Os dinossáuros e as gazelas do ensino superior
Claudio de Moura Castro
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Houve um tempo em que os dinossauros eram imbatíveis. Sua força era
incomparável. Mas mudou o mundo, estes animais não souberam se adaptar às
novas condições e desapareceram. O mesmo pode estar acontecendo com
muitas universidades nos dias que correm. Seu modelo era também robusto.
Mas ficaram pesadas, caras e pouco flexíveis, não conseguem se adaptar
agilmente aos novos tempos e não sabemos se sobreviverão a tempos futuros
quando as condições se distanciarem ainda mais daquela na qual foram
criadas.
Outras instituições de ensino superior, com a leveza das gazelas, saltam sobre
os obstáculos e distanciam-se dos seus predadores. Têm maior capacidade de
adaptação mais condições de sobrevivência em um mundo futuro mais
competitivo. Tudo indica que o futuro está mais para as gazelas do que para os
dinossauros universitários.
Mas seria falsa a conclusão fácil de que os dinossauros são as públicas e as
gazelas as privadas. Muitas públicas são bem menos ineficientes do que parece
e muitas privadas são manejadas por administrações com cabeça de
funcionário público.
Este ensaio passa em revista o ensino superior brasileiro, do ponto de vista de
sua capacidade de adaptar-se ou não aos novos ares. Examina seus estilos
administrativos, a sua governabilidade e sua resposta aos novos desafios.
Ao longo do texto, a metáfora "gazela vs. dinossáurio" é usada repetidamente.
Não obstante, pedimos aos leitores que não leiam nisso mais do que alusões
superficiais à evolução das espécies. Qualquer esforço tratar mais literalmente
uma tal metáfora é totalmente desprovida de sentido e não levaria a parte
alguma.
A. As gazelas e os dinossáurios administrativos?
A maneira pela qual as instituições de ensino se adaptam ao ambiente em que
vivem, em grande parte, determina seu destino. Tal como em qualquer área,
econômica ou não, se as regras são perversas e o processo decisório inadaptado
às circunstâncias, coisa boa não pode sair. Ao que parece, o metabolismo dos
1
O autor é Assessor Chefe para Educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento. O autor
agradece os úteis comentários de Aimee Verdisco, também do BID. Todavia, as idéias apresentadas no
presente trabalho são de sua inteira responsabilidade, não refletindo necessariamente as políticas e posições
do BID. Note-se, contudo, que o presente ensaio foi inspirado pelo documento de política do BID para o
ensino superior que pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: www.iadb.org/sds/edu.
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dinossáurios era inapropriado
consequência, foram liquidados.
para
o
período
pós-jurássico.
Como
Mas pode também pode haver o caso de indivíduos mais desastrados no lidar
com seu meio ambiente. O mamute recentemente encontrado na Sibéria teria
atolado ao tentar atravessar um rio. Pela mesma forma, instituições de ensino
podem atolar por incompetência de sua gestão.
1. Os gigantossáurios: A sinalização equivocada dentro dos sistemas públicos
O caso mais rematado de regras erradas é o sistema ao qual as universidades
públicas devem se conformar. Não cabe aqui discutir se as regras existentes são
boas para alguma parte do serviço público – o que nos levaria a outro ensaio mas apenas registrar que no caso específico do ensino superior as regras são
particularmente equivocadas.
Sem muita preocupação de alinhar-se com alguma teoria psicológico-econômica
do comportamento humano, é razoável supor que as pessoas decidem de forma
a conseguir vantagens e evitar perdas. Um reitor tomará as decisões que ele
acredita trazerem prestígio, poder, satisfação pessoal e que ao mesmo tempo,
evitem custos políticos, conflitos, greves, perda do cargo e por aí afora.
Em um sistema bem desenhado, as decisões que premiam o reitor deveriam ser
boas para a universidade. E decisões nocivas à sua instituição deveriam trazerlhes prejuízos de carreira – ou outros males. Se o bom para reitor é bom para a
universidade, e vice-versa, há claros incentivos para um desempenho que
engrandeça a instituição. Mas se os prêmios vão para quem faz estrepulias, é
ingênuo esperar outra coisa dos dirigentes.
Com as empresas privadas convencionais, os incentivos de mercado cotucam
na direção certa. Se o dirigente administra a empresa de tal forma que ela
vende mais ou tem mais lucro, isso deve resultar em vantagens financeiras e de
outras ordens para o ele. Por outro lado, se é desleixado ou desatento, os lucros
despencam. Ou seja, os prêmios vão para quem traz benefícios para a empresa.
Infelizmente, nas universidades públicas, isto está longe de ser o caso. Sabemos
que a maioria dos professores não cumpre o tempo integral e dedicação
exclusiva. Fazê-los cumprir aumentaria a eficiência da instituição. Mas o pobre
reitor que tentasse fazer isso teria conflitos, crises, batalhas administrativas
que simplesmente paralizariam a sua gestão, com incontáveis prejuízos para
sua carreira. Em troca, muito poucas recompensas seriam obtidas para
compensar o custo político de ato tão doidivano.
O mesmo se dá com os professores. Aulas impecavelmente preparadas dão
muito mais trabalho, tirando tempo de outras atividades ou atrapalham o doce
ritmo de funcionário público. E como ser melhor professor não traz qualquer
vantagem pecuniária ou de status, é preciso um grau de profissionalismo ou de
idealismo muito grande para não seguir a lei do menor esforço. Em uma
empresa comercial moderadamente eficiente, um vendedor tem que dedicar-se
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intensamente a vender mais. Esperar o cliente entrar na loja e pedir o produto é
bem mais fácil. Mas acontece que organizações econômicas sadias criam
prêmios para quem vende mais ou quem faz trabalhos mais difíceis e impõe
punições para quem faz o oposto. Desta forma, ao custo maior, ao esforço
maior, corresponde um resultado proporcionalmente mais expressivo.
Portanto, o grande problema das públicas não é alguma coisa errada na cabeça
dos dirigentes, nas crenças ou nas atitudes das pessoas que tripulam estas
instituições. O que está errado são sobretudo as regras do jogo que não
premiam o bem feito e não puxam as orelhas de quem deixa de fazer bem o seu
serviço.
Mas há outros problemas. Reitor de pública é como jóquei de dinossáurio.
Montado na garupa da fera indomável, equipado com um reles chicotinho, não
consegue ser obedecido. Recentemente, em uma grande universidade pública
brasileira, o reitor decidiu fazer uma verificação para saber quantos professores
faltavam às aulas. Mas sua investigação morreu no nascedouro. Os chefes de
departamento se recusaram a informar os horários de aula dos seus
professores. É inconcebível uma empresa privada onde os chefes de
departamento decidem não informar se os funcionários estão faltando!
Uma professora recentemente comentou que seu departamento tem duas
funcionárias administrativas. Uma é do quadro e ganha cinco salários mínimos.
A segunda é contratada e ganha um salário mínimo. Na verdade, a primeira se
recusa a fazer qualquer serviço enquanto a outra se dispõe a fazer tudo.
Felizmente, há possibilidades de melhorar esta situação. Talvez as soluções
perfeitas e definitivas tenham sido as maiores inimigas do possível e o caminho
esteja no somatório de pequenas medidas. As universidades paulistas recebem
uma verba que podem usar do jeito que quiserem. Há evidências sólidas de que
com a implantação deste sistema, houve melhorias substanciais de eficiência
no funcionamento dos departamentos. Apenas para citar um exemplo diminuto,
depois que um dado departamento da USP começou a receber uma dotação
global e passou a ter que pagar a conta de água, descobriu-se que havia uma
torneira vazando, havia vários anos. 2
O MEC, com a criação do GED, rompeu uma longa tradição de isonomia burra.
Ou seja, agora pode ganhar mais quem trabalha mais ou produz mais! Uma
inovação revolucionária no serviço público.
Tudo indica que há muitas inovações incrementais possíveis no processo
financeiro-administrativo das instituições federais de ensino superior. No seu
conjunto, podem fazer uma imensa diferença.
2. As gazelas escondidas dentro das públicas
2
Maria Helena Magalhães Castro, “As universidades paulistas” Banco Interamericano de
Desenvolvimento / SDS / Education Unit (1997)
3
Tornou-se lugar comum falar da ineficiência das públicas. Isso é repetido sem
pensar – de resto, nos parágrafos anteriores insisti nesta tecla. Não obstante,
dentro dos dinossáurios públicos podem estar várias gazelas escondidas. Isso
não é um detalhe ou uma curiosidade, mas uma enorme discrepância com
respeito à generalização – de resto, válida como tal – acerca da inapetência das
públicas para usar bem seus recursos e premiar o bom desempenho.
A pós-graduação brasileira produz próximo da metade da pesquisa Latinoamericana publicada nos periódicos indexado pelo Current Contents. De fato, os
mil grupos de pesquisa compondo a nossa pós-graduação são exemplares na
região. E mesmo na área tecnológica, mais árdua para países de Terceiro
Mundo, o desempenho é dos melhores – ou diríamos, dos menos ruins.
A pós-graduação está sob as asas dos orçamentos e das regras burras do
serviço público. Não obstante, acaba sendo governada pelos fundos de
pesquisa, pelas bolsas, pelos concursos e por todos os benefícios concedidos a
quem obtêm boa avaliação na CAPES. Em outras palavras, há uma camada
meritocrática no topo dos orçamentos burros e o sistema responde de forma
vigorosa a estes incentivos, compensando assim a falta de incentivos subjacente
aos orçamentos ao estilo do serviço público.
Mas não é só isso. Sob as frondosas regras barrocas do serviço público foram
criadas fundações cuja aparência anódina esconde gazelas furiosamente
capitalistas. Estas fundações, encontradiças nas melhores escolas públicas,
vendem serviços, P&D, cursos, consultorias e tudo mais que encontre
comprador. Sob o manto fundacional, são empresas capitalistas ágeis e
agressivas. Em universidades como a Unicamp, as receitas podem adicionar
quase 50% ao orçamento oficial. E na maioria das federais de melhor nível, pelo
menos 10 a 15% é somado aos orçamentos públicos. São tremendas gazelas
escondidas na mediocridade geral gerada pelos incentivos equivocados do
serviço público.
3. Os dinossáurios disfarçados de gazelas: As privadas com alma de serviço
público
Ser privado na pessoa jurídica não significa comportar-se de forma competitiva
ou buscar a eficiência. De fato, em pleno sistema de mercado há empresas
incompetentes. Em condições de concorrência acirrada, são as primeiras a
perecer. Mas há circunstâncias em que um mercado camarada dá-lhes uma
vida mais longa. Isto obviamente acontece também na educação.
Não são poucos os ex-professores ou reitores de públicas atraídos pelas escolas
privadas cujo primeiro comentário, ao chegar, é de surpresa e decepção. Dão-se
conta de que as supostas gazelas que os contratam não passam de
dinossáurios fantasiados. A suposta flexibilidade da iniciativa privada é
atrofiada e prevalece a rigidez administrativa e inércia que viram nos seus
tempos de funcionários públicos. São dinossáurios com fantasia de gazela.
3. O tapetão puído dos dinossáurios privados
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Todos sabemos que capitalista tem horror à mercado e competição. Se
pudessem, a eliminariam por completo e viveriam como monopolistas. O
sistema de mercado mostras seus traços de superior eficiencia quando os
capitalistas não conseguem impedir a entrada de outros concorrentes que
querem tomar seus mercados, produzindo melhor ou mais barato. É justamente
esta possibilidade de que apareçam concorrentes mais capazes que leva os
empresários a fazer força para sobreviver.
Não obstante, alguns capitalistas do ensino tentam se valer do “tapetão” para
impedir a concorrência de se instalar. Se conseguem que o governo impeça seus
concorrentes de operarem, terão mais um período de tranquilidade em seus
mercados cativos.
Mas este tipo de manobras no “tapetão” colide com a defesa mais ampla e
legítima da iniciativa privada. Cria-se uma grande dissonância cognitiva
quando a iniciativa privada defende o seu legítimo papel e direito de operar
mas, ao mesmo tempo, defende também suas reservas de mercado. Tomadas
em conjunto, estas duas posições mandam uma mensagem horrível: os
empresários do ensino querem mercados cativos para que os operadores
ineficientes possam auferir lucros confortáveis. São os dinossáurios privados
agindo no “tapetão”. Esta dissonância é uma das origens de uma certa má
vontade da população com relação ao ensino privado.
Felizmente, os dias do “tapetão” parecem contados. Se a concorrência não
estiver por aqui, poderá vir de fora do país. Há novos empresários chegando no
mercado com a ideia de ganhar dinheiro mas acreditando que só se ganha
muito dinheiro fazendo bem feito e, ademais, melhor do que os outros. Para
usar uma metáfora sugestiva, os grandes lucros estão indo para quem fabrica o
BMW, que capricha na qualidade, e não para quem faz Lada.
E finalmente, estão chegando as Corporate Universities. Nos Estados Unidos, já
há mais de mil instituições de ensino operadas pelas empresas para os seus
funcionários – mas frequentemente aceitando alunos avulsos. A Motorola já tem
a sua no Brasil e outras empresas também começam a operar outras.
Claramente, poderão comer mais um naco do mercado deixado mal atendido
pelo ensino superior.
5. As privadas com administração familiar: gazelas trôpegas?
Há muitas instituições privadas de ensino superior que pela sua agressividade e
velocidade de decisão parecem gazelas. Mas tem administrações frondosas e
recheadas de membros da família. Como quase todas as empresas familiares,
podem começar muito bem, a família pode sendo um apoio insubstituível no
início. Mas à médio prazo, começam a vir à tona os problemas que maltratam
virtualmente todas as empresas familiares.
Cresce a família, crescem os membros abrigados pelo emprego seguro. Tanto
são contratados os talentosos e esforçados como os outros. E a equação da paz
familiar não pode ser ameaçada por demissões e confrontos.
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O atraso no processo de profissionalizar a administração pode significar a
diferença entre o êxito e o fracasso. São as gazelas trôpegas, rápidas talvez para
tomar decisões, mas sem rumo e sem uma trajetória segura.
B. A falta de pontaria do ensino: Dinossáurio ou gazela?
Qualquer instituição tem que ser uma resposta ao seu entorno. Seu ensino tem
que atender a uma necessidade dos alunos. A maneira de ensinar tem que ser
apropriada para o que vai ser ensinado. Tem que oferecer ao aluno o que ele
precisará após a formatura. Tem que ter boa pontaria para acertar nas suas
necessidades.
Dentre públicas e privadas, há dinossáurios por todos os lados. E obviamente,
se a concorrência é entre dinossáurios, fica mais fácil a vida para as gazelas.
1. O estudante sonhado ou o estudante em carne e osso que está matriculado?
Todos os professores e administradores gostariam que seus alunos se
rivalizassem com os das Universidades de Harvard, Tóquio ou Oxford. Mas
acontece que cada uma tem os alunos que tem e pouco pode fazer a respeito. E
o pior que pode acontecer – e que infelizmente acontece com lamentável
frequência – é que estas instituições ensinam para os alunos que gostariam de
ter e não para os que têm.
Ensinar mais coisas ou ensinar coisas difíceis não é uma resposta inteligente. É
preciso ensinar o que o aluno pode aprender e não o que gostaríamos que
aprendesse. Se o conteúdo está muito acima da capacidade de absorção do
aluno, ele não somente não aprende, mas deixa de aprender as coisas mais
fáceis e que estão ao seu alcance.
Durante décadas, prestou-se menos atenção ao que o aluno real pode aprender,
e mais nos currículos oficiais, no que o professor aprendeu na sua pósgraduação ou no que dá status. Uma das grandes lições do sistema superior
americano é que este desce tanto quanto for necessário para chegar ao nível do
aluno. Se o aluno não sabe ler, começa ensinando a ler. Se não sabe fazer
conta, é por aí que começa. Que os alunos se formem naquele país
praticamente sem saber ler é quase increditável. Mas se assim é, melhor
reconhecê-lo e tirar partido da situação.
2. Prática sem teoria ou teoria sem prática?
Há uma velha e cansada discussão: ensinar a prática ou a teoria? Cursos
práticos ou cursos teóricos?
Em muitos casos, esta discussão é totalmente desfocada e fora de propósito. A
prática sem teoria é um adestramento tolo, apropriado em pouquíssimos casos.
E a teoria sem prática, é um desiderato apenas viável para uma ínfima minoria
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que viceja na abstração pura. A maioria dos alunos precisa da prática para
entender a teoria.
Daí a pertinência do que hoje se faz com o ensino contextualizado. O contexto é
o que dá sentido à teoria. Sem ele, a mente patina e não ultrapassa a
memorização estéril.
Não obstante esta realidade tão sabida, grande parte do ensino que hoje se
oferece não passa da apresentação de uma sequência de teorias, sem aplicações
práticas, exercícios, projetos etc. É como se pedagogia fosse um assunto que
não devesse ser preocupação dos que lidam com ensino superior.
Frequentemente, acaba sendo um assunto tão rarefeito, tão centrado na
discussão de autores que nada aterriza na sala de aula de verdade.
3. A desprofissionalização do ensino profissional.
O Brasil oferece cursos profissionais em todos os azimutes. Quase todos os
graduados do ensino superior recebem um diploma que os habilita ao exercício
de uma profissão definida por lei e, muitas vezes, privativa dos que tem o
diploma correspondente. Esse sistema funcionou a contento para os graduados,
enquanto havia mais posições disponíveis do que gente com o diploma certo.
Mas a expansão do ensino superior não foi condicionada à existência de
mercado correspondente para o graduado. Pelo contrário, fez-se a uma
velocidade muito acima do crescimento da economia. Inevitavelmente, começa a
sobrar gente com diplomas e sem empregos que a ele correspondam. E como o
descompasso entre criação de emprego e graduações é deveras grande – as
graduações crescendo a um nível várias vezes mais rápido – sobra cada vez
mais gente.
Ao mesmo tempo, as mudanças tecnológicas da sociedade fazem com que se
requeira cada vez mais educação para um número cada vez maior de
ocupações. Aí se incluem ocupações gerenciais, administrativas, do comércio e
serviços, onde não se exige uma formação pré-emprego bem definida mas sim
gente com mais educação.
De fato, nestas ocupações se requer leitura
inteligente, redação, resolução de problemas e muitas destas habilidades
genéricas. Como não há cursos preparando para tais ocupações exigindo
formação genérica, o que acontece é que os graduados sobrantes dos cursos
profissionais acabam encontrando emprego nas ocupações genéricas. Ou seja, o
que sobra de um lado acaba encontrando um lugar onde está faltando gente.
Ou seja, há uma desprofissionalização do diploma profissional.
Claro, é um arranjo bem vindo. Só tem dois problemas. O primeiro é que a
sociedade não entende a troca e criam-se insatisfações, como se fosse possível
que os empregos de economia ou direito crescessem de dez ou vinte vezes em
uma década. O segundo é que os cursos profissionais realmente não foram
pensados para atender às necessidades de pessoas que não vão usar nada do
que aprenderam mas apenas o “aprender a aprender” que está embutido em
todo curso sério. Claramente, seria possível oferecer muito mais do que hoje se
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faz nos cursos profissionais cujo mercado pode ser quase integralmente de
empregos genéricos.
Quem oferece curso profissional para quem não vai exercer a profissão é gazela
ou dinossáurio? Quem não sabe que isso está acontecendo ou explica o fato
como patologia do mercado, é gazela ou dinossáurio?
4. A profissionalização lambona das carreiras profissionais.
Nem todas as carreira encontram mercados saturados. Isso é verdade
sobretudo nos cursos curtos que ora começam a pipocar, mas também em
muitas ocupações, sobretudo as mais novas.
Não obstante, em muitos destes cursos, o que se oferece não é uma resposta ao
mercado mas sim uma mímica dos currículos oficiais e uma coleção dos
conhecimentos dos professores. Ensina-se isso ou aquilo porque é o que o
professor sabe ensinar e não por uma expectativa bem informada de que vá
servir mais adiante.
Nas carreiras curtas, isso é mais dramático e mais nocivo. Há menos tempo
para a lenta maturação do “aprender a aprender”. Se o “aprender a fazer” tiver a
pontaria errada, sobra pouco que sirva para o aluno. Talvez por isso, muitos
cursos curtos tenham tido resultados tão decepcionantes no passado.
Claramente, o antídoto para esta profissionalização rala é ir frequentemente ao
mercado de trabalho e sentir de perto o que se requer para o exercício das
profissões que estão gerando novos empregos. As gazelas partem da premissa
de que não sabem o que o mercado quer e, portanto, é preciso ir lá para ver de
perto. Os dinossáurios partem da premissa de que sabem mais do que o
mercado o que este precisa. E os gigantossáurios afirmam que não interessa o
que os empresários dizem precisar. Se há divergência, deve ser porque os
empresários estão equivocados. Mas como a decisão de contratar está nas mãos
dos empresários, independente do seu grau de inteligência, é isso que conta.
C. O vôo sem instrumentos de navegação do pterodactil
O BID está realizando uma pesquisa, indagando que instituições latinoamericanas realizam estudos de acompanhamento de egressos. Foram enviados
questionários a cerca de mil instituições, perguntando se faziam tais estudos.
Várias responderam que consideravam tais estudos muito interessantes e que
pensavam realizá-los ou estavam começando alguma coisa nesse sentido. Mas
realmente, com estudos prontos há um número ínfimo. Basicamente, duas
instituições, a USP e uma universidade na cidade do México.
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Voltemos a uma metáfora automobilística. O Lada Niva tem um defeito de
desenho na junta homocinética que se parte com uma frequência espantosa.
Mas a fábrica não toma conhecimento e o defeito persiste após muitos anos do
lançamento do carro. Em contraste, a Honda acompanha cuidadosamente cada
carro que sai da fábrica, anotando seus defeitos e incorporando as modificações
que impedem a ocorrência do defeito nos novos carros. O resultado é que
embora o Lada custe metade de um Honda de mesmo tamanho, seu mercado
não para de encolher enquanto o do Honda não para de crescer.
Supõe-se que as gazelas do ensino superior devam ter todo o interesse de
acompanhar a carreira dos seus ex-alunos e tentem identificar deficiências na
formação recebida. A Universidade de Phoenix, a maior instituição privada de
ensino superior dos Estados Unidos – e a que mais cresce – incessantemente
volta aos seus graduados para ver o que estão fazendo. O SENAI / SP faz
exatamente o mesmo. A cada tantos anos, os graduados de um dado curso são
entrevistados. Progressivamente, as partes do currículo que não aplicam no seu
trabalho são retiradas do currículo e substituídas por outras mais úteis.
Mas, infelizmente, a pesquisa do BID mostrou que nesse particular, os
dinossáurios predominam. Talvez o lado positivo seja dado pelo Provão que
oferece uma oportunidade extraordinária às escolas de verificar em que áreas
seus alunos se saem bem e em que áreas deixam a desejar. As escolas privadas
revelam mais vocação para gazela, pois têm sido mais assíduas no exame
destes resultados. Curiosamente, foram os cursos de odontologia os que mais
cuidadosamente examinaram os resultados do provão como instrumento para
entender onde estavam mais fracos.
D. Os erros e acertos no processo de ensino: dinossáurios ou gazelas?
1. A longa vida da aula expositiva tradicional: a iguana do ensino
Uma das mais extraordinárias relíquias do passado é a a iguana. Por que não
desapareceu, se todos os animais parecidos com ela já se foram? A velha aula
expositiva é muito semelhante à iguana, persiste viva quando deveria estar
morta. Depois da invenção do quadro negro, esta aula pouco mudou.
Lemos de três a cinco vezes mais rápido do que ouvimos um texto falado. Na
maior parte dos conteúdos, não há boas razões para ouvir o professor. Ainda
menos para "copiar o ponto" no quadro negro. Além da maior velocidade, o
exercício da leitura é útil em si mesmo.
Escrever, isto é, comunicar-se por escrito, é uma das habilidades mais
importantes que se pode aprender na escola. Na verdade, escrever é muito mais
do que transmitir uma idéia, pois é na palavra escrita que se afere o rigor lógico
do que foi pensado. No entanto, escreve-se muito pouco no nosso ensino
superior. Ou porque os professores não querem corrigir as redações ou porque
não há o hábito, mas o fato é que há um mínimo tempo despendido na escrita.
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Conversa-se pouco, como se conversar fosse uma distração, uma fuga do
assunto. Mas conversar é uma das formas mais ricas de aprender. As pesquisas
clássicas de Mintzberg sobre comportamento empresarial mostram que a fonte
mais importante de informação para o administrador são as conversas de
corredor ou por telefone 3. Os alunos devem conversar, entre si e com o
professor. É infinitamente mais importante do que ouvir longas narrativas ou
copiar o que já está no livro. Mas na prática, as iguanas do ensino conseguem
evitar a trajetória dos dinossáurios, continuam vivas e numerosas.
Há, ademais, todas as aplicações práticas do que foi aprendido. De actionlearning aos trabalhos de pesquisa feitos pelos alunos, há um número grande
de possibilidades de exercitar e consolidar o que está sendo aprendido.
Finalmente, cabe aqui lembrar, mas não explorar, o estonteante leque de
possibilidades oferecido pelas novas tecnologias da informação. Da televisão ao
Internet, há uma enormidade de alternativas atraentes e demonstravelmente
mais interessantes e eficientes do que velha aula expositiva.
2. Professores teóricos para matérias práticas e professores práticos para
matérias teóricas.
Há matérias mais voltadas para ensinar a fazer coisas ou resolver problemas
concretos no mundo real e outras mais voltadas para educar a cabeça do aluno,
para ensiná-lo a pensar por via de grandes paradigmas mentais ou de
algoritmos de pouca aplicabilidade imediata. Um engenheiro poderá se
beneficiar de um curso de geometria analítica, embora não seja objetivo do
curso uma aplicabilidade imediata dos conceitos. Já um curso sobre sistemas
de ar condicionado deveria lidar com problemas práticos de calcular os BTUs
dos equipamentos requeridos para um determinado ambiente.
Até aí tudo bem. O problema é calibrar o perfil dos professores pela natureza do
curso. É nesse momento que os problemas aparecem.
Um engenheiro tirado de uma fábrica só por acaso seria um bom professor de
geometria analítica. Mas um Ph.D em engenharia ou física seria uma catástrofe
como professor do curso de ar condicionado, pois jamais terá instalado um só
sistema.
Em um curso de arquitetura, a história das edificações com vantagens deveria
ser ministrada por um acadêmico que tem em seu currículo uma tese sobre
Palladium ou a Bauhaus. Mas projetos residenciais tem que ser ensinados por
quem não faz outra coisa na vida.
Falta no nosso ensino superior uma clara busca de perfis corretos para o
ensino. Ou se improvisam práticos para disciplinas teóricas ou cede-se às
pressões do MEC e entopem-se os cursos aplicados com professores que não
são praticantes da arte.
3
Henry Mintzberg, The Nature of Managerial Work" (Addision Wesley, 1973).
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3. As habilidades básicas: o denominador do bom ensino
As soluções para o ensino superior são quase sempre vistas como a busca de
um casamento feliz entre o ofício ensinado e os conhecimentos específicos que o
emprego correspondente a ele requer. Esta fórmula não é necessariamente
errada. Todavia, tem o grande defeito de obliterar um outro aspecto crucial: as
dimensões comuns exigidas por praticamente todos os empregos.
Um engenheiro textil tem que conhecer os últimos modelos de tear com
lançadeira a ar comprimido. Um advogado tem que saber os detalher de como
formular uma petição de habeas corpus. Um arquiteto tinha que manejar um
tira linhas e hoje tem que se sentir confortável no Auto-Cad.
Os bons cursos se preocupam em oferecer aos alunos as competências
requeridas para cada uma destas tarefas. Não obstante, todas essas profissões e as outras - requerem certas habilidades básicas que são comuns para todas.
Por exemplo, ler rapidamente e entender o que leu. Redigir com rigor. Ler inglês
e espanhol. Trabalhar com gráficos e tabelas em computador. De resto, usar
computador com a tranquilidade de quem usa um lápis. Pensamento crítico e
resolução de problemas são objetivos centrais e universais do bom ensino.
É diferença entre "formação" e "informação". A primeira resulta de um processo
lento e deliberado, requerendo disciplina intelectual e orientação segura dos
professores. A segunda é alguma coisa que flue naturalmente, de acordo com as
necessidades, para aqueles que têm uma boa formação. Ensino universitário
deve ter como foco vital a formação. O resto vem sozinho ou naturalmente.
Diante da desprofissionalização dos cursos profissionais mencionada acima, é
pena que haja pouca preocupação com estes aspectos genéricos do currículo.
São justamente estas habilidades básicas que permitem ao graduados adaptarse a novas ocupações, à novas circunstâncias. Pergunte-se a um reitor quantas
páginas os seus alunos lêm e quantas páginas escrevem por semana.
Dificilmente terão uma resposta, mostrando que suas preocupações andam
longe daí.
4. A pesquisa que atrapalha e a pesquisa que ajuda.
Um dos assuntos mais malditos do ensino superior brasileiro é a sacrossanta
indissociabilidade do ensino e da pesquisa. Este é um tema atravessado, acerca
do qual se engalfinham acadêmicos sérios, sem que haja uma resolução da
controvérsia. Mas no fundo, há dois tipos de problemas que se entrelaçam e se
confundem.
O primeiro é acertar o significado do termo: O que é pesquisa? O segundo é
decidir se a pesquisa é desejável, indesejável, possível ou impossível. Mas se o
primeiro não for resolvido antes, a discussão do segundo arrisca patinar em
seco.
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Botânicos fazem pesquisa e ninguém tem dúvidas acerca do que devam ser
estas pesquisas. A pesquisa é a essência do seu trabalho. Matemáticos
demonstram teoremas o que talvez queiramos chamar de pesquisa. Estudantes
de educação física irão ensinar voleibol. O que será a pesquisa em voleibol? E a
das enfermeiras? E a dos arquitetos? E a dos advogados? Se não conseguimos
avançar aqui, como queremos fazer afirmativas taxativas sobre a necessidade
da pesquisa no ensino? Se não sabemos o que é pesquisa em voleibol, como
podemos dizer que será essencial para o bom ensino?
Se os professores do mestrado ou doutorado fazem pesquisa, esta é a pesquisa
que irriga a graduação? Será que é isso que nos justifica o princípio consagrado
de que universidades tem que ter pesquisa, pois é essencial para dar alcance e
profundidade ao ensino? É plausível afirmar que a presença de um mestrado
traz para a sala de aula professores que fazem pesquisa, o que é bom. Mas é
justamente a presença do mestrado que liquida qualquer possibilidade de que
alunos de graduação participem das pesquisas dos seus professores, já que
serão preteridos pelos mestrandos.
Parece que o realmente bom para os alunos de graduação é que recebam
tarefas semelhantes às pesquisas da disciplina correspondente, só que
miniaturizadas para que possam ser realizadas em prazos exíguos e por
iniciantes ainda mal preparados. Se queremos chamar isso de pesquisa é outra
coisa.
Não importa com que nome batizamos, o importante é aprender a operar dentro
do método científico, aplicar o princípio da dúvida sistemática da boa ciência,
desenvolver o hábito da organização metódica e disciplinada dos fatos e
argumentos,
aprender a perguntar a pergunta certa, aprender a testar
hipóteses com rigor analítico e assim por diante. Dificilmente, em um curso de
graduação os resultados deste esforço gerarão produtos publicáveis. Mas o que
forma o aluno não é o grande professor da universidade publicar um artigo
exotérico mas sim o próprio aluno viver, no seu nível, o processo de busca
sistemática do conhecimento que deu à humanidade o poder de mudar a sua
vida e seu entorno.
Mas curiosamente, as discussões vigentes sequer tocam nesse assunto.
Simplesmente, esgrima-se em um nível de generalidade onde nada pode
resultar.
E. Brasil: Parque jurássico ou savana?
Que país é esse? Nosso ensino superior habita um parque jurássico ou uma
savana nos planaltos da África?
A observação parece indicar que há mais dinossáurios cruzando o território do
que gazelas pastando. Os dinossáurios ainda sobrevivem sem demasiado
perigo. Esse é o lado ruím.
12
O lado bom é que parece estarmos em pleno período de transformação do meio
ambiente em que opera nosso ensino superior. Parece que entramos em um
período onde se descongelam as estruturas peremptas e cria-se espaço para as
mudanças.
Neste ambiente, a predominância de dinossáurios torna particularmente
promissora e facilitada a vida das novas gazelas. Ou seja, seguindo os
princípios de Darwin de que a competição é mais acirrada dentre espécies
próximas e entre indivíduos da mesma espécie, a população rarefeita das
gazelas facilita o aparecimento de outras. É mais fácil competir com os
dinossáurios do que com outras gazelas. E como há poucas gazelas, a situação
é muito promissora para as que aparecerem. Em outras palavras, acredito que
a existência de tanta mediocridade e tanto conservadorismo no ensino superior
brasileiro cria condições facilitando o aparecimento e crescimento de novas
instituições, novos modelos. Quando as poucas gazelas tem apenas que
competir com os dinossáurios, sua vida fica mais fácil.
File name: Dinossauros e gazelas São Camilo
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Date modified: 06/06/00
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Os dinossáuros e as gazelas do ensino superior