Festa da Ajuda CANIBARDO SE DEU MAL Ai, cebola, tempero de maniçoba Fui ao mato caçar taioba Encontrei lagartixa e cobra: Alô, caçador, como vai? A festa da Ajuda, a sua parte pro fanun, aquela que acontece para além do templo, do sagrado, é pura metáfora. Canibardo era um assíduo dançante da festa da Ajuda ao nível de segurar o estandarte amarelo com franjinhas nas bordas e que tinha a inscrição bordado com fios cor de ouro “louvores a Nossa Senhora da Ajuda”. Ele sabia, mais do que ninguém, o que significava cada música tocada pelo bando de músicos da Ladeira da Cadeia. Aí, como abre alas, dançavam ele, Canibardo, Baú de Pequéu, Peri, Renato, Popota, Miranda e uma renca de capoeirista que em dias de sexta-feira, o ano todo, participava dos fuás de bois, que, não sei por que, culminava no Largo da Recuada. Fora as meninas, agora respeitáveis senhoras. Ah, faltou Zé da Pêga, perneta, que dançava pulando feito Sacy Pererê. Isso no tempo da cachaça Caranguejo e Januária, aguardentes indispensáveis para animar os dançantes. No bar de Poporrô a dose custava 1 cruzeiro, com direito a uma espremida de sumo de limão rosa e mel puro de abelha regado sem medida. Tinha a hora certa, quero dizer, tinha o lugar certo para mudar a música. Era como um samba-de-roda, que começa com aquela cadência mole, até a “a labareda pegar fogo” (oi, lá vai, lá vai, labareda!), que é o barravento, momento em que a dançadeira perde o juízo, rodopia, dá o calundu. E não precisava Totonho Cabeçorra olhar para trás para dar o sinal. Era de longas datas que os músicos se juntavam em novembro para a festa da Ajuda: Seu Luís, João Balaio, João Capenga, o pai de Ganso, índio, Edinho, Maia, Dôga da Pipoca, Caçote. Não eram muitos os músicos; não era tanta zoada assim. E aí, lá vai. Canibardo, segurando o estandarte (que era “coisa de mulher”), ia logo atrás de Losa, que abria o cortejo feliz e adorava água que passarimnho não bebe, vendia petitinga no balaio, vendido às medidas de cuia de porta em porta e tocava um búzio anunciando a sua chegada e gritava: peixe! É petitinga, ao qual um bando de moleques e desocupados, inclusive eu, respondiam: podre! E ele se retava. Canibardo dançava uma dança que consistia em dar uns pulinhos graciosos tocando no chão a ponta dos dedos do pé direito, ao tempo em que tremulavam, fazendo biquinhos, os ombros, ao modo de Caetano Veloso. Depois, ele dava uns passinhos para os lados, iguaizinhos àqueles sambadores da batucada de Sapo em dias de carnaval, quando saia do Curral Velho. Era um passo tipo vai-não-vai, como um jogador ensaiando um drible, algo que não se vê mais hoje em dia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pavilhão Raul Seixas. Estrada de São Lázaro, 197 – 40701-230 - Salvador, Bahia. Telefone: 5571- 9929-9031. E-mail: [email protected] Mas quando chegava à Ponta da Calçada (atualmente já pavimentada, contudo), Canibardo entregava o estandarte à porta-estandarte e se comportava como Canibardo. Ele sabia que a partir dali Seu Luís e Seu João Capenga tocariam a velha “aí cebola/ tempero de mandioca/fui no mato caçar taioba/encontrei lagartixa e cobra..., e cada um que segurasse sua ceroula e sua calçola porque ninguém mais seria de ninguém. E como diz aquele velho adágio, segundo o qual “gato que tomou uma tijolada não passa em frente da casa de materiais de construção”, depois que ele tomou uma cascada penetrante no seu duodeno porque inadvertidamente segurava o estandarte, nunca mais ele se atreveu chegar naquele reduto com cara de gaiato. Ele dança ali de costas para a parede. A música é uma metáfora convidativa à indecência, ao vilipêndio, ao escracho, ao sexo carnavalesco. A festa da Ajuda tem seus espaços. Na Ponta da Calçada ela ganha ares de bacante ou um festival dionisíaco. É pau dentro. É pau fora. A festa da Ajuda inicia lá. Aqui ela não é nada, a não ser uma imitação estereotipada de um carnavalzinho italiano renascentista bem ridículo. Lá o pau quebra. Lá, como talvez dissesse Octavio Paz, buceta tem dentes. E haja pica, picardias, pícaros. Aí o cara foi lá no mato pegar uma taiobas para fazer uma maniçoba e flagrou um caçador, ou uma cobra, uma pica, comendo uma lagartixa; lagartixa que pode ser qualquer pessoa. A música quer dizer: “tá liberado para a sacanagem”. Foi assim que Canibardo aprendeu a tomar cuidado com a comunicação da festa. Que Nossa Senhora nos ajude de todos os males e nos leve e traga intacto da Ponta da Calçada. Quem tiver pé pequeno, caia fora! CACAUNASCIMENTO.BLOGSPOT. Festa da Ajuda – Canibardo se deu mal. Disponível em: http://cacaunascimento.blogspot.com.br/2010/11/festa-daajuda.html. Postado em: 17 de outubro de 2010. Acesso em: 21 de maio de 2013. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pavilhão Raul Seixas. Estrada de São Lázaro, 197 – 40701-230 - Salvador, Bahia. Telefone: 5571- 9929-9031. E-mail: [email protected]