores nicotínicos da junção neuromuscular e produz potencial excitatório póssináptico e que gera abertura de canais de Na+ voltagem-dependentes promovendo a
despolarização dos túbulos T e a liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático, que
culmina em contração muscular. O cálcio liga-se à troponina e esta expõe, na actina, os
sítios de ligação para a miosina. A cabeça da miosina se conecta à actina e sofre rotação.
Com ATP, as miosinas se desligam das actinas e o cálcio é recaptado para o retículo
sarcoplasmático por ATPases. A actina é novamente coberta por troponina. Na Esclerose
Lateral Amiotrófica, este mecanismo é afetado progressivamente e resulta em ausência de
contração muscular.
Figura 6.32: Atrofia de neurônios motores da medula espinal, na doença degenerativa
esclerose lateral amiotrófica à direita; à esquerda neurônio normal de outro paciente para
comparar.
Fonte:http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.fcm.unicamp.br/deptos/anato
mia/neupatger10%2B.jpg&imgrefurl=http://www.fcm.unicamp.br/deptos/anatomia/bineuhist
ogeral.html&h=526&w=806&sz=153&hl=ptBR&start=13&tbnid=dIRvduTzU0SvRM:&tbnh=9
3&tbnw=143&prev=/images%3Fq%3D%2522esclerose
%2Blateral%2Bamiotr%25C3%25B3fica%2522%26gbv%3D2%26svnum%3D10%26hl%3D
pt-BR
Os primeiros sinais são fraqueza e atrofia muscular. Geralmente, entre três e cinco
anos todo o movimento voluntário é perdido – a capacidade de andar, falar, deglutir e
respirar são lentamente perdidas. O quadro é caracterizado por paresia, hiper-rigidez
mioplástica, hiper-reflexia, sinal de Babinski, atrofia muscular, fasciculações por atrofia e
fibrilações. No indivíduo acometido, a consciência permanece normal, assim como a
comunicação e a memória, o sistema sensorial e autônomo. A morte do indivíduo decorre
182 de complicações respiratórias.
Esta é uma doença relativamente rara, apesar de ser a mais comum das doenças do
neurônio motor em adultos, e sua causa é desconhecida.
Figura 6.33: Cortes pela parte alta do bulbo mostrando no corte da figura acima, de um
caso de ELA, a palidez da mielina nas pirâmides bulbares, que correspondem ao trato
corticospinal. Comparar com o lemnisco medial (fibras sensitivas), na linha média logo
acima, e com as pirâmides no corte de cérebro normal na figura abaixo. Fonte:
http://www.fcm.unicamp.br/deptos/anatomia/bineuela1.html
183
Figura 6.34: Esquema do sistema motor. Fonte: www.afh.bio.br/nervoso/img/Nervos18.gif
Por volta de 90% dos casos são idiopáticos, embora uma das formas da ELA, a
forma familiar, já tenha o gene responsável identificado (mutação da enzima superóxido
dismutase). Neste subtipo da doença, um produto tóxico do metabolismo celular é a
molécula negativamente carregada de oxigênio (radical superóxido), a qual é
extremamente reativa e pode provocar danos celulares irreversíveis. A superóxido
dismutase é uma enzima essencial para que os radicais superóxido percam seus elétrons
extras, convertendo a molécula novamente em oxigênio. A ausência desta enzima leva ao
acúmulo de radicais superóxido, lesando as células.
Existe a hipótese de que a ELA seja causada por excitotoxicidade do glutamato e
aminoácidos relacionados, o que causa morte neuronal. Além disso, sugere-se que um
transportador de glutamato pode estar defeituoso, provocando exposição prolongada dos
neurônios em atividade ao glutamato extracelular.
A primeira droga aprovada para o tratamento da ELA foi o riluzole, um bloqueador da
liberação de glutamato. Porém, apesar de seu uso retardar em alguns meses a progressão
da doença, a longo prazo o desenvolvimento do quadro continua igual.
184 Figura 6.35: Esquema da alça motora.
Esclerose Lateral Amiotrófica – estudos recentes
Estudos com antibióticos ß-lactâmicos em modelos animais da doença sugerem que
esses fármacos atuariam auxiliando a neuroproteção, uma vez que foi observada, após
administração da droga, maior produção de fatores neuroprotetores no Sistema Nervoso
Central. O mecanismo parece estar associado principalmente à excitotoxicidade do
glutamato, pois os antibióticos utilizados induzem aumento na produção das moléculas
transportadoras que recolhem o excesso deste neurotransmissor no Sistema Nervoso
Central. Esta alternativa reduz o risco de danos aos neurônios, causados pelo excesso de
glutamato.
Também foi sugerido que os radicais livres seriam responsáveis por lesões na
Esclerose Lateral Amiotrófica. Contudo, estudos recentes em modelos animais propõem
que a presença de radicais livres é, na verdade, conseqüência e não causa da lesão. Foi
feita terapia com antioxidantes e não houve resultado satisfatório, permitindo supor que,
então, os radicais livres não eram a causa da doença.
Outra alternativa pesquisada para a Esclerose Lateral Amiotrófica são as
substâncias antinflamatórias, pois foram evidenciados processos inflamatórios no
desenvolvimento da doença. A excitotoxicidade do glutamato e a ação de radicais livres,
no Sistema Nervoso Central, são importantes mecanismos neurodegenerativos. A
inflamação pode contribuir no processo de degeneração, junto com estes dois outros
fatores. Foi observada a presença de níveis aumentados de prostaglandinas em cérebros
de indivíduos acometidos pela patologia. Sabe-se que as prostaglandinas são próinflamatórias. Estudos experimentais em modelos animais com camundongos
geneticamente modificados para desenvolver a doença observaram que o uso de
antinflamatórios estava envolvido no retardo do quadro – maior sobrevida, melhor resposta
motora e menor perda de massa muscular. A identificação de maiores quantidades de
185
fosfolipase A2 em camundongos com Esclerose Lateral Amiotrófica sugere que esta
enzima tenha importância significativa no desenvolvimento da doença. O aumento da
fosfolipase A2 antecede a lesão neuronal e a conseqüente perda motora, em
camundongos. Se realmente esta enzima for fundamental para o surgimento da doença,
então o tratamento à base de sulindaco, substância antinflamatória utilizada nos
camundongos, pode ser efetivo para retardar o desenvolvimento do quadro clínico.
Atualmente, amostras de sangue de indivíduos acometidos pela Esclerose Lateral
Amiotrófica estão sendo estudadas por eletroforese bidimensional e Western Blotting.
Estes estudos fornecerão informações sobre a composição das proteínas das amostras
analisadas, e poderão contribuir para o desenvolvimento de marcadores que auxiliem o
diagnóstico da doença.
6.8.4. Doença de Huntington
A doença de Huntington é uma doença hereditária autossômica dominante,
progressiva, cujo início se dá entre os 40 e os 50 anos, e que leva à morte em
aproximadamente 15 anos após o aparecimento dos sintomas. Provoca degeneração em
muitas áreas cerebrais, principalmente no estriado e córtex cerebral, o que gera
diminuição de sinais por inibição direta e excessiva do globo pálido interno e da substância
negra reticular (núcleos estimuladores) pelo putâmen, e leva à desinibição do tálamo motor
e do núcleo pedúnculopontino. Esta desinibição é inadequada, produzindo estimulação
excessiva tanto do tálamo motor quanto do núcleo pedúnculopontino, causando
hipercinesias.
É causada pela mutação dominante de um gene que codifica proteína de alto peso
molecular chamada huntintina, no cromossomo 4, prolongando-a mais que o normal. Estas
proteínas mutantes se agregam e desencadeiam a degeneração neuronal. Não se
conhece ainda a função da huntintina normal, mas é possível que sirva para
contrabalançar os gatilhos de morte celular programada. Observou-se acúmulo de
huntintina no encéfalo de indivíduos com a doença de Huntington e concluiu-se que a
proteína induz degeneração neuronal, provavelmente por mecanismo de apoptose.
Observou-se também que a injeção de agonistas NMDA no estriado de ratos
desencadeava perda celular semelhante à da doença de Huntington, levando à hipótese
de que o gene alterado do cromossomo 4 produz alteração que desencadeia a ativação
excessiva dos receptores NMDA ou a liberação excessiva de glutamato.
Além de hipercinesia (movimentos involuntários anormais, rápidos e espasmódicos,
mas relativamente coordenados dos membros, tronco, cabeça e face) - no caso a coréia a doença de Huntington é caracterizada por demência e transtorno de personalidade.
Figura 6.36: Diferenças encefálicas encontradas na doença de Huntington, em
ressonância magnética.
Fonte: Adaptado de www.sciencemuseum.org.uk/exhibitions/genes/images/1-3-5-1-4-2-11-2-2-0.jpg
186 É uma síndrome inevitavelmente letal, cujos sintomas aparecem apenas na idade
adulta, quando o indivíduo provavelmente já teve filhos e transmitiu os genes da doença.
Pacientes com a doença de Huntington apresentam dificuldade no aprendizado de
tarefas nas quais a resposta motora vem associada a um estímulo. Porém apesar de os
indivíduos acometidos geralmente apresentarem disfunções motoras, estas não condizem
com a severidade dos déficits cerebrais, sugerindo que essa deficiência seja uma
conseqüência da doença. Esta constatação sugere que as doenças que atingem os
núcleos da base afetam a memória de procedimentos, vinculada ao estriado – um dos
focos de ataque da doença de Huntington.
Figura 6.37: Sistema de neurotransmissão alterada na doença de Huntington.
6.8.5. Demência
A demência é caracterizada por crise na qual ocorre declínio cognitivo persistente,
que interfere nas atividades diárias, sejam elas sociais ou profissionais, e que independem
do nível de consciência do indivíduo. Ocorre comprometimento da memória, e de pelo
menos uma das outras funções cognitivas, como linguagem, gnosias, orientação espacial,
funções executivas, praxias e capacidade de abstração, por lesão no Sistema Nervoso
Central. Só o declínio da memória não é suficiente para caracterizar um quadro de
demência, contudo, sua existência é essencial para seu diagnóstico. A demência
geralmente interfere na capacidade de memorização, e com o tempo pode afetar também
a memória remota.
187
O começo da demência traz distúrbios como dificuldade de nomeação de objetos,
trocas de fonemas ou palavras, dificuldade para nomear objetos e imitar gestos complexos
e para vestir-se, dificuldades de reconhecimento de lugares conhecidos e pessoas com as
quais têm pouco contato; as funções executivas (planejamento, organização e
seqüenciamento de atividades corriqueiras, como preparar o jantar ou fazer a
contabilidade dos gastos mensais) ficam comprometidas. O comprometimento da
compreensão ocorre nas fases mais avançadas.
A demência é freqüente na população idosa, e a partir dos 65 anos sua prevalência
dobra a cada 5 anos, aproximadamente. Por ser conseqüente de várias patologias
(vasculares, neurológicas, neoplásicas, etc), é importante que não seja tratada
isoladamente, e que todos os profissionais da saúde que atuam com indivíduos idosos
estejam familiarizados com sua conduta clínica inerente.
A diminuição da cognição na idade adulta pode ser degenerativa ou não. A demência
degenerativa representa um processo que causa morte de neurônios do sistema nervoso
central. A demência ocorre tardiamente na vida, e caracteriza-se por degeneração mental
generalizada, com desorientação e comprometimento da memória, do julgamento e do
intelecto. Muitas etiologias diferentes podem levar à este quadro. Entre as mais comuns
estão os infartos múltiplos e a doença de Alzheimer.
O hipocampo é geralmente lesado, e é uma das estruturas fundamentais para a
memória, sofrendo atrofia marcante. Formam-se emaranhados neurofibrilares dentro dos
neurônios, envolvendo o núcleo e depois se entendendo para os dendritos. Atingem
primeiramente o hipocampo, mas espalham-se pelo neocórtex conforme progride o
quadro. O número de emaranhados neurofibrilares está envolvido com a gravidade da
demência.
6.8.6. Doença de Alzheimer
A doença de Alzheimer causa degeneração mental progressiva, o que gera perda de
memória, confusão e desorientação do indivíduo acometido, e é sempre fatal. Os sintomas
começam a se tornar aparentes geralmente após os sessenta anos, e a expectativa de
vida costuma ser de 5 a 10 anos após o diagnóstico.
O começo do quadro é caracterizado por sinais de esquecimento, que progridem
para incapacidade de lembrar palavras, de produzir e mesmo compreender a linguagem.
No estágio mais avançado da doença, o paciente negligencia o uso de roupas, a aparência
e a alimentação. Além disso, o indivíduo apresenta cegueira de movimento, ou a
incapacidade de interpretar o fluxo de informação visual – incapacidade de interpretar a
direção do movimento de objetos em seu campo visual. Esta incapacidade interfere no uso
da informação visual para o auto-movimento, e poderia explicar a tendência para
divagação e perda, comuns nos doentes de Alzheimer.
As alterações celulares incluem aglomerados neurofibrilares (massas aglomeradas
de neurofibrilas; acúmulo de proteína tau que sofre processo de hiperfosforilação e lesa
células), placas senis (lesões extracelulares formadas por cúmulo central de proteína
amilóide envolta por axônios e dendritos degenerados, e restos de células gliais) e atrofia
grave do córtex cerebral, da amígdala e do hipocampo.
Figura 6.38: Placas senis: há depósito de substância amilóide, que pode ser visível (como
nesta foto de córtex cerebral). Há também espessamento e tortuosidades dos dendritos e
axônios nas proximidades do depósito, que podem ser demonstrados com impregnação
188 pela prata. Fonte: http://www.fcm.unicamp.br/deptos/anatomia/bialzheimer.html
A função das células do complexo prosencefálico basal ainda é desconhecida, mas
sabe-se que é um dos primeiros grupos celulares a morrer durante a evolução da doença
de Alzheimer. Esta área tem sido associada às funções cognitivas, e podem ter papel
essencial no aprendizado e na formação da memória.
Estima-se que 1,3% das pessoas entre 65 e 74 anos e 4% das pessoas entre 75 e
84 anos sejam acometidas pela doença de Alzheimer. Além disso, as pessoas com
trissomia do 21 apresentam quadro de alterações celulares semelhantes às do Alzheimer
por volta dos 40 anos, e os indivíduos acometidos pela doença de Alzheimer têm algumas
células geneticamente normais e outras com trissomia do 21.
Grande progresso na biologia molecular permite hoje identificar o gene para a
proteína precursora amilóide (PPA), presente no cromossomo 21. Assim, pessoas com
síndrome de Down são mais vulneráveis à doença de Alzheimer, pois têm um
cromossomo 21 a mais. Apesar disso, não é claro como a mutação do gene causa a
doença nem mesmo qual a função da PPA normal no cérebro.
Sugere-se que a PPA normal estimule a proliferação de neurônios e reforce os
efeitos dos fatores de crescimento nervoso, enquanto que a PPA mutante cause morte do
neurônio.
Os casos precoces de doença de Alzheimer (entre 28 e 60 anos) foram ligados à
presença dos genes presenilina 1 (PS1), encontrado no cromossomo 14, e presenilina 2
(PS2) nos cromossomos 14 e 1. Quarenta mutações diferentes do PS1 foram ligadas ao
começo precoce da doença, enquanto apenas duas do PS2 foram identificadas como
causa desta precocidade. Todas estas mutações aumentam a produção e o depósito
amilóide e podem levar um gene PPA normal a produzir proteína amilóide mutagênica.
Outra proteína que parece estar ligada à maioria dos casos de Alzheimer é a
apolipoproteína ε (Apoε), reguladora do metabolismo de gordura, cujo gene encontra-se no
cromossomo 19 e possui diversos alelos. O alelo ε4, mesmo homozigoto, traz um risco
muito maior para a doença de Alzheimer, além de estar associado com a má recuperação
de danos encefálicos e de influenciar os depósitos amilóides.
A Apoε formada liga-se à proteína tau, que faz parte dos emaranhados
neurofibrilares, permitindo que se hipotetize que a proteína tau produza os emaranhados
e, conseqüentemente, a morte dos neurônios.
As pesquisas sobre doença de Alzheimer também enfocam os sistemas de
neurotransmissores, apontando a redução da enzima colina acetiltransferase, responsável
pela síntese de acetilcolina, nos portadores da doença. Os receptores 5-HT2A, NMDA e
AMPA também estão diminuídos. Além disso, os receptores muscarínicos estão
aumentados, possivelmente representando regulação para cima, conseqüente da
diminuição da atividade da acetilcolina. Alguns medicamentos que reforçam a função da
acetilcolina são efetivos na melhora da cognição, ainda que em pequena escala, mas não
são capazes de alterar o curso de longo prazo da doença.
É de fundamental importância que se descubra os mecanismos genéticos da doença
de Alzheimer, para que se possa desenvolver drogas capazes de evitar a formação dos
emaranhados neurofibrilares e dos depósitos amilóides.
A excitotoxicidade também tem sido implicada como causa da doença de Alzheimer.
Ainda não há exames específicos para detectar a doença, mas existem exames
como a ressonância magnética para medir o hipocampo e a determinação da
concentração de proteína tau, além das proteínas amilóides no líquido cerebroespinal, que
são técnicas promissoras. Também não existe tratamento efetivo específico nem
preventivo para a doença de Alzheimer. O que se faz atualmente é inibir a enzima
acetilcolinesterase, para que não destrua a acetilcolina na fenda sináptica, pois observouse que nesta patologia ocorre redução na concentração de acetilcolina em núcleos
subcorticais específicos, considerada responsável por parte da alteração encontrada no
quadro clínico.
São utilizados hoje a rivastigmina, a galantamina e o donepezil, principalmente em
casos leves e moderados (apesar de ter sido observada alguma melhora nos quadros
mais avançados). Além destas, a vitamina E em doses altas também parece retardar o
quadro demencial. Os transtornos de humor podem precisar de tratamento específico e
são usados preferencialmente os antidepressivos com menor ação anticolinérgica e
189
neurolépticos atípicos.
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191
192 COGNIÇÃO
Aula Inaugural
Arnaldo Cheixas-Dias ([email protected]) e Rodrigo Pavão ([email protected])
Laboratório de Neurociências e Comportamento
A origem da palavra cognição vem da expressão latina cognitione, que é a
percepção da realidade externa. Refere-se aos mecanismos pelos quais os animais
adquirem, processam, estocam e usam informações do ambiente. No escopo da biologia,
cognição envolve diversas funções fisiológicas: percepção, atenção, memória, raciocínio,
imaginação, linguagem e consciência.
Desde Platão e Aristóteles, passando pela Psicologia Experimental e a própria
Neurociência moderna, vários paradigmas vêm propondo formas de abordar a cognição.
Nesse módulo, pretendemos resgatar esse histórico sob a luz da comparação
interespecífica, com vistas ao estabelecimento de uma “imagem” da cognição ao longo da
história evolutiva.
O campo no qual há confluência de todos os esforços científicos para a
compreensão da cognição é a neurociência cognitiva. Ela reúne conhecimentos
acumulados pela biologia, pela psicologia e pela medicina. Distinguimos, ainda que com
enorme dificuldade de explicitar elementos objetivos, cérebro de mente. O principal papel
da neurociência cognitiva talvez seja exatamente esse, o de explicar objetivamente como é
que se extrai a mente do cérebro, ainda que não saibamos exatamente o que é mente.
Um grande desafio no sentido de responder a essa questão invariavelmente tem sido
a concepção de como funciona o encéfalo. De um lado há a idéia de que diferentes
funções seriam controladas por diferentes regiões do encéfalo. Por outro lado, há
defensores da idéia de que o encéfalo tem um funcionamento global, um sistema que
desempenha seu papel apenas se considerado como uma unidade funcional ele próprio.
Tudo começou a cerca de 200 anos com a frenologia e com ela a idéia o cérebro era
organizado em cerca de 35 funções especificas (Figura 1). Essas funções, que variavam
de funções básicas cognitivas, como a linguagem e a percepção da cor, até capacidades
mais efêmeras, como a esperança e a auto-estima, eram concebidas como sendo
mantidas por regiões especificas do cérebro. Além disso, se uma pessoa usava uma das
faculdades com mais freqüência que as outras, a parte do cérebro que representava esta
função devia crescer. De acordo com os frenologistas, esse aumento do tamanho de uma
região cerebral causaria uma distorção no crânio. Logicamente, então, a análise detalhada
da anatomia do crânio poderia descrever a personalidade de uma pessoa.
O fisiologista experimental Pierre Flourens (Figura 2) questionou a visão
localizacionista dos frenologistas. Ele estudava animais, especial mente pombos, e
descobriu que lesões em áreas particulares do cérebro não causavam certos déficits
duradouros de comportamento. Não importava onde fizesse a lesão no encéfalo, a ave
sempre se recuperava. Ele desenvolveu, então, a noção de que todo o cérebro participa
no comportamento.
193
Outros trabalhos, no entanto, levaram a uma compreensão distina de como funciona
o encéfalo. Paul Broca (Figura 3) tratou um paciente que podia entender a linguagem, mas
não conseguia falar. A região do cérebro que estava lesada foi denominada,
posteriormente, de área de Broca. Carl Wernicke (Figura 4) relatou o caso de um paciente
que podia falar quase normalmente mas o que ele falava não fazia sentido e também não
compreendia a linguagem escrita ou falada. Ele tinha uma lesão em uma região posterior
do hemisfério esquerdo que foi denominada área de Wernicke. Esses aspectos exclusivos
da linguagem que estavam prejudicados por lesões especificas ajudaram a retomada da
visão localizacionista.
Outros pontos foram levantados pelos defensores do funcionamento global do
encéfalo. O psicólogo experimental Karl Lashley relatou que lesões no córtex realizadas
antes e depois de aprender determinavam prejuízos de aprendizagem e memória em
tarefa de labirinto, e que esses prejuízos eram correlacionados com tamanho mas não
com a localização da lesão, favorecendo a hipótese do funcionamento global (Figura 5).
No entanto, algumas falhas podem ser apontadas ao trabalho de Lashley: a tarefa de
aprendizado em labirinto requer muitas modalidades, que, por sua vez, requerem tanto do
sistema nervoso, que nenhuma lesão isolada pode produzir um déficit de aprendizado. Se
um animal aprendeu a tarefa de locomover-se em um labirinto usando informação visual e
proprioceptiva, uma lesão no sistema visual ou no sistema proprioceptivo pode não ser
suficiente para criar um déficit, pois uma das modalidades pode compensar a lesão.
Seguindo essa lógica, caso uma lesão seja tão grande que inclua todas as modalidades,
então o déficit deve ser observado.
194 Na tentativa de unificar os diversos achados, Donald Hebb sugeriu que conjuntos de
células, distribuídos ao longo de vastas áreas do córtex, trabalhavam em conjunto para
processar e representar informações. Com a acumulação de evidências adicionais, esta
perspectiva começou a ser encarada como um dos princípios-chave do funcionamento do
sistema nervoso.
Assim, a despeito dos relatos de casos de lesão e da própria descrição do neurônio,
afirmar que partes específicas do encéfalo controlam exclusivamente determinadas
funções não encontra sustentação inequívoca. Há inúmeros casos de lesão em que a
deficiência não se manifesta de maneira regular e simples, na base da associação áreafunção. O encéfalo, além de ter uma organização rica e complexa, tem também uma
característica especial, que é a plasticidade. Uma função ausente em virtude de uma lesão
pode reaparecer após um período em que o encéfalo de reorganiza com conexões
diferentes. Um estudo bastante interessante que mostra essa plasticidade é o de Leah
Krubitzer, em que foi observado uma estruturação cortical bastante diferente da habitual
em gambás adultos que tiveram parte do córtex removido ainda quando fetos.
O debate acerca do modo de funcionamento do encéfalo, se baseado na localização
de cada função em determinada área ou se baseado no funcionamento do sistema como
um todo, atravessou todo o século XX e, de certo modo, continua atual. Cientistas da
biologia molecular continuam descobrindo processos neuronais surpreendentes. O
ambiente extra-celular continua surpreendendo neuroanatomistas com elementos que têm
importante papel na comunicação entre células, direta ou indiretamente. De fato, não
temos conhecimento ainda, sobre como as inúmeras partes que compõem o encéfalo
195
funcionam isoladamente. Tampouco sabemos como todas essas partes funcionam em
conjunto para produzir comportamentos complexos, controlar emoções, memórias etc. De
qualquer modo, não se pode desprezar informações e conhecimentos originados de
ambas as visões, localizacionista e holística. Um fator que não pode ser esquecido, nesse
sentido, é o paradigma evolutivo. Todos os animais ao longo da história evolutiva sempre
tiveram de lidar com problemas que lhe garantissem sobrevivência. O encéfalo de um
inseto pode não apresentar determinadas homologias com o encéfalo humano e, mesmo
assim, ser capaz de resolver os mesmos tipos de problema. Deste modo, parece coerente
acreditar na hipótese segundo a qual o encéfalo, embora composto de distintas partes,
funciona como um todo, um sistema único. Uma lesão no lobo temporal, por exemplo, não
deve produzir simplesmente um encéfalo sem lobo temporal. Esse encéfalo torna-se um
novo sistema, com múltiplas possibilidades de ajuste à nova condição.
A psicologia ganhou grande espaço na discussão a partir do estabelecimento da
psicologia experimental. O século XX viu a ciência comportamental despontar e inundar o
mundo acadêmico com toda sorte de mensurações de comportamentos. Descreveu-se
como é possível ensinar qualquer animal a se comportar de determinada maneira
controlando-se as conseqüências que se seguiam a respostas voluntárias. Buscando
espaço no conjunto de ciências naturais, a psicologia propõe a base behaviorista de
análise do comportamento. Os behavioristas defendiam que a psicologia tem de lidar com
o comportamento público e observável, deixando de lado eventos privados (como
sentimentos e emoções), já que esses não fariam parte do objeto de estudo da psicologia.
Numa segunda fase comportamentalista, o behaviorismo radical, passa-se a defender que
mesmo os eventos privados devem ser explicados como comportamentos selecionados
pelo ambiente, assim como proposto por Darwin em relação aos genes. O psicólogo
americano B. F. Skinner descreve esse processo como nível ontogenético de seleção por
conseqüências.
Outro importante movimento dentro da psicologia ativo nessa discussão do século
XX é o cognitivismo, que defende que há intencionalidade subjacente aos comportamentos
voluntários. Embora tal afirmação pareça redundante, deve-se ressaltar que o
behaviorismo estabelece como causa do comportamento o ambiente e nunca a intenção
e/ou decisão do sujeito. Assim, não há livre-arbítrio.
A psicanálise propõe um modelo de funcionamento do psiquismo que se preocupa
pouco com a fisiologia dura e descritiva e bastante com o processo resultante desse
funcionamento. O quadro que se vê na psicologia no século XX, inalterado até hoje, é o de
uma ciência com mais de um objeto de estudo, a depender da corrente filosófica adotada.
O aspecto positivo dessa realidade é a possibilidade de lançar diferentes olhares sobre o
fenômeno cognitivo até que se possa estabelecer um paradigma mais universalmente
aceito.
Outras abordagens científicas têm colaborado sistematicamente para a
compreensão do fenômeno cognitivo. A etologia, a computação, a própria engenharia...
áreas diversas entre si mas com contribuições significativas e muitas vezes
complementares.
A grande área que tem acolhidos esses esforços multidisciplinares é a neurociência
cognitiva. Com o uso de métodos cada vez mais modernos, tem se tornado cada vez mais
comum a integração de conhecimentos das diferentes áreas, inclusive a própria integração
dos diferentes profissionais. Biólogos, psicólogos, engenheiros, médicos, filósofos, físicos,
matemáticos, computólogos.
A eletrofisiologia, imageamento cerebral, os experimentos de psicofísica, enfim,
todos os métodos que permitem tatear fenômenos cognitivos têm sido usados cada vez
mais e de forma cada vez mais compartilhada por cientistas de diferentes formações com
o intuito de compreender melhor a cognição. A neurociência cognitiva, possibilitando a
reunião dos esforços em torno de objetivos comuns, pode ser o caminho mais curto para
desvendar o fenômeno cognitivo enquanto processo complexo, do qual participam
diversas funções fisiológicas.
Apresentando a perspectiva dos sistemas neurais e da psicologia cognitiva,
esperamos transmitir uma síntese do entendimento da forma como a congição funciona.
196 Fisiologia da Atenção
Arnaldo Cheixas-Dias ([email protected]) - Laboratório de Neurociências e Comportamento
O estudo da atenção é de interesse de várias disciplinas científicas e, para que se
empreenda qualquer tipo de pesquisa a seu respeito, é condição que se estabeleça uma
definição para o fenômeno. Esta não é uma tarefa fácil, já que existem várias concepções
diferentes de atenção, e cada uma delas implica diferentes formas de delinear estudos que
permitam sua avaliação. Atenção é definida comumente como o processamento seletivo
de determinadas informações sensoriais do ambiente presente devido a limitações do
sistema nervoso para processar todas as entradas sensoriais (Laberge, 2000; Bushnell,
2001). Muito da sustentação desse tipo de definição parece dever-se ao relato moderno do
fenômeno feito por William James no final do século XIX, que escreveu sobre o assunto:
Everyone knows what attention is. It is the taking possession by
the mind, in clear and vivid form, of one out of what seems several
simultaneously possible objects or trains of thought. (apud Posner,
1994)1
A definição de James ressalta o aspecto seletivo da atenção, idéia compartilhada até
hoje e que é coerente com a noção de que há uma limitação do sistema nervoso para
processar informações simultâneas. Por outro lado, há uma expressão nas palavras de
James que merece cuidado quanto ao sentido que pode assumir. O que significa “tomar
posse pela mente”? Uma vez que é difícil definir o que é mente, melhor parece substituir
essa expressão por módulos de processamento do sistema nervoso. Ainda, como “tomar
posse” pressupõe um agente iniciador interno, tão melhor parece dispensar a expressão.
O cuidado que se deve ter ao usar esse tipo de expressão é não considerar o fenômeno
(processamento seletivo de informação pelo sistema nervoso, intitulado atenção) como a
causa de um comportamento que a ele se segue. Se observamos uma criança imóvel a
olhar o pai amarrando o cadarço de seu sapato e, mais tarde, vimos ela própria a
reproduzir a ação, somos tentados a afirmar que ela aprendeu a tarefa porque prestou
atenção aos movimentos do pai. É importante saber que o “prestar atenção” é um
comportamento e que deve ser compreendido a partir da história de aprendizagem
daquela criança, bem como da história comportamental embutida na filogênese (Skinner,
1981; Baum, 1999; Donahoe e Palmer, 1994). Ou seja, o que se quer saber é exatamente
a causa para o comportamento de prestar atenção, de modo que a atenção, ela própria,
não pode ser considerada uma causa em si, ainda que seja para o evento que a ela se
segue.
Os estudos de fisiologia representam um recorte feito dentro de uma contingência
estabelecida, ou seja, o recorte recai sobre o momento em que o organismo presta
atenção. Feito esse recorte, pode-se estudar a participação de neurotransmissores em
áreas específicas do encéfalo, reações autonômicas concomitantes, parâmetros temporais
associados ao fenômeno e assim por diante. Esses estudos não mudam em nada a
análise funcional (a atenção ocorre “em função de”) a que se presta a psicologia
comportamental. Para quem faz estudos fisiológicos é importante saber que a atenção não
ocorre em função de alterações no sistema nervoso, já que tais alterações são, elas
próprias, aquilo que nomeamos como atenção. O importante para a fisiologia é
compreender em detalhes exatamente o que acontece no sistema nervoso no momento
em que uma informação é selecionada para processamento em detrimento de outras
concomitantes. O esforço presente da fisiologia no estudo da atenção é tornar observável
um fenômeno até aqui encoberto. A seguir, são apresentados os principais modelos
explicativos para a atenção com vistas a uma definição coerente com os aspectos
discutidos anteriormente e que possa servir de base para um estudo experimental que se
queira conduzir sobre o tema. Em outras palavras, um modelo experimental de estudo da
atenção proposto deve satisfazer dois critérios: (1) o fenômeno deve possuir definição
coerente com a fisiologia e delimitação clara, já que a atenção é um fenômeno fisiológico
e; (2) deve permitir a explicação funcional da contingência comportamental em vigor.
1
“Todo mundo sabe o que é atenção. É tomar posse da mente, de modo claro e vívido, de um dos que parecem ser vários objetos ou
sucessões de pensamento simultaneamente possíveis.”
197
Principais modelos explicativos
Há dois vieses no estudo científico sobre a atenção. O primeiro é que apenas
recentemente passou-se a estudar o fenômeno em animais. Como nesses estudos o
experimentador não pode dispor da linguagem verbal para instruir seu sujeito experimental
na tarefa, os limites do fenômeno ficam necessariamente bem estabelecidos. Assim, ainda
que os estudos com animais sejam recentes, o avanço obtido já é significativo. O segundo
é que os estudos sobre atenção têm predominado sobre as modalidades sensoriais
auditiva e, principalmente, visual (Nahas, 2004). Na verdade são vieses históricos mas que
não representam um problema comprometedor para a área. Como a atenção não é
completamente compreendida, a incursão inicial a partir de uma modalidade sensorial bem
estudada, como é a visão, ajuda a estabelecer com boa sustentação um primeiro
arcabouço explicativo para somente depois avançar os estudos para outras modalidades
sensoriais. Sob o ponto de vista comparativo existem, portanto, dois aspectos importantes
para o estudo da atenção: a comparação intermodal e a comparação entre espécies. O
primeiro deles tem sido buscado e o segundo depende de algum crescimento nos estudos
presentes com audição e visão.
Muir (1996) propõe a existência de 3 formas distintas de atenção: a atenção
sustentada, a atenção dividida e a atenção seletiva. A atenção sustentada seria um estado
de prontidão do sistema nervoso para perceber quaisquer variações ambientais e permitir
que o organismo responda rapidamente a elas. A atenção dividida expressa o
processamento concomitante de mais de uma fonte de estimulação similarmente
relevantes. Em tarefas experimentais em que se exige do sujeito executar mais de uma
instrução ao mesmo tempo observa-se uma queda da capacidade executiva, mas é difícil
estabelecer se ocorre um processamento paralelo com menos intensidade ou se o
processamento é feito com intensidade única mas alternado entre as diferentes subtarefas. Já a atenção seletiva seria o processamento, pelo sistema nervoso, de uma fonte
de estimulação ao mesmo tempo em que se ignora outras.
Essa divisão proposta por Muir não encontra consenso na comunidade científica
uma vez que não é possível distinguir claramente um tipo de atenção de outra. A atenção
sustentada, por exemplo, não exclui o processamento seletivo, já que uma alteração no
ambiente é selecionada dentre outros aspectos que são mantidos inalterados. Ainda, se a
expectativa diz respeito a qualquer alteração, de forma indiscriminada, pode ser que o
processamento atencional se dê de forma alternada entre as diferentes regiões do espaço
sob freqüência alta, ainda assim seletiva a cada mudança atencional. A atenção dividida
tampouco exclui o aspecto seletivo do processamento de informação. Finalmente, a
expressão “atenção seletiva” é criticada por alguns autores por parecer redundante, “uma
vez que atenção é, por definição, seletiva” (Fuster, 1995 apud Nahas, 2004: p. 92). Mais
econômico, então, é usar apenas a expressão atenção, tendo implícita a idéia de que
representa o processamento seletivo, pelo sistema nervoso, de informações sensoriais do
ambiente presente.
Uma questão importante neste ponto diz respeito ao ambiente. Ele não representa
tudo o que está fora do corpo do organismo. Se uma pessoa está num ponto de ônibus e,
enquanto espera o veículo, passa a reproduzir uma canção a partir de sua memória, pode
até perder o ônibus, mesmo tendo ele parado no ponto. Parece claro que o processamento
seletivo de informações focalizou-se sobre o conteúdo da memória da pessoa (ambiente
interno) ao mesmo tempo em que ignorou a presença do ônibus no ponto (ambiente
externo).
Broadbent (1958) propôs uma teoria segundo a qual haveria uma completa filtragem
da informação em função da capacidade limitada do sistema de processamento (Fig. 1).
As informações, chegando no sistema sensorial em paralelo, seriam filtradas por um
sistema de retenção provisória da informação com base em seus atributos físicos e
apenas as informações relevantes seriam selecionadas para processamento adicional.
Segundo esse modelo, a seleção se daria em níveis sensoriais. Por outro lado, vários
estudos demonstraram que informações não relevantes são processadas, ainda que
minimamente, em estações nervosas posteriores ao nível sensorial (Gray e Wedderburn,
1960; Treisman, 1960 apud Broadbent, 1982 apud Nahas, 2004). Um bom exemplo
incompatível com o modelo é quando uma pessoa, ao atender a uma conversa, escuta seu
198 nome em outra conversa não atendida. O estímulo significativo (nome) “é prontamente
detectado e ‘captura’ a atenção do sujeito” (Moray, 1959).
Figura 1. Modelos explicativos para a função seletiva da atenção. Adaptado de Laberge,
2000: p. 712.
Um modelo altenativo ao de Broadbent é apresentado por Treisman (1960), para
quem haveria um filtro sensorial com função seletiva, da mesma forma como proposto por
Broadbent. Por outro lado, este filtro teria uma função seletiva atenuadora e não de
seleção completa, de modo que todas as informações passariam por algum
processamento adicional central (Fig. 1).
Laberge e Samuels (1974 apud Laberge, 2000) propõem que há 2 tipos de influência
imediata sobre a seletividade do sistema nervoso quanto ao processamento da
informação. Num caso, o nível de atividade neuronal para processamento de determinada
informação seria dirigido pela intensidade dos estímulos apresentados ao organismo e se
daria no nível sensorial (estimulação retiniana, exclusivamente, no caso da atenção
visual), o que explicaria o tipo de seleção proposta pelos modelos de Broadbent e de
Treisman (Fig. 1). Grosso modo, a seletividade atencional estaria sendo dirigida pelo
estímulo, sendo daí o controle da atenção chamado “de baixo para cima” ou exógeno
(Egeth e Yantis, 1997 apud Laberge, 2000). Dentro dessa acepção, podemos inferir que o
estímulo elicia a resposta de direcionamento da atenção (que, nesse caso, seria uma
resposta reflexa).
O outro tipo de influência imediata sobre a seletividade do sistema nervoso para
processar informações se daria “de cima para baixo”, ou seja, haveria controle central na
seleção de estímulos a ser processados, baseado na história prévia de aprendizagem do
organismo. Esse controle “de cima para baixo” estaria relacionado com uma espécie de
expectativa do sistema nervoso em relação a um estímulo que esteja por vir ou mesmo o
atendimento voluntário a determinado estímulo, comportamento esse que estaria, assim,
sendo reforçado pela conseqüência que produz. O controle, nesse caso, é chamado
endógeno (Egeth e Yantis, 1997 apud Laberge, 2000).
Da mesma forma que se poderia inferir o eliciamento da resposta de direcionamento
reflexo da atenção no caso do controle “de baixo para cima”, pode-se inferir no caso do
controle “de cima para baixo” que o direcionamento voluntário da atenção é reforçado pela
conseqüência “x”. A inferência apresentada pode ser fonte de mal-entendido já que, do
ponto de vista da psicologia comportamental, o controle sobre o comportamento voluntário
de “atender a” está na conseqüência produzida por ele, de modo que se não poderia dizer
que o controle é central. Para desfazer tal confusão, parece apropriado não perder de vista
199
que a identificação do controle efetivo necessita de uma análise da contingência de reforço
que mantém a resposta de atender voluntariamente a determinado estímulo.
De um lado temos as expressões “de baixo para cima” (Egeth e Yantis, 1997 apud
Laberge, 2000) e orientação exógena (Posner, 1980) associadas à idéia de
desencadeamento automático da atenção (determinado pelo estímulo no nível dos
receptores sensoriais e seus correspondentes sistemas de processamento, eliciando uma
resposta atencional automática). De outro lado temos as expressões “de cima para baixo”
(Egeth e Yantis, 1997 apud Laberge, 2000) e orientação endógena (Posner, 1980)
associadas à idéia de desencadeamento operante da atenção (determinado pela história
prévia de aprendizagem, produzindo uma resposta atencional operante, reforçada pelas
conseqüências que produz).
Vale ressaltar que situações de desencadeamento automático podem ser
influenciadas por instruções prévias ou expectativas baseadas na história passada (Helene
e Xavier, 2003). Há, ainda, um aspecto importante acerca da manifestação da atenção e
que diz respeito à topografia do comportamento de atender. O deslocamento dos recursos
atencionais para determinado estímulo pode se dar acompanhada de atividade motora
(movimento dos olhos, flexão corporal, movimento da cabeça etc.), sendo chamada por
Von Helmholtz (1894 apud Van der Heijden, 1992) de orientação manifesta da atenção,
em contraposição à orientação encoberta da atenção, em que não há a presença desses
componentes motores. Deveras, há uma resposta seletiva de processamento de
informação nos dois casos mas com topografias bastante diferentes.
Uma necessidade no estudo do campo seria o desenvolvimento de um delineamento
experimental que pudesse dissociar os elementos da resposta de atender propriamente
dita dos elementos sensoriais e motores a ela relacionados. Posner (1980) propôs uma
tarefa visual para humanos a fim de dissociar tais elementos (Fig. 2). Na tarefa, o sujeito
tinha sua cabeça imobilizada e era instruído a fixar o olhar em um ponto na tela de um
computador a sua frente (os olhos do sujeito também não se mexiam). Solicitava-se ao
sujeito que pressionasse um botão cada vez que um alvo fosse exibido em regiões
periféricas de seu campo visual. Antecedente ao alvo, uma pista que indicava o local de
maior probabilidade de aparição do alvo ou uma pista que não indicava nenhuma
probabilidade diferente do local de aparição do alvo era exibida a cada tentativa. As
tentativas nas quais a pista sinalizava o correto local de exibição do alvo eram chamadas
tentativas válidas (e a pista válida). As tentativas nas quais a pista não sinalizava nenhuma
probabilidade sobre o correto local de aparição do alvo eram chamadas de tentativas
neutras (e a pista neutra). Finalmente, as tentativas nas quais a pista sinalizava o local
incorreto de aparição do alvo eram chamadas de tentativas inválidas (e a pista inválida).
Como ao longo das tentativas não havia movimentação nem da cabeça e nem dos olhos,
trata-se de orientação encoberta da atenção, o que elimina a interferência da atividade
motora.
200 Figura 2: Esquema da tarefa desenvolvida por Michael Posner (1980) para avaliação da
orientação encoberta da atenção visual (Bear, Connors e Paradiso, 2002).
Posner (1980) aferiu o tempo de reação ao aparecimento do alvo. A avaliação da
atenção se deu por meio do que o experimentador chamou de efeito de validade, que
consiste na diferença significativa na comparação do tempo de reação nas tentativas com
pistas válidas, neutras e inválidas. O que ele observou foi que o tempo de reação nas
tentativas com pistas válidas foi menor do que nas tentativas com pistas neutras que, por
sua vez, foi menor do que nas tentativas com pistas inválidas. O efeito de validade foi
tomado como medida atencional. As pistas utilizadas nesse tipo de experimento podem
ser simbólicas ou não simbólicas. No primeiro caso, a pista não guarda nenhuma relação
espacial com o alvo. Normalmente utilizam-se setas, letras ou números que simbolizem o
local de aparecimento do alvo mas que são exibidas em local diferente. Assim, o sistema
nervoso precisa processar a informação da pista em níveis supra-sensoriais (estaria
compatível com a idéia de direcionamento operante da atenção). O outro tipo de pista, não
simbólica, compartilha com o alvo o local de exibição, ou seja, a atenção é mobilizada
automaticamente para o local onde aparecerá o alvo. O tempo de reação em protocolos
com pistas simbólicas é maior do que nos protocolos com pistas não-simbólicas em
tentativas com intervalo pequeno entre pista e alvo, o que é tido como um fator que reforça
a idéia da necessidade de processamento suprasensorial no primeiro caso. Em resumo, a
resposta de atender pode ser eliciada por um estímulo antecedente ou reforçada por um
estímulo conseqüente e a orientação dessa resposta pode ser manifesta ou encoberta.
Hodologia da atenção visual
Em primatas, admite-se que há participação de pelo menos 3 áreas principais no
direcionamento da atenção para estímulos visuais: o córtex parietal posterior, o
mesencéfalo (colículos superiores) e o tálamo (núcleo pulvinar) (Posner e Raichle, 1994).
Cada área parece desempenhar uma função distinta na dinâmica atencional. Pacientes
com lesão do córtex parietal posterior apresentaram desempenho similar ao de pessoas
saudáveis no teste de direcionamento encoberto da atenção nas condições de pista válida
e de pista neutra (Posner e Raichle, 1994; Nahas, 2004). Por outro lado, na condição de
pista inválida, o prejuízo foi muito maior do que o observado em pessoas saudáveis, ou
seja, o tempo de reação foi muito maior, além do fato de que, em muitas dessas tentativas
com pista inválida, o alvo sequer foi percebido.
Os colículos superiores do mesencéfalo, sabidamente envolvidos na expressão dos
movimentos sacádicos dos olhos, são recrutados no direcionamento da atenção visual
201
(Fig. 3), o que é evidenciado por estudos eletrofisiológicos com animais (Taylor, Jeffery e
Lieberman, 1986) e por estudos clínicos mostrando que pacientes com degeneração
mesencefálica apresentam desempenho prejudicado em tarefas de direcionamento
encoberto da atenção (Laberge, 2000).
Figura 3: Representação gráfica da ativação de neurônio do colículo superior em
diferentes situações. (a) Olhar no ponto de fixação enquanto o estímulo é
ignorado [baixa freqüência de disparos]. (b) Movimento sacádico para o campo
receptivo [alta freqüência de disparos]. (c) Movimento sacádico para fora do
campo receptivo [baixa freqüência de disparos]. (d) Olhar no ponto de fixação
enquanto a atenção é direcionada para o campo receptivo [alta freqüência de
disparos]. (Bear, Connors e Paradiso, 2002)
O núcleo pulvinar do tálamo aparece como uma via alternativa ao núcleo geniculado
lateral para a distribuição da informação visual para o córtex (Sarnat e Netsky, 1981;
Jones, 1985). Ele possui conexões recíprocas com virtualmente todo o córtex (Jones,
1985) e possui conexões também com os colículos superiores (Sarnat e Netsky, 1981;
Price, 1995). O tamanho proporcional do pulvinar em relação ao tálamo diminui do homem
para o macaco e desse em relação ao gato (Laberge, 2000). Por conta de sua importância
para o sistema visual, muitos estudos foram feitos para avaliar a existência de um núcleo
talâmico homólogo em ratos. Por meio de marcadores retrógrados e anterógrados, o
núcleo talâmico látero-posterior do rato mostrou-se homólogo ao pulvinar de primatas
(Hughes, 1977; Mason e Groos, 1981; Donnelly, Thompson e Robertson, 1983; Taylor,
Jeffery e Lieberman, 1986). Pacientes com lesões talâmicas apresentaram desempenho
prejudicado em tarefas de direcionamento encoberto da atenção, mesmo em tentativas
com pista válida, o que sugere a participação do núcleo pulvinar (látero-posterior em ratos)
no engajamento atencional (Posner e Raichle, 1994).
Estudos a respeito da atenção continuam sendo elaborados e há ainda muito para se
investigar a respeito. Novos delineamentos incluem técnicas cada vez mais avançadas,
como o uso de imageamento encefálico, expressão gênica, eletrofisiologia de campo e de
unidades neuronais isoladas. O conjunto de informações obtidas com os experimentos
acumulados por diferentes grupos ao longo do tempo tem evidenciado de forma cada vez
mais sólida que definições de atenção como um processo simples são equivocadas. O que
202 chamamos de atenção certamente envolve o funcionamento concomitante de múltiplos
eventos encefálicos que permitem ao sujeito interagir de forma bem sucedida com o
ambiente. Ainda que a interpretação dos resultados seja desafiadora, o uso de modelos
animais em experimentos comparativos tem se mostrado instrumento essencial na
compreensão da atenção.
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203
Fisiologia do Sono
Arnaldo Cheixas-Dias ([email protected]): Lab. de Neurociências e Comportamento (IBUSP)
Gabriela de Matos ([email protected]): Laboratório de Neurociências (FM-USP)
O sono tem fascinado todos os povos do mundo desde a mais remota antiguidade
(Timo-Iaria, 2000). Devido à imobilidade e ao aparente desligamento com o meio
ambiente, o sono gerou grande fascinação e curiosidade. E, mesmo no terceiro milênio, o
sono é um tema que gera muita discussão, mitos e lendas. A ciência evoluiu
consideravelmente ao longo das décadas elucidando muitas questões a respeito da
fisiologia do sono, mas existem lacunas significativas a seu respeito. Não obstante,
explicar inequivocamente porque dormimos é algo difícil. Embora se tenha muitas teorias a
respeito da função do sono, não existe um consenso sobre seu principal papel (Durmes e
Dinges, 2005). Como ainda há muito para se compreender a respeito da descrição da
fisiologia do sono, tal questionamento é equivalente a perguntarmos: “Por que
acordamos?”. Como veremos, há algumas hipóteses interessantes para explicar o sono. É
possível que seja uma característica multifuncional que participa de outros processos
fisiológicos essenciais para a sobrevivência. Neste capítulo, apresentaremos um breve
histórico do estudo do sono e conhecimentos importantes construídos pela ciência ao
longo dos séculos. Nessa incursão, veremos informações relevantes advindas da
eletrofisiologia, neuroquímica, patologias, modelos experimentais e até mesmo de uma
simples observação comportamental.
Histórico
Embora o sono e os sonhos devam fazer parte do foco da curiosidade humana
desde sempre, o estudo sistemático a seu respeito começou apenas no século IV antes da
era cristã. Os primeiros registros documentais sobre o estudo não místico do sono foram
produzidos nessa época pelos gregos Platão, Sócrates e Aristóteles, sendo que este
escreveu o livro De Somno (Sobre o Sono). Os escritos de Aristóteles parecem ser os
mais antigos documentos a abordar as funções do organismo humano de maneira
comparativa, o que incluiu a observação sistemática do comportamento de várias
espécies. Talvez por essa razão o sono não tinha, para Aristóteles, nenhum caráter
místico. De qualquer modo, ainda que há 25 séculos os gregos já tivessem elaborado
estudos sistemáticos sobre o sono e muito tenha avançado nesse sentido, mesmo com o
advento da eletrofisiologia a partir da década de 1930, as interpretações místicas ainda
persistem.
Da Grécia antiga até o século XXI d.C. muitas teorias surgiram para explicar o sono.
Acreditava-se, por exemplo, que o estado natural do organismo era o sono. Assim, os
indivíduos acordariam para caçar, se alimentar etc. Com a Revolução Industrial essa
noção se inverteu e passou-se a acreditar que o estado natural do homem (e, assim, de
qualquer animal) era a vigília. O homem dormiria para gozar do merecido descanso. É
difícil afirmar que o estado natural do organismo seja o sono ou a vigília; porque
provavelmente ambos são estados naturais. Ou seja, o que realmente é natural é o ciclo
vigília-sono. Dormir é importante (o maior período de vigília humana já registrada é de 11
dias) e despertar também o é (um indivíduo que permanecesse dormindo indefinidamente
e sem cuidados, morreria em pouco tempo).
O estudo experimental do sono começou no século XIX com as manipulações do
limiar auditivo de despertar realizadas por Ernst Kohlschüter na Alemanha (Timo-Iaria,
2000). Na década de 1870, o pioneiro estudo realizado por Richard Caton , revelou a
existência de impulsos elétricos advindos da superfície craniana de animais. Tal fato
possibilitou, em 1930, a invenção do eletroencefalógrafo pelo alemão Hans Berguer
(Andersen e cols., 2001). Após tal advento, foi possível o estudo experimental sistemático
sobre o ciclo vigília-sono.
A eletrofisiologia é o principal meio de estudo do ciclo vigília-sono, tanto em
humanos quanto em outras espécies. Técnicas de imagem e tarefas comportamentais
aliadas à eletrofisiologia fornecem valiosas informações a respeito da dinâmica do ciclo
vigília-sono e melhor compreensão desse ciclo circadiano (ciclos de aproximadamente 24
horas).
204 Além da fisiologia normal do próprio dormir e dos fenômenos que o acompanham
(como os sonhos), os processos patológicos ajudam também a compreender a função
biológica do sono. Uma das abordagens mais comuns no estudo de uma função consiste
na retirada da mesma. Os sintomas decorrentes podem indicar as funções
desempenhadas pelo órgão e/ou sistema (Suchecki, 2000).
Atualmente o estudo do sono é composto de dados clínicos e principalmente
experimentais produzidos por equipes multiprofissionais. Há laboratórios especializados no
estudo do sono e mesmo institutos inteiros dedicados a esta finalidade. Evidentemente, há
interesses industriais associados à pesquisa da fisiologia do sono (fármacos e
equipamentos). Com essa realidade de grande interesse clínico e, conseqüentemente, de
grande aporte financeiro, o contínuo desenvolvimento de modelos animais e de
experimentos com o uso combinado de técnicas comportamentais, farmacológicas e
eletrofisiológicas é essencial para o avanço nas pesquisas de sono.
A
B
Figura 1: A) Eletroencefalógrafo Siemens® usado por Berger na década de 30.
B): Eletroencefalógrafo Nihon-Koden® utilizado atualmente para o estudo do ciclo
vigília-sono.
Filogênese e ontogênese
Não se sabe com exatidão em quais espécies o sono está presente, mas não há
dúvidas de que os homeotérmicos dormem (Bear, Connors e Paradiso, 2002). Se nos
basearmos no critério funcional (imobilidade) aplicado para os vertebrados, pode ser até
que todos os animais durmam, inclusive os invertebrados.
Abelhas, baratas e escorpiões apresentam ciclos ultradianos (ciclos menores do que
20 horas) de atividade-quietude, o que pode ser equivalente ao ciclo vigília-sono de
mamíferos. As abelhas, que passam o dia polinizando, construindo a colméia, produzindo
mel e procriando, atravessam a noite com períodos de imobilidade (Nascimento, Gurgel e
Maracajá, 2005). Escorpiões diminuem a responsividade a estímulos externos em
determinados períodos e as baratas, se privadas do período de quietude por estimulação
mecânica, apresentam períodos maiores de inatividade após o intervalo de estimulação
(Tobler, 1996), como uma espécie de rebote, efeito observado em mamíferos privados de
sono.
Evidências de que peixes têm sono dessincronizado não estão estabelecidas
(Peyrethon, Dusan-Peyrethon, 1967), mas o estado funcional de sono foi inferido já a partir
da observação feita por Aristóteles de que eles podem ser presas fáceis quando também
não respondem a apresentação de alimentos (Timo-Iaria, 2000).
Não há consenso em relação a dados eletrofisiológicos que evidenciem sono em
anfíbios. Ainda assim, já fora descrito imobilidade com aumento do limiar a estímulos
desencadeadores de respostas de defesa em rãs, sapos e salamandras (Timo-Iaria,
2000).
Répteis, de um modo geral, também alternam períodos de grande atividade com
períodos de relaxamento e imobilidade. Estudos eletrofisiológicos mostram a presença de
atividade espiculada durante esses intervalos de quietude em algumas espécies, como
crocodilos e lagartos (Peyrethon; Dusan-Peyrethon, 1969 apud Timo-Iaria, 2000).
Depois dos mamíferos, os ciclos das aves são os mais estudados. O ciclo de sono
das aves caracteriza-se pela alternância do sono sincronizado, no qual há presença de
fusos (Zepelin, 1990), com o sono dessincronizado (5% a 10% do sono total).
205
Desde a antiguidade o principal sujeito de estudo do sono foi o homem. Não
obstante, no século XX, com o inicio do estudo experimental o gato foi a espécie mais
estudada até a década de 1970, quando passou a ser substituída pelo rato. Essa espécie
em especial é a escolha na maioria dos estudos sobre sono, mas há relatos sobre o ciclo
vigília-sono de aproximadamente 100 espécies de mamíferos incluindo cetáceos, bovinos,
eqüinos entre outros.
A expressão do sono ao longo da vida de um indivíduo se modifica bastante. Embora
haja poucos estudos, sabe-se que, de um modo geral, mamíferos dormem cada vez
menos ao longo da vida. Uma hipótese para esse fato seria uma maior necessidade de
sono nos períodos iniciais de vida em função da estruturação inacabada do sistema
nervoso. Pode ser que o sono favoreça a formação de novas sinapses, a mielinização dos
axônios e a estruturação de matrizes extra-celulares. A forma como o sono poderia auxiliar
nesse processo permanece sem resposta.
Sabe-se que a duração de um ciclo de sono é diretamente proporcional ao tamanho
do animal. Assim, quanto maior o animal, maior a duração de cada ciclo. Por exemplo: um
ciclo de sono pode durar cerca de 2 horas no elefante, 30 minutos no gato, 10 minutos no
rato e 5 minutos no camundongo.
Estudo do Ciclo Vigília-Sono em Ratos
Os ratos possuem hábitos noturnos; portanto, sua quantidade de sono total é maior
durante o dia (cerca de 70%) do que durante a noite (cerca de 30%). Em animais com alta
vulnerabilidade como os ratos, ocorrem no final de cada ciclo breves despertares. Tal fato
deve-se a um mecanismo adaptativo de defesa contra os animais predadores.
A divisão das fases do sono baseia-se em critérios eletrofisiológicos como
sincronização, dessincronização, freqüência e morfologia das ondas eletrofisiológicas.
Podemos sistematizar o ciclo vigíla-sono dos ratos da seguinte forma:
• vigília atenta: dessincronização cortical, ritmo teta hipocampal irregular, intenso
comportamento exploratório;
• vigilia relaxada: ondas sincronizadas intercaladas com curtos períodos de
dessincronização, movimentação reduzida;
• sono sincronizado fase I: caracterizado pela presença de fusos do sono;
Figura 2: Eletroscilograma de 20 segundos de um animal epiléptico. Elétrodos:
Córtex Esquerdo e Direito (Área parietal bilateral), Hipocampo dorsal bilateral,
músculos trapézios, rostro e epicantos oculares (Paxinos e Watson, 1997).
• sono sincronizado fase II: presença de ondas delta mescladas com fusos do sono;
• sono sincronizado fase III: prevalência de ondas delta;
• sono pré-paradoxal: presença de fusos corticais e ondas teta hipocampal
• sono dessincronizado: dessincronização cortical, presença de ondas teta
hipocampal e atonia muscular.
206 Figura 3: Eletrocilograma de 25 segundos de um rato epiléptico.
Córtex Esquerdo e Direito (Área parietal Bilateral), Hipocampo dorsal bilateral,
músculos trapézios, rostro e epicantos oculares (Paxinos e Watson, 1997).
Figura 4: Eletroscilograma de 20 segundos de um rato normal. Córtex Esquerdo e
Direito (Área parietal Bilateral), Hipocampo dorsal bilateral, músculos trapézios, rostro e
epicantos oculares (Paxinos e Watson, 1997).
Considerações finais
A compreensão do sono, apesar de existirem muitas lacunas a respeito, tem se
desenvolvido de forma significativa. O conjunto de conhecimentos acumulados a seu
respeito tem importante papel no estudo da fisiologia de várias espécies e, adicionalmente,
vem ajudando inúmeros pacientes acometidos por patologias associadas ao sono.
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208 Música e Linguagem
Felipe Rodrigues ([email protected]) - Laboratório de Neurociências e Comportamento
Há mais de um século atrás, o poeta e escritor dinamarquês Hans Christian
Andersen (1805-1875) disse: “Quando as palavras fracassam, a música fala.”; e estava
literalmente certo. Os avanços na neurofisiologia da música e da linguagem têm mostrado
que há muitos pontos de intersecção entre os circuitos neurais envolvidos com cada uma
dessas funções do nosso cérebro. A seguir, você vai saber sobre tudo isso e mais um
pouco.
Um pouco de sabedoria primeiro...
Dizem os sábios que é prudente escutar primeiro para depois falar. A fisiologia não
discorda disso. Uma grande prova, é que a grande maioria dos deficientes auditivos não
tem problemas para falar; ainda assim, eles não falam. Falar, só é possível porque
escutamos. Logo, é válido conhecer um pouco mais sobre o pequeno sistema que compõe
nossa audição. Ressalta-se que pequeno é um adjetivo literal para o tamanho das
estruturas envolvidas. A audição tem um peso muito importante no nosso dia-a-dia, nos
permitindo interagir com o mundo ao nosso redor e com outros seres humanos e, embora
alguns a considerem menos importante que a visão, seguramente a audição trabalha
complementando nosso sentido visual, sendo também fundamental.
É indiscutível que somos seres visuais. Olhamos para tudo o que nos chama
atenção e não dispensamos olhar para qualquer evento que seja, mesmo que sonoro
(quantas vezes você já se pegou olhando para o rádio ou para os falantes ao escutar
atentamente para uma música ou uma narração? Ou quantas vezes você já se virou para
procurar a fonte daquele cheiro gostoso de comida ao seu redor). Mas por mais visuais
que sejamos, escutar é necessário. Primordialmente, como já dito, para que possamos nos
comunicar.
Mas como funciona, então, nosso aparelho auditivo? Prolongando mais uma vez a
ansiedade alheia, é impossível falar sobre sistema auditivo sem um breve resumo sobre a
Física por trás da condução sonora.
Um pouco de Física também...
Compressões e descompressões: ondas!
Tudo o que ouvimos é composto por ondas sonoras. Tecnicamente falando, sons
são ondas mecânicas longitudinais. Isso significa que eles são causados pela agitação
de partículas (vibração) do meio por onde estiverem se propagando. A primeira lição disso,
é que não há som na ausência de matéria, leia-se: vácuo! Esqueça aqueles filmes de
George Lucas cheios de explosões no espaço. Detalhes significantes: longitudinais, no
nosso caso, significa que as ondas sonoras propagam-se como visto na figura 1,
compressão de moléculas, seguido de rarefação de moléculas.
Figura 1 – Representação do efeito de compressão e rarefação de moléculas, causado por
ondas sonoras no ar e, abaixo, representação gráfica de ondas sonoras.
209
Abaixo na figura, podemos ver como representamos graficamente ondas sonoras,
lembrando que picos significam compressão e vales, rarefação (e não que a propagação
se de por movimentos para cima e para baixo). O mais comum é pensarmos nessas
moléculas como sendo moléculas de ar, mas poderiam ser também líquidos ou sólidos,
inclusive a propagação é mais rápida nos sólidos, 5.100 m/s no ferro, por exemplo,
enquanto que no ar é de cerca de 340 m/s. A propagação em sólidos é mais variável que
no ar, de acordo com o material (e de acordo com altitudes e temperatura ambiente, no ar)
e a velocidade de propagação é intermediária nos líquidos, aproximadamente 1.500 m/s
em água do mar. Uma compressão + uma rarefação (ou um pico + um vale) é o que
chamamos de comprimento de onda ou λ (letra grega minúscula: lambda – em verdade,
comprimento de onda é definido como qualquer ciclo completo no gráfico, passando por
um pico e um vale. Ver Figura 1) e veremos a seguir sua importância para o cálculo de
uma das propriedades dos sons. Vale lembrar que muito raramente na natureza ouviremos
qualquer som com uma curva de amplitude como a apresentada na figura 1. Sons naturais
são complexos e compostos por mais de um tipo de freqüência, resultando em gráficos
não totalmente regulares, produto da interação de ondas de diversas amplitudes e
freqüências.
A quantidade de energia sonora presente em um som, ou a Intensidade Sonora, é
medida em decibéis (dB). Decibel, assim como porcentagem, é uma escala relativa e não
absoluta; nesse caso, relativa à pressão sonora. É também uma escala logarítmica e visa
facilitar nosso tratamento com a pressão sonora, já que a mesma pode variar de 10-12 até
1 W/m², sendo esses, respectivamente, os limiares de audibilidade e de dor para o ouvido
humano, a freqüências de cerca de 2.000 Hz (veja abaixo o conceito de freqüência).
Convertendo W/m² em decibéis, fazemos com que o limiar de audibilidade seja
apresentado como zero decibel e o limite de dor como 120 dB, números muito mais
palpáveis para qualquer pessoa. Entretanto, alguns truques se escondem debaixo dessa
escala logarítmica. O principal deles, é que a pressão sonora dobra a cada três decibéis a
mais; em outras palavras, precisamos dobrar o trabalho realizado para conseguir elevar
em três dB a intensidade sonora gerada.
Seja freqüente, quero dizer, paciente...
Uma propriedade importante dos sons, especialmente do ponto de vista biológico, é
a freqüência de uma onda sonora. Freqüência é o número de comprimentos de onda
ocorridos em um segundo. E é expressa em Hertz (Hz). É importante saber sobre essa
propriedade por dois motivos. Primeiramente, porque não ouvimos todos os comprimentos
de onda. O aparelho auditivo humano está limitado a ouvir freqüências entre 20 Hz e
20.000 Hz. Tal limitação é causada por características implícitas a um órgão do sistema
auditivo chamado cóclea, mais especificamente, por estruturas presentes em uma
membrana, chamada membrana basilar, dentro da cóclea, que não vibram com sons
abaixo de 20 Hz ou acima de 20.000 Hz. Trataremos desse assunto com detalhes mais
adiante.
Em segundo lugar, porque diferentes freqüências têm diferentes propriedades
quanto à propagação e reflexão. Falando em extremos, freqüências comumente chamadas
de subgraves, de um até cerca de 100 Hz tem pouca reflexão, passando entre meios,
como do ar para a terra diretamente e praticamente sem perda de energia. Tais
freqüências implicam em consideráveis deslocamentos de massas de ar e, portanto, só
podem ser produzidas por animais maiores. Por exemplo, sabe-se hoje que infra-sons
(freqüências abaixo de 20 Hz) são utilizados por Tigres e Elefantes como forma de
comunicação, que, no caso de elefantes, pode ser feita a quilômetros de distância. Tigres
também os usam como forma de intimidar presas e alguns estudiosos chegam a afirmar
que os infra-sons têm efeitos suficientes para paralisá-las.
No outro extremo, os superagudos, freqüências acima de 10.000 Hz, têm
comportamento extremamente direcional e reflexivo, características que se tornam ainda
mais exacerbados nos ultra-sons, freqüências acima de 20.000 Hz. O melhor exemplo
para tal característica são os morcegos, que tem faixa de audição começando em 10.000
Hz e indo até cerca de 120.000 Hz. Emitindo sons acima de 50.000 Hz, os morcegos
podem perfeitamente voar no escuro total, conseguindo desviar dos obstáculos presentes
em seu habitat. Eles utilizam-se do que chamamos de sonar e tal vôo é possível pela
210 reflexão e direcionabilidade dos ultra-sons, permitindo que eles identifiquem com precisão
a posição dos objetos no espaço de acordo com as reflexões geradas no ambiente.
Por último, ressalta-se que os limiares de audição para as diferentes freqüências não
são iguais. A figura 2 mostra como isso se comporta no homem:
Figura 2 – Limiares de audibilidade e dor para o ouvido humano em todo o espectro de
audição.
Note que é preciso pouco mais de zero dB para ser possível alguma percepção
sonora em freqüências em torno de 2.000 Hz (faixa de freqüência altamente relacionada
com nossa voz); no entanto, a percepção sonora de freqüências tão baixas quanto no
extremo de nossa audição, cerca de 20 Hz, dá-se somente com pressões sonoras acima
de 70 dB.
Sons naturais e sons musicais...
Não especificamos ainda, propositadamente, o que faz música e o que faz barulho.
Há diferenças. A freqüência de um som, sozinha, não nos diz que tipo de som é aquele.
Há sons que entendemos como sendo ruídos, há sons que entendemos como vozes e há
sons que classificamos como musicais. Em verdade, qualquer proposta de classificação
poderá ser controversa. Há quem ouça música em latas. E há quem diga que um
determinado músico só faz ruídos. Qual é o ponto de equilíbrio então?
Talvez um fator crucial para tal diferenciação seja o ritmo. Afinal, uma lata batendo
sempre terá som de lata. Mas nem todo som de lata possuirá ritmo. Esse é um fator crucial
em música. Cabe nesse momento falarmos também sobre periodicidade. Os sons
utilizados em música são sons que chamamos de periódicos – sons que mantém suas
características ao longo do tempo. A melhor forma de pensarmos em um som periódico é
pensando em uma corda de um violão vibrando. Tal vibração se mantém constante e em
uma mesma freqüência ao longo do tempo. Ruídos, por outro lado, são caracterizados por
sons não periódicos, que mudam em freqüência e amplitude constantemente, não
resultando em um gráfico perfeito como o da figura 1.
Entretanto, como já vimos em física, nenhum movimento ondulatório é composto
apenas por sua freqüência fundamental, mas por vibrações secundárias, terciárias e
outras. Isso faz com que, de fato, nenhum instrumento provoque uma onda como na figura
1, mas as ondas serão o resultado da composição de todas essas vibrações, ainda assim
periódicas e com um tom fundamental. É exatamente por esse fator que conseguimos
distinguir uma nota Lá vinda de um piano, de um trompete ou mesmo da voz. Todas elas
terão como freqüência fundamental 440 Hz (considerando-se notas da mesma oitava
musical), mas é devido às diferentes freqüências de outras ordens (2ª, 3ª, 4ª...) que
conseguimos distinguir as diferentes fontes. Esse é o conceito de timbre.
Feitas estas considerações, podemos continuar nossa discussão partindo para como
funciona nossa audição propriamente e como nosso cérebro interpreta vozes, ruídos e
músicas.
211
Enfim... Orelhas!2
Você já transduziu hoje?
O homem parece excelente ao ser capaz de construir auto-falantes e microfones,
tecnicamente conhecidos como transdutores. Mas ele nada mais fez que copiar uma
tecnologia presente na natureza. Nossos Tímpanos! Um transdutor é um dispositivo capaz
de receber um tipo de energia e transformá-la em outra. É exatamente para isso que
nossas orelhas estão aí. Elas captam a energia sonora proveniente do ambiente e a
transformam em energia elétrica - impulsos nervosos que atingirão nosso cérebro para
processamento e interpretação daquele estímulo. Mas enfim, exatamente, como ouvimos?
Na figura 3, vemos os componentes envolvidos com essa transdução.
Figura 3 – Estrutura interna dos órgãos da audição e equilíbrio. Destaque para estruturas
responsáveis pela audição
Para fins didáticos, dividimos nossa orelha em três partes: orelha externa, orelha
média e orelha interna. A energia sonora no ambiente chega até ao Tímpano pelo canal
auditivo, parte da orelha externa. Essa energia, com todas as suas características de
freqüência e intensidade, é transmitida pelo tímpano aos ossículos da orelha média
(martelo, bigorna e estribo), que farão a transmissão para a janela oval na cóclea,
integrantes da orelha interna. O processo de passagem pela orelha média não é, em
absoluto, puro. A interação existente entre os três ossículos causa uma amplificação de
até 30x na energia sonora que recebemos. Isso é um ganho de aproximadamente 15 dB
em intensidade – uma pressão sonora cinco vezes maior.
A cóclea é a estrutura onde toda a mágica da audição e transdução acontece. A
cóclea, como vista nas Figuras 3 e 4, é uma estrutura tubular enrolada sobre si mesmo,
com três câmaras internas.
2
Nota: Pela nomina anatomica atual, orelhas, e não ouvidos, é o termo correto para descrever as estruturas
responsáveis pela audição. A estrutura comumente conhecida por orelha tem por nome correto Pavilhão auditivo.
212 Figura 4 – Corte transversal da Cóclea, esquemático, mostrando a organização interna.
As câmaras são chamadas escalas e são preenchidas por líquidos de composições
específicas. Fazendo uma representação esquemática do tubo da cóclea, veríamos algo
como na Figura 5:
Figura 5 – Representação esquemática do tubo da cóclea, com as principais estruturas
representadas.
Quando um som causa vibração das estruturas da orelha, essa vibração acaba
chegando ao estribo que está conectado à Janela Oval da cóclea. A vibração da janela
oval é então transferida para os líquidos internos da cóclea e para as escalas vestibular e
média, mais especificamente (a Membrana de Reissner é fina e desprezível para separar
as vibrações entre elas. Sua função é unicamente de garantir composições iônicas
diferentes entre as duas câmaras.) e, então, à membrana basilar. Como a cóclea é um
tubo inextensível, a Janela Redonda funciona como uma válvula de escape, permitindo a
movimentação dos líquidos internos e vibração nas membranas.
213
Figura 6 – Regiões da Cóclea para sensibilidade a diferentes freqüências.
Como já dito, a membrana basilar é a responsável pela nossa amplitude de audição.
Estruturas fixas a ela, chamadas Fibras Basilares (não representadas nas figuras) tem
tamanhos progressivamente variáveis ao longo da cóclea. Essas estruturas fazem com
que diferentes regiões da membrana (e da cóclea) sejam mais sensíveis a uma ou outra
freqüência. Pela Figura 6, podemos notar que sons agudos, altas freqüências, são
melhores percebidos no início da cóclea. Sons médios, no meio dela. E sons graves,
baixas freqüências, no final da cóclea, próximo à região chamada de Helicotrema (Figura
5). Tais constatações não significam que um som fará com que só aquela região vibre.
Pelo contrário, todo som causará com que a membrana basilar como um todo vibre. Mas
essa vibração será muito pequena fora do ponto ótimo de vibração, não chegando nem
mesmo a causar potenciais de ação. Vale lembrar também, como já dito, que sons puros
são raros na natureza e um mesmo som, portanto, causará a vibração de partes distintas
da membrana basilar.
A estrutura chamada de Órgão de Corti é a responsável pela transdução de fato de
energia sonora em impulsos nervosos. É nele que se encontram células receptivas
específicas que iniciam a despolarização que chegará ao cérebro, conduzida inicialmente
pelo nervo coclear. Detalhes da organização do Órgão de Corti podem ser vistos na Figura
7.
Figura 7 – Órgão de Corti.
214 A Membrana Tectorial é uma estrutura rígida e fixa. A vibração da membrana
basilar acaba causando o deslocamento de todo o Órgão de Corti; os cílios das células
ciliadas, no entanto, acabam por não se deslocar por estarem imersos e fixos na
membrana tectorial, dando a sensação de movimento em relação à célula e causando a
despolarização. O mecanismo para tal é mecânico, por abertura de canais de Cálcio
devido ao estiramento da parede dos cílios. Uma vez causados potencias que sejam
suficientes para passarem aos neurônios seguintes, integrantes do nervo coclear, a
mensagem vai em direção ao córtex.
Orelhas não são nada sem um encéfalo...
Primeiro, uma parada rápida
Muito bem. Estamos entendidos quanto à nossas orelhas. Sem elas, nosso encéfalo
estaria isolado do que acontece no mundo sonoro exterior. Mas tendo feita a transdução
de energia sonora em elétrica (impulsos nervosos) – agora é a vez dele.
Os impulsos elétricos que saem da cóclea, não atingem diretamente o cérebro. Veja
na Figura 8. No meio do trajeto até lá, os estímulos passam por algumas sinapses.
Resumidamente, o primeiro ponto de sinapse é logo que as fibras entram na medula
espinhal, em sua porção terminal superior. Daí, as fibras secundárias dirigem-se ao núcleo
olivar superior, onde algumas fibras fazem nova sinapse. Subindo pela ponte, algumas
poucas fibras param no Núcleo do Lemnisco Lateral e, enfim, a maioria delas chega ao
colículo inferior, no mesencéfalo, onde todas (ou quase todas) fazem sinapse e, por último,
chegam ao Núcleo Geniculado Medial (NGM), onde todas sofrem nova sinapse. Só então,
os estímulos sonoros chegam ao cérebro, formando o chamado córtex auditivo (Figura 9).
215
Figura 8 – Esquema representando o trajeto percorrido pelos impulsos nervosos
provenientes da cóclea até chegar até chegar ao Córtex Auditivo Primário no Cérebro.
O córtex auditivo
Como já sabemos, nosso encéfalo é divido em lobos, com suas subáreas, e em giros
e sulcos. Nosso foco de interesse nesse momento concentra-se na região superior do
Lobo Temporal (Figura 9). É nessa região que se encontra nosso Córtex Auditivo
Primário. Todas as fibras que saem do NGM chegam até essa região do córtex. Dela,
então, os estímulos partem para o córtex auditivo de associação, também chamado de
Córtex Auditivo Secundário, que também recebe algumas fibras intra-talâmicas, de
regiões vizinhas ao NGM. Nesse momento, tais informações serão processadas e
integradas com outras regiões do cérebro. No entanto, nos deparamos com alguns
problemas no meio de todo esse caminho.
216 Figura 9 – Localização do córtex auditivo no cérebro.
Em primeiro lugar, precisamos novamente pensar em como transmitir diferentes
freqüências ao cérebro. Falamos que existem diferentes regiões da cóclea para diferentes
freqüências sonoras captadas no ambiente. Isso é chamado “Princípio de Localização”.
Tais informações são fielmente transmitidas ao córtex - uma grande quantidade de fibras
nervosas sai da cóclea, cada uma levando a informação de uma dessas regiões. No córtex
auditivo primário, diferentes grupos de neurônios serão ativados para essas diferentes
freqüências. Tal estruturação da Cóclea e do Sistema Nervoso Central resolve nosso
primeiro problema. Em segundo lugar, precisamos entender como o cérebro entende as
chamadas oitavas musicais. Tais freqüências, ainda que diferentes em valor de freqüência
(uma grave, outra aguda), são percebidas como mesma nota musical pelo cérebro. Tal
funcionamento é possibilitado por grupos de neurônios que são ativados pela estimulação
de diferentes freqüências, porém, de mesmo tom fundamental (as oitavas musicais).
Portanto, um Lá grave ou agudo, estimulará um mesmo grupo de neurônios. Esses dois
fatores em conjunto, nos permitirão ter a percepção de timbre.
Feitas tais estimulações no córtex auditivo primário, as associações cabíveis serão
realizadas no córtex auditivo secundário. Agora, regiões específicas lidarão com estímulos
sonoros específicos. Podemos então partir para os assuntos mais complexos e que nos
interessam: fala e música. Cabe adiantar a primeira distinção encontrada entre essas duas
propriedades do nosso cérebro, que é fundamental e mais global. Na grande maioria das
pessoas, fala tem suas funções concentradas no hemisfério esquerdo do nosso cérebro,
enquanto que a música está intimamente associada ao hemisfério direito. Veremos as
implicações de tais constatações adiante.
Fala
“A palavra é metade de quem a pronuncia e metade de quem a ouve.” – Michel de
Montaigne
A fala é uma característica exclusiva dos seres humanos, pelo menos como a
conhecemos. Não há quem ainda tenha provado que animais falam, tampouco, que não
falam. Vejamos as áreas envolvidas com essa peculiar função humana (Figura 10).
217
Figura 10 – Mapa cerebral de regiões com funções específicas e conhecidas, enfatizando
as Áreas de Broca e de Wernicke, associadas à produção e compreensão da fala,
localizadas no hemisfério esquerdo de 95% da população.
A parte posterior do córtex auditivo secundário é conhecida como Área de Wernicke
e é nessa região do córtex auditivo de associação que será processada a linguagem
falada, possibilitando sua compreensão. É uma região crucial do encéfalo, pois muito do
nosso entendimento sobre o mundo está baseado na linguagem humana e, portanto,
perdas nessa região implicam em perdas intelectuais maiores. Apenas para exemplificar,
quando lemos um livro não memorizamos as imagens das palavras nas páginas, mas sim
o significado passado por tais palavras. Tal conversão (interpretação) é realizada por essa
região.
A segunda região mais importante envolvida com a fala é a Área de Broca e é
nessa região que são processados os impulsos necessários para a produção da fala. A
área de Broca faz parte da região posterior do córtex frontal anterior (ou pré-frontal), logo
abaixo e adiante do córtex motor. Essa área é responsável pela palavra falada e pessoas
com lesões nessa região perdem a capacidade de falar, ainda que entendam a fala dos
outros muito bem.
Uma última estrutura importante para a fala é o Fascículo Arqueado, que é um trato
de fibras brancas que fazem a conexão entre a Área de Wernicke e a Área de Broca.
Lesões nesse trato fazem com que os indivíduos – apesar de serem capazes tanto de
ouvir e compreender a fala, como produzir frases completas e com significado muito bem –
sejam incapazes de responderem corretamente a perguntas feitas e manter um diálogo,
pois a conexão entre a interpretação (Wernicke) e a fala em si (Broca), está perdida.
Maiores detalhes sobre a fala serão tratados no capítulo Neurofisiologia da Linguagem.
Música
“Não sei uma nota de música. Nem preciso.” – Elvis Presley
Se realmente Elvis Presley sabia alguma nota de música ou não, provavelmente
nunca saberemos. Mas é certo que muitos professores de canto concordam com ele. Para
cantar, basta ouvir.
Neurofisiologicamente, ouvimos notas e oitavas musicais porque a estruturação do
nosso sistema auditivo é organizada de forma propícia a tal. A descoberta dos neurônios
que disparam estimulados por tons ou oitavas musicais não é uma coincidência. É uma
mostra de que nós fizemos a classificação de notas musicais de acordo com aquilo que
nosso cérebro está apto a ouvir. E assim cantamos e afinamos nossos instrumentos.
Afinal... Pra que existe música? Há vantagens evolutivas nela? O autor Steven
Pinker nos ajuda nessa busca. Ele estabelece algumas razões pelas quais a música possa
existir. E ousa dizer: “Eu suspeito que a música seja um ‘bolo de queijo’ auditivo, uma
218 confecção rara artesanalmente construída para agradar os pontos sensíveis de pelo
menos seis de nossas faculdades mentais”
O primeiro aspecto levantado por Pinker é a própria fala. O autor defende que a letra
presente nas músicas (e também os paralelos que ainda serão apresentados) faz com que
ela ative circuitos neurais “emprestados” da fala e, em particular, da prosódia.
Lembrando que a ativação dos circuitos neurais frontais relacionados com a música
acontece predominantemente no hemisfério direito. A pesquisadora Isabelle Peretz é
quem relata dois casos que demonstram uma dupla dissociação entre linguagem e música
que comprova tal afirmação. O primeiro deles de um compositor que sofreu uma lesão no
hemisfério cerebral esquerdo aos 57 anos, perdendo, então, a capacidade de falar e
compreender a fala, mas que continuou a compor até sua morte quatro anos mais tarde –
um caso de afasia sem amúsia. O segundo, de uma mulher que teve lesões bilaterais no
córtex auditivo e no córtex frontal direito como conseqüência de cirurgias para tratar de
aneurismas; ela perdeu a capacidade de aprender novas músicas, cantarolar uma melodia
qualquer e até mesmo de se lembrar das músicas que conhecia. Porém, sua fala, memória
(excetuando-se aquela para música) e inteligência estavam intactas – um caso de amúsia
sem afasia.
O segundo aspecto refere-se ao circuito neural ativado pela música, relacionado à
análise auditiva do ambiente. Pinker compara a audição à visão, dizendo que assim como
recebemos uma série de estímulos luminosos que precisam ser diferenciados e separados
(uma pessoa de um fundo de árvores, por exemplo), precisamos distinguir os diversos
estímulos sonoros que nos são apresentados, por exemplo, separar um solista de uma
orquestra, uma voz em um ambiente cheio de ruídos, uma vocalização animal em meio a
uma floresta cheia de ruídos. O autor defende que nosso ouvido detecta cada freqüência e
envia cada uma delas ao sistema nervoso, que as associa, percebendo-as como um tom
complexo. “Presumivelmente o cérebro as associa para construir nossa percepção da
realidade do som”. Isto é, a interpretação em tons complexos provavelmente se dá pelo
fato de que sons naturais não ocorrem em freqüências puras, mas como tons complexos;
logo, o sistema nervoso associa novamente as diferentes freqüências que constituem um
som oriundo de um mesmo ponto no espaço e ao mesmo tempo porque são, em verdade,
uma mesma fonte sonora. Nesse sentido, “melodias são agradáveis ao ouvido pela
mesma razão que linhas simétricas, regulares, paralelas ou repetitivas são agradáveis aos
olhos”. O sistema nervoso, então, se utiliza desse circuito neural para fazer a interpretação
das melodias e harmonias presentes na música.
O terceiro aspecto defendido por Pinker é a emoção trazida pela música. Baseandose numa sugestão de Darwin de que a música surgiu no homem devido às chamadas de
acasalamento de nossos ancestrais, o autor defende que uma série de “chamadas
emocionais” (como murmurar, chorar, rir, resmungar, gritar) tem um apelo acústico próprio;
“é provável que melodias evoquem fortes emoções porque sua estrutura assemelha-se a
chamadas emocionais de nossa espécie”. A música, então, traria diversos sentimentos à
tona semelhantemente a essas expressões emocionais.
Outro aspecto apontado por Pinker é a seleção de habitat. Fazendo mais uma
comparação entre o campo visual e auditivo, o autor ressalta que prestamos atenção a
uma série de características visuais que sinalizam segurança, insegurança ou mudança de
habitat, como vistas distantes, paisagens verdejantes, nuvens (que trazem chuva) ou pôrdo-sol. Ele então escreve:
“Talvez nós também prestemos atenção a características do mundo auditivo que
sinalizem segurança, insegurança ou mudança de habitat. Trovões, ventos, água
correndo, pássaros cantando, rosnados, passos, corações e galhos batendo, todos têm
efeitos emocionais, presumivelmente porque eles revelam eventos dignos de atenção no
mundo”.
A música também interferiria com tais circuitos neurais, de tal forma que ela altera
nossas emoções e nossa noção de segurança ou insegurança.
O quinto aspecto ressaltado por Pinker é o controle motor. O ritmo é um componente
universal da música e até mesmo único em algumas culturas. Tal ritmicidade que nos faz
dançar, bater palmas, balançar, e acompanhar a música, certamente estimula nosso
sistema motor.
O último aspecto defendido pelo autor é um “algo a mais” sem explicação conhecida
e que ele coloca como sendo, possivelmente, desde um acidente do funcionamento
219
conjunto de diversos circuitos neurais até uma ressonância entre disparos neuronais e
ondas sonoras. Seja como for, a música tem estreitas e importantes relações com o
funcionamento de diversos circuitos neurais.
Música e Linguagem
Sintaxe
Tratando agora das sobreposições existentes entre música e linguagem, vamos nos
surpreender com o que antes tratávamos como sendo dois aspectos completamente
diferentes. Um primeiro ponto que vale a pena ser comentado, é a sobreposição existente
no processamento da sintaxe. Sim, música possui também sintaxe e os circuitos neurais
que fazem o processamento dessa sintaxe musical seriam os mesmos utilizados para a
fala. As áreas envolvidas seriam regiões do lobo frontal frontais.
Semântica
Koelsch e colaboradores mostraram que “a música pode não apenas influenciar o
processamento de palavras, mas ela pode também pré-ativar representações de
conceitos, sejam eles abstratos ou concretos, independente do conteúdo emocional
desses conceitos”; em outras palavras, assim como a linguagem, a música pode facilitar a
compreensão de significados (em palavras e, provavelmente, também contextos). Na
pesquisa realizada pelos autores, palavras aleatórias foram apresentadas aos indivíduos
após eles terem ouvido ou uma frase ou um trecho musical. Resultados obtidos com testes
específicos de eletroencefalografia mostraram dados semelhantes para a ativação
resultante causada pela música ou pelas frases.
Ritmicidade
Há ainda mais: paralelos entre a rítmica da linguagem e a da música. A análise do
ritmo da linguagem e da música em subcomponentes e a comparação entre os domínios
revelam que o agrupamento rítmico é semelhante na linguagem e na música, mas não sua
estrutura periódica (que é mais organizada na música). Novas evidências ainda sugerem
que a rítmica de linguagem de uma cultura deixa impressões na sua rítmica musical. Isto
é, diferenças na rítmica da linguagem refletem-se na rítmica musical nas diferentes
culturas. Novos estudos transculturais permitirão afirmar se essas evidências se
confirmam. Esses achados reforçam a noção de que a música possui tanto sintaxe quanto
semântica e seja, possivelmente, como a linguagem, relativamente inerente ao homem e
não um simples produto da cultura.
Timbre
Trabalhos recentes relacionados a timbre mostram que o processamento dessa
propriedade do som envolve redes neurais próprias, incluindo regiões anteriores e
posteriores do giro temporal superior, e, possivelmente, áreas frontais também (o que
parece bastante claro, dada a necessidade de memória operacional – ver no tópico
seguinte explicação – à manutenção de informações sobre qualquer som percebido). Uma
revisão sobre esses trabalhos parece apontar que o timbre musical é uma propriedade
multidimensional do som que nos permite distinguir instrumentos musicais (e certamente
também vozes).
A evolução da discriminação de timbres certamente não é produto da necessidade
de reconhecimento de diferentes instrumentos musicais. O reconhecimento de tonalidades
(característica gerada por vibrações sonoras periódicas) é importante para reconhecer
diferentes vocalizações de animais na natureza; elas seriam uma boa indicação para
distinguir as vocalizações de outros ruídos. As tonalidades e o timbre certamente serviriam
também à identificação de vozes (é sabido, por exemplo, que mesmo bebês recém
nascidos discriminam a voz da mãe de outras vozes). Relativamente à música, a
capacidade de reconhecimento de timbre seria utilizada no reconhecimento de diferentes
instrumentos musicais e as tonalidades no reconhecimento de diferentes notas.
Diante de tais paralelos, torna-se praticamente inegável que a música está presente
no cotidiano humano mais do que apenas por prazer ou questões culturais. A organização
de nosso sistema nervoso e as implicações que as estimulações musicais trazem nos
mostra que música não é um acidente, mas uma propriedade específica de nosso sistema
nervoso central e que caminha lado a lado com a linguagem na vida humana.
220 O modelo declarativo/procedimental de Ullman
Um pouco sobre memória
Não é objetivo deste capítulo falar sobre memória. Entretanto, pelo menos um pouco
se torna necessário para que possamos apresentar o modelo de Ullman.
Basicamente, há três tipos principais de memória:
9Memória declarativa;
9Memória não declarativa ou de procedimentos;
9Memória operacional.
A memória declarativa seria responsável por armazenar em nossos cérebros fatos
e eventos ocorridos em nossa vida. É devido a esse sistema que você se lembra de
sua(seu) primeira(o) namorada(o), daquela balada que foi espetacular, do primeiro beijo e
do dia em que passou no vestibular, inclusive onde estava e o que estava fazendo. Por
esses exemplos, já podemos perceber uma característica fundamental desse tipo de
memória, que é a retenção com apenas um evento ocorrido, sem a necessidade de que
algo aconteça repetidas vezes para que nos lembremos.
A memória de procedimentos (não declarativa) é a memória relacionada às nossas
habilidades. Graças a ela que aprendemos a andar de bicicleta, dirigir um carro, desenhar,
escrever, falar, andar e tantos outros exemplos; mas, perceba, sempre relacionados a
realizar algo ou desenvolver uma habilidade. Você também percebeu a característica
oposta ao tipo de memória anterior? Várias e várias tentativas até que se consiga realizar
algo com desenvoltura.
Vale ainda ressaltar sobre esses tipos de memória que a declarativa é “consciente”.
Precisamos pensar para que consigamos nos lembrar dos eventos. Em outras palavras,
envolve uso de atenção. Já a memória de procedimentos não necessita de atenção para
que ela se manifeste. Após o treino necessário, podemos executar uma tarefa sem
atentarmos para a mesma.
Por último, temos a memória operacional. O mais simples exemplo para esse tipo
de memória é dizer que ela funciona de forma muito semelhante à memória RAM do seu
computador. Ela armazena aquilo que estamos fazendo e trabalhando em um dado
momento, como o texto que você lendo, para que possa prosseguir com a leitura do
mesmo e compreendê-lo ou com uma série de dígitos para que seja possível realizar uma
“conta de cabeça”. Logo se percebe a grande limitação desse tipo de memória. Na média,
conseguimos guardar cerca de sete itens ao mesmo tempo nela. E ela está intimamente
relacionada com atenção. Após desviarmos nossa atenção para outro fato ou tarefa, a
tendência é que esqueçamos o que antes estava na nossa memória operacional.
Agora que sabemos mais um pouco sobre memória, vamos então entender a
proposta de Ullman.
O modelo declarativo/procedimental
O pesquisador Michael T. Ullman escreveu em 2001 o trabalho “The
declarative/procedural model of lexicon and Grammar” onde defende a idéia de que dois
sistemas de memória trabalham em conjunto para a produção da língua falada.
Segundo ele, o leque de possibilidades de palavras que usamos, o léxico mental
estaria intimamente ligado à memória declarativa. Falamos porque nos lembramos das
palavras. Por outro lado, a construção de nossas frases, a gramática mental, estaria
intimamente ligada à memória de procedimentos. Falamos porque aprendemos a construir
frases. Então, a fala seria o produto constante desses dois sistemas de memória. Nas
palavras de Ullman:
“A computação de uma forma morfologicamente complexa envolve a ativação
paralelamente complexa de dois sistemas; o sistema declarativo tenta computar uma
forma na memória associativa, enquanto a memória de procedimentos tenta computar uma
regra [gramatical] em tempo real.”
Mas e a música?
A proposta de Ullman é bem completa e tem bases sólidas para seu funcionamento.
Maiores detalhes podem ser encontrados em seu trabalho. E diante de outra conclusão de
Ullman e diante dos paralelos já apresentados entre música e linguagem, torna-se muito
claro que tal uso concomitante dos dois sistemas de memória é perfeitamente cabível
também para a música:
221
“É importante notar que o modelo não assume que todas as partes dos dois
sistemas de memória servem a linguagem. Pelo menos no sistema de procedimentos e,
provavelmente, também no sistema declarativo, assume-se que circuitos paralelos tenham
funções computacionais análogas na linguagem e em outros domínios. Similarmente, o
modelo não assume que esses dois sistemas de memória são os únicos que estão sob o
léxico e a gramática. Outras estruturas neurais e outros componentes cognitivos ou
computacionais podem ser importantes para ambas as capacidades.”
Logo, nada impede que a música seja regida por regras semelhantes: A memória
declarativa seria crucial para a memorização de tons, notas e mesmo músicas e cifras,
enquanto a execução musical, seja a execução de um instrumento ou o canto, seria
função da memória de procedimentos. Tal modelo pode perfeitamente ser transportado
para a música. O funcionamento de tal sistema precisaria ser ainda todo descrito, mas
parece muito lógico que os sistemas funcionem com o sistema não declarativo, de
execução musical, sendo influenciado pelo sistema declarativo, a música em suas notas
em si.
Ainda, tanto quanto na fala ou talvez até mesmo mais quê, a memória operacional se
faz presente com grande peso, sendo importante para o planejamento da execução
musical e atividade motora coordenada e também para a tradução da leitura musical em
movimentos, um processo cognitivo provavelmente mais complexo que a fala, dada a
quantidade e tamanho dos grupos musculares envolvidos. Fatos como o desenvolvimento
de ouvido absoluto (característica pela qual uma pessoa pode se tornar capaz de apontar,
sem referências externas, qual é uma nota musical), e também o melhor desempenho em
tarefas de habilidade espacial apontado em músicos, nos levam à possibilidade de que o
treino musical intensivo leve a alterações do funcionamento dos mecanismos de memória
dos músicos. O estudo aprofundado e em conjunto de tais sistemas, poderá comprovar o
modelo de Ullman e mostrar funcionamento semelhante para a música.
Bibliografia
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music. Neuroimage 2003 20(1):71-83.
222 Neurofisiologia da Linguagem
Rodrigo Collino
Comportamento
([email protected])
-
Laboratório
de
Neurociências
e
“A linguagem, mais que um artefato cultural, é um instinto” (Steven Pinker)
Introdução
Dentro das ciências cognitivas, o estudo da linguagem tem ganhado grande atenção
nas últimas décadas. É uma área que envolve diversos detalhes e grande complexidade,
dado o emprego de técnicas desenvolvidas apenas recentemente (a partir da metade do
séc. XX) em estudos neurocientíficos. Anteriormente a este período, as conclusões de
médicos a cerca da neurofisiologia da linguagem eram abstraídas somente através da
análise da casos clínicos, advindos de acidentes que causassem danos a áreas
específicas do cérebro, o que acabava por desenvolver sequelas de cunho linguístico – na
compreensão da fala, ou na produção de mesma, por exemplo. Retrocedendo mais ainda
no tempo, pensava-se na Grécia Antiga que o controle da linguagem estivesse
concentrado totalmente na língua do indivíduo. Assim, ao encontrar um indivíduo que,
provavelmente devido a um acidende vascular cerebral (AVC), apresentasse dificuldades
na dicção, era comum oferecer-lhe tratamento através de massagens em sua língua, na
esperança de recobrar-lhe a fala. Atualmente, estudiosos da neurociência contam com
instrumentos aguçados de avaliação da atividade cerebral, tais como fMRI, MEG, PET e
ERP, a fim de correlacionar características da linguagem e regiões cerebrais específicas e
seus respectivos padrões de ativação neuronal.
Neste capítulo, vamos então explorar algumas das maravilhas da linguagem
produzidas pelo cérebro humano: o que a torna tão particular da espécie humana, sua
lateralização e modularidade cerebral, distúrbios ocasionados pela falha em alguns de
seus mecanismos, e como é possível o cérebro aprender e utilizar mais de uma língua
para nossa comunicação.
A Linguagem é exclusiva do Homem?
Vivemos imersos neste complexo comportamento chamado linguagem; ouvimos,
falamos, lemos e escrevemos quase que instintivamente e inconscientemente, sem pensar
muito na ordem das palavras que emitimos, ou no som das sílabas que ouvimos. Bebês
nascem e, em questão de 1 a 2 anos, já entendem muito de sua língua-mãe e não levam
muito mais tempo para se comunicarem naturalmente.
Antes objeto de estudo apenas de linguistas, hoje a Linguagem passa também ao
domínio de neurocientistas que procuram traçar sua ontogenia cerebral, e até mesmo
encontrar semelhanças entre a nossa comunicação e aquela usada por outros animais. De
certo, algumas espécies de animais se comunicam, como as aves, cães, lobos e primatas,
mas até que ponto esta forma de comunicação pode ser equiparada à nossa? Será que
alguma outra espécie poderia aprender a “linguagem dos homens”?
Neste sentido, vários experimentos têm sido realizados, especialmente com
chipanzés. Em um deles, tentou-se ensiná-lo a aprender palavras em Inglês de elementos
presentes em seu ambiente, e esperar que ele falasse ou ao menos entendesse o que lhe
fora apresentado. Um dos resultados mais significativos deste experimento foi perceber
que tais primatas possuem um sistema fonador diferenciado do nosso, o que limita
enormemente a produção de nuances dos sons que podem ser emitidos pela espécie
humana, e que conseguiam compreender apenas 400 palavras aos 2,5 anos. Em outra
tentativa de ensinar um chipanzé a comunicar-se, optou-se pela Linguagem de Sinais
(ASL), e chegou-se à seguinte conclusão: até os 4 anos de idade, o chipanzé havia
aprendido a sinalizar 160 palavras, e chegou até mesmo a produzir a composição “water
bird” ao ver um cisne em um lago. Pois bem, comparando-se com crianças de nossa
espécie, aos 4 anos de idade, elas já possuem um vocabulário de aproximadamente 3.000
palavras. Além disso, não é possível saber com certeza se a produção de “water bird” por
aquele chipanzé representava uma alegoria ao cisne ou se, simplesmente, eram duas
mensagens separadas – uma indicando a água em si, e a outra indicando o cisne.
De modo muito diferente, a espécie humana parece ter sido selecionada com esta
característica inata à linguagem: atualmente, no planeta, contam-se 10.000 idiomas e
dialetos dentre todos os povos da raça humana. Além disso, casos de indivíduos que
223
cresceram em total isolamento com a sociedade relatam o desenvolvimento de formas
próprias de comunicação. Por fim, há algumas características que diferem a comunicação
humana daquela encontrada em qualquer outra espécie animal. São elas:
1.
criatividade: a capacidade de gerar novas associações de palavras – ou até
mesmo criar um novo dialeto;
2.
forma: uso de fonemas e sílabas para compor palavras, e emprego de
regras sintáticas bem definidas para compor sentenças, tudo isso sem a necessidade de
intrução formal, mas da aprendizagem implícita – experienciada em nosso dia-dia;
3.
conteúdo: não só as palavras, mas também gestos, expressões faciais e a
entonação utilizadas carregam significado na comunicação humana.
4.
uso: a língua serve o propósito de meio de comunicação social e também
para identidade própria (expressa nossos pensamentos e emoções).
Assim, podemos dizer que nossa forma de comunicação é única e complexa dentre
os seres vivos de nosso planeta. Surgem também algumas questões, de discussão atual
no meio científico: esta capacidade única do ser humano reflete algum ajuste fino do
cérebro primata para o propósito específico da linguagem? Ou tal capacidade dever-se-ia
ao desenvolvimento de uma arquitetura neural completamente nova? Para melhor nos
ajudar na busca por respostas a estas perguntas, vamos agora olhar para dentro do centro
da linguagem: o cérebro humano.
Neuroanatomia da Linguagem
Todos os aspectos da linguagem são comandados pelo cérebro: a captação de
ondas sonoras provenientes da conversa entre duas pessoas é levada ao sistema nervoso
central pelo nosso sistema auditivo; a produção da fala, envolvendo a articulação dos
lábios e língua, também tem seu controle motor coordenado pelo cérebro; a leitura e a
escrita, e até mesmo nossa linguagem corporal, intermediados pelos sistemas visual e
motor, são orquestrados pelos 1,5 quilos de massa cinzenta que se encontra dentro de
nossa caixa craniana.
Cada uma destas funções linguísticas encontra-se sob responsabilidade de áreas
neuroanatômicas bem definidas e localizadas, que serão ilustradas na Figura 1 e Tabela 1:
Figura 1: Principais áreas anatômicas do cérebro humano.
Tabela 1: Relação de algumas estruturas cerebrais e seus respectivos papéis na
linguagem.
Estrutura neuroanatômica
Função controlada
Região temporo-superior posterior esquerda
Região frontal inferior posterior esquerda
Córtex auditivo primário
Região temporo-parietal esquerda
Córtex estriado e pré-estriado
Córtex pré-frontal
Tálamo
Compreensão da fala e escrita
Expressão oral e escrita
Percepção de sons
Categorização de fonemas
Visualização de palavras
Iniciação e categorização de palavras
Interface semântico-lexical
224 Percebemos, então, um fenomêno de lateralização cerebral no que se diz respeito
ao controle da linguagem, determinando o hemisfério esquerdo como dominante. De fato,
99% das pessoas destras e 70% dos canhotos desenvolvem tal característica. O
hemisfério direito também participa em características importantes da linguagem, tais
como compreensão de respostas não-verbais, leitura de números, letras e palavras curtas,
e conferir entonação, ritmo e prosódia à lingua falada. O centro de compreensão prosódica
também localiza-se no hemisfério direito (córtex posterior).
Hoje é possível “ver” o cérebro em funcionamento através de procedimentos como
PET e fMRI. Vários experimentos tem sido feitos envolvendo linguagem e mapeamento
cerebral. Observe na Figura 2 alguns dos resultados obtidos:
Figura 2: Níveis relativos de fluxo sanguíneo representado por cores. Vermelho indica os
maiores níveis, e níveis progressivamente menores são indicados por laranja, amarelo,
verde e azul. (Posner e Raichie, 1994)
Portanto, podemos prever que danos em determinada porção do tecido cerebral
podem afetar uma característica específica da linguagem. São diversas as disfunções
decorrentes de AVC, conhecidas como afasias (difunções na produção ou compreensão
da fala) , alexias (disfunções na leitura) e agrafias (disfunções na escrita). As mais
conhecidas são as afasias de Broca, de Wernicke e de Condução. Vejamos estas com
mais detalhes.
A afasia de Broca afeta o conteúdo da expressão oral e escrita.Geralmente é
decorrente de lesões na região fronto-posterior esquerda, produzindo alterações no
paciente equivalentes a uma “fala telegráfica”: substantivos são usados apenas no
singular, verbos sem flexão, levando até mesmo a uma total quebra na sintaxe da frase
(p.e., “Senhoras e senhores, por favor dirijam-se à sala de jantar”, seria produzido por um
destes pacientes como “senhora, senhor, sala”). A afasia de Wernicke não prejudica a
produção, mas sim a compreensão da fala e da escrita. Devido a esta dificuldade de
compreensão, sua fala fica afetada por uma fluência em excesso, com abundância de
palavras e frequentes trocas de assunto dentro do mesmo trecho discursivo, produzindo
uma espécie de “vazio” na fala. Geralmente é resultado de lesões na região temporoposterior superior esquerda. A afasia de Condução ocorre quando o fascículo arqueado
(região parietal esquerda), que interliga as regiões de Broca e Wernicke, é rompido. Seus
principais sintomas são dificuldades na repetição de frases e palavras e na nomeação de
objetos, e troca de letras durante a escrita.
Existem também disfunções da linguagem observadas por lesões no hemisfério
direito do cérebro: indivíduos que utilizam um único tom de voz na linguagem após lesão
no córtex frontal direito, e indivíduos que não conseguem realizar compreensão prosódica
após lesão no córtex posterior direito.
Há, ainda, aqueles distúrbio linguísticos sem, aparentemente, lesões vaculares ou
mecânicas, apontando apenas para um componente genético. A dislexia, por exemplo,
envolve grandes dificuldades em processos fonêmicos, ocasionando atrasos na leitura e
grafia incorreta de palavras. Estudos recentes apontam para um possível correlato
225
anatômico da dislexia: indivíduos disléxicos apresentam tamanho levemente reduzido do
hemisfério esquerdo, com grupos de neurônios “mal-posicionados” no planum temporale
esquerdo – o que sugere um atraso na migração daquelas células durante o
desenvolvimento. Existe, ainda, uma dificuldade em processar estímulos sensoriais
(visuais ou auditivos) de forma rápida por parte de indivíduos disléxicos, quando
comparados à população normal.
Agora que já conhecemos melhor as regiões cerebrais responsáveis pela linguagem,
vamos conhecer o processo de aquisição de duas ou mais línguas sob um ponto de vista
neurofisiológico.
O Cérebro Bilíngue
Comunicar-se, portanto, parece pertencer ao acervo biológico do homem, herdado
geneticamente de nossos ancestrais; em nossa espécie, há um instinto para o
desenvolvimento da linguagem – apesar dos possíveis problemas ou deficiências no
decorrer do percurso. E quanto à comunicação em duas línguas? Como está preparado o
nosso cérebro para aprender dois ou mais idiomas, e processá-los a nível neural? Existem
populações neurais específicas para cada idioma, ou que se complementam no
processamento de mais de um idioma? Aqui, devido à modularidade cerebral - já
conhecida não apenas para diferentes funções cognitivas do ser humano (como memória,
motricidade, visão, olfato), mas também para diferentes características linguísticas, temos
novamente que discernir entre as várias habilidades envolvidas também na comunicação
bilíngue: percepção de fonemas estrangeiros, aquisição de um léxico e de estruturas
próprias da língua em questão, articulação da fala e compreensão auditiva a uma
velocidade adequada para interação com nativos daquela língua, entre outras.
Experimentos em eletrofisiologia têm privilegiado as questões linguísticas que
envolvem aquisição e uso do léxico e da gramática em uma ou mais línguas (Perani &
Abutalebi, 2005), enquanto outros se propuseram a abordar a percepção fonêmica,
destacando-se entre estes Kuhl (2000), Stager & Werker (1997) e Rivera-Gaxola et al.
(2001), apontando para padrões de organização neural no córtex auditivo primário de
crianças e adultos.
A plasticidade neural particularmente em crianças é algo notável e aceito tanto pela
comunidade científica como pela sociedade leiga em geral, a qual percebe a facilidade e
velocidade de aprendizado de novas tarefas – em especial, a aquisição de outro idioma.
Testes experimentais têm demonstrado que recém-nascidos já discriminam entre dois
idiomas estrangeiros, ao passo que bebês aos 2 meses de idade não o fazem mais
(Mehler & Christophe, 2000). Ainda assim, percebe-se que a facilidade em aprender uma
outra língua (o chamado período crítico) continua até aproximadamente quando se inicia a
puberdade (Stromsworld, 2000), caracterizando ao longo do desenvolvimento infantil
algumas janelas de oportunidade - períodos em que a aquisição de habilidades específicas
seriam favorecidas por fatores genéticos, hormonais e de plasticidade neural. Os primeiros
estudos utilizando-se de indivíduos bilíngues demonstraram que adultos que haviam
aprendido duas línguas simultaneamente na infância apresentaram uma região em comum
para processamento de ambas as línguas, ao passo que aqueles adultos que haviam
aprendido duas línguas em momentos distintos de sua vida apresentavam regiões corticais
também distintas quando utilizando cada um dos idiomas (Figura 3):
226 Figura 3: Resultados de fMRI mostrando centros de ativação da linguagem para a fala em
dois idiomas, em dois indivíduos adultos, sendo o da esquerda uma situação de
aprendizado tardio do idioma, e o da direita, de aprendizado simultâneo de duas línguas.
(Kim et al, 1997)
Outro importante estudo neste campo provou que não somente a idade, mas
também o nível de proficiência (ou domínio) do idioma influi na representação cerebral.
Estudos com fMRI encontraram maior densidade de massa cinzenta no cérebro daquelas
pessoas que haviam aprendido mais precocemente duas línguas e que possuíam maior
grau de proficiência. (Mechelli et al, 2004). Isto equivale a dizer que quanto mais cedo
alguém é exposto a um idioma estrangeiro, maior a quantidade de conexões entre
neurônios no cérebro para dar conta daqueles idiomas.
De fato, tomado de um ponto de vista neurobiológico, nascemos prontos para
aprender qualquer idioma. Uma criança que nasce na Coréia vai aprender coreano tão
bem quanto uma criança que aprende italiano por ter nascido na Itália, embora estas duas
línguas possuam sotaques e sons de vogais e consoantes próprios, diferentes entre elas.
Nosso cérebro, nos primeiros anos da infância, não faz distinção entre japonês e inglês,
português e alemão, ou quaisquer outras línguas entre si. É somente após alguns meses
de vida que nosso sistema nervoso central começa a privilegiar os sons mais freqüentes
ao nosso meio, e por consequência, a não mais reconhecer fonemas estrangeiros que não
fazem parte do sistema de sons a que a criança está sendo exposta (Figura 4). Daí vem a
dificuldade que muitos adultos encontram em, primeiro, perceber auditivamente e, depois,
em pronunciar determinados fonemas estrangeiros – como nas palavras bad e bed, em
inglês, para os brasileiros, ou como nas palavras avô e avó, em português, para os povos
de língua espanhola.
Linha do te m po p a ra p e rc e p ç ão da fa la
Percepção para
vogais específicas
Bebês diferenciam
qualquer contraste
fonêmicos.
Aprend.
Estatística
Queda na percepção
de fonemas 2a. língua
Aumento da percepção na língua-mãe
Detecção de padrões de ritmo
Tempo
(mês)
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
Figura 4: Linha do tempo para percepção de sons da fala em bebês, de 0 a 12 meses de
idade.(Kuhl, 2004)
Conclusão e Perspectivas
O campo da neurociência se abre cada vez mais para estudos da linguagem.
Processos que envolvem desde a aquisição de uma língua, passando pelo seu
processamento, distúrbios, anomalias, codificação gênica, representação mental, e
chegando até o fenômeno do bilinguismo, todos ainda reservam perguntas que têm
ajudado em nossa construção do conhecimento acerca desta fascinante área.
Podemos apontar, como perspectivas para o futuro, algumas linhas de estudo:
1. Interação entre linguagem e sistemas de memória;
2. Reabilitação de afasias e dislexias;
3. Ontogenia e prevenção de dislexias;
4. Melhor compreensão do papel de estruturas subcorticais no processamento
liguístico;
5. Organização do léxico de duas ou mais línguas na memória;
6. Neurofisiologia da aquisição e processamento de duas ou mais línguas em
diferentes idades e níveis de proficiência.
227
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228 Evolução da Inteligência
Rodrigo Pavão ([email protected]) - Laboratório de Neurociências e Comportamento
Dado que todos os organismos compartilham um ancestral comum, por que eles
diferem tanto em relação às suas capacidades cognitivas? Como surgiu e evoluiu essa
habilidade? De que maneira diferimos de outros animais em relação a essa capacidade?
As respostas para essas perguntas dependem tanto do entendimento de como o sistema
nervoso evoluiu como de sofisticados estudos de comportamento animal. Nesta aula
trataremos de elementos interessantes para a discussão da evolução da inteligência,
baseados em estudos neuroanatômicos e comportamentais em primatas.
Os primatas compartilham uma série de características comuns que os distinguem
dos demais mamíferos. Muitas dessas características podem ser interpretadas como
adaptações para o habitat arborícola, no qual os primeiros primatas evoluíram. Essas
características incluem grande capacidade visual, sobreposição dos campos visuais,
membros e mãos adaptadas para locomoção na copa das árvores e manipulação de
pequenos objetos. Os primatas mais derivados apresentam interações sociais complexas,
o que demanda flexibilidade comportamental. Essas capacidades são compartilhadas
pelos grandes símios, incluindo a espécie humana, que é considerada diferente das outras
por apresentar extrema flexibilidade comportamental associada a capacidade de
compartilhar grande quantidade de conhecimento entre indivíduos.
As mudanças encefálicas associadas a essas capacidades serão abordadas de
modo multidisciplinar envolvendo fisiologia, anatomia e ecologia comportamental. Uma vez
descritos e comparados os cérebros dos diferentes grupos, serão apresentadas as teorias
mais consistentes a respeito dos processos evolutivos sob os quais as diferentes espécies
passaram.
Histórico
O fato de humanos gozarem de uma capacidade cognitiva claramente superior a dos
outros animais e ao mesmo tempo compartilharem semelhanças marcantes, como a
postura corporal, fez Charles Darwin por em cheque a sua teoria a respeito da evolução
das espécies. Afinal, segundo Darwin, humanos têm ancestrais não humanos e
aparentemente não existe um motivo claro para que sofisticadas capacidades cognitivas
estarem presentes exclusivamente em humanos. A “vantagem adaptativa” de altas
capacidades cognitivas parece óbvia, não só para humanos como para todos os animais.
O pensamento darwiniano no estudo das capacidades mentais envolve dois
conceitos evolutivos: (1) uma vez que os grupos de animais têm um ancestral comum,
deve haver similaridades entre as espécies atuais e (2) o fato de divergências entre grupos
animais terem ocorrido há muito tempo, pode possibilitar grandes diferenças entre grupos
animais fruto da especialização para nichos específicos. No entanto, por muito tempo, os
estudiosos do comportamento animal preocuparam-se essencialmente com o primeiro
conceito (Kalat, 1983). Essa postura é congruente com a descrição feita por Darwin, de
que imitação, uso de ferramentas e uso de sons na comunicação (como passo direcional à
linguagem) são encontrados em não-humanos, sugerindo que a inteligência humana e
não-humana diferem apenas em grau e não em tipo (Macphail e Bolhuis, 2001).
Os estudos entre a época de Darwin até a década de 1930 concentraram-se na
demonstração e quantificação da inteligência animal. Um dos primeiros a avançar nessa
área que foi intitulada de “Psicologia Comparativa” foi George Romanes, com a publicação
de seu livro Inteligência Animal de 1882, que apresentou relatos curiosos sobre cães e
gatos de estimação brilhantes (Romanes, 1882). No entanto, foram feitas muitas críticas
com relação à falta de um controle adequado. Edward Thorndike, em estudos posteriores
estabeleceu as bases do estudo da psicologia experimental ao incorporar os controles
antes reclamados (Thorndike, 1911). Os trabalhos feitos pelos psicólogos comparativos
dessa época visavam a comparação quantitativa entre espécies animais, para tanto os
animais eram submetidos a tarefas distintas cuja solução teoricamente exigia capacidades
cognitivas distintas. O fato dos animais terem sido testados em versões simplificadas das
tarefas expostas a humanos, sugere que os psicólogos comparativos tinham como foco de
estudo a inteligência, e não os animais. Essa área de estudo assumiu que inteligência é
um processo único e geral, ou seja, que as diferenças na inteligência dos animais são
apenas quantitativas; caso esse pressuposto esteja incorreto, isto é, caso a inteligência
229
consista de uma série de habilidades, apresentando especialidades para situações
particulares, essa abordagem poderia gerar interpretações equivocadas sobre as
capacidades desses animais.
Figura 1. Darwin, Romanes, Thorndike, Pavlov, Skinner, Watson e Tinbergen. A
Uma nova etapa no estudo da inteligência em animais foi dominante entre as
décadas de 1930 e 1950. Essa etapa surgiu da necessidade de confirmação do
pressuposto do momento anterior, de que inteligência é um processo único e geral. Dado o
pressuposto, a forma mais coerente de estudar a inteligência e aprendizado parecia ser
através de um único modelo animal sempre numa mesma situação, de forma a propiciar
um melhor controle de outras variáveis. Independentemente, Thorndike e o fisiologista
russo Ivan Pavlov estabeleceram os alicerces para o estudo científico da aprendizagem e
da memória animal pelo desenvolvimento de modelos animais e a descrição dos métodos
experimentais para modificar o comportamento (condicionamento operante – associação
da resposta correta a recompensa e resposta incorreta a castigo, por Thorndike e o
condicionamento clássico – associação entre dois estímulos como campainha a
apresentação de comida, por Pavlov) (ver Squire e Kandel, 2002). Houve, assim, uma
mudança no foco do estudo do comportamento animal, saindo da vastidão da avaliação
das diferenças na inteligência de múltiplas espécies para a avaliação restrita dos
mecanismos fundamentais do aprendizado. Tratava-se de uma psicologia laboratorial que
se transformou numa tradição empírica designada como behaviorismo, liderado
posteriormente pelos americanos John Watson e B. F. Skinner. A maior parte dos estudos
era feita com ratos e havia alguma preocupação sobre como os estudos se relacionavam
com humanos, mas poucos perguntavam como os estudos se relacionavam com animais
na natureza, evidenciando o maior distanciamento das questões evolutivas (Kalat, 1983).
A partir da década de 1950, de maneira lenta e gradual, os estudos com psicologia
experimental começaram a apresentar preocupação com questões evolutivas. A razão do
surgimento dessa preocupação se deve à influência de etologistas como Niko Tinbergen,
que defendia (1) os animais apresentam uma grande variabilidade no que aprendem (e
não apenas no quão bem aprendem); (2) a aprendizagem tem função reduzida ou não
demonstrável no comportamento de alguns vertebrados; (3) as diferenças entre espécies
são grandes e importantes e (4) que é possível estudar comportamentos inatos de maneira
experimental e científica (Tinbergen, 1951). Os psicólogos experimentais americanos
reagiram contra esse avanço, no entanto, houve progressivamente uma síntese da
etologia com a psicologia comparativa (Hinde, 1966). Simultaneamente, foi se tornando
cada vez mais aceito que os paradigmas de condicionamento clássico e operante não
poderiam ser aplicados facilmente a tudo que ocorre na natureza (Kalat, 1983). Um
exemplo é o aprendizado de ratos e primatas em tarefas em tarefas de discriminação
visual (apenas primatas com bom desempenho) e olfativa (apenas ratos com bom
desempenho), que evidencia que os sistemas perceptuais evoluíram diferentemente nas
diferentes espécies, para solucionar problemas associados aos seus diferentes nichos
(Slotnick e Katz, 1974). Reforçando esse quadro, surge o conceito de aprendizagem
especializada; como o “imprinting” (preferência do filhote durante período sensível em
seguir o indivíduo ou até mesmo objeto que oferece alimento e aquecimento, observável
em algumas aves; na idade adulta seleciona parceiros sexuais semelhantes ao indivíduo
preferido no período sensível; difere da aprendizagem convencional pela ausência de
recompensa) e aversão a sabor (consumiu determinado alimento com determinado sabor,
se ficar doente tende a evitar aquele sabor em momentos posteriores; difere da
aprendizagem convencional pela rapidez da associação) (ver Shettleworth). Assim, após
quase um século, o pensamento darwiniano, de que deve haver semelhanças e diferenças
entre as espécies, se tornou influente nos estudos sobre comportamento animal.
230 Concepções de Inteligência e Evolução
A concepção coerente a ser adotada na retomada do estudo da evolução da
inteligência é a de que durante o curso da evolução, algumas espécies adquiriram
algumas habilidades especializadas que estão ausentes em outras espécies. Nessa
concepção, a inteligência consiste de uma série de habilidades (e não em um único
processo) e, portanto, uma espécie pode diferir qualitativamente de outra espécie. Mas há
dificuldades na utilização dessa estratégia. Um exemplo interessante é a capacidade de
reverter hábitos, avaliada em diferentes espécies distantes. Na tarefa de avaliação dessa
capacidade, o animal pode escolher entre duas alternativas, A e B; inicialmente, apenas A
é reforçada, que determina uma preferência de animal em escolher A; assim que essa
preferência é estabelecida, apenas a alternativa B passa a ser reforçada, até que a
preferência por B se estabeleça; nesse momento, A volta a ser reforçada, e assim por
diante alternando entre A e B. Pombos, ratos e tartarugas mostram melhora progressiva
na alternância entre as alternativas, diferente de peixes, que não aprendem a tarefa (Kalat,
1983; Holmes, 1966). Essa diferença entre animais que claramente aprendem a tarefa e
animais que não são capazes de melhora parece um bom exemplo de diferença
qualitativa. Mas há alguns problemas. O primeiro é que alguns invertebrados também
apresentam essa habilidade: os polvos e as minhocas (Kalat, 1983). Já é bem descrito que
os cefalópodos, grupo taxonômico que inclui os polvos, são capazes de solucionar uma
série de tarefas cognitivas, o que parece uma convergência evolutiva com os vertebrados.
No entanto, é pouco intuitivo entender que os peixes são intelectualmente inferiores em
relação às minhocas. O segundo problema que pode ser levantado se dá pela
possibilidade de deduzir que as aparentes diferenças qualitativas sejam resultados de
algumas diferenças quantitativas como duração de memória de curta duração. Além disso,
peixes algumas vezes mostram melhoras nessa tarefa de alternância de respostas quando
usado um protocolo com mudanças sutis em relação ao original. Isso mostra que é
necessário analisar diferenças comportamentais com muita cautela antes de concluir que
há diferenças qualitativas entre espécies.
Há também a concepção mais simples e mais antiga sobre inteligência, de que se
trata de um processo único e geral. O aumento no número de neurônios e conexões
sinápticas capacita a realização de maior número de associações, processando e retendo
maior quantidade de informação com maior precisão. É evidente a descontinuidade dessa
interpretação com o que foi descrito anteriormente; no entanto, há evidências razoáveis de
que, ao comparar espécies próximas, aquelas que têm encéfalos maiores têm vantagem
geral em muitas tarefas de solução de problemas. Assim, pode-se justificar que não é
incorreto interpretar inteligência como um processo único e geral ao comparar espécies
próximas. A definição de inteligência usada aqui é a de que se trata de uma habilidade
cognitiva geral que permite solucionar problemas novos, não se tratando de habilidade
para situações específicas.
Paradoxo
Uma vez incorporada a cognição na evolução biológica podemos considerar que os
processos adaptativos podem ocorrer de três maneiras distintas e com escalas temporais
também diferentes. Na escala de milhares ou milhões de anos temos o surgimento de
estruturas adaptativas, como garras, chifres, olhos, asas etc. Numa escala de centenas a
milhares de anos ocorre a evolução cultural, com a desenvolvimento de ferramentas,
armas, conhecimento sobre a natureza, novidades na organização social etc. Por fim,
numa escala de alguns anos ou até mesmo meses, se aceitarmos uma idéia de evolução
bem abrangente, o desenvolvimento intelectual e cognitivo de cada individuo pode também
ser um fator gerador de novidades. O desenvolvimento cognitivo de um indivíduo, por
outro lado, gera novidades em um curso temporal extremamente curto (ex. capacidades
representacionais e computacionais) (ver Rozin, 1998).
É razoável assumir que a espécie humana apresenta alto desenvolvimento cultural e
grande capacidade cognitiva, e que adaptabilidade dessa espécie é pronunciada em tal
nível que a tornou capaz de driblar modificações ambientais Apesar do curto período de
tempo que a nossa espécie está presente no planeta, é inegável o nosso sucesso.
Certamente somos a espécie que teve o maior impacto no planeta, capaz de sobreviver
em ambientes extremos, constituímos uma população muito vasta, que continua
crescendo com uma alta taxa e somos muito bons na construção de estruturas
231
tecnológicas, na produção de alimento em pequenas áreas e na prevenção de doenças. É
evidente, no entanto, que toda essa adaptabilidade decorrente do alto desenvolvimento
cultural e da grande capacidade cognitiva que são resultados da evolução biológica.
Surge, então, o paradoxo: se as características humanas oferecem tanta vantagem, por
que outros animais não as têm? Certamente a possibilidade de seu surgimento já ocorreu
repetidas vezes. De fato, existem muitos animais sociais, alguns que produzem
ferramentas, diversos apresentam algum nível de inteligência. No entanto, o alto
desenvolvimento cultural e cognitivo é exclusivo dos humanos. Quais as razões para
tornar o surgimento de características humanas através de evolução biológica um
processo tão raro?
Eventos encadeados (em primatas)
Uma possibilidade de solução para esse paradoxo é compreender que as
características humanas são resultantes de uma série de eventos dependentes, todos eles
com baixa probabilidade de ocorrência. Portanto, o fato de não haver outras espécies com
características humanas está relacionado com a baixa probabilidade de ocorrência dos
eventos que estão organizados em série, de modo que os eventos passados são prérequisitos para eventos futuros Algumas críticas podem ser levantadas para essa
interpretação, que considera apenas as chances de surgimento e manutenção dessas
características e ignorando a seleção natural, que é um mecanismo altamente determinista
associado a esse processo. Há também hipóteses que consideram o contexto ecológico
do surgimento dos humanos (ver Foley, 1996). Assim, prosseguiremos então com esse
paradoxo em aberto.
Figura 2. Lêmure, macaco-prego, macaco-rhesus, bonobo e humano. B
Os primatas são uma ordem dos mamíferos em que são incluídos os prossímios
(lêmure, társio), macacos do novo mundo (macaco-prego, mico), macacos do velho mundo
(macaco-rhesus, macaco-japonês, mandril), grandes símios (bonobo, chimpanzé, gorila,
orangotango) e humanos. Os primatas diferem dos demais mamíferos pelo focinho
reduzido, olhos voltados para frente e presença de mãos capazes de agarrar. São também
nos primatas que são encontrados os exemplos mais notáveis de socialidade complexa e
inteligência. Essas características podem ser associadas como uma série de eventos
dependentes. Na história evolutiva dos primatas, o primeiro momento foi o
desenvolvimento da grande capacidade vísuo-motora que é um pré-requisito para
socialidade complexa, que por sua vez é um pré-requisito para inteligência. Esses eventos
serão explicados e relacionados na próxima etapa.
Grande capacidade vísuo-motora
Os primeiros primatas apareceram há cerca de 55 milhões de anos. Eles eram
semelhantes aos atuais prossímios. Apresentavam poucos gramas e pequenas mãos
prênseis capazes de agarram os finos terminais de galhos de árvores das florestas
tropicais. Esses animais tinham olhos voltados para frente, e seu sistema visual era
bastante acurado pelo grande número de fotorreceptores concentrados na região da fóvea
da retina. Um grande nervo óptico conectava a retina a áreas mesencefálicas e talâmicas.
O córtex visual também era aumentado associada a esse aumento da capacidade visual.
A organização do córtex visual dos primatas atuais é comum, indicando que o ancestral de
45 milhões de anos atrás já apresentava essa organização básica. Há 40 milhões de anos
um novo cone com resposta a uma faixa de freqüência luminosa diferente apareceu a
partir de duplicações e mutações nos genes que produziam um tipo de cone anterior.
Assim de uma visão por 2 cones, surgiu a capacidade de ver com 3 cones, que origina a
visão a cores que nós humanos estamos acostumados (Allman, 1998). Os primatas
232 também apresentavam notável capacidade motora, além de se mover facilmente pelas
copas de árvores, tem precisa movimentação de suas extremidades (mãos e pés), e
evidente controle de seus inúmeros músculos faciais, correlacionado com aumento de
suas áreas corticais motoras (Allman, 1998). Além do aumento do córtex visual e do córtex
motor, os primatas são dotados de células exclusivas nessas duas estruturas; são as
células de Meynert (localizadas no córtex visual, participam no processamento de imagens
em movimento) e as células de Betz (no córtex motor, envolvida na programação do tônus
muscular prévio a saídas motoras finas) (ver Sherwood, 2003). Assim, é possível
diferenciar os primatas dos mamíferos prototípicos diferenciados em razão dessa série de
características que determinam uma grande capacidade vísuo-motora.
Figura 3. Sobreposição de campos visuais, córtex motor e córtex visual em um mamífero
prototípico (porco-espinho) e um primata (lêmure). C
As duas principais teorias que abordam a origem e desenvolvimento da
complexidade vísuo-motora, são as teorias do “predador visual” e do “nicho galhos finos”
(Allman, 1998). A primeira afirma que a complexidade surgiu em razão da pressão seletiva
da necessidade de ataques precisos com as duas mãos utilizando a visão como
orientação. A segunda teoria se firma no nicho ocupado por esses animais, que viviam em
ambiente complexo em que quedas seriam fatais; a visão e os movimentos acurados
seriam necessários para a locomoção precisa entre os galhos e também para perceber e
pegar insetos e frutas (no mesmo período havia a grande diversificação das
angiospermas, as plantas com flores). As duas teorias não se excluem, e, provavelmente,
estão ambas corretas.
Os olhos voltados para frente permitem a noção de profundidade, devido a existência
de um campo de visão binocular, que gera diferenças entre as detecções da cada olho.
Para animais que vivem em árvores, essa modificação oferece grande vantagem pois
permite melhor acuidade de posição. Essa modificação funciona como um quebracamuflagens; mesmo que a presa tenha padrão de coloração igual ao do substrato, é
possível observar que existe variação de profundidade da presa em relação ao substrato.
No entanto, o surgimento da visão estereoscópica está associado a uma grande redução
do ângulo de visão, essa redução determina uma maior suscetibilidade aos predadores.
Para reduzir esse prejuízo, os primatas apresentaram modificações em seu sistema
auditivo. Além disso, tornou-se comum também a convivência em grupos, espécies sociais
teriam multiplicada a capacidade de perceber predadores, e os indivíduos vocalizam sobre
a situação (Allman, 1998). Assim, acredita-se socialidade tenha sido a solução para a
predação, ou seja, que o aumento da capacidade visual teria favorecido a organização de
grupos sociais.
Socialidade complexa
233
Além da teoria apresentada anteriormente, existem outras teorias para a origem e
desenvolvimento da socialidade. Uma delas enfoca o cuidado com os jovens: primatas em
geral teriam infância prolongada (evento que é ainda mais evidente em humanos)
relacionado ao aumento do encéfalo, que por sua vez está associado com necessidade de
mais tempo de treinamento oferecido aos jovens pelos adultos com o objetivo do
possibilitar o aprendizado de habilidades complexas e também de como adquirir alimento
de maior qualidade. Outra teoria aborda a caça em grupo, atividade que determina
aumento dos ganhos energéticos e assim poderia ter favorecido a organização em grupos
sociais. O fato é que grupos primatas mais derivados apresentam uma organização social
complexa, e essa socialidade está associada a especializações encefálicas.
Um aspecto de grande importância é a comunicação. Diversos são os exemplos do
uso de sinais sonoros associados a aspectos muito relevantes do ambiente encontrados
em primatas; esse tipo de comunicação demanda mecanismos de produção e percepção
de sons. No entanto, um dos mecanismos de comunicação mais freqüentemente
associado à evolução dos primatas é o uso de faces como pistas sociais (Allman, 1998).
Trata-se de um processo de grande complexidade, pois além de exigir a contração precisa
dos músculos faciais, exige também um mecanismo de reconhecimento dos padrões de
face observados. Congruentemente à necessidade de processamento dessas
informações, é encontrado um aumento considerável na representação cortical da face.
D
Figura 4. Exemplos de faces em primatas.
Informações sobre mecanismo neural dos sinais sociais foram obtidas em um estudo
em que foram inseridos eletrodos na área pré-motora ventral de macacos e foram
encontrados alguns neurônios que disparavam quando o animal executava uma
determinada ação e também quando o animal observava essa mesma ação sendo
executada pelo experimentador. Esses neurônios foram denominados “neurôniosespelho”. Nesse estudo, os macacos (1) faziam a ação motora de pegar um pequeno
pedaço de alimento utilizando a mão, (2) observavam o experimentador pegar um pedaço
de alimento usando a mão ou (3) observavam o experimentador pegar um pedaço de
alimento usando uma pinça. Havia atividade similar nos “neurônios-espelho” nas duas
primeiras situações; na terceira situação não havia atividade nesses neurônios (Rizzolatti,
1998). É bastante razoável aceitar que existam “neurônios-espelho” para outras ações,
incluindo as diferentes faces, sendo esse um dos prováveis mecanismos para o
reconhecimento de faces, usadas como pistas sociais. Além disso, é possível imaginar que
esses neurônios tenham função fundamental na aprendizagem social.
234 E
Figura 5. Atividade neural registrada nos dos eletrodos colocados na área pré-motora
ventral em três condições: observação do movimento realizado pelo experimentador,
realização do movimento e observação do movimento realizado pelo experimentador
utilizando uma ferramenta.
Eletrodos colocados na área pré-motora ventral do córtex registram disparo de
neurônios em condição de observação do movimento de pinça pegando alimento realizado
pelo experimentador e em condição de execução do movimento de pinça pegando
alimento pelo animal. Não é observado disparo quando o alimento é pego utilizando uma
ferramenta.
Admitindo que a complexidade de um grupo social está relacionada ao número
indivíduos desse grupo, foi realizado um estudo que evidenciou forte correlação entre essa
medida (número de indivíduos do grupo) e a taxa de neocórtex (dado pelo volume do
neocórtex dividido pelo volume do restante do encéfalo), sugerindo que a capacidade de
processamento (medida pela taxa de neocórtex) está intimamente associada a
complexidade social (Dunbar, 1998), o que evidencia a importância de abordar a
socialidade na evolução da inteligência.
F
Figura 6. Atividade neural registrada nos dos eletrodos colocados na área pré-motora
ventral em três condições: observação do movimento realizado pelo experimentador,
realização do movimento e observação do movimento realizado pelo experimentador
utilizando uma ferramenta.
Inteligência
A interação social, com todas as sutilezas possíveis, demanda grande flexibilidade
comportamental e grande desenvolvimento encefálico, o que novamente evidencia a
questão dos eventos encadeados. Nessa proposta, a socialidade demanda seleção de
maiores habilidades cognitivas (inteligência) e a inteligência permite habilidade de manter
relacionamentos (socialidade).
Há também a hipótese ecológica sobre a evolução da inteligência em primatas, que
uma das justificativas é tendência de primatas que se alimentam de folhas apresentar
235
menores encéfalos do que primatas que se alimentam de frutas, medida através da
comparação entre residuais (diferença entre o tamanho encefálico da espécie e o tamanho
encefálico esperado para animal da mesma massa corporal, obtida pela reta ajustada
entre massa corpórea e massa encefálica) (ver Harvey, 1990). Isso porque as frutas estão
mais dispersas que as folhas, o que requer um encéfalo mais poderoso para produzir um
mapa cognitivo que permite lembrar do local em que esse alimento foi encontrado (sabese que primatas tem mapas cognitivos muito complexos). Além disso, fruta é um recurso
pelo qual há competição, diferente das folhas. Isso é consistente com o dado de que o
gene que regula o desenvolvimento do encéfalo (regula o tamanho desse órgão pelo
controle do número de divisões celulares), controla também o desenvolvimento do
estômago e intestino. A hipótese ecológica trata da questão energética da alimentação: o
custo de digerir folhas é muito maior do que digerir frutas; um gasto energético maior com
digestão reduz a quantidade de energia disponível para o metabolismo encefálico. De fato,
o tamanho do encéfalo é inversamente correlacionado com o tamanho do tubo digestivo. A
utilização da estratégia de comparação entre taxa de neocórtex e (1) porcentagem de
frutas na dieta e (2) extensão território (obtido pelo residual da regressão entre massa
corpórea e extensão do território), no entanto, não apresentou correlação; esses dados
favorecem a hipótese social da evolução da inteligência.
G
Figura 7. Tendência de que primatas comedores de folhas apresentem maiores residuais
encefálicos do que primatas comedores de folhas.
Independente de qual a origem, a inteligência está associada com alta capacidade
de processamento, que demanda grandes encéfalos.
Medidas neuroanatômicas da inteligência
O tamanho dos encéfalos varia bastante entre os primatas: os prossímios
apresentam o menor volume encefálico, seguido pelos macacos do novo mundo, macacos
do velho mundo e, com os maiores encéfalos, os grandes símios. No entanto, poderia se
argumentar que essa diferença se deve a uma maior quantidade de “corpo” que precisa
ser controlada, uma vez que a gradação de massa corpórea tem exatamente a mesma
ordem. Assim, as comparações entre tamanho encefálico de diferentes espécies devem
considerar o tamanho do corpo; isso é feito através da comparação entre residuais
encefálicos.
236 H
Figura 8. Gráficos massa corporal x volume encefálico e massa corporal x volume
neocortical: observar os residuais encefálicos e neocorticais.
Pode-se argumentar também que a comparação entre residuais encefálicos não é a
melhor medida para avaliar cognição, baseada na noção que os comportamentos
“inteligentes” seriam processados no neocórtex e que as outras estruturas estariam
relacionadas com processamentos mais estereotipados. Assim, a comparação entre os
residuais neocorticais seriam medidas melhores para avaliar inteligência. Indo além, como
a realização de tarefas de raciocínio e cálculo mental estão associadas a grande ativação
do córtex pré-frontal, pode-se defender que o residual pré-frontal seria a medida mais
precisa.
Apesar desse do esforço para isolar medidas mais precisas de estruturas
relacionadas com inteligência, há autores que defendem o uso de medida encefálica
completa (sem separar estruturas relacionadas com processamento de capacidades
cognitivas) sem a relativização pela massa corpórea; isso é, a medida do tamanho
absoluto do encéfalo é que melhor prediria a capacidade cognitiva de primatas (Deaner,
2007).
A capacidade de processamento não depende somente do tamanho (absoluto ou
relativo) do encéfalo, depende também da organização intrínseca do órgão; nesse sentido,
o aumento da mielinização, a redução da distância entre neurônios e o aumento número
de neurônios no córtex seriam também boas medidas de inteligência, já que definem
diretamente a velocidade de transmissão do impulso nervoso, a distância dessa
transmissão e a quantidade de unidades de processamento, respectivamente (Roth,
2005). Os grandes símios e a espécie humana são os únicos que apresentam um tipo de
neurônio de morfologia diferenciada, que é com número de conexões maior e que tem
provável função cognitiva, denominado como “célula com forma de espinho” (Nimchinsky,
1999); o número de conexões entre neurônios também é um elemento que influencia na
capacidade de processamento.
237
Figura 9. “Células com forma de espinho”, presentes em humanos, bonobo, chimpanzé,
gorila e orangotango e ausentes em gibão, macaco e lêmure. I
A inteligência em seres humanos
Nós somos a espécie com o mais alto nível de inteligência, e que apresenta a maior
capacidade de resolver problemas. Podemos ter desempenho inferior a outras espécies
em problemas específicos, mas conseguimos criar novas estratégias para problemas que
nos são apresentados (inteligência), e somos capazes de transmitir essa informação para
outros indivíduos da nossa espécie (cultura). Essa combinação entre capacidade cognitiva
e cultural elaboradas nos tornou uma espécie de grande sucesso.
A evolução da inteligência dos humanos está provavelmente associada com o
aumento da complexidade social, cultura, linguagem e uso de ferramentas. Uma idéia
bastante influente que trata da complexidade social é conhecida como hipótese
maquiavélica, que sugere que a principal pressão evolutiva para o aumento da inteligência
em humanos era a competição entre indivíduos, principalmente a competição sexual entre
indivíduos do mesmo gênero (Alexander, 1979). Nessa teoria a principal função da
comunicação é prever e manipular o comportamento de outros indivíduos. Outra hipótese
para a evolução da inteligência em humanos é que se trata de um caso de seleção sexual
(Ridley, 1993) – ser inteligente, charmoso e divertido era sexy para nossos ancestrais!
Essa hipótese requer apenas uma preferência inicial por parceiros mais inteligentes e o
restante do processo se dá por retroalimentação positiva.
A grande capacidade cognitiva está associada características usualmente
consideradas exclusivas da espécie humana: a imitação, a teoria da mente e a linguagem
(Roth, 2005). A imitação verdadeira requer que o observador armazene a representação
da ação de um demonstrador e use-a para gerar ação similar em si próprio. Os humanos
seriam os únicos capazes de imitar o procedimento e o resultado. Outros animais
aprenderiam através de simples condicionamentos. A segunda característica exclusiva é a
teoria da mente, que é a capacidade de atribuir estados mentais a outros indivíduos –
capacidade de entender o que outros vêem, sentem e sabem. Essa capacidade é
essencial para poder prever e manipular o comportamento dos outros, citada
anteriormente na hipótese maquiavélica. Crianças com idade inferior a 4 anos não
possuem essa capacidade, demonstrada pelo teste em (1) observam um brinquedo
colocado na caixa 1 ao lado de um outro expectador (o “palhaço”), (2) em seguida o
brinquedo é retirado da caixa 1 e colocado na caixa 2, sem que o “palhaço” observe essa
ação, (3) ao final, pergunta-se onde o “palhaço” procurará o brinquedo, e a criança
responde a caixa 2, indicando que não conseguiu entender o que o “palhaço” sabe. Essa
capacidade pode ser observada em crianças com mais de 4 anos; no entanto, indivíduos
com autismo permanecem sem ter teoria da mente mesmo na idade adulta. Macacos
foram colocados em uma condição que permite avaliar a existência de teoria da mente:
após treinamento inicial que aprenderam a não usar bebedouros na presença de uma
pessoa, foram oferecidos dois bebedouros, sendo que um desses bebedouros era visível a
pessoa enquanto o outro bebedouro estava associado a um anteparo que não permitia a
visibilidade dessa pessoa; em condição que a pessoa era apresentada por um longo
238 período, os macacos usaram os dois bebedouros com a mesma freqüência, indicando que
não conseguiram entender o que a pessoa vê. A terceira característica citada como
exclusiva de humanos é a linguagem – é razoável considerar que os humanos são os
únicos que apresentam linguagem com semântica e sintática bem definida.
Figura 10.Tarefas que avaliam teoria da mente em humanos e macacos. J
Além dessas características comportamentais exclusivas, os humanos apresentam
medidas do encéfalo, córtex e córtex pré-frontal muito maiores do que os demais primatas.
Com o estudo da regressão da massa corpórea pelo volume da caixa craniana
(proporcional encéfalo, possível de ser medido em fósseis) em indivíduos do grupo dos
grandes símios e dos gêneros Australopithecus e Homo, é possível notar um aumento
muito grande do volume craniano com pequeno aumento na massa corpórea entre os
indivíduos do gênero Homo, o que não ocorre em grandes símios ou Australopithecus
(Roth, 2005). Há também uma grande diferença na organização intrínseca do córtex: os
humanos apresentam o maior número de neurônios, menor distância entre neurônios e
maior mielinização (Roth, 2005).
L
Figura 11. Espécies de grandes símios e do gênero Australopithecus apresentam aumento
reduzido no volume da caixa craniana com aumento da masa corpórea em relação a
espécies do gênero Homo.
A espetacular diferença entre os humanos e os outros primatas nas características
apresentadas, torna a afirmação de que nós gozamos de diferenças cognitivas qualitativas
razoável. Além disso, o volume craniano humano é de 1350 – 1400 cm3, enquanto o do
chimpanzé é de apenas 410 cm3 o dá mais um argumento para a hipótese qualitativa.
239
Figura 12. A observação dos crânios de chimpanzé e de humano atuais da figura superior
sugere uma diferença qualitativa entre essas espécies.
Por outro lado, se organizarmos os crânios de espécies fósseis pela datação (em
razão da filogenia ainda ser muito controversa), inserindo exemplares de Australopithecus
e Homo, colocando chimpanzé atual antes do Australopithecus mais antigo e o humano
atual após o Homo fóssil mais recente, não é possível observar nenhum salto. Essa
organização evidencia o aspecto gradual das modificações cranianas no registro fóssil.
Além disso, não há estruturas neuroanatômicas diferentes entre humanos e chimpanzés;
há apenas diferença de tamanho nessas estruturas.
Figura 13. Crânios fósseis organizados pela data revelam alteração gradual do tamanho
do encéfalo, sugerindo que na verdade a diferença entre os crânios de chimpanzé e de
humano atuais se deva a uma série de mudanças quantitativas, mas que foram mantidos
vivos apenas o início e o fim do processo. M
Há controvérsias sobre a possibilidade de classificar imitação, teoria da mente e
linguagem como características comportamentais exclusivas da espécie humana. Imitação
pode ser encontrada em outros primatas, como o exemplo do filhote bonobo que tem
acesso ao endosperma de cocos quebrados pela mão até cerca de 1 ano de idade; após
240 esse período o jovem tenta quebrar o coco, mas não tem sucesso até completar cerca de
4 anos; por todo esse período o jovem fez uma ação sem obter resultado favorável,
processo que não pode ser interpretado com condicionamento, que se trata de uma
imitação verdadeira. Há diversos relatos que suportam existência de teoria da mente em
primatas não humanos, embasados em observações em que indivíduos supostamente
enganam outros de seu grupo social, como o relato de que um animal subordinado parece
se esconder do animal dominante para realizar comportamento sexual ou contato social
íntimo; o ato do animal subordinado se esconder atrás de uma pedra pode ser interpretado
como uma capacidade de interpretar a perspectiva visual do animal dominante. A
linguagem parece também não exclusiva dos humanos. Macacos-vervet usam três tipos
de sons de alarme contra predadores: o som para águias faz com que os macacos olhem
para cima, som para cobra faz com que os macacos olhem para grama no solo e o som
para leopardos faz com que os macacos corram para as árvores (Shettleworth, 1998); isso
pode ser interpretado como uma semântica simples. A chimpanzé Lana, treinada a usar
um teclado com símbolos, era capaz de gerar frases, ou seja, apresenta comunicação com
sintática. A chimpanzé Lucy, treinada com linguagem de sinais, associou os símbolos
“fruta” e “beber” para se referir a melancia; à chimpanzé Washoe foi apresentada ao
símbolo “geladeira”, mas utilizava a combinação entre os símbolos “abrir”, “comer” e
“beber” (Maturana, 1988). Isso reforça a idéia de que os chimpanzés apresentam uma
linguagem simples. Evidenciou-se, então, que as características consideradas exclusivas
de primatas são encontradas em outros primatas em grau inferior.
Figura 14. Relato de comportamentos que pode ser interpretado como teoria da mente,
observado em primatas não humanos. Essa capacidade comportamental é extremamente
elaborada em seres humanos, no entanto pode ser encontrada de modo simplificado em
primatas não humanos. N
Considerando esses dados de que primatas não humanos apresentam, mesmo que
de modo simplificado, as características usualmente consideradas exclusivas de seres
humanos, pode-se pensar que na verdade a nossa inteligência seria resultado uma grande
série de mudanças quantitativas, que teriam determinado uma mudança falsamente
qualitativa. Apresentando essa questão de outra forma, tendemos a considerar que temos
uma capacidade cognitiva qualitativamente diferente daquela observada nos demais
primatas em razão do registro das diferenças quantitativas ter sido apagado com a
extinção das espécies mais próximas da espécie humana, pertencentes aos gêneros
Autralopithecus e Homo.
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M
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242 O estudo de solução de problemas
Pedro Leite Ribeiro ([email protected]) - Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia
Evolutiva
Os estudiosos de solução de problemas estão tentando entender e medir as
diferenças cognitivas entre algumas espécies animais, incluindo nós. Aqui temos uma
breve discussão sobre algumas características desses estudos.
A idéia de classificar espécies num contínuo.
Naturalmente um dos desafios é desenhar problemas que tenham diferentes níveis
de dificuldade para que seja possível ver qual espécie pode resolvê-los e até que nível.
Idealmente os problemas poderiam ser postos numa escala de dificuldade, com a qual
animais/humanos poderiam ter seu desempenho testado, através de mediadas
quantitativas de pontos, eles poderiam ser classificados no nível cognitivo apropriado.
Parece óbvio que humanos estariam no topo, o desafio seria classificar os outros.
Por exemplo, chimpanzés parecem estar em segundo, logo atrás de nós, depois viriam os
outros Pongidae, e então os macacos. Animais como cachorros e golfinhos são esperados
logo atrás dos primatas, isto devido a sua reputação tanto junto ao público geral como no
meio científico.
Tais idéias se baseiam na premissa de que essa habilidade pode ser medida de
maneira quantitativa, mesmo que não seja continua. É verdade que alguns estudos
mostram algumas evidências de diferenças qualitativas, no entanto, estas diferenças
parecem estar baseadas em características quantitativas. As diferenças qualitativas estão
associadas a pulos para uma posição mais alta na classificação de cognição. Esta
impressão da existência de “pulos” pode ser fruto do fato de pesquisadores procurarem
problemas que não podem ser resolvidos por uma determinada espécie, mas que podem
ser resolvidos por outra que estaria num degrau superior na escala cognitiva. Esta
abordagem passa a idéia de diferenças qualitativas, que na verdade podem não existir. No
entanto, quando comparamos com uma abordagem que leve em consideração o tempo e
o número de erros que cada espécie animal leva para resolver o problema, as
características quantitativas voltam a aparecer.
A dificuldade dos problemas apresentados aos sujeitos experimentais
O que é dificuldade? O que é um problema fácil? Quanto mais difícil é um problema
de outro, como a distância (em termos de dificuldade) que separa um problema de outro
pode ser medida?
As tentativas de estabelecer o que é dificuldade e o que é facilidade parecem se
basear em diferentes pressupostos. Uma fonte de inspiração parece vir da observação da
nossa própria maneira de lidar com problemas. No entanto, esta fonte não é simples. A
maioria, senão todos os problemas que nos deparamos na nossa vida diária, podem ser
resolvidos por meio de habilidades culturais adquiridas por meio de ferramentas cognitivas.
Psicólogos, conscientes dessa complicação estão a mais de um século, tentando e
desenvolvendo instrumentos capazes de medir coisas como inteligência e criatividade.
Apesar dos debates a respeito do sucesso alcançado por eles é evidente que algum
progresso foi feito. O senso comum diz que alguns indivíduos são mais inteligentes e
criativos do que outros. No entanto, pessoas comuns (não pesquisadores) ficam muito
confusas quando tentam explicar essas diferenças, e tudo que sobra, quando eles são
confrontados com perguntas, é apenas uma vaga idéia que existem algumas diferenças.
Psicólogos parecem ter ido um pouco além do senso comum, uma vez que eles livraram
seus testes dos mais óbvios efeitos da cultura, como por exemplo, a educação formal. Em
particular, com relação aos estudos de desenvolvimento cognitivo de crianças, eles
chegaram a algum consenso do que esperar do desempenho de crianças nos diversos
estágios do desenvolvimento. Portanto, uma das idéias do estudo da cognição animal é
adaptar os problemas usados com humanos, sejam aqueles usados para medir diferenças
individuais ou aqueles usados para mediar diferenças relacionadas com o
desenvolvimento.
Outra importante fonte de inspiração vem do uso de ferramentas. Em alguma
intensidade toda espécie animal tem que lidar com coisas do ambiente por intermédio do
contato físico. Na locomoção, tanto em terra como no ar e na água, os animais têm que
243
lidar com irregularidades do meio, caso contrario eles não vão conseguir se locomover de
maneira satisfatória e adaptativa. Correr no chão pode parecer um desafio grande o
suficiente, isso sem falar em algumas espécies de macacos que podem se movimentar em
altas velocidades de uma arvore para outra, isso certamente parece prodigioso para um
observador humano. No entanto, tais desempenhos são classificados apenas como
habilidades vísuo-motoras, sem implicações cognitivas. Em locomoção apenas detour (se
distanciar do destino desejado para poder alcançá-lo) parece requere níveis cognitivos
mais elevados.
Várias outras categorias de comportamento envolvem coordenação e contato
corporal entre o animal e o ambiente que ele vive, como por exemplo: comer, brigar, cavar,
construção de ninho, transportar (objetos, presas, filhotes, comida), empurrar, puxar,
remover objetos, jogar, deixar cair, e uso de ferramentas. Em todas essas atividades o
animal poderá ter que fazer rápidos e finos ajustes de comportamento, não importa com
que eles estejam lidando. Na luta, tais ajustes devem ser feitos em coordenação com os
movimentos do oponente, que pode ser um rival, uma presa um predador etc. Com relação
a todas estas atividades, muitas serão classificadas como habilidades pecepto-motoras,
porém algumas delas podem envolver algum nível de habilidade cognitiva, como
inferências.
Coordenação do contato corporal de um animal com o seu ambiente não é, no
entanto, a única maneira possível de mostrar e identificar habilidade cognitivas. Aspectos
motores são obviamente marginais em algumas refinadas performances humanas, como
jogar xadrez ou raciocínio matemático. De fato, o comportamento pode parecer irrelevante
para o estudo destas habilidades cognitivas. No entanto, se faz certamente necessário
como abordagem metodológica uma vez que serve de mecanismo para se chegar ao
verdadeiro objeto de estudo; o cérebro do animal.
O uso de ferramentas tem se revelado uma janela de ouro para dentro da mente do
animal por boas razões. Humanos são de longe os mais proficientes utilizadores de
ferramentas. Alguns podem advogar que o uso de ferramentas foi a causa de nosso
desenvolvimento cognitivo no começo de nossa evolução. Portanto, o uso de ferramentas
pode ser a causa e um sinal de altos níveis de habilidades cognitivas. Chimpanzés,
frequentemente lembrados pelo alto nível de sua inteligência, são utilizadores de
ferramentas, portanto, esta é mais uma razão para acreditar na correlação entre cognição
e uso de ferramentas. Mais uma razão vem da consideração a respeito da natureza do uso
de ferramentas. O argumento aqui é que o uso requer e mostra capacidades mentais
como compreensão de relações causais, antecipação de resultados, percepção de
propriedades funcionais dos objetos, planejamento, intenções e inferências.
A combinação das idéias descritas acima parece estar relacionada com os estudos
sobre puxamento de cordas (Osthaus at all 2005, Heinrich and Bugnyar 2005), empurrar
através de tubos (Visalberghi and Limongelli 1994), encaixar copos e seleção de
ferramentas (Rosengart and Fragazsy 2005, Santos at all 2003). Estes quatro desenhos
experimentais citados mostram de maneira não controversa níveis de dificuldade,
baseados na idade que crianças podem resolvê-los e também em óbvios incrementos de
complexidade.
Dificuldades da noção de dificuldade.
Várias importantes dificuldades têm que ser enfrentadas. Uma se relaciona com o
fato que diferentes espécies têm diferentes habilidades, que podem em determinadas
situações fazer com uma mesma tarefa seja mais fácil para a espécie A do que para a
espécie B, estas características podem interferir, funcionando como um handicap para
uma determinada espécie num teste em particular. Alguns aspectos podem variar desde
anatômicos, até emocionais, temperamentais, habilidades perceptuais, idade, sexo,
experiência passada e diferenças individuais. É também importante ressaltar que não de
maneira alguma é fácil antecipar todos os possíveis efeitos destas coisas, levá-los em
consideração e controlar todos eles.
Por exemplo, Rosengart em seu artigo (Rosengart, 2005) pensou que os copos com
bordas que eles usaram em seus testes com macacos poderiam interferir no desempenho
em comparação com os copos lisos oferecidos aos chimpanzés, e também que os
chimpanzés poderiam ter alguma dificuldade com o tamanho pequeno dos copos com
bordas. Tais detalhes poderiam interferir e arruinar o teste (fato que não aconteceu no
244 experimento). Também, na experiência do tubo da armadilha por Rosengart 2005 um dos
quatro macacos estudados (nomeado Rb) teve um desempenho claramente mais elevado
do que o outro, seus resultados significam possivelmente algo como uma habilidade
cognitiva mais elevada. O Rb era mais novo e menos experiente em problemas do tubo do
que o outro. Poderia ter se levantado à hipótese de que animais mais novos têm
habilidades mais elevadas para resolver problemas, mas Takeshita et al 2005, Rosengart
e Fragazsy 2005 advertem, com propriedade, que a idéia de que uma experiência anterior
com um problema similar sempre leva a uma vantagem, pode não ser verdadeira.
Há evidências que, dominando uma tarefa, um animal usará o conhecimento desta
tarefa ao enfrentar um problema similar, e isso acontece mesmo quando não é adequado,
isso é mostrado em situações que o animal usa artifícios inúteis para a solução do
problema somente por causa da experiência anterior. (Rosengart e Fragaszy 2005). Muitas
outras coisas tais como aquelas exemplificadas acima são desafios à imaginação dos
investigadores de estudos sobre solução de problemas. Eles têm que projetar
experimentos capazes de evitar todos os tipos de interpretações paralelas que não
aquelas relacionadas que o que eles se propuseram a investigar.
Um dos maiores problemas no estabelecimento de quão difícil um problema é vem
da dificuldade de saber e entender a estratégia usada pelo animal para resolver o
problema. Deste fato algumas perguntas de extrema importância aparecem. O problema
realmente requer o nível de habilidade cognitiva que ele foi projetado para medir? Ou ele
pode ser resolvido de maneira mais fácil, que requer um nível de habilidade cognitiva
menor do que o experimentador pensa que requer?
Um bom exemplo de como estas questões podem ter conseqüências vem dos
experimentos feitos por Osthaus et al. Neste estudo os autores advogam que cachorros
não podem entender problemas de meio e fim (problemas de meio e fim são aqueles que a
solução (fim) depende do entendimento do processo (meio) de solução). É bem verdade
que provar a inexistência de um determinado fenômeno é sempre mais difícil do que
provar sua existência.
O experimento de Osthaus et al 2005:
Um dos testes propostos pelos autores consistiu na oferta de alimento numa caixa
transparente, sendo que este alimento estava preso a uma corda e a única maneira de
conseguir o alimento era puxar a corda até que a comida passasse por uma pequena
abertura na caixa de acrílico. Uma segunda corda, igual à primeira, também podia ser
puxada (pelos cachorros) da arena experimental, no entanto, esta segunda corda não
tinha comida presa ao final. Estas duas cordas estavam cruzadas como um X e o ponto de
cruzamento estava dentro da caixa, de forma que os cachorros não tinha acesso.
Portanto, os cachorros tinham duas cordas para puxar, sendo que apenas uma tinha
comida no final. Por causa deste fato, serem duas cordas em X é que este experimento é
considerado um experimento de começo e fim. Afinal, para o cachorro não basta entender
que tem que puxar a corda ele tem que associar que a corda tem que estar presa a
comida, tem que entender o processo que resulta no sucesso em conseguir a
recompensa.
Usando esta montagem experimental quatorze cachorros foram testados vinte vezes
cada um. Os autores contaram quantas vezes os cachorros puxaram primeiro a corda
certa e quantas vezes eles tentaram primeiro a corda errada. Os resultados mostram que
em menos de 50% das vezes os cachorros puxaram a corda certo primeiro. Por conta
deste resultado os autores dizem que os cachorros não são capazes de resolver
problemas de começo e fim. Afinal, aparentemente não foram capazes de associar qual
corda estava presa ao alimento.
No entanto, o estudo mais detalhado dos resultados apresentados pelos autores
pode levar a uma interpretação um pouco diferente. Os cachorros entravam na arena
experimental e de forma afobada (típica de cachorros) e rapidamente puxavam as cordas.
Vale ressaltar que os cachorros que primeiro puxavam a corda errada não eram impedidos
de puxar a segunda e, portanto, correta. Desta maneira, se fosse possível perguntar aos
cachorros no final do experimento o que eles acharam, eles talvez não dissessem como
acreditam os autores “ Diabo! não consigo matar o problema das cordas” talvez eles
dissessem “ Simples! Bastar puxar as cordas”. A segunda interpretação vem da não
punição do cachorro que puxa a primeira corda errada e, portanto, da inexistência da
245
necessidade do entendimento completo do problema para o sucesso na obtenção da
recompensa.
Desta maneira, como comentávamos antes da descrição deste experimento: “O
problema realmente requer o nível de habilidade cognitiva que ele foi projetado para
medir? Ou ele pode ser resolvido de maneira mais fácil, que requer um nível de habilidade
cognitiva menor do que o experimentador pensa que requer? Estas questões parecem
mais oportunas do que nunca, “ Simples, basta puxar as cordas”. De fato, os cachorros
não se comportaram de maneira que demonstrasse que eles entenderam que apenas uma
corda estava ligada ao alimento (disto segue a argumentação dos autores), no entanto,
talvez eles tenham se comportado desta maneira porque não lhes foi exigido o
entendimento total do problema.
A incrível habilidade dos insetos
Consideremos, por exemplo, o estudo de comportamento de invertebrados, como
artrópodes. Estes animais são capazes de performances impressionantes, como a
construção de complexos ninhos, caçar, comunicação e etc. Por várias razões, o ponto
inicial de estudiosos de comportamento de insetos é assumir que os comportamentos
observados não podem ser fruto de habilidades cognitivas semelhantes as humanas. Os
modelos deles geralmente partem de idéias relacionadas com uma abordagem robótica,
na qual eles procuram regras simples, que quando seguidas possam dar conta de explicar
a aparente complexidade dos comportamentos observados.
Uma outra fonte de preocupação vinda da interpretação dos experimentos de
solução de problemas se relaciona com o conceito de modular ou de domínios cognitivos.
Se esta idéia estiver correta, um animal pode ter uma habilidade para um específico
contexto, como construção de ninho, e carecer totalmente em outro contexto, como
forrageamento. (ou o contrário, claro).
Como conseqüência o objetivo de classificar diferentes espécies certamente vai se
deparar com severas complicações. A noção de alguma coisa como habilidade cognitiva
geral (similar com o censo comum de noção de inteligência) terá que co-existir com a
noção de habilidades de contexto - ou ser totalmente substituída por ela.
Conclusão
Pesquisadores de solução de problemas têm se deparado com questões difíceis na
busca do entendimento da cognição animal. Pode ser que estas questões sejam muito
difíceis para nós, portanto talvez nós tenhamos achado o limite de nossa própria espécie.
É claro que pesquisadores ativos na área vão discordar e não vão aceitar que este
problema não pode ser resolvido. Pelo menos eles devem admitir que não é possível
oferecer uma solução agora, mas que eles estão no caminho de fazê-lo, e que portanto, é
apenas uma questão de tempo e esforço. De fato a história do desenvolvimento cultural
humano parece ter dado uma lição na visão pessimista, afinal, a história humana é um
poderoso argumento de que qualquer problema apresentado a nós será eventualmente
resolvido.
Apesar de todas as dificuldades relacionadas com o estudo de solução problemas,
os resultados disponíveis são substancias. É possível antecipar fracassos e sucessos. No
entanto, se você olhar para estes estudos sem pensar em rigorosas comparações entre
espécies animais e se concentrar nas lições a respeito da cognição, certamente sua
importância ficará clara o suficiente.
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Luiz Eduardo Tassi
Comportamento
([email protected])
-
Laboratório
de
Neurociências
e
A questão de como os animais, especialmente o homem, selecionam movimentos de
seu repertório comportamental, em outras palavras de como as decisões, os eventos
computacionais que conectam os dados sensoriais e uma representação armazenada da
estrutura do mundo com o comportamento é uma questão que tem sido discutida desde os
tempos da Grécia Antiga. Para Aristóteles era a alma imaterial que servia como o
mecanismo responsável para o comportamento motivado humano. Esta visão dominou o
pensamento ocidental e árabe até o Iluminismo. Nesta época surge a convicção de que
uma explicação material dos fenômenos observáveis poderia ser encontrada. Nesta linha
situa-se a abordagem dualística da conexão entre sensação e ação, que foi proposta por
Descartes. Sua proposta foi de que o comportamento humano pode ser dividido em duas
principais categorias que podem ser vistas como provenientes de dois processos distintos.
A primeira categoria proposta por Descartes compreende apenas os comportamentos que
são completamente determinados em relação a eventos no ambiente sensorial imediato,
comportamentos em que previsivelmente são ligados estímulos sensoriais estereotipados
com respostas motoras simples. Sua característica deteminística sugeriu a Descartes que
esta conexão sensório-motora residia dentro do corpo material, sendo assim possível seu
estudo pela fisiologia. Na segunda categoria de comportamentos, aqueles em que
nenhuma conexão determinística era evidente, Descartes segui a idéia de Aristóteles,
identificando a alma imaterial como a fonte destas ações. (Glimcher, 2003,
Glimcher,2003a).
A visão cartesiana deu um grande impulso à fisiologia ao sugerir que algumas ações
poderiam ser estudadas com metodologia puramente fisiológica. Durante todo o século
XIX e início do século XX grandes progressos foram feitos na identificação de mecanismos
neurais ligando deterministicamente sensação e ação, especialmente ao nível dos reflexos
medulares.
No entanto os mecanismos neurais responsáveis pelas outras categorias de
comportamento permaneceram inexplorados fisiologicamente. Nos últimos 20 anos esta
situação começou a mudar e atualmente três classes de tomada de decisão estão sendo
estudadas: a dos comportamentos determinísticos sensório-motores;
a dos
comportamentos previsíveis em que os comportamentos são controlados por uma mistura
de sinais sensoriais e não sensoriais, tais como probabilidades e estimativas de valor; e
no terceiro grupo as decisões imprevisíveis ou estocásticas. Estas muito recentemente
começaram a ser estudas fisiologicamente e também parecem ser passíveis de descrição
ao nível de computações celularers feitas dentro de uma arquitetura neural definida.
No estudo da ecologia comportamental a visão é de que a evolução dirige o
comportamento animal em direção à solução eficiente ou otimizada dos problemas
enfrentados em seus nichos ambientais. Argumenta-se que as causas evolucionárias
últimas da tomada de decisão podem ser encontradas na análise econômica da interação
dos organismos com seu meio ambiente, no sentido de maximizar a adaptação em face da
incerteza reinante. As evidências são de que os cérebros de animais complexos como os
mamíferos executam operações que correspondem muito de perto aos problemas de
otimização que a ecologia comportamental descreve como as causas últimas do
comportamento. São dados que sugerem que os problemas ambientais enfrentados pelos
animais podem modelar não somente o comportamento mas também o hardware neural e
as computações por ele executadas para a tomada de decisão (Glimcher, 2002).
Em consonância com esta visão (Glimcher, 2004, para uma breve revisão), como um
exemplo citamos o estudo de Platt e Glimcher (1999) que verificaram que os neurônios da
área LIP (intra-parietal lateral), numa tarefa de tomada de decisão visual sacádica, tinham
sua taxa de disparo como função da expectativa de ganho (produto da magnitude do
ganho pela probabilidade) da sacada em cada direção. A área LIP é uma região do lobo
parietal onde estão mapas de saliência, representação topográfica visual que codifica a
localização de objetos salientes ou de relevância comportamental (Gottlieb, 2007).
248 Fig. 1 A atividade de neurônios da área LIP correlacionada à probabilidade de ganho
(0.8 versus 0.2) numa situação em que as propriedades sensoriais e motoras permanecem
idênticas
Neste e em vários outros estudos, as relações entre estímulo, resposta e resultado
da escolha efetuada eram fixados, isto é, escolher o movimento associado à maior
expectativa de valor era sempre o melhor curso de ação. Em contextos sociais, no entanto,
o resultado das decisões não são determinísticos mas variam dependendo das escolhas
feitas por outros indivíduos, tornando assim as previsões difíceis. A teoria dos jogos foi
desenvolvida nas ciências sociais para predizer e explicar o comportamento nestas
circunstâncias. Os modelos desenvolvidos na teoria dos jogos propõem que os jogadores
avaliam custos e benefícios de cada alternativa para eles mesmos e para seus oponentes
e então adotam uma estratégia comportamental. Tipicamente estas estratégias
comportamentais envolvem uma distribuição probabilística e imprevisível de respostas que
estabelece um equilíbrio para todos os jogadores. Estes pontos de equilíbrio são
conhecidos como Equilíbrio de Nash e as estratégias a ele associadas têm a característica
de se sobreporem a todas as outras. Em outras palavras, é um conjunto de estratégias,
uma para cada um dos jogadores, em que a escolha de cada jogador é a melhor resposta
às outras escolhas (Holt CA, Roth AE, 2004). Por exemplo no jogo de par-ou-ímpar a
melhor resposta para os dois jogadores é a de imprevisivelmente apostar um número par
(ou ímpar) na metade das vezes; qualquer outra estratégia seria facilmente explorada pelo
oponente.
A seguir revisamos brevemente dois estudos que enfocam as bases neurais de
escolhas modeladas pela teoria dos jogos
Estudos da neurofisiologia da decisão foram feitos utilizando um jogo chamado em
inglês de matching-pennies. Neste jogo, em cada jogada cada um dos dois oponentes
coloca sobre a mesa uma moeda, após ter escolhido sua condição de vitória, isto é, um
deles ganhará quando as duas moedas tiverem as mesmas faces para cima (cara-cara ou
coroa-coroa) e outro quando as faces diferirem. Para este jogo (estruturalmente idêntico
ao par-ou-ímpar) a melhor estratégia para ambos os jogadores é colocar sobre a mesa
cara (ou coroa) 50% das vezes (o equilíbrio de Nash para este jogo) de forma
absolutamente aleatória. Qualquer desvio desta estratégia será explorado pelo outro
jogador em detrimento do primeiro.
Barraclough e colegas (2004) (Platt, 2004) registraram a atividade de neurônios do
córtex pré-frontal dorso-lateral de macacos jogando uma versão visual-sacádica do jogo
matching-pennies tendo um computador como oponente. Nesta forma cada jogada se
iniciava pelo aparecimento dum círculo central no monitor, no qual o animal então fixava o
olhar. Em seguida apareciam dois círculos laterais e o círculo central desaparecia. Neste
momento o animal tinha que fazer uma sacada para um dos círculos laterais. Em seguida
um anel vermelho era iluminado em torno de um dos círculos, indicando qual havia sido a
249
escolha (prévia) do computador. Se computador e o animal houvessem selecionado o
mesmo círculo uma pequena quantidade de suco de fruta era liberada na boca do macaco.
Quando o programa do computador decidia a sua escolha baseado na história das
escolhas e dos reforços recebidos pelo animal, estes desenvolviam uma estratégia de
escolha estocástica em cada jogada, perfazendo 50% de cada escolha ao longo do jogo;
isto é, a estratégia ideal neste jogo. O próximo
passo foi determinar se
um algoritmo de aprendizagem por reforço poderia explicar as escolhas dos macacos.
Neste tipo algoritmo o agente (animal, robot) faz suas escolhas baseado nas diferenças
de valores das alternativas, valores determinados pela história anterior dos reforços
recebidos em cada escolha. (Schultz, 1997 e Montague et al, 2004). Os autores
verificaram que as diferenças de valor associadas a cada alternativa, embora pouco
diferentes de zero na maior parte das vezes (ver gráfico), estavam presentes e
influenciando as escolhas do animal. Resumindo: os animais convergiram para a
estratégia ideal utilizando um algoritmo de aprendizagem por reforço, isto é baseando-se
na história dos acertos anteriores.
Fig 2. Representação esquemática da versão visual sacádica do jogo matchingpennies usada no estudo. A seleção do lado feita é feita pelo computador antes de cada
jogada e revelada (feedback) ao macaco após a escolha deste (move/hold).
Fig 3. Probabilidade de resposta à direita em função da difrença de valor das
escolhas. Linha contínua representa a probabilidade de escolha predita pelo modelo
matemático de apendizado por reforço, os pontos representam a escolha efetiva do animal
no estudo, os histogramas a percentagem (0 – 17%) de “apostas” em função da diferença
de valor entre as opções.
Como estas computações que dirigem o comportamento estão respresentadas no
sistema nervoso? O estudo do registro de neurônios individuais do córtex pré-frontal
revelou que muitos neurônios tinham sua atividade sistematicamente modulada pelas
escolhas anteriores, enquanto que outrs o eram pela história de reforços anteriores. Mais
importante ainda é que muitas células tinham sua atividade modulada pela conjunção
destes dois fatores. Por exemplo, um neurônio aumentava sua freqüência de disparos
250 quando o macaco havia selecionado o lado direito na escolha anterior e não havia
recebido o suco de frutas, enquanto que outros neurônios eram sensíveis a diferentes
conjunções de escolha e resultado.
Fig 4. Os diversos locais no cérebro do macaco onde foram encontrados sinais
relacionados a tomada de dedisão durante o jogo de matching-pennies
Cohen e Ranganath (2007) estudaram o desempenho de humanos jogando o
mesmo jogo, também contra um computador. Testaram também a hipótese de que as
estratégias de decisão são baseadas nos resultados das apostas mais recentes através
dum processo de aprendizagem por reforço, nas quais os erros de previsão de ganho são
utilizados para corrigir o valor associado a cada opção de escolha. Mas em lugar da
atividade de neurônios individuais, os autores registraram potenciais evocados (ERP –
event related potentials) durante o jogo para avaliar como as respostas neurais aos
resultados das apostas influenciavam a decisão na jogada seguinte. Para tal focaram suas
análises na negatividade pós feedback (FRN, feedback related negativity), um potencial
eletro-encefalográfico que se crê refletir um sinal neural de erro de previsão (por exemplo,
quando o resultado duma escolha é diferente da expectativa isto seria reportado por este
sinal). Os resultados, que foram consistentes com a teoria computacional, revelaram que
magnitude dos ERPs após uma jogada em que o sujeito perdia permitia prever se o sujeito
mudaria sua escolha na próxima jogada. Também constataram que o FRN era
desproporcionalmente maior sobre o córtex motor contra-lateral à mão utilizada para fazer
a jogada anterior, sugerindo que este sinal seria utilizado para corrigir o valor das
representações neurais de cada ação. De acordo com teorizações recentes o FRN reflete
um sinal de erro originário do sistema dopaminérgico mesencefálico enviado ao córtex
cingulado anterior no qual é usado para adaptar o comportamento de acordo com os
princípios da aprendizagem por reforço (Holroyd e Coles, 2002).
Antes de encerrar vale a pena apontar que as pesquisas acima discutidas se
concentram quase que totalmente no córtex. No entanto outras põe em evidência a
importância fundamental das conexões corticais com as estruturas sub-corticais na
tomada de decisão (Bogacz, 2007).
Todos estes estudos mostram que não somente os comportamentos simples e
determinísticos, mas também comportamentos que Descartes afirmava serem baseados
na alma imaterial, são processados no tecido neural e podem ser analisados com
metodologia da fisiologia. Por outro lado podemos ver que as forças evolutivas que
levaram ao desenvolvimento de comportamentos economicamente eficientes, o fizeram
através do desenvolvimento de um substrato neural voltado à computação das variáveis
econômicas que geram esta eficiência comportamental.
251
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252 CRONOBIOLOGIA
Conceitos básicos
Cintia Etsuko Yamashita ([email protected]) - Laboratório de Cronobiologia (MZUSP)
A cronobiologia é um dos ramos da ciência multi e inter disciplinar que se propõe a
estudar as características temporais da matéria viva, em todos os seus níveis de
organização. O seu reconhecimento como disciplina científica só ocorreu no ano de 1960,
com a realização do Cold Spring Harbor Symposium on Quantitative Biology sobre relógios
biológicos.
Neste capítulo, pretende-se abordar alguns conceitos e características gerais que
envolvem o sistema temporal em diversos organismos vivos, bem como algumas
aplicações que surgiram a partir de pesquisas cronobiológicas.
Os ritmos biológicos
O ciclo de atividade/repouso, as fases do sono, o batimento cardíaco, são alguns
exemplos de ritmos biológicos. Um ritmo pode ser definido como um processo que varia
periodicamente no tempo e são observáveis na maioria dos seres vivos. Para o estudo dos
ritmos, alguns conceitos da física devem ser utilizados adequadamente, como período,
fase e amplitude (figura 1). Período é o intervalo de tempo em que um ciclo se completa. A
fase corresponde a cada um dos momentos de um ciclo. A amplitude é a diferença entre
os valores máximos e mínimos de uma oscilação.
Figura 1. Representação gráfica mostrando os parâmetros: período, fase e amplitude.
O primeiro relato, com carácter mais científico, de um ritmo biológico foi elaborado
por Andróstenes de Thasos, em 325 a.C. Ele descreve detalhadamente o movimento
oscilatório diário de folhas de tamarindo. Já em 1729, o astrônomo francês Jean Jacques
de Mairan observou que os movimentos diários das folhas de uma planta, provavelmente
uma espécie de Mimosa, eram mantidos mesmo dentro de um móvel escuro, ou seja, num
lugar isolado do ciclo claro/escuro – “sensitiva sente o sol, mesmo sem vê-lo” (fig. 2). Este
experimento demonstrou a endogenicidade de um ritmo, ou seja, a existência de um
ritmo endógeno, independente das oscilações ambientais. Atualmente, já foi observada
ritmicidade endógena na maioria dos organismos estudados, até mesmo em procariotos. É
importante ressaltar que alguns ritmos não possuem este componente endógeno, sendo
gerados puramente por ação direta dos fatores externos ambientais, sendo, portanto,
considerados ritmos exógenos.
253
Figura 2. Representação do experimento de Jean Jacques de Mairan que demonstrou a
endogenicidade do ritmo de abertura foliar.
Freqüência dos ritmos
Os ritmos biológicos podem ser classificados segundo a sua freqüência. Se o
período for menor do que 20 horas é um ritmo ultradiano. Este é o caso do batimento
cardíaco, os disparos de potencial de ação das membranas celulares (figura 3), os
estágios do sono, dentre outros.
Figura 3. Potencial de ação de membrana com uma freqüência de aproximadamente um
segundo.
Quando um ritmo possui um período maior do que 28 horas, ele é conhecido como
sendo um ritmo infradiano. A maioria dos ciclos ligados à reprodução se encaixam nesta
categoria, como os ciclos menstruais em humanos (figura 4); também podem ser citadas
as migrações anuais observadas em diversos animais.
254 Figura 4. Ciclo menstrual em humanos. Nota-se a dinâmica de diversos componentes
fisiológicos e histológicos, com um ciclo de cerca de 28 dias.
Existem alguns ritmos que possuem um período em torno de 24 horas, como o ciclo
de atividade/repouso (figura 5) e o ciclo de liberação do hormônio melatonina. Estes são
exemplos de ritmos circadianos, atualmente os mais bem estudados e conhecidos pelos
pesquisadores.
Com o experimento de Mairan foi visto que alguns ritmos se mantêm mesmo em
condições constantes, indicando a existência de um oscilador endógeno. Sob condições
ambientais constantes, dizemos que os ritmos estão em livre-curso, podendo se
expressar durante horas, dias, meses ou mesmo anos, dependendo da espécie e do
protocolo experimental. O período do ritmo em livre-curso, ligeiramente diferente de 24
horas, é representado pela letra grega τ (tau) e é característico da espécie. Na figura 5
está uma representação de um ritmo de atividade/repouso (actograma) de um organismo,
em condições de livre-curso.
255
Figura 5. Actograma representativo de um organismo, em condições de livre-curso. Para
melhor visualização do ritmo, os dados foram duplicados numa escala de 48 horas
(double-plotting: linha 1: dia 1 e dia 2; linha 2: dia 2 e dia 3; e assim sucessivamente). As
barras vermelhas cheias indicam a fase de atividade, as barras brancas representam a
fase de repouso. A barra na parte superior da figura indica o regime de iluminação ao qual
o animal foi submetido, neste caso, escuro constante. Reparar que o τ é maior do que 24
horas; e, nesse sentido, a atividade começa um pouco mais tarde a cada dia.
Uma vez que os seres vivos possuem um relógio endógeno poder-se-ia pensar que
os ciclos ambientais não exerceriam qualquer influência sobre os ritmos, desde que não se
tratasse de um ritmo exógeno. Porém, os ciclos ambientais desempenham um papel
essencial para o sistema temporal, sincronizando os ritmos biológicos, garantindo assim
que as atividades fisiológicas e comportamentais de um organismo coincidam com a fases
mais apropriadas do meio externo cíclico. A sincronização dos ritmos circadianos ocorre
principalmente através do mecanismo de arrastamento, que consiste na modificação do
período e da fase do oscilador circadiano por ciclos ambientais, resultando na
periodicidade de 24 horas observada na natureza. Os ciclos ambientais que promovem o
arrastamento dos ritmos biológicos receberam o nome de zeitgeber (“doador de tempo”)
por Aschoff (1960). O ciclo claro/escuro é o zeitgeber da grande maioria dos ritmos
biológicos (fig. 6).
256 Figura 6. Actograma de um roedor diurno (nile grass rat). O animal está arrastado pelo
ciclo claro/escuro (regime de iluminação nas barras localizadas no topo da figura), seu dia
tem então 24 horas. A partir do dia 20, o organismo é colocado em escuro constante e
existe a expressão de τ.
A figura seguinte ilustra um esquema da estrutura do sistema circadiano, em que
estão indicados: o zeitgeber; as vias aferentes através das quais o zeitgeber é percebido e
processado; o oscilador circadiano endógeno; as vias eferentes através das quais o
oscilador controla os ritmos circadianos; o ritmo circadiano observado.
Zeitgeber
aferência
Oscilador eferência
interno
~
Ritmo
Agente
mascarador
Figuras 7. Componentes do sistema circadiano.
Porém outros ciclos ambientais também podem ser zeitgebers, como o ciclo de
temperatura, o ciclo de maré, ciclo lunar e também ciclos não abióticos, como o ciclo de
disponibilidade de alimento e o ciclo social. Um indivíduo em seu meio natural está
exposto a uma grande quantidade de ciclos, porém apenas aqueles aos quais a espécie é
sensível serão zeitgebers.
Existem alguns fatores ambientais que podem ter uma ação direta sobre o ritmo
expresso, sem que haja, contanto, a participação do relógio biológico, como
esquematizado na figura.7. A este fenômeno damos o nome de mascaramento. O
mascaramento confere a plasticidade das funções fisiológicas e comportamentais em
responder prontamente a mudanças não previsíveis, flexibilidade esta de suma
importância para os organismos. Uma vez que os organismos possuem essa plasticidade
em responder diretamente ao ambiente não haveria, a priori, a necessidade de um sistema
temporal endógeno. Porém, a existência de um relógio interno nos seres vivos, arrastado
pelos ciclos externos, permite que estes se preparem frente às variações ambientais
(antecipação), desencadeando então os processos fisiológicos necessários nos momentos
mais apropriados do ambiente cíclico em que vivem. Nesse contexto, os ritmos circadianos
desempenham um papel muito importante na coordenação temporal dos processos
fisiológicos do organismo e para que um ritmo seja considerado “circadiano”, ele
necessariamente deve apresentar três características: a) persistência em livre-curso, b)
ser arrastável por um ciclo ambiental, c) apresentar compensação à temperatura.
257
A compensação à temperatura consiste na independência do valor de tau em relação
à temperatura ambiente. É muito bem sabido que a velocidade de qualquer reação
química é diretamente alterada pela temperatura. Ao aumentarmos em 10 ºC existe um
aumento, ou diminuição, segundo uma taxa de 2 ou 3. Porém, o mesmo não ocorre com o
período dos ritmos biológicos de um dado organismo, que mesmo em diferentes
temperaturas, expressam um τ muito semelhante (tabela 1). Ainda pouco se sabe sobre as
vias bioquímicas envolvidas neste processo, mas já se sabe que graças a essa
propriedade, os seres vivos são capazes de se manter ajustados ao meio ambiente,
independente da temperatura ambiental A compensação à temperatura indica, mais uma
vez, a importância de se ter um oscilador endógeno que funcione como um relógio
biológico na coordenação temporal dos processos fisiológicos, função essa que seria
inviável se sua periodicidade dependesse da temperatura ambiente.
Tabela 1. Período do ritmo em livre-curso em diferentes espécies se mantém muito
próximo com o aumento ou decréscimo de temperatura. Adaptado de Marques et al, 2003.
Organismo
Alga unicelular
Processo
luminescência
LIgulodinium polyedrum
Planta do feijão
Movimento das folhas
Phaseodus multiflorus
Gafanhoto
Deposição de lamelas da
cutícula
Schistocerca gregaria
Lagarto
Lacerta sicula
258 locomoção
T
T (h)
(° C)
22
25,3
32
25,5
15
28,3
25
28,0
26
25,3
36
25,9
25
24,3
35
24,2
autores
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259
A identificação anatômica do oscilador circadiano
Gisele Akemi Oda ([email protected]) - Laboratório de Cronobiologia
A identificação anatômica do oscilador circadiano, em vertebrados, iniciou-se nos
anos 60 com os experimentos de Curt Richter, o qual lesionou diversos órgãos, verificando
o efeito da lesão no ritmo de atividade locomotora de ratos. A lesão do hipotálamo gerou
arritmicidade, indicando provável alojamento do oscilador nesta região do cérebro. Por
outro lado, em 1976, Michael Menaker demonstrava arritmicidade resultante de extirpação
da glândula pineal em pardais, com a retomada da ritmicidade na atividade após
transplante de tecidos desta mesma glândula.
A arritmicidade resultante de uma lesão não é um indicativo final de que a estrutura
lesionada consiste no oscilador circadiano! Lembremo-nos da estrutura do sistema
circadiano: ele é constituído de aferências, oscilador e eferências. Notem que a
arritmicidade pode ser provocada tanto na lesão do oscilador como de eferências. Como
distinguir estas duas possibilidades? Precisava-se, dessa forma, de critérios melhores para
se acessar o oscilador através deste tipo de experimento.
Para que uma estrutura possa ser definitivamente considerada como oscilador
circadiano, ele deve obedecer a certos critérios:
- A oscilação deve persistir “in vitro”, ou seja, quando isolado de suas eferências.
- Quando transplantado, deve transferir os padrões de sua oscilação – período e
fase – para o novo organismo.
Em 1979, Zimmermann e Menaker demonstraram que a glândula pineal é o oscilador
circadiano dos pardais, trasplantando pineais entre indivíduos mantidos em condições de
claro/escuro deslocados de 12h. Após o transplante, cada indivíduo passou a expressar
atividade de acordo com a fase determinada pelo doador.
Em 1972, os núcleos supraquiasmáticos (NSQ) foram indicados como as prováveis
estruturas que alojavam o oscilador circadiano, em ratos. Tendo dado prosseguimento aos
experimentos de Richter, Stephan e Zucker identificaram essas estruturas no ponto final
de lesões sucessivas do hipotálamo. Moore chegou à mesma estrutura através de um
outro caminho: através da marcação radioativa dos nervos que saíam da retina, em uma
rota nervosa distinta daquela responsável pela visão, o trato retinohipotalâmico, o qual
desembocava nos NSQs. Faltava, ainda, provar que os NSQs eram os osciladores
circadianos utilizando aqueles critérios apresentados acima.
Os NSQs são constituídos por dois conglomerados de células nervosas, designadas
NSQ direito e NSQ esquerdo. Nos ratos, foi estimado que cada NSQ contém,
aproximadamente, 10.000 neurônios agregados em um volume de apenas 0.05mm3.
Em 1979, Inouye e Kawamura conseguiram isolar os NSQs “in vivo”, cortando todas
as ligações neurais entre os NSQs e o restante do hipotálamo, construindo o que eles
descreveram como “ilha hipotalâmica”. Nesse experimento, eles demonstraram a
existência de ritmos circadianos na atividade elétrica detectada por eletrodos localizados
na região hipotalâmica externa e interna aos NSQs antes do isolamento neural. Após este
isolamento, a ritmicidade era evidenciada somente nos potenciais medidos pelos eletrodos
internos, ficando a região externa arrítmica.
A demonstração mais dramática dos NSQs como principais osciladores circadianos
foi feita com o transplante de NSQs de hamsters “tau-mutantes” (que apresentam mutação
no período circadiano, τ ≈ 20h) em hamsters selvagens (τ ≈ 24h). Os animais lesionados,
que haviam ficado arrítmicos, passaram a apresentar ritmos de atividade-repouso com o
período do doador mutante!!!
A idéia de que os organismos possuem um único oscilador ou relógio circadiano
anatomicamente definido permeou os primeiros passos da história da identificação dessas
estruturas, em espécies pertencentes aos diversos grupos vertebrados. Os NSQs em
roedores e a glândula pineal em aves e répteis eram os grandes representantes desses
osciladores únicos, em vertebrados. Posteriormente, a retina veio a se juntar como uma
terceira estrutura produtora de oscilações auto-sustentadas circadianas. Estudos
posteriores acabaram por indicar que o acoplamento entre essas três estruturas resulta no
eixo central do sistema circadiano de vertebrados. Este acoplamento é variável entre
espécies, podendo cada espécie incorporar uma, duas ou todas essas estruturas em seu
eixo central circadiano.
260 A incorporação de cada uma dessas estruturas no eixo central varia enormemente
quando se estudam espécies filogeneticamente próximas. Nas aves, por exemplo, o
estudo comparativo do efeito da pinealectomia em diversas espécies levava a resultados
pouco convergentes. A pinealectomia causava arritmicidade em certas espécies
passeriformes, modificava o padrão da atividade locomotora em outros (estorninho) e,
finalmente, não alterava este ritmo em outros (galos e codornas). O ritmo circadiano de
produção de melatonina em culturas de pinealócitos correspondentes aos pineais dos três
grupos era igualmente robusto, indicando mesma capacidade oscilatória, mas diferenças
na incorporação desta glândula no eixo central do sistema circadiano. Em répteis, a
variabilidade na incorporação de cada estrutura é ainda mais dramática, uma vez que
ocorrem divergências mesmo entre espécies de mesmos gêneros.
Neste quadro aparentemente caótico, é notório o fato de que todos os mamíferos
apresentam os NSQs como osciladores centrais únicos, além de apresentarem uma
glândula pineal incapaz de sustentar oscilação, quando isolada de suas aferências. A
glândula pineal assume o papel de eferência dos NSQs em mamíferos. A retina, por sua
vez, assume papel de aferência aos NSQs, sendo que os mamíferos constituem o único
grupo animal que apresenta fotorrecepção centralizada, exclusivamente retiniana. A única
outra espécie conhecida que apresenta exatamente esta mesma estrutura do sistema
circadiano (fotorrecepção exclusivamente retiniana, pineal não oscilatória e oscilador único
provavelemtne no hipotálamo) são as feiticeiras (ciclóstomas como as lampréias)
localizadas no outro extremo da árvore filogenética dos vertebrados. Existem muitas
especulações interessantes sobre o porquê dessa estruturação unificada entre mamíferos
e diferenciada do restante dos vertebrados e uma das proposições deste fato curioso traz
à luz a conexão entre a “história fótica” vivenciada por cada espécie ao longo da evolução
e esta estruturação. Dentro dessa proposição, argumenta-se que os mamíferos evoluíram
de um grupo ancestral comum noturno. Essa hipótese ficou conhecida como a do “gargalo
noturno”. Semelhanças na história fótica seriam mais determinantes do que a proximidade
filogenética entre espécies, na estruturação do sistema circadiano, como exemplificado
pelas semelhanças observadas entre os mamíferos e a feiticeira.
Os componentes do sistema circadiano de mamíferos estão associados às vias
aferentes e eferentes dos NSQs. A informação temporal do ciclo de claro-escuro chega à
retina e é enviada aos NSQs através do trato retinohipotalâmico, que é distinto do trato
visual primário e do trato geniculohipotalâmico, que é originado do folheto intergeniculado.
Além deles, existem aferências da rafe dorsal e de outras áreas adjacentes do hipotálamo.
As eferências dos NSQs são os outros núcleos do hipotálamo e outras áreas do sistema
nervoso central, incluindo a glândula pineal e a pituitária. Essas conexões indicam que os
NSQs estão fornecendo informação temporal para a maioria dos sistemas de controle do
organismo.
Qual é, no entanto, a variável correspondente ao oscilador circadiano, nos NSQs?
Uma vez que os NSQs são um conglomerado de neurônios, o primeiro candidato a
variável de oscilador era a atividade elétrica, avaliada pela frequência de disparo dos
potenciais de ação dos neurônios. Esta idéia era motivada também pelo fato das outras
estruturas oscilatórias (pineal e retina, bem como os olhos de insetos e moluscos,
identificados como osciladores nos invertebrados) também terem natureza neuronal.
O experimento realizado pelo grupo de Bill Schwartz, em 1987, discutido em aula,
demonstrou que os potenciais de ação globais dos neurônios dos NSQs constituem as
aferências e eferências do oscilador, permanecendo a identificação final deste elusivo.
Mais tarde, ficou demonstrado que neurônios individuais dos NSQs apresentam
oscilações circadianas na atividade elética, sendo que estas oscilações têm períodos
correspondentes aos determinados pelas mutações nos períodos das atividades
locomotoras, em roedores mutantes. Chegara-se ao nível celular dos NSQs e o notório
fato de que organismos unicelulares apresentavam “sistemas” circadianos, desde
procariotos, indicava que a variável oscilatória possivelmente comum desde procariotos a
vertebrados com estruturas anatômicas definidas para o relógio deveria estar no nível
subcelular.
261
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262 Maquinaria molecular
temporizador interno
e
controle
do
sistema
Pedro Augusto Carlos Magno Fernandes ([email protected]) – Laboratório de
Cronofarmacologia
Após a constatação de que a transmissão elétrica neuronal não era o cerne do
controle da ritimicidade endógena do relógio central dos mamíferos, a questão continuou
em aberto até que estudos das décadas de setenta e oitenta, realizados com a mosca da
fruta (Drosophila melanogaster), trouxeram à pauta o conceito de um relógio molecular. Os
primeiros estudos demonstraram a existência de uma região do cromossomo X deste
modelo que, quando mutada, induzia uma alteração de período ou a perda completa dos
ritmos de eclosão e de atividade dos indivíduos (figura 1). Este trabalho mostrou, pela
primeira vez, a existência de um controle gênico da ritimicidade endógena. Seus
desdobramentos levaram à identificação do gene per (period; período em inglês) o
primeiro dos chamados genes do relógio.
263
Figura 1. Dados do trabalho de Konopka e Benzer de 1971 mostrando o ritmo de eclosão
de Drosophila selvagens ou com diferentes mutações: pero =arrítmico, pers= mutante com
período curto e perl= mutante com período longo. A alteração ou ausência de ritmo foram
encontradas em mutantes que apresentaram alteração de uma determinada região do
cromossomo X batizada de lócus period.
A cada dia novas engrenagens deste relógio molecular são descobertas revelando
um sistema altamente complexo e passível de modulação. Grande parte destes
componentes apresenta padrões rítmicos de expressão (figura 2) sendo, as diferentes
inter-relações físicas e funcionais existentes entre eles, ao longo do tempo, determinantes
na geração de ritmos endógenos. Em outras palavras, a dinâmica de funcionamento desta
maquinaria pode ser resumidamente explicada por um modelo de alças de feedback
positivos e negativos envolvendo a transcrição e a tradução dos genes do relógio.
264 Figura 2. Expressão diferenciada de RNAm (linhas tracejadas) e suas respectivas
proteínas (linhas cheias) dos componentes per (vermelho) e bmal1(azul) da maquinaria
endógena do controle da ritmicidade interna nos NSQ (acima) e no fígado (abaixo) de
mamíferos.
Tomemos como exemplo um sistema simplificado (hoje em dia muitos outros
protagonistas e interações já estão descritos) composto pelos seguintes genes do relógio:
Clock, caseina quinase I∑ (CkI ∑), cryptochromes 1e 2 (Cry1 e Cry2), Period 1, 2 e 3 (Per1
, Per2 e Per3), Bmal1 e Rev-Erbalpha. Os níveis intracelulares dos RNAm e das proteínas
codificadas por estes genes, com exceção dos genes Clock e CkI ∑, apresentam oscilação
circadiana. A transcrição e a tradução dos genes Per, Cry e do gene do receptor nuclear
órfão Rev-Erbalpha é estimulada pela ativação de suas regiões promotoras pelo
heterodímero formado por Clock e Bmal1. O produto do gene Rev-Erbalpha age
negativamente sobre a produção do RNAm de Bmal1, fazendo com que os níveis deste
composto diminuam ao longo do tempo. Em contrapartida, complexos protéicos se formam
entre os genes Cry e Per no citoplasma e são translocados para dentro do núcleo onde
exercem um controle negativo sobre os promotores responsivos a Clock/Bmal1 levando a
uma supressão na produção de Per, Cry e Rev-Erbalpha. Com a diminuição do gene RevErbalpha a produção de Bmal1 volta a ocorrer (acredita-se que neste ponto Per2 atue
positivamente sobre o promotor desse gene) levando à formação de novos heterodímeros
Clock/Bmal1 e dando início a um novo ciclo (figura 3).
É importante ressaltar que em mamíferos, como visto na figura 2, tal maquinaria
molecular está presente e ativa tanto nos núcleos supraquiasmáticos (relógio central)
quanto em osciladores periféricos (fígado). A presença de um maestro que integra e
controla os diferentes ritmos temporais internos confere ao organismo a capacidade de
antecipação de ciclos externos recorrentes (ciclo claro/escuro). Como veremos a seguir,
este fato é essencial para o entendimento da plasticidade funcional local e/ou sistêmica,
dos componentes do sistema oscilatório de mamíferos frente a diferentes variações
(rítmicas ou não) ambientais.
265
Figura 3. Esquema simplificado das alças de feedback responsáveis pelo funcionamento
da maquinaria molecular do relógio biológico (Esquema apresentado por Fu & Lee em
2003).
Como já visto, os NSQ são considerados o relógio biológico central de mamíferos e
controlam, em situações normais, a atividade e funcionalidade dos diversos osciladores
periféricos. Estes núcleos enviam projeções para neurônios endócrinos - controle da
produção de CRH e GnRH - neurônios pré-autonômicos do hipotálamo - origem das
projeções descendentes que representam as aferências dos neurônios pré-ganglionares
dos sistemas simpático e parasimpático - e neurônios intermediários - integração da
informação circadiana a outras regiões hipotalâmicas (figura 4).
Figura 4. Esquema proposto por Kalsbeek et al., em 2006 para as diferentes projeções
neuronais dos núcleos supraquiasmáticos de mamíferos.
Estes núcleos controlam a expressão rítmica de diversos fatores como, por exemplo,
glicocorticóides, melatonina e atividade. Curioso, entretanto, é o fato de que, apesar de
todos serem controlados pelo mesmo maestro, cada produto derivado de um oscilador
apresenta um perfil de produção próprio com relação ao zeitgeber ambiental. Foi
observado que em ratos os ritmos de glicocorticóides, LH e Leptina ocorrem durante a
266 transição das fases de claro/escuro ambientais, já o pico de melatonina ocorre durante o
período de escuro, o de prolactina no fim do período de claro e o de TSH possui um perfil
bimodal (figura 5). Tais constatações levantaram a questão de como um mesmo par de
núcleos (NSQs) pode controlar ritmos com fases temporalmente diferentes.
Figura 5. Ritmos de diversos hormônios em ratos (Kalsbeek et al.,2006)
A existência de diferentes alvos para as projeções dos NSQs poderiam explicar em
parte esta questão, mas, quando olhamos por exemplo, as vias neuronais que controlam a
produção de melatonina e corticosterone percebemos que a solução de tal indagação é
mais complexa do que imaginamos. Em ambos os casos a informação fótica ambiental
captada pela retina é transmitida aos osciladores pelos NSQs. No caso do controle da
síntese de melatonina, os NSQs enviam projeções para o núcleo paraventricular do
hipotálamo (PVN) que, por sua vez, se projetam à coluna intermédio lateral (IML) que, via
gânglio simpático superior (SCG), transmite tal informação para glândula pineal induzindo
a produção noturna de melatonina. Já a produção rítmica de corticosterona é estimulada
pelos NSQs tanto por uma via neuroendócrina quanto por uma via (assim como a via
controladora da produção circadiana de melatonina) autonômica composta pelo PVN e
pela IML (figura 6).
267
Figura 6. Vias que controlam a produção rítmica de melatonina e corticosterona em ratos
(Schultz & Kay., 2003).
Estudos de eletrofisiologia que mediram a atividade total dos NSQ de mamíferos
mostram que tais núcleos possuem uma acrofase (pico) de atividade elétrica em torno do
CT 12 (CT quer dizer tempo circadiano de um determinado indivíduo; esta análise é feita
em animais em livre curso, ou seja, na ausência de um zeitgeber externo, quando não
existe o arrastamento e a ritimicidade endógena é determina apenas pela maquinaria
molecular do relógio biológico central). Contudo, trabalhos recentes que avaliaram a
eletrofisiologia e a biologia molecular revelam a existência de subpopulações neuronais
destes núcleos com relação aos neurotrasmissores produzidos e a acrofase de suas
atividades. Diferentes populações neuronais produzem neurotrasmissores específicos
como, por exemplo, vasopressina (VP), VIP GRP, Gaba ou Glutamato que podem ou não
estar relacionadas com diferentes padrões de eletroatividade. Pelo menos quatro
subdivisões dos NSQ são conhecidas em relação às suas diferentes acrofases (figura 7).
A primeira subpopulação neuronal apresenta acrofase no ZT 2, produz VP e GABA ,
inibindo a produção de glicose hepática (ação do VP) e de corticosterona (VP). A segunda
possui acrofase em ZT 6 (acredita-se que de 50 a 60 % dos neurônios dos NSQs faça
parte deste grupo) produz GABA e inibe o pico noturno de melatonina. O neurotrasmissor
da população com acrofase em ZT 10 ainda não é conhecido, mas, esta região modula a
produção de corticosterona ativando o eixo HPA; a população com ZT18 modula o pico
noturno de produção de melatonina.
268 Figura 7. Subdivisões fenotópicas e funcionais dos NSQs de mamíferos proposta por
Antle e Silver em 2005.
Desta forma, a existência destes diferentes grupos funcionais dentro dos NSQs
permite o controle orquestrado dos ritmos endógenos dos mamíferos. Os neurônios de
todas as subdivisões utilizam a mesma maquinaria molecular intracelular na geração de
seus ritmos, mas, acredita-se, com relação de fases diferenciadas. A forma pela qual a
dinâmica funcional dos genes do relógio modula a acrofase elétrica de neurônios ainda
não é conhecida.
Com relação aos osciladores periféricos algumas funções dos genes do relógio já
são conhecidas. Basicamente, eles funcionam como fatores de transcrição modulando
ritmicamente a expressão gênica de enzimas importantes do metabolismo funcional do
oscilador em questão. No fígado, por exemplo, o heterodímero formado por Clock/Bmal
controla, via elementos responsivos (E Box) presentes nos promoteres, a expressão dos
genes Rev-ERBalpha e DBP. Rev-ERBalpha ativado leva à expressão de uma proteína
que, por sua vez, inibe a expressão de uma outra enzima, a E4BP4. Na presença do
produto do gene DBP e na ausência da proteína E4BP4 ocorre a produção da enzima
7alpha-hidroxilase que induz produção de bile (figura 8).
Figura 8. Controle rítmico da produção hepática de bile regida pela presença do
heterodímero CLOCK/Bmal (Reppert & Weaver.,2003).
Até bem pouco tempo alguns experimentos mostravam que apenas os NSQs eram
capazes de apresentar oscilações auto-sustentadas das proteínas do relógio em cultura
por tempo indeterminado enquanto que os osciladores periféricos eram amortecidos em
cultura, necessitando de estímulos externos para continuar a oscilar. Este era, inclusive,
um outro argumento utilizado para reforçar o papel central dos NSQs enquanto principal
oscilador endógeno de mamíferos. Contudo, estudos mais recentes que utilizaram uma
metodologia mais apurada mostram que, na verdade, os osciladores periféricos também
são capazes de apresentar oscilações auto-sustentadas em cultura, com fase e períodos
bem definidos, por longos períodos de tempo (figura 9).
269
Figura 9. Dados apresentados por Yoo e colaboradores em 2003. Os pesquisadores
demonstraram que não só os NSQs mas também diversos osciladores periféricos
apresentam, em cultura, ritmo de expressão da proteína do relógio per2 por vários dias (A)
com fase (B) e período (C) bem definidos e constantes.
Como visto no capítulo anterior, os NSQs são os regentes do sistema oscilatório de
mamíferos que ajustam o funcionamento rítmico endógeno dos diversos osciladores ao
ciclo/escuro ambiental (Zaitgeber; ciclo ambiental capaz de arrastar os ritmos endógenos).
Tal capacidade permite aos organismos antecipar suas funções endógenas aos ciclos
ambientais de acordo com seus hábitos de vida. Contudo, além da capacidade de
antecipação a eventos constantes os organismos também são capazes de alterar seu
funcionamento interno em função de variações pontuais de elementos importantes
(disponibilidade de alimento, por exemplo) para sua sobrevivência.
270 Um trabalho muito bonito demonstrou que animais noturnos mantidos em ciclo de
claro/escuro (12-h/12-h) que tinham acesso à comida apenas durante um pequeno período
de tempo (4-h) durante a fase de claro passaram a apresentar uma grande atividade
algum tempo antes do horário em que a comida seria disponibilizada. Em contrapartida,
quando a janela temporal de acesso a comida era aumentada (8-h) a antecipação da
atividade não era tão pronunciada (figura 10).
Figura 10. Actograma apresentados por Stokkan e colaboradores em 2001, mostrando um
pronunciado aumento de atividade em animais que recebiam alimento por um curto
período de tempo durante o claro (A), fato este não observado quando a janela temporal
de acesso ao alimento era aumentada para oito horas (B).
Neste trabalho foram utilizados ratos trangênicos que expressavam atividade rítmica
de luciferase. Os autores após os diferentes tratamentos avaliaram se o padrão rítmico do
NSQs, do fígado e do pulmão estavam alterados. Eles observaram que a restrição
alimentar por curto período de tempo não alterarou o ritmo dos NSQs mas alterarou a fase
dos ritmos do fígado e do pulmão. Em contrapartida, nos animais com um acesso mais
prolongado e cuja variação na atividade durante o período de claro era menos pronunciada
a alteração de fase ocorreu apenas no fígado (figura 11). Com este trabalho os autores
propuseram que a alimentação alterou apenas a ritimicidade do fígado, pois este órgão
tem função relacionada com a digestão. Já os pulmões estão associados funcionalmente
com a atividade dos indivíduos e, portanto só tiveram seu ritmo alterado quando a
atividade dos indivíduos foi grandemente alterada. Os NSQs por serem um sensor da
variação claro/escuro ambientais não são afetados nem pela alimentação nem pela
mudança de atividade.
271
Figura 11. Dados apresentados por Stokkan e colaboradores em 2001 mostrando que
restrição alimentar altera a ritimicidade do fígado. Um pronunciado aumento de atividade
ocorre em animais que recebiam alimento por um curto intervalo de tempo durante o claro
(A), fato este não observado quando a janela temporal de acesso ao alimento era
aumentada para oito horas (B).
A capacidade de antecipação e integração da ritimicidade interna dos organismos a
eventos ambientais cíclicos é fundamental para o processo de adaptação evolutiva dos
seres vivos. A presença de um oscilador interno capaz de perceber estas alterações e
transmiti-las ao resto do corpo de forma a organizar os diferentes osciladores é
funcionalmente importante para garantir o sucesso adaptativo dos organismos. Contudo, a
capacidade de responder rápido a mudanças externas e internas de fatores importantes
para a sobrevivência também está incorporada no sistema oscilatório interno. Para tanto, a
existência de uma maquinaria molecular cíclica no cerne do controle temporal dos
osciladores centrais e periféricos é que garante esta capacidade de antecipação,
integração e resposta rápida dos organismos.
272 Bibliografia Sugerida:
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273
Fototransdução e sincronização por luz
Leonardo Henrique Ribeiro Graciani de Lima ([email protected]) - Laboratório de
Fisiologia Comparativa da Pigmentação
Antes do surgimento da vida na terra, nosso planeta já apresentava condições para
as quais os seres vivos seriam selecionados evolutivamente, pois com o estabelecimento
dos ciclos geofísicos de nosso planeta no sistema solar surgiram ciclos como, por
exemplo, os movimentos de rotação e translação. Esses movimentos governam a
quantidade de energia luminosa que atinge a nosso planeta, e se refletem em ciclos
ambientais aos quais os organismos que vivem em um dado local em um certo tempo
precisam se ajustar.
Sabe-se hoje que sistemas de percepção de energia luminosa (fótons) são
encontrados desde os organismos vivos mais simples como arqueobactérias procariontes,
até organismos complexos como vertebrados e plantas superiores. Esses sistemas
possibilitaram aos organismos uma maior percepção, e conseqüentemente uma melhor
adaptação ao meio ambiente através de fenômenos como a fototaxia, fotossíntese,
sincronização dos ritmos biológicos endógenos, e também a formação de imagens
(compreendida como visão).
A percepção luminosa depende da captação de fótons (que viajam em linha reta com
comprimento de onda e intensidades diversas) e da conversão da energia contida nestes
fótons, em um sinal fisiológico. Sendo assim, os organismos desenvolveram, ao longo da
escala evolutiva, diversas moléculas protéicas conjugadas a compostos químicos que, ao
serem atingidos por fótons, sofrem alterações estruturais que desencadeiam uma cascata
de sinalização intracelular que resulta na percepção da luz.
As diversas proteínas fotoreceptoras descritas na literatura podem ser classificadas
em um número restrito de famílias de acordo com a estrutura química dos cromóforos
capazes de absorver a energia dos fótons, ligados a essas proteínas. Mesmo assim não
se pode esquecer que argumentos com base em alinhamento entre as seqüências
protéicas devem ser usados para descriminar as proteínas fotoreceptoras e analisá-las
filogeneticamente.
As famílias mais importantes são: rodopsinas, fitocromos, xantopsinas, criptocromos,
fototropinas e proteínas BLUF. Para as três primeiras famílias citadas a alteração da
configuração de seus cromóforos é uma isomerização. Essa alteração configuracional
inicia então um estado sinalizatório com estabilidade suficiente para comunicar os
processos de absorção de fótons a um transdutor de sinal secundário. Possivelmente as
proteínas descritas na tabela 1 não abordem toda a riqueza de proteínas fotoreceptoras
presentes na natureza. Mesmo assim pode-se dizer que muitas das proteínas
fotoreceptoras capazes de responder ao espectro luminoso visível (e também
infravermelho e ultravioleta) atualmente conhecidas são abordadas. Muitos sistemas
capazes de responder a luz ultravioleta ainda precisam ser caracterizados.
274 TABELA 1 Classes de cromóforos e Famílias de fotopigmentos bem caracterizados
No retinal, tanto as pontes vinil 11-12 como 13-14 são passíveis de isomerização
como no caso de rodopsinas sensórias de mamíferos e bacterianas respectivamente.
Michael A.Van-der-Horst and Klaas J. Hellinghwerf 2003.
As proteínas fotoreceptoras sinalizam por distintas vias de transdução de sinal.
Muitos detalhes são conhecidos para a maioria delas, porém ainda existem questões a
serem elucidadas em todas as famílias. Nesta seção será abordada a família das
rodopsinas e sua importância para a sincronização dos ritmos circadianos dos animais.
Rodopsinas
Rodopsinas são proteínas de sete domínios transmembrânicos (com peso molecular
entre 30-50kD) conjugadas a um cromóforo retinal não protéico derivado de vitamina A
(figura 1), que controlam a sensibilidade à luz de diferentes comprimentos de onda. Essas
proteínas surgiram antes do aparecimento de olhos.
275
Figura 1. Estrutura de opsina e de cromóforo retinal.(a) Modelo da estrutura secundária da
rodopsina bovina. Os aminoácidos altamente conservados na família das opsinas são
destacados em cinza. O sítio de ligação do retinal (a lisina K296) e a posição do contra-íon
(glutamato E113) estão marcadas com círculos “Bold” assim como o contra íon E118 de
opsinas visuais e não visuais de não vertebrados. As cisteínas C110 e C187 formam uma
ponte dissulfeto. (b) A estrutura química das formas 11-cis e all-trans do retinal. (c) A
estrutura cristalina da rodopsina bovina (d) A estrutura da ligação do tipo Base de Schiff
formada entre a lisina da rodopsina bovina e seu contra íon glutamato. Akihisa Terakita
2005.
As opsinas são classificadas em “tipo 1” e “tipo 2”. Opsinas tipo 1 são proteínas
muito antigas, usadas para a coleta de energia e informação luminosa encontradas em
arqueobactérias e eucariotos (figura 2). Graças às novas técnicas de sequenciamento
genético em amostras provindas de organismos de água doce, marinhos, pântanos e
mares glaciais, o número de opsinas do tipo 1 está aumentando rapidamente
(atualmente>800). Opsinas “tipo2” são encontradas somente em eucariotos.
Mesmo pertencendo a famílias distintas, existem muitas semelhanças entre opsinas
do tipo 1 e do tipo 2. Pois ambas são proteínas de sete domínios transmembrânicos,
ambas utilizam uma molécula de retinaldeído associada para a captação da luz, e em
276 ambas o retinaldeído está ligado à proteína por meio de uma ligação do tipo Base de Schiff
a um resídua lisina na sétima alça transmembrânica da proteína. As opsinas do tipo 1
diferem em espaço físico e na distribuição dos seus domínios intermembranosos em
relação as opsinas tipo 2, o que se reflete em diferentes cascatas de sinalização. As
opsinas do tipo 1 funcionam dentro da membrana para bombear íons ou sinalizar via
outras proteínas integrais de membrana ao contrário da sinalização via proteína G.
Os pesquisadores ficaram estarrecidos ao descobrir que apesar da grande
convergência nos detalhes moleculares de suas funções, não existe uma relação
filogenética entre esses dois tipos de opsinas. Portanto, acredita-se que o mecanismo
fundamental para detectar luz via opsinas associadas a retinaldeído foi descoberto e
explorado indepentendemente duas ou mais vezes pelos seres vivos.
Figura 2. Tipos de sinalização de rodopsinas sensórias microbianas. Esquema do
complexo tetramérico SRI-Htrl (receptor-transdutor) de sinalização fototáxica da
arqueobactéria Halobacterium salinarum, rodopsina sensória de cianobactérias Anabaena
sp. PCC7120 com a proteína de interação ASRT e os receptores foto-móveis CSRA e
CSRB do eucarioto Chlamidomonas reinhardtii. John L. Spudich 2006.
Os progenitores das opsinas tipo 1 provavelmente existiram no início da evolução,
antes da divergência entre eubactérias, arqueobactérias e eucariotos, o que significa que o
mecanismo de transporte de íons, que usa energia luminosa em associação com as
opsinas tipo 1, precede a evolução da fotossíntese como meio de utilizar a energia
luminosa (figura 3).
277
Figura 3. Árvore filogenética (baseada na seqüência de aminoácidos) contendo os
principais grupos representativos de rodopsinas do tipo 1. Jay McCarren and Edward F.
deLong 2007.
As opsinas já estavam presentes nos animais antes mesmo da divisão destes em
protostômios e deuterostômios e o tamanho de cada família de opsinas está crescendo
rapidamente conforme os pesquisadores investigam organismos não tradicionalmente
pesquisados
em
lugares
inesperados
(figura 4)
278 Figura 4. Árvore filogenética dos bilatérios, com ocelos cerebrais identificados por setas.
Para maior clareza alguns grupos foram omitidos. A filogenia molecular atual divide os
bilatérios em três ramos principais, Deuterostomia, Lophotrochozoa e Ecydisozoa. Detlev
Arendt and Joachim Wittbrodt 2001.
O espectro de absorção dos fotopigmentos é modulado por uma pequena coleção de
grupos de aminoácidos adjacentes ao sítio de ligação do cromóforo no domínio
transmembrânico das opsinas, onde os efeitos da seleção natural são mais evidentes.
Muitos genes de opsinas recém descobertos, assim como novos genes de outras
famílias específicas para a fototransdução, como por exemplo, proteínas heterotriméricas
ligadoras de guanina (proteínas G), e canais dependentes de ligação a nucleotídeos
surgiram cedo na evolução dos vertebrados, durante extensivas duplicações
cromossômicas que ocasionaram o surgimento de tecidos especializados na captura da
informação luminosa como ocelos, olhos e retinias. Por exemplo, a duplicação do gene da
opsina foi responsável pela evolução independente da visão tricromática (em três cores)
presente em primatas do velho e do novo continente.
Antigamente os fotoreceptores eram classificados como fotoreceptores ciliares de
vertebrados e fotoreceptores rabdoméricos de invertebrados. Essa classificação era
baseada nas diferentes vias de sinalização, morfologia e especializações das células
279
fotoreceptoras encontradas exclusivamente em vertebrados e em invertebrados.
Recentemente esse conceito foi alterado, pois fotoreceptores rabdoméricos foram
encontrados em vertebrados, assim como fotoreceptores ciliares foram encontrados em
invertebrados.
Os fotoreceptores ciliares utilizam membros da família de opsinas ciliares (c-opsinas)
incorporadas em cílios especializados, enquanto os fotoreceptores rabdoméricos utilizam
membros da família de opsinas rabdoméricas (r-opsinas) que são encontradas em
rabdomeros. Cada tipo de receptor utiliza proteínas G diferentes: Proteína Gαt
(transducina) para ciliares de vertebrados, Gαo para ciliares do molusco Pecten e Gq para
rabdoméricos de vertebrados e de invertebrados. Fotoreceptores ciliares de vertebrados
produzem potenciais de membrana hiperpolarizantes por meio de uma cascata que se
inicia com uma fosfodiesterase. Já os fotoreceptores rabdoméricos são despolarizantes e
utilizam uma cascata que se inicia com a fosfolipase C (figura 9). O sítio de amplificação
dos sinais bioquímicos é diferente entre esses dois tipos de opsinas, assim como o
mecanismo que termina a resposta. O cromóforo das opsinas rabdoméricas nunca se
separa da proteína, sendo regenerado in situ por um diferente comprimento de onda,
enquanto nas opsinas ciliares o cromóforo é re-isomerizado em tecidos exógenos.
Atualmente parece claro que esses dois tipos de fotoreceptores surgiram
independentemente e coexistiram nos urobilatérios antes do surgimento dos bilatérios
(figura 5).
Figura 5. Distribuição filogenética de fotoreceptores ciliares e rabdoméricos nos bilatérios
e hipóteses conflitantes quanto a sua evolução. Células fotoreceptoras rabdoméricas
(cinza escuro); Células fotoreceptoras ciliares (branco). Os precursores em Urobilatérios
podem ter sido: (a) uma célula precursora ciliar sensória, (b) uma célula precursora
280 bimodal ciliar/rabdomérica ou (c) células precursoras ciliares e rabdoméricas. Detlev
Arendt and Joachim Wittbrodt 2001.
Ao utilizar a visão para explorar o ambiente, todos os animais exploram as mesmas
propriedades da luz: ou seja, diferentes intensidades (contraste) e diferentes
comprimentos de onda (coloração). Porém não existem soluções únicas, e diferentes
especializações que evoluíram para processar intensidade e comprimento de onda diferem
entre as espécies. Essas diferenças mostram como problemas similares são solucionados
por mecanismos diversos através da seleção natural. Por exemplo, mamíferos e abelhas
utilizam fotoreceptores de comprimento de onda longo para detectar intensidade e visão a
cores, enquanto que moscas e aves desenvolveram conjuntos diferentes de fotoreceptores
para os mesmos propósitos.
Vias de fototransdução
Como citado previamente, os fotoreceptores ciliares são capazes de responder a
estímulos luminosos por conterem opsinas embebidas na bicamada lipídica dos discos
membranosos ciliares que compõe o segmento externo das células fotoreceptoras da
retina (figura 6). O retinaldeído localiza-se horizontalmente na membrana destes discos, e
está ligado a uma lisina da sétima alça transmembrânica da opsina. Portanto cada disco
membranoso do segmento externo das células fotoreceptoras contém milhares de
moléculas de pigmento visual (figura 7).
Figura
6
–
Diagrama
www.webvision.med.utah.edu/.
esquemático
da
retina
de
vertebrados.
281
Figura 7 – Diagrama esquemático da rodopsina nos discos membranosos do segmento
externo das células fotoreceptoras de vertebrados. www.webvision.med.utah.edu/.
Quando um fóton atinge o segmento externo dos fotoreceptores, o retinal-11-cis é
isomerizado para forma all-trans causando as alterações conformacionais na molécula da
proteína, o que inicia a sinalização. A partir de então muitas moléculas intermediárias são
formadas e entre elas a metarodopsina II que ativa a proteína trimérica G que libera sua
subunidade α chamada de transducina ativando a cascata de sinalização resumida da
seguinte forma:
Fótons → rodopsina → rodopsina ativada (metarodopsina II) → uma proteína
ligadora de GTP (transducina) → uma enzima que hidrolisa GMPc (GMPc-fosfodiesterase)
→ fechamento de canais iônicos ao se desligarem de GMPc (figuras 8 e 9).
No escuro correntes iônicas carregadas principalmente por íons Na+ passam pelos
canais iônicos abertos. Essas correntes são chamadas de correntes-de-escuro, e
despolarizam a membrana das células fotoreceptoras. Sendo assim os fotoreceptores
despolarizados liberam neurotransmissores (glutamato) em seus terminais sinápticos em
neurônios de segunda ordem. Sob estímulo luminoso as moléculas de rodopsina são
isomerizadas para a forma ativa levando ao fechamento dos canais iônicos que
interrompem o fluxo da corrente de escuro causando uma hiperpolarização dos
fotoreceptores que então deixam de liberar neurotransmissores para os neurônios de
segunda ordem.
282 Figura 8. Ativação da rodopsina por fótons e a cascata de fototransdução que resulta no
fechamento dos canais iônicos, aos quais o GMPc encontrava-se ligado, no segmento
externo das células fotoreceptoras. www.webvision.med.utah.edu/
A corrente-de-escuro é composta principalmente pelo influxo de Na+ (80%), porém
íons Ca2+ (15%) e Mg2+ (5%) também estão presentes. No escuro uma bomba trocadora
de sódio/cálcio é responsável pela remoção do excesso de sódio e de cálcio. Sabe-se hoje
que o cálcio mesmo não sendo responsável pela sinalização ativada pela rodopsina
exerce uma função de segunda ordem muito importante para a transdução do sinal
luminoso, pois ele aumenta a capacidade sinalizatória dos fotoreceptores acelerando a
recuperação após a iluminação, e regula a sensibilidade dos fotoreceptores sob iluminação
constante sendo então um importante mecanismo de adaptação luminosa.
Durante muito tempo acreditou-se que as únicas células fotoseníveis da retina de
vertebrados eram os cones e bastonetes que enviam suas projeções para o segmento
externo da retina. Porém recentemente foi demonstrado que uma população de células
ganglionares da camada interna da retina expressa uma opsina rabdomérica chamada
melanopsina que confere a essas células a habilidade de detectar luz. Essas células
ganglionares foram então batizadas de células ganglionares retinianas intrinsecamente
fotosenssíveis (abreviação em inglês “ipRGCs”) (figura 14).
A fototransdução rabdomérica apresenta semelhanças e diferenças notáveis em
relação a ciliar, pois assim como na ciliar a via de transdução é iniciada pela izomerização
da opsina induzida por luz, e pela interação dessa proteína com a proteína trimérica
ligadora de GTP (proteína G). Porém nos fotoreceptores rabdoméricos, ao invés da opsina
se ligar à proteína G transducina que é uma fosfodiesterase de GMPc, a opsina se liga a
uma proteína Gq que ativa a fosfolipase C (PLC), que então catalisa a conversão de
fosfatidilinositol-4,5-bisfosfato (PIP2) a inositol-1, 3,5-trifosfato (IP3) e diacilglicerol (DAG). A
produção de DAG, em insetos, leva a abertura de canais iônicos que ocasionam o influxo
de Na+ e de Ca2+ (Figura 9). Já em Limulus, IP3 libera cálcio de compartimentos, o qual,
combinado `a calmodulina, ativa uma guanilato ciclase. O aumento de GMPc ocasiona a
abertura de canais de sódio dependentes de nucleotídeos cíclicos, e ocorre a
despolarização.
283
Figura 9. Árvore filogenética de Bilatérios, subunidades da proteína G e sua relação com
fotoreceptores ciliares e rabdoméricos. As árvores foram calculadas usando-se ClustalX
nas seqüências protéicas da opsinas e nas seqüências de DNA das proteínas G. Os
grupos encerram genes ortólogos que podem ser traçados na escala evolutiva até um
gene prcursor comum em Urobilatérios. As cores indicam verde para Deuterostômios,
amarelo pra Lophotrocozoa e vermelho para Ecdysozoa. Detlev Arendt 2003.
Sincronização dos ritmos circadianos
Sabe-se que as opsinas não absorvem energia de forma constante ao longo do
espectro eletromagnético. Esses fotopigmentos possuem um espectro de absorção de
comprimento de onda que depende de sua estrutura atômica, principalmente no que se
refere ao contra íon que estabiliza a base de Schiff entre o retinal e a lisina da sétima alça
284 transmembrânica. O padrão de sensibilidade de comprimento de onda, ou seja, seu
espectro de absorção é como uma impressão digital única de cada molécula de
fotopigmento (figura 10).
Figura 10. Pico de sensibilidade espectral de três tipos de cones e de bastonetes na retina
de primatas. www.webvision.med.utah.edu/
No campo da fotobiologia o espectro de ação é uma das principais ferramentas
utilizadas para identificar o fotopigmento que inicia uma resposta induzida por luz. Um
espectro de ação é formado pela resposta relativa de um organismo a diferentes
comprimentos de onda de radiação eletromagnética visuais e não visuais. Foram
desenvolvidas técnicas refinadas para determinar os espectros de ação aplicáveis a todos
os organismos que respondem a luz.
Existem dois tipos de espectro de ação: policromáticos e analíticos. Geralmente
quando se inicia o estudo das reações biológicas sensíveis à luz, o primeiro passo é
determinar o espectro de ação policromático de uma reposta. Embora estes espectros de
ação sejam válidos para identificar interações de respostas biológicas a comprimentos de
onda variados, eles são limitados para determinar o pico de sensibilidade dos
fotopigmentos. No passado as pesquisas feitas para identificar a resposta neuroendócrinas
e circadianas a estímulos luminosos era feita com estímulos policromáticos. Nessas
pesquisas, tanto humanos como roedores foram estudados em termos de respostas que
envolvem: síntese de melatonina pela glândula pineal, avanço de fase circadiana ou
respostas fotoperiódicas. Os resultados dessa abordagem de espectro de ação
policromático sugerem que a região espectral entre 450-550nm fornece o maior estímulo
para respostas circadianas e neuroendócrinas em mamíferos (figuras 11,12 e tabela 2).
Porém estímulos luminosos de comprimento de onda longo com intensidade suficiente
podem suprimir a síntese de melatonina assim como causar avanço de fase circadiana ou
sincronizar ritmos circadianos em roedores e em humanos. Essas pesquisas
policromáticas ainda indicaram picos de comprimento de onda que sugeriram que as
respostas circadianas não seriam mediadas pelos fotopigmentos presentes nos cones e
bastonetes da retina dos mamíferos. Um estudo feito em indivíduos (humanos) que não
possuem percepção luminosa mostrou que esses exibem alterações nos ritmos
circadianos do metabólito 6-sulfatoximelatonina (formado a partir da degradação do
hormônio melatonina) medido na urina desses indivíduos, e comparados a indivíduos
cegos com algum tipo de percepção luminosa.
285
Figura 11. Sobreposição dos gráficos de sensibilidade espectral relativa para um sistema
visual com três cones com pico de 555nm, e um gráfico de sensibilidade para respostas
circadianas, neuroendócrinas e neuro-comportamentais aparentemente reguladas por
células ipRGCs. John P. Hanifin and George C. Brainard 2007.
Além disso, estudos em pacientes com deficiência de visão a cores sugerem que um
sistema funcional normal com os três cones não é necessário para a supressão de
melatonina. Os dados resultantes desses trabalhos deixaram claro que havia um
“fotoreceptor desconhecido”, diferente de cones e bastonetes atuando na fotoransdução
circadiana. Nos anos 80 cronobiologistas e pesquisadores neuroendócrinos começaram a
empregar comprimentos de onda monocromáticos nesses estudos, sofisticando as
técnicas fotobiológicas para determinação do espectro de ação analítico.
O espectro de ação analítico de uma resposta é determinado comparando-se os
efeitos de dois ou mais estímulos monocromáticos com faixa de pico médio de 15-20nm ou
menos. A vantagem de se desenvolver um espectro de ação analítico é determinar a curva
dose-resposta em diferentes comprimentos de onda para uma determinada resposta
biológica. O espectro de ação é então formado plotando-se os fótons incidentes
necessários para produzir a resposta biológica versus o comprimento de onda. Espectros
de ação analíticos recentes demonstram a sensibilidade a diferentes comprimentos de
onda para diversas respostas fisiológicas (tabela 2).
TABELA 2(John P. Hanifin and George C. Brainard 2007)
Melanopsina
286 Pesquisas buscando identificar qual, ou quais os fotopigmentos responsáveis por
mediar a entrada dos sinais luminosos nos osciladores circadianos sugeriram a existência
de uma nova classe de opsina na retina dos vertebrados. Essa hipótese de que um novo
fotoreceptor seria crucial para a captação de luz pelo sistema circadiano em mamíferos
veio do fato de que camundongos rdrd sofrendo de degeneração da retina, com a
ausência de bastonetes, e progressiva perda de cones, assim como em alguns casos de
cegueira, continuam a apresentar um efeito robusto de entrada de luz no sistema
circadiano (figura 12).
Figura 12. Ritmos diários de melatonina na glândula pineal de camundungos CH3 rd/rd,
rds/rds e selvagens. Robert J. Lucas and Russell J Foster 1999.
A descoberta da melanopsina (Opn4) veio do estudo do mecanismo de resposta à
luz em melanóforos de Xenopus leavis (figura13) .
Figura 13. Gentileza de Mark D. Rollag
A melanopsina é expressa na retina em todas as classes de vertebrados examinadas
até o momento, sendo vista desde peixes até mamíferos (figura 14). O padrão de
expressão de melanopsina difere entre as classes de vertebrados, no entanto sua
presença em células ganglionares da retina é constante. Nos mamíferos, essas são as
únicas células que expressam melanopsina.
287
Figura 14. Rede fotosensível na camada interna da retina de camundongo. A marcação
imunofluorescente das células ganglionares contendo melanopsina em montagem plana
da retina revela que existe uma rede extensiva de dendritos imunopositivos. Escala =
100µm. Ignacio Provencio, Mark D. Rollag and Ana Maria Castrucci 2002.
Como outras opsinas, a melanopsina possui um resíduo lisina no sétimo domínio
transmembrânico, necessário para a formação de uma base de shiff com o 11-cisretinaldeído. A melanopsina assemelha-se muito com as opsinas de invertebrados, tanto
que segrega junto com essas opsinas em analise cladística de sequências de
nucleotídeos. Essa estrutura molecular de invertebrados é bem demonstrada pelo resíduo
aromático tirosina, no sítio onde retinaldeído estabiliza a base de shiff. A maioria das
opsinas de vertebrados emprega um resíduo ácido neste sítio, geralmente glutamato. Um
atributo importante das opsinas de invertebrados é que elas não são transferidas para
tecidos exógenos para reisomerizar o retinaldeído usado. Ao invés disso o retinaldeído é
fotoisomerizado dentro da própria molécula da opsina para a forma cis sob comprimento
diverso daquele ativador da transdução do sinal luminoso. Como a luz depende de
fotorreceptores oculares para entrar no sistema circadiano dos mamíferos, o fato de que
uma pequena população de células ganglionares contendo melanopsina, além do
polipeptídio ativador de adenilato ciclase da hipófise, ser intrinsecamente fotossensíveis
sugeriu que a melanopsina teria uma função crítica no sistema circadiano de mamíferos.
De fato, utilizando camundongos knock out para melanopsina e rdrd, Panda e
colaboradores demonstraram que as células ganglionares fotossensíveis são essenciais
para o ajuste do relógio aos ciclos de claro/escuro e para respostas fóticas não visuais
(figura 15), como constricção pupilar e supressão de melatonina (figura 16).
288 Figura 15. Deficiência de sincronização em camundongos knockout para melanopsina
(Opn4 -/-); rd/rd. Actogramas duplos gravados em roda de atividade durante arrastamento
e em livre curso em escuro constante.(A) Camundongo selvagem, (B) camundongo Opn4 /- e (C) camundongos rd/rd arrastado a um ciclo claro/escuro com 8 horas de 100-lux de
luz fluorescente branca e 16 horas de escuro 8C:16E, enquanto que (D) camundongos
Opn4 -/-;rd/rd não são arrastados. O início da atividade de camundongos selvagens é
expresso como uma linha reta. Já o início da atividade dos demais camundongos
deficientes é formado por linhas descontínuas cinzas. Após duas semanas de escuro
constante três camundongos Opn4 -/-;rd/rd foram novamente colocados em regime de
6C:18E com 800-lux de luz fluorescente branca. O horário local é mostrado na parte de
cima dos gráficos, e o regime de fotoperíodo é indicado pelo fundo branco e cinza. Panda
et al 2003.
289
Figura 17. (A) Exposição luminosa ativa as células ganglionares retinianas intrinsicamente
fotossensíveis (ipRGC), que são mais sensíveis a luz visível de comprimento de onda
curto, e células ganglionares clássicas ativadas por cones (cRGC) do sistema de visão à
cores, que são mais sensíveis à luz de comprimento de onda médio (λmax=555nm).
ipRGCs contendo melanopsina emitem projeções para áreas não-visuais do encéfalo,
incluindo o núceo-supraquiasmático (NSQ) que então emite projeções multisinápticas para
a glândula pineal, assim como para muitas áreas que compartilham a mesma via de
entrada de sinal do sistema fotoreceptor como o núcleo geniculado lateral (NGL), área prétectal, e colículo superior. Por vias ainda não identificadas a luz estimula o sistema de
vigília e eventualmente o córtex aumentando o estado de alerta e cognição. Dreven W.
Lockley and Joshua J. Gooley 2006.
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291
Melatonina: o hormônio do escuro
Eduardo Koji Tamura ([email protected]) - Laboratório de Cronofarmacologia
Melatonina é o hormônio produzido pela glândula pineal, conhecido como hormônio
marcador do escuro. Esta indolamina derivada da serotonina foi descrita por Lerner et al.
(1958), como a substância produzida pela glândula pineal durante o escuro que promovia
a mudança da cor da pele de anfíbios. A melatonina é produzida somente durante o
escuro, e de forma sincronizada com a duração desta fase. Nesse sentido, é um excelente
marcador sazonal para diversos organismos e atualmente sabe-se que possui esta
capacidade em diversos grupos animais. É um importante sinalizador para o estado
reprodutivo em mamíferos, peixes e aves, também possui um papel sobre a atividade
locomotora em peixes, répteis e aves e sobre a regulação da temperatura corporal em
répteis e aves. Em aves, também está relacionada à produção de som e a fase de
alimentação. No entanto, a maioria dos estudos com melatonina são realizados em
mamíferos e atualmente sabe-se que possui inúmeras ações tanto centrais como
periféricas (figura 1).
Figura 1. Melatonina atua principalmente como um sincronizador endógeno, mas também
em outros sistemas, por exemplo, na imunidade, pressão sanguínea, etc (Claustrat et al.,
2005).
Em plantas, não existe, até o momento, uma função muito bem descrita para a
melatonina. No entanto, existem relatos de sua participação na sincronização sazonal para
o crescimento de flores e de uma função “anti-attractant” para insetos.Um dado
interessante é que a maioria das plantas utilizadas na medicina chinesa que teria uma
ação anti-envelhecimento ou contra danos causados por radicais livres contém altas
concentrações de melatonina.
Um dos efeitos mais conhecidos da melatonina sobre os animais é a capacidade de
modulação do sistema reprodutor. Em mamíferos, existem diferentes formas de regulação
dependentes de espécie. Mamíferos que habitam locais com grandes variações climáticas
tendem a se reproduzir em épocas sazonais que favoreçam e garantam sua prole, ou seja,
épocas em que o clima, por exemplo, favoreça a obtenção de alimentos e que a
temperatura não seja prejudicial para o crescimento da prole. Considerando estas
afirmações, era de se esperar que dependendo da duração da gestação os animais
deveriam ser férteis em épocas sazonais diferentes.
Experimentos realizados em Hamster Siberiano, que apresentam um período de
gestação curto, demonstraram que conforme a duração da fase de claro aumenta, estes
animais se tornam férteis, por exemplo, aumentando o volume do testículo. Já em animais
de longo período de reprodução como os carneiros, ocorre exatamente o contrário, já que
eles são férteis durante a época sazonal em que a fase de claro é mais curta. Tanto os
carneiros quanto os hamsters, quando pinealectomizados, perdem estas características,
voltando a apresentá-las após administração de melatonina durante a quantidade diária de
292 horas de escuro necessário para o período fértil (figura 2). Estes experimentos
demonstram que estes animais são adaptados sazonalmente, o que permite que a prole
seja concebida sempre na fase de maior comprimento de luz, onde a obtenção de alimento
e a temperatura favorecem o crescimento da prole. Além disso, demonstraram que a
melatonina é o hormônio responsável pela informação do fotoperíodo e atua regulando o
sistema reprodutor de maneira dependente de espécie.
Figura 2. A informação do fotoperíodo é transmitida para um oscilador circadiano (relógio)
localizado no núcleo supraquiasmático, que por sua vez transmite sinais e regula a síntese
de melatonina de acordo com o fotoperíodo, em animais de longa reprodução (ex:
carneiro) o curto período de exposição a melatonina estimula a reprodução, evidenciada
na figura pelo volume testicular (Goldman 1999).
A síntese de melatonina inicia-se com a captura do aminoácido triptofano a partir da
circulação, que é convertido em 5-hidroxitriptofano e em serotonina. Esta, por sua vez, é
acetilada a N-acetilserotonina (NAS) em uma reação dependente da enzima arilalkilaminaN-acetiltransefrase (AA-NAT), cuja expressão gênica varia ao longo do dia. Por fim, a NAS
é metilada pela enzima hidroxindol-O-metiltransferase (HIOMT), formando a melatonina
(figura 3).
293
Triptofano
Triptofano
hidroxilase 1 (TPH1)
5-hidroxitriptofano (5-HTP)
5-HTP
descarboxilase
Serotonina (5-HT)
arilalquilamina Nacetiltransferase (AA-NAT)
N-acetilserotonina (NAS)
hidroxi-indol-Ometiltransferase (HIOMT)
Melatonina
Figura 3. Representação da via metabólica pela qual o aminoácido triptofano é convertido
em melatonina. As enzimas que convertem o triptofano em serotonina a TPH1 e a 5HTP
descarboxilase possuem uma ampla distribuição no organismo, sendo a produção de
serotonina muito maior nos tecidos neurais. As duas enzimas que convertem serotonina
em melatonina possuem uma distribuição mais limitada. Retirado e adaptado de Reiter et
al. (2000).
O controle desta via biossintética está vinculado ao ciclo claro-escuro ambiental. Nos
mamíferos, a informação luminosa é percebida pelos fotorreceptores retinianos,
transmitida aos núcleos supraquiasmáticos (NSQs) e ao núcleo paraventricular
hipotalâmico, que se conecta então aos gânglios cervicais superiores. Na fase de escuro,
as fibras simpáticas pós-ganglionares liberam noradrenalina, que sinaliza através de
receptores β-adrenérgicos presentes na glândula pineal estimulando a expressão gênica
da enzima AA-NAT, um dos passos limitantes para a síntese de melatonina (figura 4).
294 ESCURO
LUZ
Retina
Retina
OFF
Pinealócito
Veia
NSQ
Pinealócito
Veia
NSQ
Artéria
Artéria
GCS
GCS
Figura 4. Modulação da via biossintética pelo ciclo claro/escuro.NSQ – Núcleo
supraquiasmático; GCS – Gânglio cervical superior.
O passo limitante na síntese de melatonina é a conversão de serotonina à NAS
(figura 5). Esta conversão ocorre apenas na fase de escuro e é interrompida no final da
noite, ou quando existe um pulso de luz durante a fase de escuro. Durante esta fase, a
atividade da enzima AA-NAT está aumentada em até 100 vezes. Este aumento pode ser
devido ao aumento da transcrição gênica, como ocorre em roedores, ou à diminuição da
degradação da proteína, que é sintetizada continuamente, como ocorre nos ungulados.
Independente do tipo de mecanismo intrínseco que controla o aumento noturno da
atividade da NAS, o sinal que ativa este mecanismo é o aumento da liberação de
noradrenalina a partir de uma via simpática controlada pelos núcleos supraquiasmáticos,
que são a sede do relógio biológico.
NAT
triptofano
serotonina
NAT
N-acetil-serotonina
HIOMT
melatonina
100 pg/ml
Luz inibe a produção de melatonina
Produção e liberação
de melatonina
Figura 5. A enzima AA-NAT é regulada pela luz. Na presença de luz a transcrição do RNA
mensageiro é bloqueada e na ausência de luz esta transcrição é ativada resultando na
295
síntese de N-acetilserotonina (NAS), precursor imediato da melatonina. No escuro também
são ativados mecanismos que regulam a atividade da AA-NAT. Para que este sinal seja
eficiente, o RNA mensageiro é rapidamente traduzido e sua meia-vida é bastante curta,
dependendo de neo-transcrição.
Além da glândula pineal, certamente outros órgãos produzem a melatonina. Uma
boa evidência deste fato é que plantas, organismos unicelulares, bactérias e invertebrados
também a produzem. Atualmente, sabe-se que nos mamíferos, a melatonina é produzida
na retina, na lente dos olhos, linfócitos, monócitos, em outras células da medula óssea,
ovários e intestino. Além disso, a melatonina foi encontrada em altas concentrações na bile
de vários mamíferos incluindo o homem. Essas concentrações chegam a ser de duas a
três vezes maiores do que as concentrações da melatonina noturna no sangue, porém, a
origem dessa melatonina ainda é desconhecida. A melatonina produzida pela retina
participa do processo de adaptação para a visão noturna. No entanto, a melatonina extrapineal não contribui para a ritmicidade plasmática deste hormônio, mas pode contribuir
para diversos efeitos parácrinos e/ou autócrinos da melatonina, permitindo a efetuação de
ações que exigem altas concentrações de melatonina. Como exemplo, podemos citar o
fato de que a melatonina produzida por células imunocompetentes poderia atuar sobre o
processo inflamatório.
A concentração noturna máxima de melatonina no plasma em mamíferos está na
faixa de pM – nM e ações dependentes da produção extra-pineal são observadas em
concentrações maiores, na faixa de µM – mM. A melatonina atua de diversas formas,
possui receptores específicos de membrana e por ser uma molécula lipofílica com alta
capacidade de entrada nas células possui vários alvos intracelulares, como interação com
enzimas e outras proteínas o que resulta em uma grande diversidade de efeitos já
conhecidos do hormônio melatonina (figura 6).
Figura 6. Esquema descrevendo os diversos mecanismos de ação da melatonina e
algumas de suas ações (Hardeland et al., 2006).
Um dos efeitos mais conhecidos e bem estudados de altas concentrações de
melatonina é a capacidade de atuar como antioxidante. Os radicais livres possuem alta
reatividade, o que leva à oxidação de moléculas estruturais e essenciais para a atividade
296 celular. Um outro mecanismo de ação que pode resultar em efeito antioxidante é o
aumento da atividade de enzimas como a superóxido dismutase (SOD), glutationa
peroxidase e glutationa oxidase.
Várias ações da melatonina são atribuídas a esta capacidade antioxidativa. Como
exemplo, Drosophila melanogaster vivem por aproximadamente 60 dias e a administração
de melatonina juntamente com o alimento promove um aumento no tempo de vida por
aproximadamente 20 dias. Estes efeitos são atribuídos à prevenção da formação de
radicais livres pela melatonina.
Por se tratar de uma molécula lipofílica a melatonina também possui ações
intracelulares e um dos principais mecanismos de ação observados em baixas
concentrações é a capacidade de ligação a calmodulina, ligação esta de alta afinidade,
sugerindo uma relevância fisiológica. Considerando que a calmodulina participa da maioria
dos eventos intracelulares em vertebrados superiores, além de possuir capacidade de
ligação e regulação em uma grande diversidade de proteínas-alvos, incluindo enzimas,
canais iônicos, receptores e proteínas do citoesqueleto, a interação melatoninacalmodulina, pode interferir em diversas modificações de funções celulares. A melatonina
inibe a atividade da adenilil-ciclase dependente de cálcio-calmodulina em miotubos de rato
em cultura e da isoforma constitutiva da sintase do óxido nítrico em cerebelo de ratos.
Todos estes efeitos são atribuídos à ligação da melatonina a calmodulina.
A ligação da melatonina em receptores nucleares foi sugerida em ensaios com a
linhagem celular de drosófilas SL-3, transfectadas com o receptor Z para retinóide β
(RZRβ). Quando estas células eram incubadas com melatonina, os autores observavam
um aumento na expressão dos genes transfectados e também foi observado em ensaios
de “binding” em linhagens celulares de epitélio humano (HeLa) que a melatonina liga-se a
estes receptores em baixas concentrações, da ordem de nM (Becker-Andre et al., 1994).
Em 1997, os mesmos autores publicaram uma retratação, no qual afirmavam que nem
todos os experimentos realizados eram reprodutíveis e, portanto, suas conclusões
poderiam não ser exatas. No entanto, a ligação da melatonina a receptores nucleares tem
sido sugerida em outros modelos, como por exemplo, em células mononucleares do
sangue periférico, onde através de ensaios de “binding” e do uso de antagonistas seletivos
para os receptores RZR/ROR, foi demonstrada a ligação da melatonina nestes receptores.
A melatonina também se liga com alta afinidade (pM a nM) a receptores clássicos
membrana (MT1 e MT2 e Mel1c) que pertencem à família de receptores de sete domínios
transmembrânicos, acoplados à proteína G, a um “sítio receptor” (MT3), muito
provavelmente constituído por uma enzima a quinona redutase II (figura 7) e a receptores
nucleares.
297
Figura 7. Mecanismos de ação da melatonina. (a) A melatonina é sintetizada a partir do
triptofano; (b) Pode atuar por várias maneiras, por exemplo, através da ativação de
receptores de 7 domínios transmembrânicos (MT1 e MT2) ou da ativação da QR2/MT3; (c)
A melatonina é metabolizada para N1-acetil-5-metoxi-kinurenina (AMK), também pode ser
conjugado a outros compostos e uma parte também pode ser mantida sem alterações
(Boutin et al., 2005).
Os receptores MT1 e MT2 podem ser encontrados em mamíferos, anfíbios, peixes e
aves, enquanto o receptor Mel1c pode ser encontrado em todas estas classes com
exceção dos mamíferos. Os mecanismos de ação destes receptores são dependentes do
local em que se encontram já que apresentam uma grande variedade de mecanismos
descritos (figura 8), como ativação da fosfolipase C (PLC), levando a uma cascata de
sinalização que resulta no aumento da concentração intracelular de cálcio. Também
existem ações diretas e/ou indiretas sobre a regulação de canais na membrana, além da
regulação da enzima adenilil-ciclase resultando na modulação da concentração de AMPc.
Figura 8. Cascatas de sinalização que podem ser promovidas pela ativação de receptores
de melatonina (Masana e Dubocovich, 2001).
A melatonina também atua sobre processos fisiopatológicos no organismo
exercendo ação muito descrita na literatura sobre o processo inflamatório. demonstraram
em inflamação crônica induzida por BCG (Bacillus Calmette-Guerin) ou nistatina em pata
de camundongos, um ritmo circadiano, sendo a espessura da pata maior na fase clara do
que na fase de escuro. Este ritmo é dependente da melatonina produzida pela glândula
pineal, já que não é observado em animais pinealectomizados, voltando a existir quando
estes animais recebem suplementação de melatonina, em dose fisiológica, na fase de
escuro.
Em modelo de inflamação aguda induzida por carragenina em patas de ratos,
também foi observado um ritmo circadiano, sendo a intensidade do edema e a migração
de células polimorfonucleares (PMN) menores quando a carragenina é administrada
durante a fase de escuro. Cuzzocrea et al. (1999) demonstraram que a inflamação aguda
também induzida por carragenina, aumenta o exsudato pleural e a mobilização leucocitária
em ratos mantidos 24 horas em luz constante, durante uma semana e que a reposição
exógena de melatonina inibe esse aumento, ou seja, a melatonina estaria modulando a
resposta inflamatória aguda. Lotufo e colaboradores (2001) corroboram a hipótese
demonstrando que a melatonina deve modular através da inibição da interação neutrófiloendotélio, processo necessário para que ocorra a migração de neutrófilos para o tecido
lesionado (figura 9). Outros resultados, descritos posteriormente, levaram à formulação da
hipótese de que a melatonina atua sobre a interação neutrófilo-endotélio através de uma
ação sobre as células endoteliais, e não sobre neutrófilos.
298 Rolamento
Adesão
Selectinas
Transmigração
Integrinas
Estímulo
Figura 9. Migração de leucócitos. Após um estímulo lesivo, os leucócitos que trafegam na
região central do vaso sofrem uma marginalização e interagem com as células endoteliais
num processo denominado rolamento, através de moléculas de adesão principalmente da
classe das selectinas. Outras moléculas de adesão são expressas nos leucócitos sendo as
integrinas uma das mais importantes, promovendo uma maior interação com as células
endoteliais resultando na mudança conformacional das células que transmigram para o
local do estímulo.
Um dos mecanismos pelos quais a melatonina exerce seus efeitos é a modulação do
tônus vascular, onde a melatonina atua de maneira dependente do modelo em estudo. Na
ausência da camada interna (células endoteliais), a melatonina atua sobre as células
musculares lisas da artéria caudal de ratos, através de dois receptores distintos, que
desencadeiam efeitos antagônicos. A ativação de receptores do subtipo MT1 promove a
potencialização da vasoconstrição, enquanto a ativação dos receptores MT2 promove a
vasodilatação. Contudo os mesmos autores demonstraram haver marcação para o RNAm
dos receptores MT1 e MT2 tanto na túnica média (camada de músculo liso vascular) como
na túnica íntima (camada de células endoteliais). No entanto, em células endoteliais de
cremaster de rato não foram localizados os receptores do subtipo MT2 de melatonina.
A melatonina potencia a vasoconstrição induzida por noradrenalina em artérias
mamárias internas de humanos e também potencia a vasoconstrição induzida por
prostaglandina F2α em artéria umbilical humana sendo que estes efeitos são dependentes
da camada endotelial intacta. Em artérias coronárias isoladas de suínos a melatonina
potencia a vasoconstrição induzida por serotonina, sendo que este efeito desaparece após
a remoção do endotélio. Recentemente foi demonstrado que a vasodilatação induzida por
bradicinina em arteríolas da microcirculação de mesentério de ratos é inibida por
melatonina. Já havia sido demonstrada que a melatonina inibe a produção de óxido nítrico
em células endoteliais em cultura, sendo o principal fator para a vasodilatação dependente
de endotélio. De acordo com estes dados, podemos concluir que a melatonina modula o
tônus vascular por ações diretas sobre o músculo liso e também através de efeitos
dependentes de células endoteliais.
Atualmente, a melatonina tem sido muito investigada em humanos onde não possui
funções diretas na modulação da reprodução. No entanto, é muito conhecida por contribuir
no controle de outras funções, como o sono, a temperatura corporal, estando também
relacionada em algumas enfermidades como Jet lag, depressão sazonal e possivelmente
com o câncer.
Devido a esta grande diversidade de mecanismos de ações que ocorrem de acordo
com a concentração e com o local de ação, a melatonina tem sido amplamente estudada
por diversos grupos e nos mais diferentes sistemas. Apesar dos vários efeitos fisiológicos
e fisiopatológicos já demonstrados e bem estabelecidos por toda a literatura, muitos destes
efeitos não estão elucidados, abrindo um grande campo de estudo com esta importante
molécula encontrada nos mais diversos organismos.
299
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300 Fisiologia celular do Plasmodium durante a fase
assexuada
Laura Nogueira da Cruz ([email protected]) - Laboratório de Fisiologia Celular e
Molecular do Plasmodium
Malária
Malária é uma das mais importantes infecções por protozoários no mundo causando
morte de mais de 2 milhões de pessoas anualmente (WHO, 2005). A Africa subsaariana
concentra 90% dos casos, no entanto mais de 40% da população mundial está sob risco
da doença, principalmente os habitantes das regiões tropicais e subtropicais do globo
(figura1) onde ocorre a distribuição geográfica do mosquito do gênero Anopheles (A.
darling, no Brasil e A. gambiae, na África), que transmite as espécies infectantes humanas
P. falciparum, P. malariae, P. vivax e P. ovale, sendo as três primeiras espécies
encontradas no Brasil.
P. falciparum é o parasita que mais causa morte por malária no mundo ocorrendo em
maior incidência na África. No Brasil, a maioria dos casos é de P. vivax (WHO, 2005)..
É importante lembrar que a malária pode ser muito mais antiga que a humanidade
e existem quase 100 espécies de plasmódios, 22 dos quais infectam macacos e 50
parasitam aves ou répteis (que tiveram seu apogeu nos períodos Permiano e Triássico,
quando os insetos hematófagos já existiam).
Plasmódios de roedores e aves são freqüentemente utilizados, no laboratório,
como modelos experimentais. Entender a complexa biologia do parasita é fundamental
para o desenho de novas e mais eficientes drogas e desenvolver novas estratégias para
combater a epidemia.
Figura
1.
Potencial
mundial
http://en.wikipedia.org/wiki/Malaria)
de
transmissão
de
malária
(Fonte
:
Combate à malária
Nos últimos cinqüenta anos muitas pesquisas foram realizadas fomentando o
desenvolvimento de drogas sintéticas antimalaricas. A mais importante dessas foi a
cloroquina que possui baixa toxicidade, baixo custo e necessidade de ser aplicada apenas
uma vez por semana. Atualmente ,no entanto, um grande problema no combate à malária
deve-se ao aumento da resistência dos parasitas a cloroquina, derivados de cloroquina e
a grande maioria de antimaláricos introduzidos. Para inibir o aparecimento de resistência a
WHO recomenda que o tratamento utilize pelo menos o combinado de 2 anti-maláricos.
A incidência da malária, no Brasil, por exemplo, aumentou cerca de 10 vezes nos
últimos 30 anos, sendo que hoje 99% desses casos ocorrem na Amazônia Legal (FNS,
2002), área endêmica do país, composta pelos estados do Acre, Amapá, Amazonas,
Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Nos Estados fora da
Amazônia Legal, o risco de transmissão local é pequeno ou inexistente e a quase
totalidade dos casos de malária registrada é importada da Amazônia Legal ou de outros
países, principalmente da África
301
Limitações da quimioterapia no controle da malária demonstram a necessidade de
novas drogas, preferencialmente contra novos alvos, pois apesar de todas as pesquisas e
informações adicionais o número de casos de malária vem aumentando e uma vacina
eficiente provavelmente não estará disponível no futuro próximo. Além disso, os esforços
para controlar o mosquito Anopheles tiveram pouco sucesso.
Atualmente o que pode ser feito são medidas de profilaxias para pessoas que se
dirigem a áreas de maior transmissão. O regime profilático consiste em prescrição médica
dos medicamentos antimaláricos de acordo com as espécies de Plasmodium
predominantes, grau de risco da infecção da área de destino, perfil de resistência ás
drogas e avaliação dos efeitos colaterais associados ao uso das mesmas.
A quimioprofilaxia deve ser iniciada uma semana antes da viagem, para avaliação
dos efeitos colaterais, e prolongada por quatro semanas após a saída da área endêmica, a
fim de sustentar a ausência dos parasitas na corrente sangüínea, mesmo após a sua
transição pelo estágio hepático, período de incubação que pode levar á formação de
formas latentes do parasita, responsáveis por recaídas. Contudo, apesar das medidas
preventivas, febre no período de dois meses após o curso da quimioprofilaxia ainda pode
ser originada pela infecção. Outro propósito da profilaxia se estender por um tempo depois
da visita a área de risco é para evitar que se importe doença para a origem do viajante.
Trabalhos recentes mostram que o controle com telas mosquiteiras impregnadas
com inseticida ajuda no combate da malaria. A malaria caiu na década de 50 pelo esforço
combinado da cloroquina e do DTT, que combatia o mosquito!
Ciclo de vida
O Plasmodium é um parasita eucarioto unicelular, de vida intracelular obrigatória,
que mede 1,6 X 1,0 uM e pertence ao filo Apicomplexa. Possui um ciclo de vida
caracterizado pela sucessão de várias formas especializadas de desenvolvimento
Em vertebrados, a infecção se inicia pela picada do mosquito Anopheles, fêmea, que
retira 3 a 4 microlitros de sangue, enquanto injeta saliva contendo alguns esporozoitos.
Uma vez na corrente sanguínea, os esporozoitos invadem os hepatócitos e se
desenvolvem para o estágio assexuado de merozoito. Durante este período a infecção é
assintomática e cada esporozoito forma 30,000 merozoitos. Estes são liberados
diretamente na corrente sangüínea e invadem os eritrócitos. Na corrente sangüínea
amadurecem passando pelos estágios de anel, trofozoito e esquizonte. Por um processo
ainda desconhecido, alguns merozoitos não invadem os eritrócitos e se diferenciam em
gametócitos, a forma infectante do mosquito.
Para o fechamento do ciclo, o mosquito – onde ocorre o ciclo sexual do parasita terá que picar o vertebrado que tem gametocitos presentes na circulação. Estes, após o
ciclo no mosquito formarão os esporozoitos que migrarão até a glândula salivar e serão
transmitidos ao hospedeiro vertebrado (figura 2).
302 Figura 2: Ciclo de vida da malária (Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Malaria)
O ciclo intraeritrocítico é, portanto, o responsável por toda manifestação clínica na
malária, sendo na ruptura do eritrócito infectado e conseqüente liberação do parasita para
infecção de novas células que ocorrem febre e tremedeira, típicas da doença. Dependendo
da espécie de parasita, estes sintomas ocorrem em intervalos distintos – 3 ou 4 dias para
P. falciparum e P. vivax, respectivamente (tabela 1).
Função da melatonina
A transição do estágio intraeritrocítico, bem como o processo de invasão in vivo e a
produção de gametócitos são processos altamente sincronizados e na maioria mamíferos
estudados seguem ciclos múltiplos de 24h (tabela 1)
Tabela 1- Período do ciclo intraeritrocítio de diversas espécies de Plasmodium (Garcia, et
al 2001)
Parasita
Hospedeiro vertebrado
Período
do
ciclo
intraeritrocítico
P. knowlesi
primata
24h
P. cathemerium
pássaro
24h
P. vinckei
roedor
24h
P. chabaudi
roedor
24h
P. berghei
roedor
24h
P. yoelii
roedor
18h
P. gallinaceum
galinha
36h
P. falciparm
homem
48h
P. vivax
Homem
48h
P. cynomolgi
Primata
48h
P. coatneyi
Primata
48h
P. malariae
Homem
72h
P. inui
Pássaro
72h
P. brasilianum
Primata
72h
No caso do desenvolvimento intraeritrocítico do Plasmodium, os processos de
divisão celular e expressão gênica específicas de cada estágio são de extrema
importância. Foi demonstrado por Hotta et al. (2000) que o hormônio melatonina é capaz
303
de sincronizar o desenvolvimento do Plasmodium in vivo e in vitro. Quando se mantém
parasitas em cultura, a sincronia é perdida, um dos fenômenos que sugeriram que o
hospedeiro tem papel fundamental no estabelecimento do ritmo.
A melatonina tem um largo espectro de atuação (vertebrados, plantas e protozoários)
podendo ser sintetizada em vários tecidos, porém sua síntese rítmica é confinada
primariamente à glândula pineal. Este hormônio é sintetizado a partir de serotonina, que
está presente em grande quantidade na glândula pineal.
É interessante observar ainda que os precursores da melatonina, que são devirados
do triptofano, têm o mesmo efeito da melatonina tanto no ciclo celular do Plasmodium
quanto na mobilização de Ca2+ de estoques intracelulares.
Hotta et al. (2000) consideram que a melatonina é capaz de ativar a cascata da
fosfolipase C que, por sua vez, ativa a via de inositol 1,4,5-triposfato (IP3) e libera Ca2+ do
retículo endoplasmático (RE), nos estágios trofozoitos do Plasmodium.
Homeostasia e sinalização por cálcio
Variações na concentração de cálcio intracelular exercem papel fundamental em
muitos processos biológicos de células eucarióticas, como organização do citoesqueleto,
divisão e diferenciação celular.
As células eucarióticas possuem mecanismos para manter a homeostasia de Ca2+
estes incluem, uma bomba de cálcio na membrana plasmática, no retículo endoplasmático
além de trocadores em organelas intracelulares e na membrana plasmática.
Especificamente, para o parasita da malária foi demonstrado a existência de 2
compartimentos de Ca2+: um é o clássico retículo endoplasmatico e o outro é um
compartimento ácido.
Sabe-se que para Plasmodium falciparum o Ca2+ extracelular é indispensável no
processo de invasão do eritrócito pelo parasita e estudos fisiológicos mostram
envolvimento da sinalização de Ca2+ no processo de maturação do parasita.
Como qualquer célula eucariótica, o citoplasma do eritrócito possui baixa
concentração de cálcio (menor que 100 nM), sendo que o ambiente extracelular
encontrado pela maior parte das células eucarióticas situa-se ao redor de 1 mM. A
ausência de Ca2+ extracelular é normalmente incompatível com as funções normais da
célula e sua sobrevivência.
Dentro deste contexto, nosso laboratório demonstrou que o parasita resolve o
problema de pouco Ca2+ no meio em que sobrevive, através da invaginação da membrana
citoplasmática do eritrócito pois no momento da infecção forma o vacúolo parasitóforo (VP)
e inverte a polaridade da Ca2+ ATPase da membrana (bombeando ativamente Ca2+ para o
interior do VP). Desta forma pode manter o ambiente de alta concentração de Ca2+
necessário ao desenvolvimento do parasita.
Enzimas proteolíticas
Enzimas proteolíticas possuem um importante papel no ciclo de vida de todos os
protozoários medicamente importantes como
leshmania, toxoplasma, giardia e
plasmodium.
Várias proteases de protozoários foram identificadas e caracterizadas sendo
utilizadas pelos protozoários em diferentes funções tais como: invasão de células e tecidos
do hospedeiro, degradação de mediadores da resposta imune e hidrólise de proteínas
para suprir necessidades nutricionais do parasita.
As proteases podem ser classificadas em quatro classes, sendo três delas (serine,
cisteina e aspartil proteases), assim denominadas pela existência de sítio de aminoácido
chave e a metaloprotease , pela necessidade do íon metálico para catálise.
Sabe-se ainda que para a invasão dos eritrócitos por merozoitos e ruptura pelos
esquizontes maduros, são necessárias proteases do parasita, pois durante estes eventos
proteínas do citoesqueleto do eritrócito precisam ser hidrolizadas e algumas proteínas do
parasita são proteolicamente processadas.
Outra importante função das proteases inclui a degradação da hemoglobina que é
utilizada como uma fonte de amino ácido livre pelo parasita.
O conteúdo da hemoglobina em eritrócitos infectados diminui 25-75% durante o ciclo
de vida do parasita eritrocítico, a concentração de aminoácido livre é maior nos eritrócitos
304 infectados do que nos não infectados e a composição dos aminoácidos de eritrócitos
infectados é semelhante à composição de aminoácidos da hemoglobina
Peptídeos fluorescentes para determinar atividade de proteases
Recentemente foram desenvolvidos peptídeos sintéticos, com seqüências
específicas de aminoácido capazes de penetrar na célula e emitir fluorescência quando
clivado pela protease (figura 3). Dependendo da especificidade da seqüência peptídica e
das proteases pode-se então determinar atividades e funções proteolíticas.
Figura 3: Representação esquemática do mecanismo de funcionamento dos substratos
quelante interno fluorescente de peptídeos (IQF).
Em estudos realizados com P. chabaudi utilizou-se este quelante interno
fluorescente de peptídeos (IQF) e microscopia confocal para demonstrar-se que
melatonina induz atividade das thiol protease em uma forma cálcio-dependente.
Estas proteases estão localizadas predominantemente no citoplasma do parasita e
sua atividade pode também ser induzida por agentes que aumentam o cálcio citosolico
como tapsigardina (inibidor específico da Ca2+ ATPase do retículo endoplasmático),
nigericina (ionóforo K+/H+) e ionomicina (ionóforo Ca2+/H+).
305
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