153 ALLEaT SATORi: Por uma escrita combinatória em AlletSator Fábio Fernandes Resumo: O presente artigo tem como objetivo mapear o percurso da construção 1. Fase 1: O Sonho de Mallarmé (e outros precursores honrosos) narrativa subjacente à trajetória do interator no projeto AlletSator, apontando suas refe- Segundo Arlindo Machado, em seu texto O rências e origens no território literário, par- sonho de Mallarmé, o grande desejo do poeta ticularmente por intermédio de dois eixos: a francês Stéphane Mallarmé era “dar forma literatura de ficção científica, representada a um livro integral, um livro múltiplo que já por expoentes como Isaac Asimov e Arthur contivesse potencialmente todos os livros C. Clarke, além de nomes mais recentes do possíveis” (1993). Outras duas definições de gênero como J.G.Ballard, Allen Steele, Dan Machado para o desejo mallarmiano mere- Simmons e John Varley; e a produção de tex- cem atenção: máquina poética e gerador de tos combinatórios de determinados autores textos. Máquina porque mekhané, grego para do grupo OuLiPo, como Raymond Queneau, “invenção engenhosa”, mas acima de tudo Georges Perec e Ítalo Calvino, na criação gerador, aquilo que proporciona o surgi- do que consideramos pertinente batizar de mento de outras coisas de dentro de si. É o “hiperpuzzles”, ou seja, enigmas que criam próprio Arlindo Machado quem cita o concei- lexias que apontam para diferentes percursos to de “matriz geradora de poemas” sugerido narrativos no interior do labirinto atravessa- por Lúcia Santaella, ainda que neste caso o do pelo interator. O artigo pretende traçar gerador referido seja o soneto Vencido Está de um breve histórico da literatura de ficção Amor, de Camões, impresso pela primeira vez científica experimental (isto é, a literatu- em uma forma inédita até então, proporcio- ra voltada para experimentações de forma nando uma leitura não apenas vertical mas narrativa, e não apenas de conteúdo de também diagonal – e, por conseguinte, a especulação científica) e explicar o processo aquisição de múltiplos significados. de construção dos hiperpuzzles e de algumas das lexias por eles formadas. A questão proposta por Machado em seu texto é a da potencialidade do Livre de Mallarmé, Palavras-chave: ficção científica, literatura, um livro “onde os poemas estariam em estado puzzle, hipertexto latente e em que a partir de um reduzido número de células de base, se poderia realizar milhares de possibilidades combinatórias” (1993). Outra palavra-chave: combinatória. A linguagem matemática aliada à gramatical. 154 O máximo que Mallarmé conseguiu fazer máquinas criadas para gerar textos artificial- foi o poema “Lance de Dados”, de 1897, que mente têm valor, pois esses textos podem apesar de estar aquém da idéia original do ser interpretados tanto quanto um texto poeta, todavia inaugura um novo concei- dito “natural”, ou seja, criado inteiramente to de poema como forma (pela disposição por mãos humanas. Cita ainda a máquina de gráfica e o uso do espaço da página), e não fabricar aforismos do professor português apenas como conteúdo. Para Augusto de Pedro Barbosa, também conhecida como Campos, citado por Machado, o Livre exigia motor textual: um software cuja função é “a superação do próprio livro como suporte embaralhar aleatoriamente determinadas instrumental do poema”. palavras dentro de uma estrutura frasal, “de modo a proporcionar resultados semânticos Esse elusivo livro, contudo, não se realizará de tipo aforístico” (Machado, 1993, p.173). jamais durante a vida do poeta francês. Ain- Um dos exemplos dados por Machado: da que poetas anteriores, como o já citado Camões e também os quinhentistas Jean Acaso Deus é tudo em presença do nada? Meschinot e Quirinus Kühlmann, tenham Acaso Deus é nada na ausência de tudo? publicado poemas em estrutura permuta- Acaso Deus é Deus na ausência de tudo? cional (onde os versos de um poema-fonte Acaso tudo é nada na ausência de Deus? podem ser dispostos em diferentes ordens, criando novos poemas), não se fará nada Os exemplos de aforismos relacionados por além disso antes de Mallarmé, que acrescen- Machado são interessantes, mas não seria taria um elemento de ilusão de tridimensio- precipitado nos animarmos demais com essa nalidade fazendo publicar seu poema com suposta “artificialidade” do texto, uma vez diferentes formatos de caracteres. que sua matriz geradora foi criada por um humano e não por uma máquina? Machado nos fornece outra peça do quebracabeças ao sugerir que o projeto de Mallar- O próprio Machado parece concordar, ao mé demanda outro modo de produção e citar o exemplo do grupo europeu OuLiPo. talvez nem pudesse “ser um livro no sentido O Ouvroir de Littérature Potentielle, criado na estreito do termo”. Mais do que um conjunto França mas que contou com membros de de letras, o Livre seria um algoritmo combina- várias partes do mundo (entre eles o italiano tório. Machado cita o videotexto e a hologra- Ítalo Calvino e o americano Harry Matthews) fia como novos suportes de linguagem que que se empenharam, capitaneados pelo escri- seriam mais um passo na direção desse livro tor Raymond Queneau (autor de Exercícios de absoluto, com tudo o que essas novas mídias Estilo e Zazie no Metrô) na definição de uma possam ter de base computacional, portan- matemática do texto literário. Seus autores, to matemática, acrescentando que mesmo em especial Georges Perec, buscaram um 155 controle na criação do texto que envolvesse experimental, a começar por seu próprio conjuntos de regras e orientações definidas - nome. AlletSator, anagrama de Rota Stella (ou praticamente uma programação do texto. Em Rota Estelar, em bom português), resulta de La Disparition, Perec faz uso do procedimento uma permutação de letras. do lipograma: escreve um livro inteiro sem usar uma única vez uma das letras do alfabeto Daí surgiu uma idéia para a criação de lexias (no caso, a vogal e). Queneau, que além de em texto para as paisagens fantásticas vislum- escritor era matemático, é o responsável por bradas no projeto. Importante frisar o papel Cent Mille Milliards de Poèmes, que consistia do texto: AlletSator começou como uma ópe- em um conjunto de dez sonetos de quator- ra multimídia, onde o texto era já ele próprio ze versos alexandrinos impressos em cartões uma permutação gerada em software sob os destacáveis. Os versos podiam ser embaralha- auspícios de seu criador, Pedro Barbosa. Em dos em uma proporção exponencial, poden- sua versão para hipermídia, portanto, acha- do chegar a 100 bilhões de combinações mos que não só o texto não poderia ficar diferentes. Este trabalho, segundo Machado, de fora, como também deveria servir como inaugura o conceito de literatura potencial “chave” para passagens de um determinado por incorporar o movimento e a permutação ambiente para outro. Trabalhando em con- como elementos estruturais. junto, este autor e o Prof. Luís Carlos Petry, responsável pela construção do universo No entanto, a não ser por uma ou outra expe- visual de AlletSator em 3D, sugeriram a cria- riência mais ousada, a maior parte do que ção de o que chamaremos de hiperpuzzles: se fez nesse campo teria sido ainda muito charadas verbais permutacionais que cria- tradicional em termos de resultado final. riam lexias para lançar o interator em outras Machado encerra o seu texto acenando com páginas/paisagens desse universo ficcional. uma possível viabilização técnica do Livre de Mallarmé num futuro próximo, graças ao 2.1. Um hiperpuzzle conceito de hipertexto. Mas, seja por limitações técnicas, seja por limitações de seus Uma dessas hipercharadas consistia em fazer autores (ou programadores), esse futuro ain- com que o robô Anaximandro, personagem da não havia chegado. Até agora. principal da hipermídia e espécie de cicerone do interator, servisse também como instrumento na montagem de um quadro. 2. ALLET SATOR: Uma viagem permutacional O quadro em questão, composto por oito quadrados de dimensões idênticas, conteria todas as letras que compõem a expressão O Projeto AlletSator é um território fértil para AlletSator, previamente embaralhadas. A trabalhar uma estrutura narrativa não-linear regra deste puzzle era a seguinte: o interator 156 deveria, com a ajuda de Anaximandro, E, a seguir, uma das lexias para onde leva o arrastar cada letra separadamente e soltá- link de uma das palavras: la em uma linha determinada abaixo do quadro. Nem todas as letras precisariam Tela ser usadas simultaneamente, mas as letras usadas necessariamente teriam de fazer Desta nave. A tela é a nossa última interface. sentido, formando palavras já existentes Nosso último contato com o que há lá fora. E o na língua portuguesa (isto num primeiro que há lá fora? Quem sabe? E, se soubesse, diria? momento; a possibilidade de uma versão em inglês foi considerada). Cada uma dessas “definições” procura seguir um padrão que mais confunde que explica, Abaixo, uma lista resumida de palavras: nas pegadas de Heráclito, segundo orientação do Prof. Petry. Alto Toca 2.2. A inspiração ficcional Tela Sorte Se a forma é pré-socrática, o conteúdo é Ator pós-moderno: a inspiração para esse puzzle Salto específico partiu de um conto de ficção cien- Ratos tífica de Allen Steele, intitulado Red Planet Arte Blues, no qual um velho guitarrista de blues Alea é convocado pela NASA para uma missão a Lata Marte a fim de decifrar um enigma matemáti- Traste co composto por notas musicais. As combi- Sol nações de notas que o bluesman conseguia Solto em sua guitarra iam aos poucos fazendo com Rosa que peças do puzzle começassem a se encai- Sal xar e revelar um segredo deixado pela antiga Atol civilização marciana. Atolar Tarso A ficção científica desempenha um papel ful- Reta cral na composição dos cenários e dos con- Letra teúdos de AlletSator, desde o projeto inicial. Lastro O presente trabalho visa apenas contribuir Altar para esse panorama, acrescentando referên- Astro cias tanto para os cenários em 3D (inspira- Ostra dos, entre outros, nas paisagens alienígenas 157 descritas por Dan Simmons em seus livros Hyperion e The Fall of Hyperion) quanto para os textos, que, apesar de crípticos, procuram também uma relação com elementos ligados a esse gênero de ficção, por intermédio de seus temas e de autores ditos experimentais, como J.G.Ballard e John Varley. Pensamos, com isso, contribuir para o diálogo entre hipermídia e literatura – numa espécie de “satori aleatório”, daí o nome deste artigo, que é ao mesmo tempo o nome fictício da parte textual deste projeto – , fornecendo à primeira novas possibilidades narrativas com base em temáticas fantásticas. Bibliografia BARTHES, R. S/Z. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. ECO, Umberto. Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. MACHADO, A. O Sonho de Mallarmé. InMáquina e Imaginário: O Desafio das Poéticas Tecnológicas. São Paulo: Edusp, 1993. PEREC, Georges. La Disparition. Paris: Gallimard, 2003. QUENEAU, Raymond. Cent Mille Milliards de Poèmes. http://x42.com/active/queneau. html. Acessado em 2 de março de 2006 SIMMONS, Dan. Hyperion. NewYork: Bantam Spectra, 1989. SIMMONS, Dan. The Fall of Hyperion. NewYork: Bantam Spectra, 1990. STEELE, Allen. Red Planet Blues. In: Labyrinth of Night. New York: Ace Books, 1992. VARLEY, John. The John Varley Reader – Thirty Years of Short Fiction. New York: Ace Books, 2004.