‘O SEU DIA COMO PROFESSOR’: UMA ATIVIDADE QUE EXTRAPOLA A SALA DE AULA. Ana Paula Carvalho Nogueira Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. [email protected] Helena Amaral da Fontoura Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. [email protected] Resumo: O presente trabalho almeja discutir, sob a ótica interacionista, uma atividade de língua portuguesa, realizada com estudantes de 10 a 16 anos do 5º ano de uma escola pública do Rio de Janeiro, como parte de um Projeto de Iniciação à Docência. A elaboração da atividade, que consistia na produção de um jornal cujo tema era O seu dia como professor, por privilegiar o uso da linguagem, partiu das atividades lingüísticas em direção às epilingüísticas e metalingüísticas. Para análise do jornal produzido, baseamo-nos na noção de texto como discurso, em que se manifestam elementos lingüísticos e extralingüísticos. A investigação desses últimos elementos tornou evidente algumas concepções que os alunos envolvidos na produção tinham sobre a educação. As aulas mostraram que, quando são apresentadas tarefas que extrapolem o espaço escolar, os alunos participam ativamente. Palavras-chave: concepção interacionista, ensino de língua portuguesa, produção de texto. 1 – Considerações iniciais Este artigo é fruto da elaboração e da análise de uma das atividades de um projeto realizado com alunos do 5º ano de um CIEP localizado em um bairro de população de baixa renda da cidade de São Gonçalo, estado do Rio de Janeiro. A turma na qual a atividade foi feita é composta por aproximadamente vinte e cinco estudantes com idade entre dez e dezesseis anos. A diferença entre os alunos não fica apenas na faixa etária: há também uma considerável discrepância de conhecimento entre eles, apesar de quase todos estarem em um nível abaixo do esperado para o quinto ano do Ensino Fundamental. Identificamos dois alunos que não sabem escrever ou decodificar palavras. Entre os outros, a capacidade de interpretação de textos, sejam eles pequenos enunciados ou parágrafos, é muito limitada. 1 Trabalhando com esta realidade, o projeto Reforçando a Aprendizagem: uma experiência em iniciação à docência tem como objetivo realizar atividades de forma lúdica e descontraída, procurando lidar com dificuldades de aprendizagem e influir na adaptação e sociabilidade dos participantes. Busca ainda possibilitar o desenvolvimento intelectual e afetivo dos alunos através do exercício de uma prática pedagógica constante, que se faz e se debruça em si mesma de forma consciente, reflexiva e aprofundada na vivência do cotidiano escolar. Os trabalhos seguem principalmente a orientação de Freinet, contando com contribuições de Vygotsky e Paulo Freire. Com oportunidades de inserção para estagiários da graduação da Faculdade de Formação de Professores (FFP) da UERJ em Pedagogia, Matemática, Letras, Geografia, História e Biologia, o projeto busca fortalecer a relação teoria-prática, propondo novas metodologias, enquanto almeja facilitar o ensino-aprendizagem e atuar na formação do futuro professor. Este exercício de docência proporciona aos licenciandos a aproximação desejada com a comunidade sob forma de experiência em serviço associando o ensino à produção acadêmica. Deste modo, ao contemplar e fundamentar, de forma indissociada, o desenvolvimento profissional dos alunos dos diferentes cursos da faculdade, reforça aspectos múltiplosafetivos, cognitivos, morais, éticos e estéticos- dos envolvidos, conseguindo estabelecer a ponte tão desejada entre a academia e a comunidade. Para tanto, os planos de aula de todas as disciplinas são elaborados a partir das necessidades dos alunos e professores do CIEP. São aulas que pretendem não só apresentar/relembrar conhecimentos específicos, como também tornar os estudantes conscientes dos conhecimentos de mundo que possuem e valorizá-los, fazendo sempre a relação entre estes dois tipos de saber. A produção e a análise do jornal escrito pelos alunos do CIEP, objeto de estudo deste trabalho, também estão inseridas nessa concepção de ensino. Apresentaremos aqui as teorias utilizadas, a importância desta escolha e as análises feitas a partir dos discursos produzidos no texto. 2 – Fundamentação teórica da atividade O projeto Reforçando a Aprendizagem: uma experiência em iniciação à docência busca em todas as atividades que se propõe a fazer relacionar os conhecimentos escolares aos conhecimentos de mundo dos alunos, como nos ensina Paulo Freire. O objetivo dos trabalhos é fazer com que os estudantes possam questionar a realidade que os cerca e utilizar de alguma forma o que foi aprendido na escola para modificarem o que acharem conveniente. O trabalho, além de evidenciar progressos nas relações afetivas, tem dado a oportunidade de estimular a capacidade de ler, interpretar e criar idéias ante as mais diferenciadas situações, fatos e outros tipos de 2 informações, que surgem no cotidiano escolar, incentivando a autonomia da pesquisa sobre a própria relação de ensino/aprendizagem. Tal atualização é fundamental porque, nos dias de hoje, a velocidade da produção de conhecimento, da modificação dos valores, da ética e dos comportamentos exige uma atualização contínua e permanente. O projeto de Iniciação à Docência se justifica, portanto, na medida em que busca alternativas para adequar aos tempos atuais as atividades desenvolvidas durantes as aulas, em um processo contínuo de atualização da prática dos alunos bolsistas. As concepções de conhecimento trazidas por Freire (1997) apontam para a importância de práticas que estimulem o conhecimento e a leitura de mundo que potencialize o saber dos alunos. Para este autor, as ações docentes devem estar recheadas de bom senso, autonomia, responsabilidade, escolhas, diálogos, intencionalidade e outras características que qualificam a aprendizagem, não só na sala de aula, mas também na escola como um todo. Freinet, assim como Freire, não acredita que professores autoritários sejam capazes de formar cidadãos democratas. Assim, o processo educativo deve constituir um ato de cooperação tanto entre professor-aluno quanto entre aluno-aluno. Para Vygotsky, a colaboração também é fundamental, já que afirma que a avaliação pedagógica deve ser feita considerando a capacidade de o aluno cooperar com os outros, dando instruções e recebendo informações. Por desejarmos criar na nossa prática situações que possibilitem a abertura das zonas de desenvolvimento proximal, a atividade “O seu dia como professor”, partiu dos conhecimentos espontâneos em direção aos conhecimentos científicos. Ao elaborarmos a atividade de produção textual, tivemos por objetivo fazer com que os alunos aumentassem a capacidade de concatenação das idéias e observassem o grau de coerência interna de seu texto. O conceito de texto por nós entendido baseou-se na concepção de Ilari (1997) a partir da qual o vocábulo texto: “(..) é muito mais abrangente do que poderia sugerir seu emprego em análise literária, podendo incluir qualquer produção verbal, oral ou escrita , dotada de coesão interna e condizente com uma situação.” (p. 81). Acrescentamos a esta definição as considerações de Geraldi (1997) sobre a produção textual, compreendida como atividade de suma importância no processo de ensino-aprendizagem, visto que no texto é que a língua – objeto de estudos – se revela em sua totalidade quer enquanto conjunto de formas e de seu reaparecimento quer enquanto discurso que remete a uma relação intersubjetiva constituída no próprio processo de 3 enunciação marcada pela temporalidade e suas dimensões. (p. 135). Compreendemos, dessa forma, que nos textos são produzidos discursos nos quais o sujeito apresenta um ponto de vista sobre o mudo que o cerca, articulando suas palavras com a formação discursiva de que faz parte. Devido a tais concepções de texto, escolhemos “O seu dia como professor” como o tema da atividade, na tentativa de alcançar dois propósitos principais: 1 – notar o que os alunos concebem como processo educativo e qual olhar lançam sobre o comportamento dos participantes deste processo; 2 – fazer com que se colocassem no lugar do professor em sala, observando os desafios da profissão. Uma vez definidos tema e objetivo do trabalho, passamos a elaboração das etapas da atividade. Como priorizávamos um ensino de Língua Portuguesa cujo enfoque era o uso da linguagem, desenvolvemos as etapas a partir das atividades lingüísticas em direção às epilingüísticas e, em seguida, às metalingüísticas. As atividades lingüísticas são aquelas que segundo Geraldi (1997) “praticadas nos processos interacionais, referem ao assunto em pauta, ‘vão de si’, permitindo a progressão do assunto.” (p.20). Nesta primeira etapa, os alunos foram convidados a discutir sobre o tema com um amigo, entrevistálo e descrever como teria sido seu dia se houvesse sido professor. Na segunda etapa, que consistia em refletir sobre possíveis mudanças no texto, sobre o uso de conectivos e relação entre as frases, buscamos empregar as atividades epilingüísticas, conceituadas por Geraldi (1997) como “aquelas que, também presentes nos processos interacionais, e neles detectáveis, resultam de uma reflexão, que toma os próprios recursos expressivos como seu objeto.” (p.23). Para isso, os alunos montaram quadros comparativos entre os textos e os jornais produzidos. Depois de produzidos quadros individuais, passamos para a realização das atividades metalingüísticas (análise da linguagem, sistematização e construção de conceitos), utilizando classificações morfológicas para explicar problemas de grafia. As atividades metalingüísticas serviram apenas como apoio para adicionar informações às atividades anteriores, não sendo, portanto, o objetivo principal da produção de texto. Todas as etapas serão melhor explicitadas e analisadas nos próximos itens. 3 – Relatos da Prática Pedagógica “O seu dia como professor” foi a primeira atividade em que os alunos fizeram uso da linguagem verbal, visto que nas aulas anteriores foram utilizados mapas e desenhos. 4 Talvez tenha sido esse o motivo de tantas reclamações no começo da aula. Entretanto, quando dissemos que com os textos seriam produzidos jornais com foto e nome ao lado da matéria, todos se motivaram. Tal fato comprova que atividades que extrapolam as práticas corriqueiras de sala de aula podem contribuir de forma efetiva para promover motivação pelo diferente e pelo que trazem de atenção ao interesse dos alunos. Aproveitamos o entusiasmo para pormos em prática as atividades lingüísticas e pedimos para que eles se entrevistassem, imaginassem um dia como professores e escrevessem a matéria do jornal. Como o jornal era o elemento motivador dos alunos e os problemas de coerência interna, coesão e grafia foram consideráveis, resolvemos diagramar e imprimir o documento com os acertos necessários. Se demorássemos a entregá-lo, eles poderiam perder o interesse pela correção da atividade. Levamos um exemplar para cada aluno e professora e iniciamos a correção. Individualmente, partimos para o exercício das atividades epilingüísticas – cada aluno produziu um quadro com as palavras e as frases que foram modificadas e foram convidados a refletir sobre novas formas de escreverem o texto. Uma aluna, por exemplo, escreveu o seguinte texto: O meu dia foi bom. Eu comecei o meu dia brincando com os alunos, mas sempre tem um aluno chato que fica implicando com os alunos, por exemplo, Michael. Além disso, foi muito bom. Fim. Alteramos no jornal a expressão “além disso” para “apesar disso “ e pedimos para ela pensar no motivo da mudança. Em seguida, pedimos para que ela substituísse “apesar disso” por outras expressões. Além dos problemas de concatenação de idéias, muitos alunos tiveram dificuldades com a grafia das palavras e adequação vocabular. Um deles escreveu: “Ojé feiz poranenhuma”, quando queria dizer “Hoje fiz ‘porra’ nenhuma” (Aluno A do CIEP). Discutimos sobre a importância da adequação vocabular para a vida social e os alunos mais uma vez mostraram-se bastante interessados. Aliás, a participação e o interesse foram tão intensos que gerou espanto da professora da turma. Depois da produção de quadros individuais e monitoramento das atividades, fizemos um levantamento das principais dificuldades dos alunos e elaboramos um quadro coletivamente. Para explicar problemas de grafia, relembramos alguns conceitos como diferença entre som e representação gráfica, verbos no infinitivo e uso do plural. Muitos alunos grafavam plural só no determinante e não colocavam a desinência –r de infinitivo nos verbos. Fizemos, então, nesta etapa, uso das atividades metalingüísticas. Não iniciar uma aula com atividades metalingüísitcas e usar os conhecimentos espontâneos dos estudantes têm benefícios além da estimulação. Escolhendo um tema que faz parte do cotidiano deles, 5 podemos perceber através dos discursos produzidos nos textos suas concepções da profissão de professor, de estudante e da educação. A percepção sobre a educação revela desejos de mudanças: Se eu fosse professora: eu daria uma aula diferente. Eu daria Ciências, mas uma ciência que falasse sobre as plantas, ou melhor, sobre o meio ambiente, como cuidar delas e como multiplicar. E também ensinaria a dizer não à violência e ensinaria que se alguém tacar pedras pelas costas não liguem, porque isso é sinal de que vocês estão sempre na frente. (Aluna B do CIEP). Como professores, os alunos relataram comportamentos diferentes dos que costumam ter como estudantes. Um deles, por exemplo, que falta aulas constantemente e não faz os exercícios propostos deu ênfase na presença e nas atividades: “Eu iria dar aula todos os dias e não iria deixar sair sem fazer atividade. Iria ‘pegar pesado’ nas atividades. Não iria perder nenhuma aula, iria todos os dias da semana.” (Aluno C do CIEP) Os alunos são quase sempre apresentados como burros e bagunceiros: “Fiz o meu trabalho! Pois eles são burros” (Aluno D do CIEP) ou Hoje meu dia foi um horror. Todos ficavam brincando e não faziam o dever, mas tinha uns que obedeciam e faziam o dever, eram poucos, mas tinha. Quando eu passava Matemática, eu tentava fazer eles entenderem conta de dividir, eu não conseguia. Eu passava Geografia, eles não queriam fazer e ficavam brigando, correndo na sala, ficavam xingando uns aos outros. Quando bateu o sinal do recreio para subir, ninguém formou, ficaram correndo, até que Jordão desceu e falou para formarem. Aí, todos formaram e subiram. Eu passei Português, uns copiaram. Quando eu falei que já estava na hora da saída, todos copiaram o dever. Quando acabaram de copiar, guardaram o material e formaram, desceram para ir embora. Esse foi meu dia como professor. (Aluno E do CIEP). Assim, é notável que o discurso produzido pelos alunos, através de uma simples atividade, traz à tona seus comportamentos, desejos e vivência cotidiana. 4 – Discussão dos resultados Durante o desenvolvimento do projeto tem sido possível refletir sobre os problemas que afetam a educação em um contexto de diferenças, de desigualdades, de injustiça social, e tendo como enfoque a interdisciplinaridade, temos obtido resultados efetivos tanto no aspecto 6 cognitivo quanto valorativo. O modo diferenciado e significativo de ensinar que tem sido desenvolvido, de acordo com os relatórios e depoimentos dos licenciandos, demonstram e evidenciam que as experiências das atividades realizadas têm uma grande e peculiar importância, tanto para o aprimoramento de suas práticas pedagógicas, quanto para o aperfeiçoamento cultural dos alunos. Isso porque, por um lado, em virtude da relação ensino-aprendizagem ser realizada em grupos menores, os licenciandos podem ter uma percepção maior das dificuldades dos alunos e ajudá-los a superar as mesmas. Por outro, as atividades realizadas permitem uma reflexão mais aprofundada sobre as dificuldades no relacionamento dentro da escola, a dinâmica dos trabalhos fora da sala de aula, os problemas imprevisíveis que ocorrem. Nos alunos a atividade do CIEP repercutiu imediatamente: não houve brigas, como de costume e a participação foi efetiva. Apenas no final da aula, houve uma dispersão natural de alguns estudantes. Entretanto, este é um saldo muito positivo, já que, na maioria das vezes, os alunos nem copiam os exercícios no caderno. Em médio prazo, notamos algumas mudanças, principalmente no que concerne à postura da professora. Nas aulas posteriores ao jornal, ela levou encartes de supermercados para resolver as questões de matemática, fato nunca antes acontecido durante os quase cinco meses de participação da equipe do projeto. A análise das atividades realizadas pelo nosso projeto de Iniciação à Docência nos faz lembrar uma frase escrita por Wanderley Geraldi em seu livro O texto na sala de aula: “Estas crianças passarão alguns anos na escola sem saber que elas poderão acertar o sujeito da oração mas nunca serão o sujeito das suas próprias histórias. A menos que...” (GERALDI, 1997, p. 23). A menos que, como educadores, comecemos a entender a realidade, os desejos e as necessidades dos alunos com os quais convivemos e efetivamente pratiquemos um ensino que se aproxime das situações que serão por eles enfrentadas na vida. Faz-se necessário compreender que não basta mais ao exercício da profissão que seja feita uma formação inicial e nada mais. O veloz mundo de hoje demanda uma formação continuada, não uma mera continuação de práticas anteriores; uma busca de superação do caráter meramente instrumental do que se entendia por formação geral e abstrata, substituída por uma efetiva análise das práticas em que se empenham professores no dia-a-dia vivido em interação com alunos e colegas professores nos tempos- 7 espaços da escola. Esse entendimento requer o repensar da formação, que não tem um sentido em si mesma senão como etapa de inserção no campo de atuação profissional. 5 - Referências Bibliográficas BECHARA, Evanildo. Ensino da gramática. Opressão? Liberdade? São Paulo: Ática, 2005. ILARI, Rodolfo. A lingüística e o ensino de língua portuguesa. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1997. FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2005. FREINET, Celestin. As técnicas Freinet da escola moderna. 4. ed. Lisboa: Estampa, c1975 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997. GERALDI, João W. (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997. _____ Portos de Passagem. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1997. PERINI, Mario A. Para uma nova gramática do português. São Paulo: Ática, 1985. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996. VYGOTSKY,L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989 8