D. MYRTHES: A SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO E CULTURA DA FUSÃO Yolanda Lima Lôbo - Universidade Estadual do Norte Fluminense INTRODUÇÃO Quando nos propusemos investigar aspectos da História da Educacão Fluminense nosso interesse inicial era compreender a natureza das políticas públicas de Educação do novo Estado do Rio de Janeiro. Chamava nossa atenção o caráter descontínuo das políticas educacionais e a constante substituição dos titulares da pasta de Educação. Em sete governos, 17 secretários. A percepção desse fenômeno exigia explicá-lo. Um fato percebido ou observado deve, previamente, ser criticado e reconstruído de maneira que sua tradição conceitual possa ser reformulada. Assim sendo, buscamos organizar o Centro de Memória da Educação do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro tendo como eixo principal o projeto de pesquisa “O empreendimento educativo-cultural da Fusão: Memórias de Secretários de Educação”. A escolha do tema objeto de estudo justifica- se por duas razões. Em primeiro lugar, porque pretendíamos implantar, no Centro de Memória, um programa de História Oral e isto exigia projeções de longo prazo, de modo que pudesse inaugurar um tipo de trabalho que não se exaurisse, mas que se estendesse de modo a sedimentar-se. Assim sendo, o recorte inicial do objeto de estudo deveria ser bastante abrangente, capaz de viabilizar o investimento contínuo de entrevistas. De fato, ao tomarmos como tema o testemunho dos titulares da pasta da Educação, a partir da fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, ocorrida em 1975, o consideramos capaz de proporcionar desdobramentos e novos projetos de pesquisa, a fim de aprofundar assuntos específicos, incluídos no tema, tais como: municipalização, carreira docente, museus, construção escolar, formação docente, democratização do ensino, financiamento da educação, educação rural, ensino fundamental, educação e trabalho. A escolha de um tema gerador continente” – Alberti (1990) usa a expressão “tema – define a linha de acervo do programa e o desenvolvimento de suas atividades, proporcionando a construção de sua identidade institucional. Em segundo lugar, consideramos as possíveis contribuições que o tema gerador produzirá para a pesquisa histórica e em ciências humanas.O conjunto de documentos produzido 1 pela investigação pode ser usado como fontes para novas pesquisas, isto é, pode criar temas ainda não investigados por outros acervos. Lembramos que a construção do objeto de investigação exige que se tenha perante os fatos uma postura ativa e sistemática. Para isso, afirma Bourdieu (1989) é preciso romper com as pré-noções do senso comum, e isto não significa propor-se construções teóricas vazias, mas abordar um caso empírico com a intenção de ligar os dados pertinentes de tal modo que eles funcionem como um programa de pesquisas que põe questões sistemáticas, apropriadas a receber respostas sistemáticas: “Trata-se de interrogar sistematicamente o caso particular, constituído em caso particular do possível, para retirar dele as propriedades gerais e invariantes que só se denunciam mediante uma interrogação assim conduzida” (p.32). O processo de conhecimento do objeto nos levou a dialogar com duas vertentes da literatura existente: a da Fusão e a da Educação. Enquanto a primeira vertente – a Fusão - vem sendo objeto de estudo de pesquisadores do CPDOC, a segunda, ainda é pouco explorada. Um dos estudos na área de educacão, particularmente, nos instigou pôr em diálogo o tema objeto de nosso estudo. Trata-se do excelente trabalho de Libânea Nacif Xavier. Nele a autora apresenta uma análise da política educacional desenvolvidada no Estado do Rio de Janeiro, após a fusão, tendo como categoria principal a descontinuidade, termo que não pode ser entendido como ruptura, no sentido epistemológico. Neste aspecto, teríamos que aprofundar a interlocução com Libânea, o que, no limite desse trabalho, não será possível fazê-lo. Preferimos trabalhar pontos que a referida autora destacou como não sendo objetivo do seu trabalho, coincidentemente aqueles sobre o qual nos debruçamos: “redesenhar, na História da Educação Fluminense, as trajetórias de educadores responsáveis pela formulação e implementação de propostas de renovação pedagógica e de política educacional no Estado do Rio de Janeiro, a partir da fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro” (Xavier Nacif , 2001 p.127). Para reconstruir o itinerário dos educadores que exerceram o cargo de titulares da pasta de educação e cultura do novo Estado do Rio de Janeiro, optamos por registrar a voz e, através dela, suas vidas e seus pensamentos, destacando, aqui, a gestão da Professora Myrthes de Luca Wenzel, primeira Secretária de Educação e Cultura do Estado do Rio 2 de Janeiro. É, pois, um estudo sobre memórias. Este registro alcança uma memória pessoal que é também uma memória social. O nosso sistema social encontra-se integralmente em cada um dos nossos atos, em cada um dos nossos sonhos, delírios, obras, comportamentos. E a história desse sistema está contida, por inteiro, na história de nossa vida individual. Toda vida humana revela-se como a síntese vertical de uma história social e todo comportamento ou ato individual parece a síntese horizontal de uma estrutura social. A concepção do trabalho situa-se numa fronteira de cruzamernto entre os modos de ser do indivíduo e de sua cultura. Em 1º de julho de 1974, o Presidente Ernesto Geisel sanciona a Lei Complementar n º 20 que regula a criação de novos Estados e Territórios e fixa disposições para a fusão dos Estados da Guanabara e Rio de Janeiro. Os dois Estados passam a se constituir em um só, com o nome de Estado do Rio de Janeiro, a partir de 15 de março de 1975. Convidada pelo Governador Faria Lima para coordenar os trabalhos da equipe encarregada de planejar a pasta da Educação e Cultura, a Profª Myrthes de Luca Wenzel, fundadora da Fundação Centro Educacional de Niterói, Inspetora Federal de Ensino, autora de livros didáticos e professora com vasta experiência em educação, assume a responsabilidade de gerir o empreendimento educativo-cultural da Fusão. Sob sua coordenação, a equipe monta a estrutura administrativa da nova Secretaria de Educação e Cultura fundamentada em princípios de descentralização e experimentação e segundo o princípio racional da divisão do trabalho e a distribuição de funções pelo princípio da meritocracia. A estrutura e organização da secretaria compreendia órgãos colegiados – os Conselhos de Educação, de Cultura e de Tombamento -, de planejamento, apoio técnico, administrativo-financeiro, de contabilidade e auditoria e fundações. Vale destacar, ainda, a criação de uma das mais importantes instituições da administração Myrthes Wenzel, o Laboratório de Currículos, responsável pela implantação de escolas experimentais. SOUVENIRS DE D.MYRTHES Descendente de famílias de italianos que vieram fazer a América, no final do século XIX, e se instalaram no município de Além Paraíba no Rio de Janeiro, D. Myrthes é a primeira dos quatro filhos de Maria Antonia Gagliardi De Luca e de Giuseppe Umberto De Luca, “profissional muito brilhante na Odontologia”. A escolaridade da mãe atingia 3 o grau elementar “... minha mãe fez como todo mundo naquela época, o curso correspondente ao primário completo, até a sexta série, em Angustura. Depois, ela teve aulas particulares ... estudou canto, tinha uma voz maravilhosa ... o canto que eu ouvia de minha mãe, de meu avô, que ouvia dos italianos de minha família me fez uma apreciadora de música clássica, de ópera” (Wenzel, depoimento, 2001). As formas familiares da cultura manifestam-se no seu cotidiano contribuindo para a formação do gosto musical. A cultura escrita se faz presente no dia-a-dia da família De Luca, de formas as mais diversas: na leitura e escrita de cartas, no arquivo de clientes do Dr. De Luca – que mantinha seu consultório nas dependências de sua residência -, na leitura de jornais (o pai era leitor assíduo de jornais). No consultório dentário do pai, a menina inicia sua preparação para seguir a “carreira do pai”. Ocupa-se de guardar os instrumentos, auxilia de “enfermeira”, demostrando toda a sua “inabilidade para esse ofício”. Sua “vocação” era outra e provinha de ‘uma professora chamada Jacira”, com quem iniciou sua vida escolar, em Angustura, distrito de Além Paraíba: “...as minhas primeiras letras foram adquiridas com uma professora chamada Jacira. Eu, desde o início, gostei muito dela ... me tornei uma grande amiga dela e ela era minha amiga”. ... dizia minha mãe que eu já lecionava para as minhas bonecas. Mas, não sentava as bonecas uma atrás da outra. Sentava as bonecas em círculo. ... as bonecas conversavam umas com as outras, faziam brincadeiras, faziam coisas bonitas. Mamãe sempre dizia que era um problema, um grande problema que eu só queria brincar de professor e aluno. ... desde pequena eu sempre achei que a sala de aula é uma sala de vida, é uma sala de convivência, é uma sala de melhoria do entendimento humano” (Wenzel, depoimento, 2001). Na divisão sexual dos papéis familiares, cabia ao pai o exercício da autoridade moral doméstica e, assim sendo, as pretensões profissionais da primogênita estavam sendo encaminhadas para formar o herdeiro da profissão paterna. Muito cedo, porém, o pai compreendeu e aceitou a inclinação da filha para o setor de humanidades. Pioneiro na odontologia brasileira na implantação de roach (pontes móveis), Dr. Zeca, como era conhecido, transfere-se de Angustura para a cidade do Rio de Janeiro, onde a família se instala definitivamente. A preocupação com a educação dos filhos influiu, também, na decisão de se estabelecer nessa cidade. 4 No Rio de Janeiro, escolhe um colégio feminino, frequentado pela alta burguesia carioca, para cuidar da educação de D. Myrthes, o Colégio Sion, localizado no Cosme Velho. A família passa por graves problemas de adaptação na nova cidade. Os problemas de saúde da mãe –asmática – provocam uma série de mudanças (de Copacabana para o Rio Comprido e depois para Laranjeiras) e a dificuldade do pai para firmar-se profissionalmente na capital da República ocasiona períodos de grande instabilidade financeira para a família, que terá repercussões na educação dos filhos. Impossibilitada de arcar com os custos do Sion, a família procura um outro Colégio tradicional de educação feminina, o Sacré-Coeur de Marie, situado em Copacabana. “...Eu sempre me interessei muito pela leitura e pela literatura, pela poesia, sobretudo. ... estudei um tempo no Colégio Sion, depois saí ... porque papai teve problemas de dinheiro. ... embora eu renda minhas homenagens ao Sion porque, realmente, adquiri muitas coisas lá, ...saí falando perfeitamente o Francês, conhecendo bem o Português,... o Sacré-Coeur era mais democrático porque as irmãs eram abertas a bolsas de estudo. Eu tinha muitas colegas bolsistas, então, isso democratizava muito nossos contatos e foi muito bom para a nossa formação” (Wenzel, depoimento, 2001). As condições e disposições econômicas da família a introduziram no universo escolar que lhe possibilitou uma formação clássica rigorosa, com ênfase no domínio de línguas – francesa, latina -, uma disciplina intelectual e o fortalecimento de relações sociais, para a qual estava socialmente preparada para recebê-la. Ainda na qualidade de aluna do Sacré-Coeur, conhece D. Hélder Câmara, personagem cuja influência foi decisiva na sua vida profissional: “...padrezinho foi um grande amigo. E os exemplos que ele nos dava. ...ele foi meu grande formador, minha grande faculdade de educação. ... a convivência com D. Hélder, Hilda Fernandes Mattos, os educadores Luiz Alberto Torres e Dr. La-ffayete Cortes e com minha colega de faculdade Bertha Gladson Ribeiro e seu esposo, Darcy Ribeiro, me deu a convicção de trabalhar pela educação” (Wenzel, depoimento, 2001). É no ensino religioso do Distrito Federal que D. Myrthes inicia o seu magistério, convocada por D. Hélder Câmara, na segunda metade da década de trinta. “...comecei lecionando religião, com D. Hélder Câmara. Ele achava que eu tinha que lecionar religião. ...O meu acesso foi pelas mãos de D. Hélder. Porém, como havia falta de 5 professores, eu passei para aquilo que era o meu caminho: professora de Geografia e história. Depois, na década de quarenta, o Dr. La-Fayette me convidou para lecionar no Instituto La-Fayette. ... Simultaneamente, eu me apresentei ao Colégio Brasileiro de São Cristóvão, dirigido pelas ilustres educadoras Adalgisa e Augusta Quaresma” (Wenzel, depoimento, 2001). A tríplice jornada de trabalho decorria das dificuldades financeiras: “... meu marido era professor de línguas, alemão e inglês; era professor da antiga escola alemã, que foi fechada durante a guerra”. Alemão, naturalizado brasileiro, o professor Wenzel, durante a Segunda Guerra Mundial, não conseguiu trabalhar: “... naquela época, meu marido não estava bem colocado e o que eu ganhava para sustentar os três não era assim tanto; então papai nos convidou para morar com eles e nós ficamos uma temporada com meus pais ”(idem). Em 1942, presta concurso público para o cargo de Inspetora Federal do Ensino Médio do Ministério de Educação e Saúde. Preparada para o concurso por D. Hélder, consegue classificar-se entre os primeiros colocados; contudo, não consegue ser nomeada, de imediato. Aguardou sua nomeação por dois anos, quando decidiu abordar o Ministro Capanema na saída do Ministério. A cena é por ela relatada: “...o Ministério ficava na rua onde hoje é o Teatro Regina, ali na Cinelândia, no 14° andar. ... Fiquei vigiando os horários do Ministro Capanema. O motorista ficou distraído, não fechou as portas do carro; entrei no carro, no momento em que o Ministro entrava por uma porta, eu entrava pela outra. E ele disse: - mas o que é isso? - Quem é a senhora? Eu lhe disse: sou uma professora concursada e que o senhor não nomeia; estou precisando do lugar, porque estou com o marido sem trabalho e preciso ganhar dinheiro para sustentar a família. Sabe que ele me nomeou?” (Wenzel, depoimento, 2001). Os anos cinqüenta são de intensas atividades educacionais. Gradua-se em Geografia e História, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da então Universidade do Distrito Federal (depois, denominada Universidade do Estado da Guanabara, e, hoje, Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Na UDF, estabelece relações com um grupo de colegas que, juntas, seguirão tentando implantar “uma escola diferente”. Trata-se do grupo que, sob a direção da educadora Henriette de Holanda Amado, reúne-se na recém inaugurada Escola Brigadeiro Schörtch, em Jacarepaguá. “Eu sou fundadora daquele grupo de professores que Henriette reuniu no Brigadeiro Schörtch ... os professores do 6 Brigadeiro implantaram uma escola diferente ... fornecendo aos seus alunos a oportunidade de desenvolvimento intelectual e emocional, ensinando os alunos a amar o saber, a buscar o saber, aprender a aprender, a gostar da arte, da música, da pintura ... a participar dos clubes de Geografia, de Ciências, de Inglês e Francês. ... aos sábados ainda íamos dançar no Brigadeiro Schörtch. E, assim, tivemos uns anos muito agradáveis... tudo começou lá, no Brigadeiro Schörtch, colégio dirigido pela ilustre educadora Henriette Amado, a quem presto minha homenagem” (Wenzel, depoimento, 2001). Percebe-se, aqui, a ênfase na aprendizagem tanto no plano do conhecimento (estudo das matérias) como no da criação (gostar da arte, da música,etc). Os clubes são instrumentos para aplicação de uma pedagogia que se desenvolve num contexto social e comunicativo que permite o desenvolvimento emocional dos alunos proporcionandolhes a autodisciplina e o respeito pelo outro. O Brigadeiro Schörtch é uma escola da rede estadual de ensino médio. Sob a direção de Henriette Amado desenvolveu com alunos do ensino médio (ginásio) da rede pública do Distrito Federal uma proposta educacional inovadora. A idéia central era de construir uma escola em que os alunos pudessem ser felizes, com liberdade de criar, de viver em sociedade e, ao mesmo tempo, ser preparados de modo completo e científico para participar da vida social. Composto em duas partes, o programa incluía atividades comuns, que compreendía os conhecimentos técnico-científicos, de formação geral, e uma parte de escolha livre do aluno, música, arte, línguas, desenvolvida em clubes. O forte dessa proposta são as atividades em grupos, onde a cooperação se constitui elemento operativo do programa escolar. A topografia da escola, situada na zona rural da cidade do Rio de Janeiro, favorecia o desenvolvimento de atividades fora da sala de aula. As aulas de geografia, muitas vezes, segundo D.Myrthes, realizavam-se escalando as montanhas de Jacarepaguá ou pescando nos rios que atravessam aquela região. Os indícios paracem indicar a influência de Célestin Freinet na orientação que Henriette Amado procurou dar ao Colégio. A experiência do Brigadeiro Schörtch é significativa para a implantação da Fundação Centro Educacional de Niterói. Em seu trabalho na Campanha Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário do Ministério da Educação e Cultura – CADES -, D. Myrthes ministra cursos de Geografia para professores de todo o Brasil. A experiência 7 do Brigadeiro Schörtch mereceu publicação da Editora do Brasil, livro de autoria de D. Myrthes em colaboração com Hilda Fernandes Mattos, que passou a ser utilizado pela CADES. Um dos principais colaboradores do Professor Anísio Teixeira no INEP, Professor Armando Hildebrand, convida D. Myrthes para criar uma escola de ensino médio diferente, em Niterói. Aceito o convite, D. Myrthes dedica-se a transformar uma pedreira em uma escola. Em 1960, planta o embrião da Fundação Centro Educacional de Niterói com alguns companheiros do Brigadeiro Schörtch. “Quando fui convidada pela Fundação Brasileira de Educação para abrir uma escola diferente, uma escola de formação que desse ao aluno oportunidade de desenvolvimento, de trabalho, imaginei tudo aquilo que fazíamos no Brigadeiro Schörtch” (Wenzel, depoimento, 2001). A extensão do experimento dá condições para a disseminação de princípios de uma teoria da educação fundamentada na liberdade do aluno e do professor (que pode experimentar propostas curriculares alternativas) e no caráter progressista e libertário da escola (que D. Myrthes chamou de "Escola aberta"), que se consolida no modelo do Centro Educacional de Niterói e que orientará, nos anos setenta, a proposta do Laboratório de Currículo da Secretaria Estadual de Educação do novo Estado do Rio de Janeiro na gestão Myrthes De Luca Wenzel. Porém, antes de mesmo de exercer o cargo de Secretária de Educação e Cultura, D. Myrthes teve oportunidade de difundir os princípios teórico-pedagógicos dessa “escola diferente” nos cursos de aperfeiçoamento para professores do ensino médio do Estado da Guanabara – SADEM -, que funcionava nas dependências do Instituto de Educação do Rio de Janeiro. A adesão dos professores à “escola diferente” decorre do reconhecimento da excelência da qualidade do trabalho realizado por D. Myrthes. Sua autoridade e seu prestígio moral provêm da natureza pedagógica do trabalho que desenvolvia e, sobretudo, porque os professores identificavam-se com as idéias pedagógicas de sua obra. A indicação para o cargo de Secretária de Educação e Cultura do novo Estado do Rio de Janeiro partiu de uma professora que trabalhava com D. Myrthes no SADEM. “Devo dizer que Iva Bonow, com quem trabalhei no Instituto, me fez Secretária de Educação. ...foi quem me indicou ao Faria Lima ...e, também, minhas colegas do Instituto de Educação; ele consultou Iva Bonow, que ele conhecia e apreciava o seu trabalho, e ela me indicou...” (Wenzel, depoimento, 2001). 8 Nomeada Secretária de Educação e Cultura, D. Myrthes convida para compor a sua equipe os professores do Brigadeiro Schörtch e expressivos intelectuais do Rio de Janeiro, o que lhe trará aborrecimentos com a “linha dura”do governo Militar. “D. Myrthes ... conseguiu reunir figuras representativas da cultura do Estado do Rio de Janeiro e expressivas no plano nacional e internacional” (Barbieri, depoimento, 2002). O Departamento de Cultura, dirigido por Paulo Affonso Grisolli, nome conhecido no teatro e na televisão, participante do movimento renovador do teatro brasileiro, autor da peça “Onde canta o Sabiá, que marcou a história do teatro brasileiro, desenvolveu uma política de cultura integrada à educação através de vários projetos: Concertos Didáticos, Ação Educativa nos Museus, a Escola vai ao Teatro e a Praça. Na cidade, a praça é o centro aglutinador social e cultural e como tal é centro de manifestação das diferentes atividades culturais populares: musicais, folclóricas, artísticas. No Conselho Estadual de Cultura, “D. Myrthes reuniu uma equipe, um naipe de intelectuais da maior expressão... o escritor José Rubens Fonseca, ... Edson Mota – maior restaurador na área das artes plásticas, que ocupou-se da restauração das pinturas originais de Visconti, no Teatro Municipal -, entre outros” (Barbieri, depoimento, 2002). As preocupações e a concepção das atividades culturais do novo Estado do Rio de Janeiro podem ser encontradas no Jornal Revista editado pelo Conselho de Cultura, Artefato. Marco dessa política, os encontros regionais promovidos com so Conselhos Municipais destinavam-se a promover intercâmbio cultural, o levantamento da cultura regional; através desses encontros regionais surgem os animadores culturais. A figura do animador cultural, representante local de suas manifestações, tem um papel decisivo na política cultural do Departamento de Cultura. É oportuno destaca a concepção do papel que cumpria aos Conselhos de Educação e Cultura desempenhar, como órgãos pensadores da cultura e da educação. Os Conselhos de Educação e de Cultura desenvolviam trabalho de “doutrinação, normativo, consultivo ... através de encontros e seminários ... se buscou não só a normatividade ... como também a explicitação de novos instrumentos conceituais e operativos” (SEEC: Informações n. 9, p.12). A concepção orientadora da política cultural e educacional “buscou institucionalizar a simbiose existente entre educação e cultura, estimulando o desenvolvimento de um complexo a ser partilhado por todos, cabendo à escola 9 reelaborar o dado cultural colhido, mediante a organização do conjunto de experiências da comunidade, que se constitui no currículo” ( SEEC: Informações n. 9, p.12). Propagava-se a concepção de “que educar é função social de que todos participam, e que o âmbito de atuação da escola alcança as diversas agências culturais da comunidade” (SEEC: Informações n. 9, p.13). Segundo essa visão, a reformulação de currículos orientar-se-ia no sentido de organizar os dados do contexto cultural de cada localidade, estimulando a integração escolacomunidade. O projeto CARE – Comissão de Assistência à Rede Escolar – inaugura um modelo descentralizado para gerir e aplicar os recursos destinados à manutenção e recuperação das escolas e promover a participação comunitária na realização de obras de pequeno e médio porte. Ainda, como mecanismo de descentralização, implantou-se os Centros Regionais de Educação, Cultura e Trabalho em 16 regiões-programas do Estado e 58 Núcleos Comunitários de Educação, Cultura e Trabalho. Nesta perspectiva de descentralização administrativo-pedagógica programou-se a implantação experimental em 15 escolas de 9 municípios, mas, efetivamente, somente uma conseguiu funcionar: a do Núcleo de Cordeiro, que passou a ser a Escola Experimental do Laboratório de Currículos. A Escola de Cordeiro ocupou o Pavilhão de Exposição da cidade de Cordeiro, num projeto que integrava quatro secretarias: educação, transporte, agricultura e saúde. Com uma proposta curricular inovadora para o ensino rural, de base científico-tecnológica, a Escola de Cordeiro atraiu a atenção de organizações latinoamericanas, asiáticas e européias, mas, mesmo assim, não conseguiu sobreviver à “política de apagar impressões digitais” (expressão usada por uma educadora sintetizando a descontinuidade das políticas educacionais do Estado do Rio de Janeiro; para ela, os governantes teriam como prioridade “apagar as realizações de seus antecessores”), sendo desativada em Governos posteriores. D. Mythes permaneceu à frente da Secretaria de Educação e Cultura por todo o período do Governo Faria Lima, fato que somente se verificará com o seu sucessor, Arnaldo Niskier, no Governo Chagas Freitas. O traço mais característico de sua extensa vida de educadora é explicitado por um dos seus colaboradores de muitas décadas, Ivo Barbieri: “um indicativo da estatura moral, intelectual pública de D. Myrthes, que mesmo em um período difícil como aquele da repressão política, no regime militar, é que ela se 10 manteve sempre firme na defesa de seus princípios, que basicamente tinha como regra de trabalho educativo, de educação, um trabalho de crescimento na liberdade, não na coação, na repressão, que são antídotos do trabalho educativo....[ela] dava todas as condições para as pessoas atuarem dentro desse plano, que era um plano de educação de extraordinário valor” (Barbieri, depoimento, 2002). A estatura moral e intelectual da educadora é a tradução de seu nome: D. Myrthes. BIBLIOGRAFIA Alberti,V. História oral: a Experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990. Barbieri, Ivo. Depoimentos. Fita n. 4. Arquivo da pesquisa “O Empreendimento Educativo-Cultural da Fusão: Memórias de Secretários de Educação”. UENF/CEE-RJ, 2002. Bourdieu, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa, DIFEL, 1989. Lobo, Yolanda L. Ética, Memória e História Oral. 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